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Fraude nas urnas e contestação eleitoral no Brasil: análise multiplataforma de atores políticos, viés conspiratório e moderação de conteúdo1 1 Este artigo foi apresentado no GT Cultura Política, Comportamento e Opinião Pública da 9ª edição do Congresso da Associação Brasileira de Comunicação Política, no ano de 2021.

Voter fraud and questioning elections in Brazil: multi-platform analysis of political actors, conspiratorial bias and content moderation

Fraude en las urnas y contienda electoral en Brasil: actores, conspiración y moderación en publicaciones en Facebook, Twitter y YouTube

Fraude électorale et contestation électorale au Brésil : analyse multi plateforme des acteurs politiques, biais complotistes et modération des contenus

Este artigo investiga a presença de atores, de conspiração e a moderação em conteúdos on-line com alegações infundadas de fraude eleitoral publicados durante as eleições municipais de 2020 no Brasil. Partindo do entendimento de que o acirramento dos conflitos entre as elites políticas influencia o sistema político e, por conseguinte, a estabilidade das instituições e normas democráticas, o artigo usa um corpus de 1.426.687 posts do Facebook, YouTube e Twitter para examinar a posição de influência de quem publica sobre contestação eleitoral, entender o espraiamento desses conteúdos entre meios e as características que dão a eles um apelo conspiratório. Mostra que essa pauta é mobilizada por políticos e outros líderes de opinião da direita radical. A maioria desses conteúdos se baseia em opinião política, sem menção a fontes, e tem caráter eminentemente conspiratório.

urna eletrônica; teoria da conspiração; análise multiplataforma; eleições; Brasil


Abstract

This paper investigates the presence of actors, conspiracy and moderation in online content with unfounded allegations of electoral fraud published during the 2020 municipal elections in Brazil. The study is based on the understanding that the intensification of conflicts between political elites influences the political system, and consequently the stability of democratic institutions and norms. The article uses a corpus of 1,426,687 posts from Facebook, YouTube and Twitter to examine the position of influence of those who post about electoral contestation. The objective is to understand the spread of these contents between media and the characteristics that give them a conspiratorial appeal. The paper shows that this agenda is mobilized by politicians and other opinion leaders of the radical right. The vast majority of this content is based on political opinion, without mentioning sources, and is eminently conspiratorial in nature.

Electronic voting machine; Conspiracy theory; Cross-platform analysis; Elections; Brazil

Resumen

Este estudio investiga la presencia de actores, conspiración y moderación en contenidos en línea con denuncias sin fundamento de fraude electoral publicadas durante las elecciones municipales de 2020 en Brasil. Partiendo del entendimiento de que la intensificación de los conflictos entre las élites políticas influye en el sistema político y, en consecuencia, en la estabilidad de las instituciones y normas democráticas, el artículo utiliza un corpus de 1.426.687 publicaciones de Facebook, YouTube y Twitter para examinar la posición de influencia de aquellas que publican sobre la contienda electoral, para comprender la difusión de estos contenidos entre los medios y las características que les confieren un atractivo conspirativo. El estudio muestra que esta agenda es movilizada por políticos y otros líderes de opinión de la derecha radical. La gran mayoría de este contenido se basa en la opinión política, sin citar fuentes, y tiene un carácter eminentemente conspirativo.

Urna electrónica; Teoría de la conspiración; Estudios de plataformas cruzadas; Elecciones; Brasil

Résumé

Cette étude examine la présence d'acteurs, la conspiration et la modération dans le contenu en ligne avec des allégations non fondées de fraude électorale publiées lors des élections municipales de 2020 au Brésil. Partant de l'idée que l'intensification des conflits entre les élites politiques influence le système politique et, par conséquent, la stabilité des institutions et des normes démocratiques, l'article utilise un corpus de 1 426 687 messages de Facebook, YouTube et Twitter pour examiner la position d'influence de ceux qui publient sur la contestation électorale, pour comprendre la diffusion de ces contenus entre médias et les caractéristiques qui leur confèrent un attrait complotiste. L'étude montre que cet agenda est mobilisé par des politiques et autres leaders d'opinion de la droite radicale. La grande majorité de ce contenu est basé sur l'opinion politique, sans mentionner ses sources, et est de nature éminemment complotiste.

Urne électorale; Théorie du complot; Analyse multi plateformes; Élections; Brésil

Introdução

A ascensão de líderes políticos que se promovem a partir da radicalização ideológica, estimulando a desconfiança e a hostilidade dos que se encontram “do outro lado” (outgroups), é um alerta à estabilidade democrática. Se, por um lado, a polarização partidária e ideológica se conforma sob arranjos democráticos (Abramowitz, 2010Abramowitz, A. The Disappearing Center: Engaged Citizens, Polarization, and American Democracy. New Haven: Yale University Press, 2010.), por outro, se acompanhada de estratégias que visem ao enfraquecimento das instituições públicas e normas democráticas, gera consequências corrosivas ao sistema político (Levitsky; Ziblatt, 2018Levitsky, S.; Ziblatt, D. How Democracies Die: What History Reveals About Our Future. London: Viking, 2018.; Graham; Svolik, 2020Graham, M. H.; Svolik, M. W. "Democracy in America? Partisanship, Polarization, and the Robustness of Support for Democracy in the United States". American Political Science Review, vol. 114, nº 2, p. 392-409, 2020.; Abramowitz; McCoy, 2019Abramowitz, A.; Mccoy, J. "United States: Racial Resentment, Negative Partisanship, and Polarization in Trump's America". The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, vol. 681, nº 1, p. 137-156, 2019.). No Brasil, embora estudos tenham se debruçado sobre a questão da polarização política nos anos recentes (Singer, 2013Singer, A. “Brasil, junho de 2013, classes e ideologias cruzadas”. Novos Estudos CEBRAP, vol. 97, p. 23–40, 2013. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0101-33002013000300003>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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; Chaia; Brugnago, 2014Chaia, V.; Brugnago, F. “A nova polarização política nas eleições de 2014: radicalização ideológica da direita no mundo contemporâneo do Facebook”. Revista de Arte, Mídia e Política, vol. 7, nº 21, p.99-129, 2014. Disponível em: <https://revistas.pucsp.br/aurora/article/view/22032>. Acesso em: 20 nov. 2022.
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; Ribeiro; Carreirão; Borba, 2018), a compreensão a respeito das consequências dela sobre processos eleitorais e rumos democráticos ainda é restrita, em especial, quando conflitos estão concretizados em postagens publicadas por representantes eleitos, líderes de opinião variados e canais pretensamente informativos abrigados em mais de uma plataforma digital.

A promoção de ações políticas contenciosas, que inevitavelmente moldam o clima de opinião e se desdobram em resultados político-eleitorais, pode contribuir para o aumento da desconfiança – não restrita apenas a adversários político-partidários –, e da rejeição à democracia. No Brasil, particularmente, a confiança em relação à democracia vem sofrendo queda nos últimos anos (Meneguello; Simoni Jr.; Amaral, 2018). Essa insatisfação aguda pode ser uma das faces mais nocivas da polarização política (Abramowitz; McCoy, 2019Abramowitz, A.; Mccoy, J. "United States: Racial Resentment, Negative Partisanship, and Polarization in Trump's America". The ANNALS of the American Academy of Political and Social Science, vol. 681, nº 1, p. 137-156, 2019.). No embrião desse processo, a polarização afetiva, que se vale do fortalecimento das identidades compartilhadas de um grupo (interno), está fortemente vinculada à ideia da hostilidade contra indivíduos de grupos externos (outparty; outgroup), sustentada e elaborada continuamente para produzir desafeição e estigmatização àqueles que possuem preferências divergentes (Iyengar; Sood Lelkes, 2018; Iyengar; Krupenkin, 2018Iyengar, S.; Krupenkin, M. "The strengthening of partisan affect". Political Psychology, vol. 39, p. 201-218, 2018.; Iyengar et al., 2019Iyengar, S., et al. "The Origins and Consequences of Affective Polarization in The United States". Annual Review of Political Science, vol. 22, p. 129-146, 2019.).

À luz dessas premissas e como parte de um contexto de amplificação de conflitos políticos que se desenvolvem na era da hiperconexão digital permanente, mensagens de teor conspiratório, negacionista e antissistema têm atraído engajamento, subsidiado discussões e ajudado a formar opiniões sobre assuntos políticos variados e questões de interesse público. A propagação de discursos nocivos (Faris et al., 2016Faris, R., et al. Understanding Harmful Speech Online. Cambridge: The Berkman, 2016.) e perigosos (Maynard; Benesch, 2016Maynard, J. L.; Benesch, S. “Dangerous Speech and Dangerous Ideology: Na Integrated Model for Monitoring and Prevetion”. Genocide Studies and Prevention: An International Journal, vol. 9, nº 3, p. 70-95, 2016. Disponível em: <https://doi.org/http://dx.doi.org/10.5038/1911-9933.9.3.1317>. Acesso em: 10 dez. 2020.
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) está associada a crises de legitimidade em muitas democracias (Bennett; Livingston, 2018Bennett, W. L.; Livingston, S. "The disinformation order: Disruptive communication and the decline of democratic institutions". European Journal of Communication, vol. 33, nº 2, p. 122-139, 2018.) e beneficia grupos políticos que desprezam valores e procedimentos democráticos. As consequências a longo prazo, contudo, seguem incertas e como objeto de disputa. Pensar sobre a polarização política e o acirramento de atitudes autoritárias, de todo modo, é dirigir a atenção ao papel das elites políticas e aos usos de plataformas digitais nos processos comunicacionais e interativos que fomentam a desconfiança institucional e o ceticismo democrático na contemporaneidade.

Diante desse contexto, esta investigação se propõe a examinar as redes de atores e o viés conspiratório de conteúdos que contestam a urna eletrônica e defendem a tese de manipulação eleitoral, vértice elementar da paisagem antidemocrática protagonizada pelo conservadorismo da direita radical articulado on-line. Este artigo traz uma análise cruzada entre plataformas, com base em dados de três das mais populares mídias sociais - Facebook, Twitter e YouTube -, entre os dias 01 e 30 de novembro de 2020, quando aconteceram eleições municipais no Brasil. Na seção teórica, delimitamos a contestação eleitoral como pauta antissistema e conspiratória que se desenvolve no âmbito de redes digitais conservadoras e do populismo autoritário de direita contemporâneo. Após a descrição metodológica, os resultados mostram: a) quem são os atores mais influentes nessas conversas políticas on-line, tendo o desempenho médio digital como indexador; b) a reverberação das postagens do Twitter e do YouTube no Facebook; c) os temas e o viés conspiratório dessas publicações, e d) a incidência de advertência, por parte das plataformas, sobre esses conteúdos.

Urna eletrônica, contestação eleitoral e teorias da conspiração

A primeira experiência de automatização da coleta de votos no Brasil foi implementada, em 57 municípios, nas eleições municipais de 1996, mas a ideia de uma “máquina de votação” já aparecia como projeto no Código Eleitoral de 1932, a primeira lei eleitoral do país. Tavares e Moreira (2011)Tavares, A. R.; Moreira, D. R. R. "O voto eletrônico no Brasil". Estudos Eleitorais, vol. 6, nº 3, p. 9-32, 2011. situam que, embora projetos de urnas eletrônicas tenham sido apresentados ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ao longo dos anos, o processo foi acelerado pela criação do cadastro único informatizado de eleitores no ano de 1986. Nesse período, ocorreu também a criação de um parque computacional com rede interligada de transmissão de dados. Desde a sua implementação, a urna eletrônica tem sido considerada modelo eficiente pelo tempo mínimo de divulgação do resultado das eleições, visto que a demora da apuração é considerada fator que enseja a ocorrência de fraudes, e pela segurança do voto, a partir de procedimentos de transparência (Tavares; Moreira, 2011Tavares, A. R.; Moreira, D. R. R. "O voto eletrônico no Brasil". Estudos Eleitorais, vol. 6, nº 3, p. 9-32, 2011.). Antes da implementação da máquina de votação, o aumento artificial do número de eleitores era tipo de fraude comum (Nicolau, 2004Nicolau, J. “A participação eleitoral: evidências sobre o caso brasileiro”. In: Anais do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 2004. Disponível em: <https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/JairoNicolau.pdf>. Acesso em 15 nov. 2020.
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). Depois de 1986, nas eleições majoritárias de 1998, o uso de urna eletrônica abrangeu a maioria dos eleitores (58,3% do total de 106.053.106) e favoreceu o aumento da participação política eleitoral (Nicolau, 2004Nicolau, J. “A participação eleitoral: evidências sobre o caso brasileiro”. In: Anais do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, Coimbra, 2004. Disponível em: <https://www.ces.uc.pt/lab2004/pdfs/JairoNicolau.pdf>. Acesso em 15 nov. 2020.
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).

Com o surgimento da internet comercial, alegações de fraude na urna eletrônica e golpe eleitoral começaram a ser publicados em sites de natureza diversa, entre blogs e canais hiperpartidários, muito antes do boom dos serviços de redes sociais e de mensageria instantânea. O TSE, por sua vez, em seus comunicados, informa que o voto eletrônico é seguro, que a infraestrutura do sistema é inviolável e que é impossível identificar em quem o eleitor votou, seguindo determinação constitucional de sigilo de voto5 5 Disponível em: <https://www.tse.jus.br/eleicoes/urna-eletronica>. Acesso em: 28 abr. 2021. Aponta ainda que são realizados testes públicos de segurança, votações paralelas e auditorias de funcionamento periodicamente6 6 Disponível em: <https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Dezembro/veja-como-funciona-a-auditoria-de-funcionamento-das-urnas-eletronicas>. Acesso em: 28 abr. 2021. . Entre os anos 2014 e 2022, período em que se sucederam crises políticas que foram do impeachment de Dilma Rousseff (então Presidenta da República, pelo Partido dos Trabalhadores), em 2016, à eleição de Jair Bolsonaro (à época filiado ao Partido Social Liberal) para Presidente da República, em 2018, e à reeleição de Luiz Inácio Lula da Silva (Partido dos Trabalhadores), em 2022, a contestação das urnas eletrônicas e a desconfiança do processo eleitoral como um todo foram centrais para mobilizar redes radicalizadas em plataformas digitais (Munn, 2021Munn, L. “More than a mob: Parler as preparatory media for the US Capitol storming”. First Monday, vol. 26, nº 3, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.5210/fm.v26i3.11574>. Acesso em: 10 dez. 2020.
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).

Sob alegação de que as urnas eletrônicas não garantem, sozinhas, a total segurança do voto, propostas de reformulação do método de votação brasileiro têm sido disputadas, sem êxito, por parte de políticos da direita radical. Na minirreforma eleitoral de 2009, o Congresso Nacional aprovou (Lei nº 12.034/2009) a necessidade de impressão da identificação de voto vinculada à assinatura digital para as eleições presidenciais de 2014, o que foi invalidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011. Em 2015, por iniciativa do então deputado federal Jair Bolsonaro (naquele momento, filiado ao Partido Progressistas), a reinserção do voto impresso como suplementação ao eletrônico foi adicionada à minirreforma eleitoral, o que foi entendido como inconstitucional pelo STF, antes das eleições de 2018, por decisão liminar - posição que foi mantida na apreciação do mérito em 2020. Em março do mesmo ano, Jair Bolsonaro, dessa vez Presidente da República, afirmou, sem apresentar qualquer prova7 7 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/01/veja-o-que-bolsonaro-ja-disse-sobre-urnas-eletronicas-e-fraude-em-eleicao-sem-apresentar-provas.shtml>. Acesso em: 29 abr. 2021. que há fraude nas urnas nas eleições brasileiras. Naquele contexto, tramitava na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/19, apelidada de “PEC do Voto Impresso”, de autoria da deputada federal Bia Kicis (Partido Liberal), e apoiada pelo governo Bolsonaro para ser aprovada até as eleições de 20228 8 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/maquiavel/apesar-da-ccj-travada-bia-kicis-so-pensa-em-outra-coisa-o-voto-impresso/>. Acesso em: 29 abr. 2021. . A proposta foi rejeitada, pelo plenário da Câmara, em agosto de 20219 9 Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/08/10/em-derrota-para-bolsonaro-camara-rejeita-e-arquiva-pec-do-voto-impresso.ghtml>. Acesso em: 16 dez. 2021. Em 2023, o Tribunal Superior Eleitoral declarou Jair Bolsonaro inelegível por abuso de poder político e econômico pela reunião na qual apresentou para um público de embaixadores, com transmissão ao vivo pela rede pública de televisão, falsas provas e falsas informações sobre fraude nas urnas.

Um relatório da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas ajuda a ilustrar como as alegações contra o sistema eleitoral evoluíram também em plataformas digitais entre 2014 e 2020. A pesquisa identificou 103.542 links (URLs) e 337.204 postagens no Facebook e no YouTube que incitavam desconfiança no método de votação e nas eleições propriamente ditas. Esse apanhado revela que publicações que contestam as eleições apresentaram crescimento inclusive em anos não eleitorais. Mesmo sendo questão mais latente em pleitos majoritários, esse tipo de conteúdo circulou intensamente nas eleições municipais de 2020, com circulação menor apenas da que ocorreu em 2018 (Ruediger, 2020a). Em outro estudo, focado especificamente na corrida municipal de 2020, localizaram-se 1.426.687 postagens publicadas no Facebook, YouTube e Twitter que afirmavam que o método de votação brasileiro é fraudulento e que o voto é violável. Na esteira do ataque cibernético ao sistema do TSE no dia da apuração do primeiro turno, somou-se à tese de fraude generalizada nas eleições o apelo à reinserção do voto impresso (Ruediger, 2020b).

Com base nas eleições de 2018 no Brasil, o estudo de Recuero (2020)Recuero, R. "#Fraudenasurnas: Disinformation's Discursive Strategies on Twitter During Brazilian 2018 Elections". Revista Brasileira de Linguística Aplicada, vol. 20, nº 3, p. 383-406, 2020. identificou pelo menos 1.483.322 tweets com menção à urna eletrônica, em apenas seis dias do mês de outubro, o que também permite dimensionar o tamanho das redes de atores que disseminam desconfiança eleitoral. Recuero (2020)Recuero, R. "#Fraudenasurnas: Disinformation's Discursive Strategies on Twitter During Brazilian 2018 Elections". Revista Brasileira de Linguística Aplicada, vol. 20, nº 3, p. 383-406, 2020. enfatiza a participação de líderes de opinião que adotam estratégias para reforçar discursos e narrativas que confirmem suas visões políticas específicas a partir do uso de conteúdos e canais considerados hiperpartidarizados. Esse comportamento que envolve usuários e fontes aumenta a circulação de conteúdos enganosos nas plataformas digitais. Em 2018, fake news sobre fraude nas urnas circularam intensamente no Facebook, Twitter e WhatsApp, ainda no período pré-eleitoral, entoadas por canais e atores alinhados à extrema-direita, refletindo identidades e afetos ligados a bolsonarismo, antipetismo, lavajatismo, antiesquerdismo, patriotismo, nacionalismo, intervencionismo militar, conservadorismo religioso etc. (Gomes; Dourado, 2019Gomes, W.; Dourado, T. "Fake news, um fenômeno de comunicação política entre jornalismo, política e democracia". Estudos em Jornalismo e Mídia, vol. 16, nº 2, p. 33-45, 2019.). A contestação das urnas e do sistema eleitoral continuou como preocupação predominante do eleitorado de perfil conservador, das novas direitas e, mais especificamente, do bolsonarismo (Alves, 2019Alves, M. "Desarranjo da visibilidade, desordem informacional e polarização no Brasil entre 2013 e 2018". Tese de Doutorado em Comunicação. Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019.; Barreto; Junior, 2020; Dourado, 2020Dourado, T. "Fake news na eleição presidencial de 2018 no Brasil". Tese de Doutorado em Comunicação. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2020.; Chagas; Carreiro, 2021Chagas, V.; Carreiro, R. Macarthismo no Zap: Como se comporta a rede anticomunista de apoiadores de Jair Bolsonaro. In: Cervi, E.; Weber, M. H. (Orgs.). Impactos político-comunicacionais nas eleições brasileiras de 2018. Curitiba: CPOP/Carvalho comunicação, p. 201-228, 2021.; Piaia, 2021Piaia, V. "Comunicação política e construção da realidade: o WhatsApp nas eleições presidenciais de 2018". Tese de Doutorado em Sociologia. Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Rio de Janeiro, 2021.). Um estudo sobre os temas de campanhas eleitorais oficiais dos dois principais presidenciáveis (com base nos vídeos postados nas fanpages de Fernando Haddad, do PT; e Jair Bolsonaro, do PSL) mostrou que o “descrédito nas urnas eletrônicas” foi pautado apenas pela candidatura de Jair Bolsonaro (Weber et al., 2021Weber, M. H., et al. Rupturas político-estéticas na eleição presidencial de 2018: As fanpages de Bolsonaro e Haddad. In: Cervi, E.; Weber, M. H. (Orgs.). Impactos político-comunicacionais nas eleições brasileiras de 2018. Curitiba: CPOP/Carvalho Comunicação, 2021., p. 46).

Teorias da conspiração e o caso da contestação eleitoral no Brasil

É a partir do ano de 2014, quando plataformas de mídias sociais, a começar pelo Facebook e Twitter (Braga; Carlomagno, 2018Braga, S.; Carlomagno, M. “Eleições como de costume? Uma análise longitudinal das mudanças provocadas nas campanhas eleitorais brasileiras pelas tecnologias digitais (1998-2016)”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 26, p. 7-62, 2018. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-335220182601>. Acesso em: 20 out. 2021.
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), passaram a ser mais usadas para conversa política e discussão pública, que a desconfiança eleitoral voltou a se posicionar na agenda pública. Esse cenário emerge junto à maior propagação de conteúdo problemático e nocivo, como fake news e enganos políticos, em serviços de redes sociais e de mensageria instantânea. Ao mesmo tempo, crescia a quantidade de canais de conteúdo hiperpartidário on-line (Barnidge; Peacock, 2019Barnidge, M.; Peacock, C. "A third wave of selective exposure research? The challenges posed by hyperpartisan news on social media". Media and Communication, vol. 7, n° 3, p. 4-7, 2019.), que ajuda a espalhar e a alimentar ideários de movimentos reacionários de direita (Bennett; Livingston, 2018Bennett, W. L.; Livingston, S. "The disinformation order: Disruptive communication and the decline of democratic institutions". European Journal of Communication, vol. 33, nº 2, p. 122-139, 2018.), dificultando a tomada de decisões bem-informadas que, via de regra, favorece o bem-estar coletivo (Garrett; Long; Jeong, 2019). Esse cenário de sociabilidade digital e hiperconexão promove capilaridade social a postagens com contestação eleitoral, ampliando as oportunidades de ação na institucionalidade política e fomentando o clima de inconformismo social. Entender a performance de diferentes tipos de publicações nocivas, aqui especificamente mensagens conspiratórias sobre o processo eleitoral, permite compreender, também, a dinâmica complexa da formação da opinião pública contemporânea.

Objeto de estudo de interesse multidisciplinar, a teoria da conspiração é definida como “explicação de um evento futuro, corrente ou histórico que cita como principal fator causal um grupo de pessoas poderosas, os conspiradores, agindo em segredo para benefício próprio contra o bem comum”10 10 No original: “(...) explanation of historical, ongoing, or future events that cites as a main causal factor a group of powerful persons, the conspirators, acting in secret for their own benefit against the common good” (Uscinski, 2018, p, p. 235). (Uscinski, 2018Uscinski, J. E. "The Study of Conspiracy Theories". Argumenta, vol. 3, nº 2, p. 233-245, 2018., p. 235, tradução nossa) e, quando em grande número e popular, serve de sinal de alerta de ameaças à ordem democrática, embora seus riscos reais ainda sejam pouco investigados cientificamente (Uscinski, 2018Uscinski, J. E. "The Study of Conspiracy Theories". Argumenta, vol. 3, nº 2, p. 233-245, 2018.).

Enquanto a conspiração se refere à ideia de arranjo secreto que envolve grupos poderosos, a teoria da conspiração consiste no roteiro que estrutura a explicação alternativa propriamente dita, sendo ambas, hoje, também abrangidas nas pesquisas sobre desinformação on-line (Heft; Buehling, 2022Heft, A.; Buehling, K. “Measuring the diffusion of conspiracy theories in digital information ecologies”. Convergence, vol. 28, nº 4, p. 940-961, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1177/13548565221091809>. Acesso em: 19 jul. 2021.
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), de forma associada à crise epistêmica da atualidade. Para Aggio (2021)Aggio, C. Teorias conspiratórias, verdade e democracia. In: Alzamora, G.; Mendes, C. M.; Ribeiro, D. (Orgs.). Sociedade da Desinformação e Infodemia. Belo Horizonte: Selo PPGCom, p. 63-86, 2021., crenças conspiratórias têm base informacional, cognitiva e epistêmica, e um de seus traços elementares é a refutação da autoridade epistêmica validada socialmente. Oliveira (2020)Oliveira, T. “Desinformação científica em tempos de crise epistêmica: circulação de teorias da conspiração nas plataformas de mídias sociais”. Fronteiras - Estudos Midiáticos, vol. 22, nº 1, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.4013/fem.2020.221.03>. Acesso em: 19 jul. 2021.
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aponta que a sustentação de posição cética em relação a instituições políticas, imprensa, escola, governos e sistema democrático ocorre de forma independente da posição no espectro político-partidário, estando orientada pela necessidade de os indivíduos buscarem acessar uma certa realidade ocultada dos acontecimentos.

A alegação de fraude na urna eletrônica e no processo eleitoral como um todo, assim sendo, alude à existência de pessoas e de grupos poderosos capazes de maquinar e corromper o sistema de forma oculta (Sunstein; Vermeule, 2009Sunstein, C. R.; Vermeule, A. "Conspiracy theories: Causes and Cures". Journal of Political Philosophy, vol. 17, n° 2, p. 202-227, 2009.). Pyrhönen e Bauvois (2020)Pyrhönen, N.; Bauvois, G. "Conspiracies beyond Fake News. Producing Reinformation on Presidential Elections in the Transnational Hybrid Media System". Sociological Inquiry, vol. 90, nº 4, p. 705-731, 2020. afirmam que, assim como o Pizzagate, a crença na fraude nas urnas explora a ideia da “elite corrupta” imbuída em destruir a democracia, com alegações de que imigrantes e defuntos constam como eleitores ilegal e fraudulentamente, o que atraiu, também, volume de publicações expressivo nas mídias sociais durante as eleições de 2016 nos Estados Unidos. Do ponto de vista conjuntural, teorias da conspiração que envolvem o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas, mais especificamente, também prosperam diante de um quadro de desconfiança institucional, sendo fortalecidas quando endossadas por lideranças políticas influentes que seguem a cartilha do populismo autoritário, como pode ser caracterizado Jair Bolsonaro (Oliveira; Maia, 2020Oliveira, B. S.; Maia, R. C. M. “Redes Bolsonaristas: ataque ao politicamente correto e conexões com o populismo autoritário”. Confluências, vol. 22, nº 3, p. 83-114, 2020. Disponível em: <https://periodicos.uff.br/confluencias/article/view/45506>. Acesso em: 19 jul. 2021.
https://periodicos.uff.br/confluencias/a...
).

O modo como essa crença se expande por plataformas e canais digitais, alinhado à retórica populista, tende a se intensificar em eleições e a culminar em episódios extremos, como foi a invasão do Capitólio por apoiadores de Donald Trump logo após derrota eleitoral do republicano, no ano de 2020, nos Estados Unidos. No Brasil, apoiadores de Jair Bolsonaro, por sua vez, invadiram as sedes dos três poderes da República, em 8 de janeiro de 2023, consubstanciados pela negação da vitória de Luiz Inácio Lula da Silva. Um ano antes, Jair Bolsonaro já sugeria que invasão típica à do Capitólio poderia ocorrer no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 22, uma maneira de auditar o voto, vamos ter um problema maior que nos Estados Unidos. A fraude existe”11 11 Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/01/07/um-dia-apos-a-invasao-do-capitolio-bolsonaro-volta-a-dizer-sem-provas-que-houve-fraude-na-eleicao-dos-eua.ghtml>. Acesso em: 29 maio 2021. Segundo Prior e Araújo (2021Prior, H.; Araújo, B. "Media, populismo e espaço público: Desafios contemporâneos". Mediapolis -Revista de Comunicação, Jornalismo e Espaço Público, vol. 12, p. 5-16, 2021., p. 6), vieses antielite e antissistema - posicionamento contrário à elite dominante12 12 oaventura de Sousa Santos (2021) explica que a postura antissistema que acompanha os movimentos populistas de extrema-direita neste século XXI tem se vinculado à verve autoritária de supressão da democracia, e não à subversão do modelo capitalista pelo paradigma da democracia radical. Disponível em: <https://outraspalavras.net/movimentoserebeldias/boaventura-grande-disputa-pelo-antissistema/>. Acesso em: 22 nov. 2022. - por parte do populista radical reforçam a imagem pública do ator político como “impoluto que não pertence ao sistema político tradicional” e, por isso mesmo, “um homem comum”.

O lugar exercido pelo líder de opinião pode ser ilustrado pelos resultados de sondagem de opinião realizada pelo Instituto Datafolha entre os dias 8 e 10 de março de 2020, ano eleitoral, que mostrou que 27,4% dos brasileiros não confiavam nas urnas eletrônicas, 35,5% confiavam pouco e 35,5% confiavam muito. Ao investigar esses dados, pesquisadores encontraram que, do ponto de vista sociodemográfico, homens, mais velhos, com ensino superior e renda entre 5 e 10 salários mínimos tiveram menos chances de não confiar nas urnas (Borba; Dutt-Ross, 2020). Quando os dados foram cruzados com variáveis explicativas associadas à cultura política, encontrou-se que a confiança nas declarações do presidente Jair Bolsonaro aumentava em 68% as chances de os respondentes não confiarem nas urnas, e que a confiança na figura pessoal de Bolsonaro gerava 74% mais chance de não confiar nas urnas. A pesquisa evidenciou, ainda, que quem era a favor da vacina obrigatória para todos os brasileiros tinha 70% a mais de chances de confiar nas urnas, e que, enquanto o eleitor que tomaria vacina contra Covid-19 desenvolvida pelos Estados Unidos tinha 27% de chances a mais de não confiar nas urnas, aquele que tomaria vacina, contra o mesmo vírus, formulada pela China tinha 121% a mais de chances de confiar na urna eletrônica do que os que não tomariam vacina (Borba; Dutt-Ross, 2020). Entretanto, e a despeito da força do contexto de polarização política e do papel exercido por líderes populistas, a predisposição ao pensamento conspiratório é entendida como fator que explica, mais do que afetos partidários, a crença na fraude eleitoral (Edelson et al., 2017Edelson, J., et al. “The Effect of Conspiratorial Thinking and Motivated Reasoning on Belief in Election Fraud”. Political Research Quarterly, vol. 70, nº 4, p. 933-946, 2017. Disponível em: <https://doi.org/10.1177/1065912917721061>. Acesso em: 19 jul. 2021.
https://doi.org/10.1177/1065912917721061...
, p. 11).

Para caracterizar o fenômeno da propagação de conspiração sobre o processo eleitoral por meio de plataformas digitais no Brasil, parte-se, aqui, do pressuposto de que alegações de fraude e manipulação eleitoral são, primeiramente, infundadas no país e, complementarmente, são narrativas que têm como principais algozes políticos de esquerda, países governados pela esquerda e instituições públicas (como o Tribunal Superior Eleitoral), apresentados como agentes capazes de corromper o sistema para favorecer outros, em especial, governos entendidos como também associados direta ou indiretamente à esquerda. Com base nesse ideário, a urna eletrônica e a eleição em si seriam manipuladas por agentes influentes (empresários, filantropos, empresas de software, hackers, governos e partidos) com o objetivo de manter a esquerda no poder13 13 Texto publicado no MeioBit oferece um resumo das elaborações de teorias da conspiração sobre fraude nas urnas que circularam nas eleições de 2014. Disponível em: <https://tecnoblog.net/meiobit/301637/nova-teoria-conspiratoria-contra-o-partido-dos-trabalhadores-aponta-envolvimento-do-richard-stallman-na-suposta-fraude-das-eleicoes/>. Acesso em: 29 abr. 2021. Quem costuma aderir às teses de fraude na urna eletrônica, na apuração dos votos e no processo eleitoral levanta argumentos de que o Brasil é o único país no mundo a usar esse tipo de sistema automatizado, que o software pode ser adulterado e que a contagem de votos não pode ser auditável, ficando a cargo do equipamento, entre outros motivos para a desconfiança. Nas próximas seções, este artigo busca entender, em profundidade, o peso do teor conspiracionista em posts sobre fraude nas urnas e fraude eleitoral que são, primeiramente, originados no Twitter e no YouTube e, depois, repercutidos no Facebook.

Espelhando plataformas: o Twitter e o YouTube sob a ótica do Facebook

A desconfiança acentuada contra a urna eletrônica, o Tribunal Superior Eleitoral e o sistema eleitoral como um todo no Brasil assume centralidade no ecossistema on-line da direita radical, o que justifica a necessidade de observação do fenômeno em diferentes plataformas digitais. Embora estudos de desinformação on-line tenham investigado diferentes perspectivas do fenômeno no Brasil e no mundo, a maior parte deles dirige atenção a uma única plataforma (Rogers, 2017Rogers, R. Digital Methods for Cross-platform Analysis. In: Burgess, J.; Marwick, A.; Poell, T. (Eds.). The SAGE Handbook of Social Media, p. 91-108, 2017.), em especial, o Twitter ou o Facebook. Em menor proporção, YouTube e Instagram, e posteriormente Tik Tok e Kwai, também têm sido ambientes isolados de estudos nos últimos anos, principalmente com foco na ação política das novas direitas, na propagação de teorias da conspiração e na ascensão de canais hiperpartidários.

Com base nesse ponto de partida, esta pesquisa se propõe a compreender o teor, a circulação e o volume de interações de mensagens usadas para contestação eleitoral, a partir de interseções entre três meios: o Facebook, o Twitter e o YouTube. Por meio do uso de métodos digitais e análise de conteúdo, é realizada uma análise cruzada entre plataformas em quatro níveis. No primeiro nível, os dados das três plataformas são calculados e examinados individualmente e isso inclui os perfis mais influentes, a interação digital dos posts e a análise de conteúdo, esta última operacionalizada a partir das categorias viés conspiratório, temática, fontes e moderação de conteúdo (publicações advertidas pelas plataformas). Em seguida, a pesquisa cruza os dados dos três diferentes meios tendo o Facebook, serviço de rede social mais popular no Brasil e no mundo, como plataforma-referência. Por meio desse espelhamento, a pesquisa se propõe a identificar, portanto, a presença de posts originais das outras duas plataformas (Twitter e YouTube) no Facebook. Em seguida, busca entender a presença de viés conspiratório nas postagens que alegam fraude nas urnas e fraude eleitoral. Por fim, a análise se debruça na identificação das publicações de viés conspiratório que foram advertidas pela atividade de moderação de conteúdo do Facebook.

Premissas e perguntas de pesquisa

Tendo em vista que a agenda de contestação eleitoral, com foco na urna eletrônica, emerge em um momento em que há no Brasil um clima politicamente radicalizado e bem como uma instrumentalização de ferramentas e plataformas digitais nesse sentido, este artigo entende que existe tendência de certa convergência argumentativa em torno da defesa do voto impresso, dos ataques à imprensa e ao TSE, e também de ceticismo quanto à segurança eleitoral e à transparência do sistema de votação. Com base nisso, esta pesquisa parte do pressuposto de que há uma captura desses argumentos pelo campo político de direita alinhado ao governo Jair Bolsonaro, presidente do Brasil entre 2018 e 2022. Compreende-se, de antemão, que não há disputa política e atuação significativa de atores políticos de oposição ao governo e da esquerda nessa temática. Pressupõe-se, ainda, que a maioria dessas mensagens é essencialmente especulativa e dialoga diretamente com conspirações.

Assim, para entender o papel das lideranças políticas de direita radical, o lugar da conspiração e a dinâmica dessas mensagens on-line, este artigo busca responder às seguintes questões de pesquisa:

QP1: Quais são os principais perfis que impulsionaram posts usados para contestação eleitoral no pleito de 2020 no Brasil?

QP2: Posts populares originais do Twitter e do YouTube circularam também no Facebook? Quais as características dessas mensagens?

QP3: Posts que pregam a contestação eleitoral têm teor conspiratório? Se sim, esse ideário conspiratório se diferencia quando analisado em relação a temas e fontes?

QP4: Posts usados para contestação eleitoral são advertidos pelo Facebook?

Procedimento de coleta de dados

Este artigo se baseia em um conjunto de 1.427.463 posts de mídias sociais, sendo 96.001 provenientes do Facebook, 862 do YouTube e 1.330.600 do Twitter. Esses dados foram coletados entre os dias 1 e 30 de novembro de 2020, mês que abrangeu o primeiro e o segundo turnos das eleições municipais brasileiras bem como a corrida presidencial nos Estados Unidos. A coleta de dados foi realizada por diferentes ferramentas, de acordo com o que era permitido por cada plataforma no momento do desenvolvimento da pesquisa. Assim sendo, no Facebook, usou-se o CrowdTangle; no YouTube, a API pública; e no Twitter, o Trendsmap. O procedimento de coleta de dados foi orientado por estruturas linguísticas únicas para uso nos três meios. Essas estruturas linguísticas incluíram palavras, termos e expressões relacionados a temas e subtemas que envolvem a noção de desconfiança no sistema eleitoral, como fraude nas urnas, vulnerabilidade do voto, golpe eleitoral, voto impresso, interferência ilegítima e manipulação do sistema de apuração.

Como explicitado na Tabela 1, o Twitter foi, sem dúvida, a plataforma que concentrou o maior volume de mensagens contra o sistema eleitoral no curso do pleito municipal e do processo de apuração de votos nos Estados Unidos, abrangendo 93% do corpus. Como as eleições municipais brasileiras e a corrida presidencial norte-americana ocorreram no mesmo mês, as denúncias de fraude nas urnas realizadas por Donald Trump e apoiadores ajudaram a fortalecer, no Brasil, a reivindicação de fraude na agenda de uma eleição tradicionalmente pautada por assuntos de ordem local. A quantidade maior de dados ter sido obtida do Twitter coaduna com a própria característica da plataforma, composta por posts curtos, o que dá dinâmica e efemeridade ao feed, tornando-se terreno fértil para fins propagandísticos, com disparos coordenadamente massivos e repetitivos, como quando hashtags sobre assuntos políticos entram para os trending topics. É importante frisar que, embora esse conjunto de dados seja formado por postagens que tocaram no rol de assuntos da contestação eleitoral, em especial, fraude na urna eletrônica e ataques ao TSE, isso não significa que todos eles tenham tido teor antissistema e conspiratório, tampouco tenham atraído desempenho digital significativo. Por isso, este artigo não foca no acúmulo de posts, mas se volta àqueles que foram mais relevantes para dar força política à pauta, tendo como parâmetro o engajamento digital obtido.

Tabela 1
Corpus de pesquisa

Estrutura da análise

A análise se divide em quatro níveis: o primeiro analisa dados do Facebook, Twitter e YouTube; o segundo observa os posts dessas duas plataformas em circulação no Facebook; o terceiro se concentra na análise de conteúdo dos posts mais relevantes, em termos de interação digital, no Facebook; e o quarto, na atividade de moderação de conteúdo da plataforma

Como ponto de partida, no primeiro nível, usa-se o corpus composto por 1.427.463 publicações para mensurar o desempenho digital médio e, com isso, identificar os principais atores (perfis) responsáveis por realizar publicações sobre os temas sob análise.

O desempenho digital médio é a média de engajamento das publicações, e é calculado conforme as métricas usadas por cada plataforma analisada: o cálculo é realizado a partir da soma das métricas de engajamento adotadas da rede dividida pelo número de publicações de cada perfil sobre o tema no período analisado. No Facebook, portanto, foi considerado o somatório de curtidas, comentários, compartilhamentos e reações; no YouTube, o acúmulo de visualizações; e, no Twitter, a métrica de engajamento considerada foi o retuíte. Assim, é possível localizar quem são e aferir como se distribui o desempenho digital médio dos atores mais influentes em cada rede. A segunda etapa de análise se baseia em uma subamostra composta por 96 mil publicações apenas do Facebook ‒ plataforma-referência para o exame de postagens originais dos outros dois meios (Twitter e YouTube). Essa subamostra foi construída com base nas publicações feitas pelas 20 contas com maior desempenho digital nas três plataformas estudadas. Com isso, tem-se como objetivo identificar o eixo principal de disseminação on-line de conteúdo de contestação eleitoral e como esse conteúdo é reproduzido no Facebook. Por fim, este artigo analisa os tópicos, o teor conspiratório e o tratamento adotado pelo Facebook para lidar com publicações que exploram a ideia de fraude nas urnas e de fraude eleitoral. Para isso, a pesquisa filtrou, por interações digitais, as principais publicações das 20 contas. Foram selecionadas 81 publicações, das quais permaneceram 68, pois 13 postagens foram removidas das respectivas contas pela plataforma.

Quadro 1
Fases da análise

Com base nessa subamostra de 68 posts, realizou-se análise de conteúdo estruturada em torno de quatro categorias: 1) tema da publicação (tópico central do post); 2) fonte que embasa a publicação (referência que subsidia o relato do post); 3) post verificado (se foi sinalizado como falso ou não confiável pela plataforma); 4) viés conspiratório. Essa categorização foi realizada por dois codificadores, e os casos divergentes foram definidos por um terceiro.

Com base na revisão de literatura, assume-se que o conteúdo tem viés conspiratório se menciona, de forma direta ou indireta, a existência de planos secretos e/ou de grupos poderosos que praticam manipulação sistemática, se explora a ideia divisionista entre povo e elite corrupta, se afirma que a democracia e as eleições são controladas por poucos de forma oculta, e se comunica ter conjunto de provas que apoiam as teses disseminadas. Entre as categorias, a definição da existência de viés conspiratório ou não em uma publicação é a que apresenta maior margem interpretativa.

Resultados: Contestando as eleições no Facebook, Twitter e YouTube

Contas mais influentes

A partir da média do total de engajamento obtido pelos perfis verificados, páginas e grupos públicos envolvidos no debate sobre desconfiança no sistema eleitoral brasileiro, foi possível identificar os principais influenciadores do tema, ou seja, os perfis que obtiveram melhor desempenho digital médio (maior alcance no Facebook, no Twitter e no YouTube). Os dados das contas mais influentes nas três plataformas estão reunidos no Gráfico 1:

Gráfico 1
Desempenho Digital - Facebook, Twitter e YouTube

Facebook - A lista dos 20 principais influenciadores é marcada pela forte presença de perfis verificados de figuras públicas e também pela presença de duas páginas de meios de comunicação social - “History Channel” e “Os Pingos dos Is - Jovem Pan” -, de uma página de canal da mídia conservadora de direita (“Claudio Lessa”); de uma página de ativismo ligada ao campo progressista de centro-esquerda (“Quebrando o Tabu”); de uma página de ativismo ligada ao campo conservador (“Professor Paschoal”); e de duas páginas humorísticas mais alinhadas ao progressismo (“Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga” e “Bruno Sartori”).

Se, por um lado, os dados mostram forte presença de políticos eleitos e canais digitais de direita radical para mobilizar a pauta da contestação eleitoral, como discutido no referencial teórico deste artigo, por outro, revelam existir poucas contas bem posicionadas no campo progressista com força para reagir às alegações infundadas de fraude.

As figuras políticas que se engajaram no tema se distribuem por diferentes cargos representativos, desde o então Presidente da República, Jair Bolsonaro, a deputados federais, como André Janones (Avante-MG), Carla Zambelli (PSL-SP), Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), Filipe Barros (PSL-PR), Otoni de Paula (PSC-RJ), Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PSL-SP), Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), Fernando Francischini (PSL-PR), Carlos Jordy (PSL-RJ) e Marco Feliciano (Republicanos-SP), e ex-presidenciáveis, como João Amoêdo (NOVO). É importante destacar que, dessa lista, nem todos produziram posts que colocaram o sistema eleitoral sob desconfiança. Alguns constam da lista por terem feito postagens que dialogavam com essa narrativa, sem necessária adesão, como são os casos de André Janones e João Amoêdo.

Apesar de a análise da evolução do debate indicar predominância de perfis que endossaram suspeitas em relação ao sistema eleitoral, a análise do desempenho digital médio também ressalta a presença e o espaço de influenciadores críticos, que formaram um conjunto heterogêneo, dentre eles perfis como “Quebrando o Tabu”, “Ajudar o povo de humanas a fazer miçanga”, “João Amoêdo 30”, “History Channel” e “Bruno Sartori”.

Nota-se uma diferença nos padrões de comunicação entre os campos políticos, com atuação mais intensa de grupos e páginas pequenas, sobre esse tema, no campo conservador, e um cenário mais plural entre os principais influenciadores ‒ ainda que com predominância de perfis alinhados ao governo de Jair Bolsonaro. A diferença também fica evidente em relação ao desempenho digital médio obtido por perfis da política institucional alinhados ao campo conservador que formam uma espécie de “bancada digital” em torno do tema. A ausência de perfis da política institucional ligados ao campo da esquerda é marcante, e a presença desse campo se faz de modo difuso por meio de páginas humorísticas ou em alinhamento efêmero com linhas editoriais de veículos de mídia tradicional.

YouTube - Quando é medida a performance digital dos canais no YouTube, identificam-se 15 contas que se destacaram em termos de influência, o que é aferido considerando-se o acumulado de visualizações por postagens feitas pelo mesmo ator. Nessa frente, estiveram principalmente canais vinculados ao campo da direita, entre eles, programas noticiosos pretensamente informativos e influenciadores do conservadorismo, como “Os Pingos nos I’s” (da Rádio Jovem Pan e inclinado à direita bolsonarista), “Questione-se” (de Renato Barros, que se apresenta como pró-Trump e pró- Bolsonaro), “Rodrigo Constantino” (figura central da direita nas redes), “Galãs Feios” (do jornalista Helder Maldonado, que mistura humor e opinião sobre política), “Notícias de Última Hora” (com cobertura política sensacionalista e sem assinatura).

Há, ainda, “Jovem Pan - 3 em 1” (programa da Rádio Jovem Pan que tem no elenco Paulo Mathias, Thais Oyama, Rodrigo Constantino e Josias de Souza); “BBC News Brasil” (subsidiária da British Broadcasting Corporation - BBC - no Brasil); “Bernardo P Küster” (diretor do Brasil Sem Medo e ideólogo da direita); “Jovens de Negócios” (YouTuber de finanças e de política); “Terça Livre TV” (autointitulado o maior canal conservador do país); “Mauro Fagundes” (YouTuber de cobertura sensacionalista e que assume teses como fraudes eleitorais no Brasil e nos Estados Unidos); “Portal do José” (portal de cobertura sensacionalista crítico à direita e ao governo atual); “Pátria & Defesa" (de YouTuber que comenta política e defende o militarismo); “PHVox Canal” (YouTubers de cobertura política de ideologia ultraconservadora); “Folha Política” (cobertura política alinhada ao bolsonarismo); e “Vista Pátria” (cobertura política de viés ultraconservador).

Canais do jornalismo regidos por deontologia profissional, portanto não hiperpartidários, podem ser considerados exceções à regra. Esse panorama demonstra que, no YouTube, as contas que propagam desconfiança eleitoral pertencem a redes do conservadorismo da direita. Diferentemente do Facebook, na plataforma de vídeo, não há presença marcante de canais de políticos eleitos, e sim predominam jornalistas, comentaristas e ideólogos da direita radical e/ou bolsonarista, assim como canais institucionais usados por esses públicos conservadores de direita. Há, ainda, a presença de canais de meios de comunicação social que realizaram cobertura do tema da fraude eleitoral, em especial, do caso norte-americano, em suas reportagens.

Twitter - O cálculo para a mensuração de desempenho digital médio dos atores no Twitter consiste na soma dos retuítes dividida pelo número de publicações de cada ator naquele período sobre o tema. O critério privilegia avaliar a capacidade de mobilização e engajamento a despeito da frequência das postagens. A análise dos perfis mais influentes em desempenho digital médio indica presença notória de políticos e influenciadores ligados à direita. Esses perfis exibiram alta atividade em número de postagens e total de interações ao longo dos eventos que marcaram o mês de novembro. As publicações que alcançaram maior volume de engajamento são do jornalista de direita @gfiuza_oficial. Dentre os perfis mais influentes, encontra-se a conta oficial do presidente Jair Bolsonaro, que, embora tenha publicado pouco conteúdo sobre eleições e sistema eleitoral, obteve volume expressivo de interações. Há, também, atores da política tradicional que foram bastante atuantes para mobilizar o debate da fraude, a exemplo das contas dos(as) deputados(as) federais @carlazambelli38, @lpbragancabr e @bolsonarosp; do candidato a vereador @alanlopesrio e do vereador @carlosbolsonaro. Blogueiros(as) e influenciadores(as) aliados ao governo também registraram engajamento relevante, como @opropriolavo, @rconstantino, @oswaldojor e @taoquei1.

Os perfis críticos ao governo situados entre aqueles mais relevantes em termos de desempenho digital médio apresentaram poucas postagens referentes ao tema. Apesar disso, perfis humorísticos conquistaram volume alto de interações, tais como @HistoriaNoPaint e @sensacionalista, além dos influenciadores @bela_reis, @felipeneto, @danilogentili e @gugachacra. Novamente, destaca-se a ausência de lideranças políticas da esquerda e da política tradicional. Identifica-se, portanto, que o debate em torno do tema da desconfiança eleitoral, no Twitter, não foi substancialmente disputado pela oposição ao governo.

A partir disso, a pesquisa mostra que, no Facebook e no Twitter, políticos e líderes de opinião do conservadorismo de direita são determinantes para fermentar a contestação eleitoral on-line sem serem confrontados por políticos e líderes de opinião de esquerda. Como exceção, há canais digitais e perfis de humor que, por possuírem desempenho digital médio significativo, pautam criticamente a alegação infundada de fraude. Com outra característica, no YouTube, preponderam meios de comunicação social e canais digitais pertencentes ao ecossistema de mídia de direita radical.

Espelhando as redes

Utilizando as 96 mil publicações coletadas no Facebook como referência, fez-se um cruzamento entre as 20 contas (entre perfis, páginas e canais) com maior desempenho digital nas três plataformas analisadas com o objetivo de identificar o núcleo duro de atores engajados na produção e na disseminação das mensagens sobre fraude nas urnas e manipulação eleitoral. A proposta visa a um exercício de redução dos atores envolvidos na mobilização da pauta, concentrando a análise em um conjunto que condensa as principais narrativas e estratégias comunicacionais para a contestação eleitoral. Para isso, foi preciso verificar os vídeos e tuítes publicados no YouTube e no Twitter, respectivamente, que foram compartilhados em publicações do Facebook. Ou seja, buscou-se identificar que atores, entre os mais relevantes em suas redes originais, transbordaram sua influência para uma plataforma vizinha, indicando centralidade e impacto na mobilização do tema em questão.

Dos 20 perfis com maior desempenho digital médio no Twitter, 11 tiveram tuítes compartilhados em publicações no Facebook, pelo envio de link (URL) ou por meio de print screens das publicações. São eles: Alan Lopes, Arthur Weintraub, Carla Zambelli, Douglas Garcia, Eduardo Bolsonaro, Guilherme Fiuza, Luiz Philippe de Orleans e Bragança, Olavo de Carvalho, Oswaldo Eustáquio, Rodrigo Constantino e “Te Atualizei”. Já entre os 20 perfis com o maior desempenho digital médio nas publicações no YouTube, oito tiveram seus vídeos compartilhados no Facebook, quais sejam, “Folha Política”, “Questione-se”, “Galãs Feios”, Bernardo P. Küster, “Vista Pátria”, Richard W. Sanchez, “Terça Livre” e Mauro Fagundes. Quatro perfis figuram entre os 20 com maior desempenho digital nas duas redes, sendo eles, o do próprio presidente Jair Bolsonaro e de três deputados federais alinhados ao governo ‒ Carla Zambelli, Eduardo Bolsonaro e Luiz Philippe de Orleans e Bragança.

No Twitter, todos os perfis são representantes do movimento conservador de direita brasileiro. No YouTube, todas as contas são usadas por públicos da direita radical, à exceção de “Galãs Feios”.

Chega-se, assim, a um conjunto de 20 contas que estiveram entre aquelas com maior desempenho digital médio nas redes que originalmente publicaram o conteúdo, mas que também exerceram influência em outra plataforma, no caso, o Facebook. Entre elas, há 12 perfis ou canais de influenciadores (incluindo, nessa categoria, jornalistas); seis atores ligados à política institucional; e dois veículos de mídia conservadora de direita. Do ponto de vista do alinhamento político, como mencionado anteriormente, destaca-se que apenas o canal “Galãs Feios” atua como canal de cobertura política geral (não partidarizada), embora seja crítico ao governo.

Análise de conteúdo

Caracterização geral

Somados, os 20 perfis analisados publicaram 81 posts diferentes no Facebook, porém 13 deles foram removidos14 14 Entre os materiais removidos, destacam-se vídeos de canais de influenciadores alinhados ao governo, como “Questione-se”, “Terça Livre” e “Mauro Fagundes”, além de posts do deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança. , de modo que apenas 68 puderam ser examinados nessa etapa da pesquisa. A análise de conteúdo foi realizada por meio da catalogação em quatro categorias: tema da publicação; fonte que embasa a publicação; post verificado; viés conspiratório. Como explicado na seção de metodologia, dois codificadores classificaram os dados, e um terceiro avaliou os casos divergentes.

Primeiramente, analisou-se o tema das publicações. Nessa categoria, foram catalogados cinco temas, que se distribuíram entre “voto impresso”, “EUA”, “atraso na apuração do primeiro turno”, “processo eleitoral” e “ataque cibernético”, como demonstrado no Gráfico 2:

Gráfico 2
Temas das publicações sobre desconfiança no sistema eleitoral (%)

Em relação a esse conjunto, 35,29% das publicações tiveram como tema o voto impresso desassociado de qualquer outro evento ocorrido no período. Em segundo lugar, estão as postagens que repercutiram as denúncias de fraude eleitoral feitas pela campanha de Donald Trump nos Estados Unidos. Os problemas relacionados às eleições municipais do Brasil somaram 27,9%, distribuídos entre 20,55% de menções ao atraso na apuração do primeiro turno (incluindo publicações sobre a compra do “supercomputador” adquirido pelo TSE para fazer a totalização dos votos) e 7,35% referentes à divulgação de um ataque hacker ocorrido no sistema da Justiça Eleitoral e divulgado na manhã do primeiro turno das eleições. Publicações mais gerais sobre a necessidade de transparência no processo eleitoral somaram 10,29%. Ressalta-se que voto impresso foi mencionado de modo secundário em publicações nas outras quatro categorias, mas sua contabilização ocorreu apenas em publicações em que sua menção ocorreu isoladamente.

Gráfico 3
Fontes que embasaram as publicações (%)

Das fontes que embasaram as 68 publicações analisadas, destaca-se o alto número de posts que consistem exclusivamente em opinião individual ou comentário político dos emissores, isto é, que possuem autoria própria (63,24%). É importante destacar que esse número, especialmente no Twitter, pode estar associado ao modo isolado como os conteúdos foram analisados. No entanto, a dinâmica fragmentada de compartilhamentos de tuítes e a baixa presença de marcadores de threads são elementos que corroboram para a validação da quantidade observada.

Dentre as fontes mencionadas nos posts, os políticos foram as principais referências das publicações (19,12%), seguidos por notícias dos media dos Estados Unidos (10,29%) e da imprensa brasileira (7,35%). Esse panorama lança luz sobre o uso de plataformas digitais para estabelecimento de comunicação direta e desintermediada (Aggio, 2020Aggio, C. “Comunicação eleitoral ‘desintermediada’, mas o quão realmente interativa?”. E-Compós, nº 23, 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.30962/ec.1994>. Acesso em: 21 out. 2021.
https://doi.org/10.30962/ec.1994...
), portanto sem obrigatoriedade de uso de material da imprensa para endossar a mensagem, boa parte opinativa e compartilhada por terceiros, entre políticos e base de apoio, ou entre comentaristas políticos e seus públicos.

O teor conspiratório, terceira categoria de análise, foi identificado em 55 publicações (80,88%)15 15 Essa categoria foi analisada como variável dummy (sim ou não) a partir da pergunta: “Há a presença de viés conspiratório no post?” . O perfil da deputada federal Carla Zambelli foi o de maior destaque nesse conjunto, com 18 posts, seguido pelos perfis dos influenciadores conservadores Oswaldo Eustáquio (7) e Alan Lopes (6). Das 13 publicações consideradas não conspiratórias (19,12%), destacam-se as do deputado federal Eduardo Bolsonaro, que se utilizou de argumentos universais e tom sóbrio em quase a totalidade de suas publicações, e o veículo de mídia conservadora de direita, “Folha Política”, que, em metade de seus vídeos, reportou declarações e acusações de atores políticos populares aos adeptos da tese de que as eleições são fraudadas. Isso significa que atores filiados à extrema-direita e canais informativos do conservadorismo radical, como é a “Folha Política”, realizaram cobertura sistemática com tópicos e atores que endossam a ideia de fraude eleitoral, mas não se apoiaram em narrativas conspiratórias em parte dos seus relatos.

O cruzamento entre temas e viés conspiratório mostrou que os ataques cibernéticos ao sistema eleitoral na fase de apuração de votos do primeiro turno das eleições municipais brasileiras de 2020 foram capturados por uma frente narrativa conspiratória. O viés conspiratório, ainda, foi predominante em publicações sobre as denúncias de fraude eleitoral nos Estados Unidos e, em menor proporção, nas publicações que tinham como foco a defesa da adoção do voto impresso. A exceção ocorreu em publicações sobre o processo eleitoral de maneira mais ampla, em que o tom conspiratório foi minoritário. Esse conjunto de publicações populares no Facebook, como mostrado na análise anterior, teve como principais vértices de distribuição representantes eleitos e líderes de opinião do conservadorismo da direita, que usam, em especial, opinião própria e de um(a) outro(a) ator político para sustentar o argumento proposto, o que será mais detalhado a seguir.

Gráfico 4
Temas vs. conteúdos conspiratórios (%)

Quando cruzados fontes e conteúdos de viés conspiratório, destaca-se o tom adotado em publicações derivadas de materiais originários dos media dos Estados Unidos. Como pode ser observado no Gráfico 5, nesse caso, todas as publicações que repercutiram, a partir de fonte da imprensa norte-americana, a defesa de fraude encampada por Trump e apoiadores, apelavam a um viés conspiratório. O viés conspiratório também ocupou grande espaço quando a publicação estava baseada em opinião individual, isto é, que não se apoiava em fonte terceira. Houve menor proporção de conteúdos de viés de conspiração quando a fonte mencionada era um ator político, mas isso está relacionado, em especial, a vídeos publicados pelo canal do YouTube “Folha Política”, que agendava reiteradamente acontecimentos relacionados à desconfiança eleitoral em tom sóbrio.

Gráfico 5
Fontes vs. conteúdos conspiratórios (%)

Quando se considera o uso dos meios de comunicação do Brasil como fonte de informação, verifica-se que parte majoritária dos posts também adotou viés conspiratório. De todo modo, como visto no Gráfico 5, as imprensas brasileira e norte-americana representaram parte minoritária das fontes usadas nas publicações analisadas, o que significa que conteúdos de viés conspiratório foram preponderantemente baseados em mensagens opinativas. Isso se alinha à necessidade de importar, como fatia substancial da estratégia de comunicação política e digital no período analisado, a força simbólica do pensamento conspiratório como forma de expressão individual capaz de promover mobilização política on-line.

Das 68 publicações relevantes no Facebook, 55 carregavam, portanto, alegações infundadas sobre fraude eleitoral e, para isso, exploraram o viés conspiratório. Apesar disso, somente em quatro delas o Facebook aplicou o rótulo que indica informação falsa ou conteúdo contestado. Esse resultado mostra um cenário em que lideranças políticas institucionais e outros líderes de opinião, como canais digitais, jornalistas e comentaristas conservadores de direita, utilizaram as plataformas de mídias sociais para disseminar conteúdos de viés conspiratório que contestam o método de votação eletrônico e outros fatos que envolvem o processo eleitoral como um todo, sem constrangimentos contundentes por parte de plataformas e de outras instâncias competentes. A notificação de apenas quatro publicações sugere que as ações de combate à conspiração on-line, em especial, aquelas sobre a credibilidade do sistema eleitoral, não possuem ou não seguem critérios rigorosos, bem como não adotam métodos assertivos de inibição de compartilhamento, contribuindo para amplificação de ideários antissistema radical no seio social.

Conclusão

Este artigo buscou descrever os componentes que mobilizam o tema de fraude eleitoral em plataformas digitais, alegação que, nos últimos anos, tem influenciado o comportamento eleitoral e estimulado níveis de inconformismo social de forma vinculada à evolução da polarização política no Brasil. Com base em estudos prévios sobre circulação de fake news e de conteúdos problemáticos on-line, parte-se do pressuposto de que um dos eixos principais de articulação do conservadorismo radical no contexto nacional contemporâneo se volta aos ideários de fraude nas urnas e de manipulação eleitoral. Essas “teses”, que perduram longitudinalmente como crença em parte do eleitorado, têm se fortalecido nas últimas décadas junto à onda populista conservadora contemporânea e são retroalimentadas por um ecossistema informativo cativo formado por uma amálgama de sites, páginas e líderes de opinião. O objetivo deste artigo foi, especificamente, entender o papel exercido pela conspiração em publicações realizadas em plataformas de mídias sociais com o intuito de contestar as eleições no Brasil.

Assim sendo, a pesquisa analisou publicações sobre fraude nas urnas eletrônicas e fraude eleitoral no Facebook, YouTube e Twitter, no período entre 1 e 30 de novembro de 2020, que abrange as eleições municipais brasileiras daquele ano. Estabelecidos quatro níveis de análise, identificou-se, primeiramente, a posição de influência (desempenho digital médio) dos atores que publicaram sobre o tema em análise. Em seguida, estabeleceu-se o Facebook como plataforma-referência para examinar, nesse meio, a reverberação das publicações dos perfis mais influentes no YouTube e no Twitter. No terceiro nível, foi realizada uma análise de conteúdo para identificar o caráter conspiratório e as características dessas narrativas. E no quarto, examinou-se o papel da moderação de conteúdo no Facebook na inserção de rótulos que advertem os usuários sobre informações falsas e conteúdos contestados.

O resultado mostra que o núcleo de contas que disseminam ceticismo sobre o processo eleitoral com influência política on-line integra redes digitais de direita. Nas três plataformas de mídias sociais, os perfis mais influentes são de figuras públicas, principalmente representantes eleitos, incluindo o, agora, ex-presidente da República Jair Bolsonaro e a base parlamentar de apoio ao seu governo, bem como canais informativos pertencentes aos media tradicionais e ao ecossistema conservador, além de influenciadores digitais.

No Facebook e no Twitter, parte desses atores têm selo de verificação que distingue figuras públicas ou notáveis dos demais usuários. Como diferença, enquanto figuras públicas são mais relevantes no Facebook e no Twitter, no YouTube, a maior parte dos canais leva assinatura de uma marca, majoritariamente vinculada à ideologia conservadora ou ultraconservadora, como “Questione-se” e “Pátria & Defesa”. Há também forte presença de YouTubers (criadores de conteúdo para a plataforma).

Este artigo demonstra que algumas notícias publicadas por veículos de comunicação, como BBC News e Jornal O Globo, são reapropriadas para corroborar suspeitas levantadas e sustentadas pelas redes de atores e de canais aderentes à tese da fraude. Contas do campo da centro-esquerda com desempenho digital significativo (como “Quebrando o Tabu”, “Bruno Sartori”, entre outras) aparecem como certa reação ao apelo de fraude, seja pela informação, seja pelo humor.

Com base em um volume de 96 mil publicações coletadas, a pesquisa identificou que o conjunto de contas mais influentes no Twitter (11 dos 20 posts) se espalhou pelo Facebook com maior proporção do que a soma de atores mais relevantes do YouTube (8 dos 20 vídeos). Essas são contas de figuras públicas, majoritariamente de influenciadores digitais, inclusive jornalistas, seguidos de políticos e da mídia conservadora de direita. Na análise qualitativa de 68 das publicações feitas pelos 20 propagadores mais influentes, a maior parte tratou do voto impresso (35,6%). Na sequência, os temas Estados Unidos (26,47%), atraso na apuração do primeiro turno (20,59%), processo eleitoral como um todo (10,29%) e ataque cibernético (7,35%) foram importantes para as narrativas sobre fraude eleitoral.

O estudo mostrou que 80,88% dessas publicações possuem viés conspiratório, e a maior parte desse conjunto foi publicada por uma deputada federal, Carla Zambelli (PSL), e por influenciadores digitais conservadores. Parte (19,12%) das publicações do campo da direita não apresentou necessariamente viés conspiratório, embora explicitasse algum ceticismo em relação às urnas e ao processo eleitoral. Em geral, essas postagens foram quase sempre opinativas, mas uma parte delas mencionou como fonte atores políticos (19,12%), imprensa norte-americana (10,29%) e imprensa brasileira (7,35%).

A análise mostrou que as postagens com viés conspiratório exploraram principalmente os eventos ocorridos no contexto eleitoral, repercutindo a reivindicação de fraude na corrida presidencial dos Estados Unidos bem como o atraso na divulgação dos resultados no primeiro turno e o ataque cibernético, com espaço mais ampliado para a defesa do voto impresso, uma bandeira das alas conservadora e ultraconservadora brasileiras. As publicações conspiratórias são quase sempre de autoria própria, isto é, opiniões políticas, ou estão embasadas em outra publicação feita por um ator político.

Podemos considerar, portanto, que a elite política conservadora de direita está na ponta de lança para alçar teorias da conspiração sobre a urna eletrônica e as eleições no Brasil. Embora não se trate de resultados conclusivos, os achados desta pesquisa reforçam a importância do comprometimento e da responsabilização dos atores políticos – que devem estar orientados para a preservação dos procedimentos institucionais, como parte substantiva dos alicerces da democracia, dos quais fazem parte –, principalmente diante da potência e dos efeitos que as dinâmicas comunicacionais digitais ensejam. A radicalização do conflito entre membros da elite política, como a tratada aqui, tem reflexo no público e pode subsidiar discursos e práticas de grupos antissistema. Nesse sentido, pesquisas futuras podem se dedicar a analisar a estrutura narrativa das teorias da conspiração relativa às urnas eletrônicas, no Brasil, para evidenciar as fronteiras da crítica e delimitar os sinais de ameaça democrática. Estudos comparados sobre conspiração eleitoral na contemporaneidade podem apontar direções, também, sobre referências transnacionais presentes nas narrativas, sobre o tratamento desses conteúdos por políticos e por canais influentes on-line, sobre os usos da mídia e sobre a efetividade da moderação de conteúdo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    14 Nov 2023
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