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Reações à igualdade de gênero e ocupação do Estado no governo Bolsonaro (2019-2022)

Reactions to gender equality and occupation of the state in the Bolsonaro government (2019-2022)

Reacciones a la igualdad de género y ocupación del Estado en el gobierno Bolsonaro (2019-2022)

Réactions à l’égalité de genre et à l’occupation de l’État dans le gouvernement Bolsonaro (2019-2022)

Este artigo se insere no debate sobre as reações à política feminista. No Brasil, essas reações foram assumidas como diretriz política durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022). Nesse período, o contramovimento antifeminista teve acesso à gestão pública, ocupando cargos em um governo de coalizão convergente, isto é, uma aliança governista heterogênea, que não inclui grupos orientados para a promoção da igualdade de gênero. O estudo analisa quem foram os atores e os efeitos de sua atuação em três ministérios: Mulher, Família e Direitos Humanos; Saúde; e Educação. Foram coletados dados sobre trajetórias e posições dos atores na gestão, evidenciando as políticas em que estiveram envolvidos. Eles apontam para a relevância de atores conservadores evangélicos e católicos, aliados em ações para bloquear agendas feministas e propor políticas que afirmam a ordem familiar tradicional.

gênero; reação; contramovimento antifeminista; coalizão convergente; governo Bolsonaro


Abstract

The article is inserted in the debate about the backlash against feminist politics. In Brazil, these reactions were understood to be a political guideline during the government of Jair Bolsonaro (2019-2022). During this period, the anti-feminist countermovement had access to the public administration, occupying positions in a convergent coalition government. By that we mean a heterogeneous government alliance, which did not include groups oriented towards the promotion of gender equality. The study analyzes who these actors were and the effects of their work on gender agendas in three ministries: Women, Family and Human Rights; Health; and Education. We collected data on the trajectories and role of the actors in the state, highlighting the policies in which they were involved. The data point to the importance of conservative Evangelical and Catholic actors, who were allied in actions to block feminist agendas and propose policies that affirm the traditional family order.

gender; backlash; feminist countermovement; convergent coalition; Bolsonaro government

Resumen

El artículo es parte del debate sobre las reacciones a la política feminista. En el caso brasileño, estas reacciones fueron asumidas como una directriz política durante el gobierno de Jair Bolsonaro (2019-2022). Durante este período, el contramovimiento antifeminista tuvo acceso a la administración pública, ocupando posiciones en un gobierno de coalición convergente, es decir, una alianza de gobierno heterogénea, pero que no incluía grupos orientados a la promoción de la igualdad de género. El estudio analiza quiénes fueron estos actores y los efectos de su trabajo en las agendas de género en tres ministerios: Mujer, Familia y Derechos Humanos; Salud; y Educación. Recolectamos datos sobre las trayectorias y las posiciones de los actores en la gestión, destacando las políticas en las que estaban involucrados. Los datos apuntan para la relevancia de actores conservadores evangélicos y católicos, aliados en acciones para bloquear agendas feministas y proponer políticas que afirmen el orden familiar tradicional.

género; reacción; contramovimiento antifeminista; coalición convergente; gobierno Bolsonaro

Résumé

L'article s'inscrit dans le débat sur les réactions à la politique féministe. Au Brésil, ces réactions ont été adoptées comme une directive politique pendant le gouvernement de Jair Bolsonaro (2019-2022). Durant cette période, le contre-mouvement antiféministe a eu accès à la gestion publique, occupant des postes dans un gouvernement de coalition convergente, c’est-à-dire une alliance gouvernementale hétérogène, qui ne comprend pas de groupes en défense de l’égalité des genres. L'étude analyse qui étaient les acteurs et les effets de leurs actions dans trois ministères : de la Femme, de la Famille et des Droits Humains ; de la Santé ; et de l’Éducation. Nous avons collecté des évidences sur les trajectoires et les positions des acteurs, mettant en lumière les politiques dans lesquelles ils ont été impliqués. L’article met en lumière la présence des acteurs conservateurs évangéliques et catholiques, alliés dans les actions visant à bloquer les agendas féministes et à proposer des politiques qui affirment l’ordre familial traditionnel.

genre; réaction; contre-mouvement antiféministe; coalition convergente; gouvernement Bolsonaro

Introdução[4 4 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no Seminário Temático “Democracias em declínio: desafios políticos, teóricos e analíticos”, no 46º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), realizado em 2022, na Unicamp, Campinas/SP. As autoras agradecem às coordenadoras do ST pelo aceite do trabalho e aos debatedores e público pelos comentários. Agradecem também o apoio financeiro do CNPq na forma de Bolsas de Produtividade em Pesquisa e Bolsa de Doutorado. ]

Este artigo discute resultados de uma investigação abrangente sobre as reações às políticas feministas e à agenda de igualdade de gênero no Brasil5 5 Intitulada “Oposição à igualdade de gênero e raça e sua influência nas políticas de Estado no Brasil”, a pesquisa foi realizada de janeiro a julho de 2022. . Sem desconsiderar a longa duração dos conflitos relacionados aos direitos das mulheres e às relações de gênero, entendemos que os padrões das disputas variam e precisam ser compreendidos em contextos específicos. Eles remetem a processos prévios de construção institucional, assim como às oportunidades políticas para o acesso a recursos e arenas estatais por grupos que advogam por agendas antagônicas.

A dinâmica descrita por Andrea Krizsán e Conny Roggeband (2020) para os casos de Croácia, Hungria e Polônia ilustra a importância de uma compreensão historicamente situada dessas reações. Nesses três países, governos populistas com visões hostis à igualdade de gênero assumiram o poder a partir de 2010, e, desde então, o discurso político oficial assumiu uma linguagem antifeminista, com retrocessos nas políticas igualitárias. As mudanças também implicaram alterações nos padrões de relação entre Estado e sociedade civil, com restrições à participação do movimento feminista e crescente influência dos atores do contramovimento antifeminista nos processos políticos.

O novo cenário, segundo as autoras, desafia premissas teóricas construídas sob o pressuposto da bilateralidade entre Estado e movimento, e coloca a necessidade de construção de um framework analítico capaz de capturar as relações triádicas entre movimentos feministas, movimentos antifeministas e o Estado (Krizsán; Roggeband, 2020Krizsán, A.; Roggeband, C. “Democratic backsliding and the backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics”. UN Women discussion paper series, nº 35, junho 2020. Disponível em: <https://www.unwomen.org/sites/default/files/Headquarters/Attachments/Sections/Library/Publications/2020/Discussion-paper-Democratic-backsliding-and-the-backlash-against-womens-rights-en.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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, p. 13). Isso é relevante, em especial, em contextos nos quais a hostilidade à agenda de gênero apresenta-se como dispositivo discursivo voltado à mobilização social e eleitoral.

Comparando os três casos, Krizsán e Roggeband encontram diferentes dinâmicas de interação entre Estado, movimento feminista e contramovimento: enquanto em alguns casos o Estado incorporou as bandeiras do contramovimento, borrando as fronteiras entre os campos, em outros assumiu o papel de árbitro entre as partes em confronto, incluindo atores antagônicos em processos de participação e consulta. A posição do Estado no confronto altera as dinâmicas de poder entre movimento e contramovimento, determinando, por seu turno, o avanço ou retrocesso nas políticas. Se o Estado se engaja na promoção de agendas anti-igualitárias, faculta aos atores da reação acesso a recursos preciosos, como dinheiro, visibilidade, ganhos de capital político-eleitoral, ampliação dos sistemas de aliança e legitimidade. Assim:

Intervindo ativamente no conflito entre movimentos de mulheres e seus oponentes – seja por projetar ou fortalecer contramovimentos ou por fornecer-lhes uma base forte de poder institucional – os governos dão aos atores de oposição vantagens em relação aos movimentos de mulheres. Os exemplos da Hungria e da Polônia correspondem a governos que ativamente se alinham aos atores antifeministas e até promovem ativamente iniciativas da sociedade civil contrárias às agendas de direitos das mulheres (Krizsán; Roggeband, 2020Krizsán, A.; Roggeband, C. “Democratic backsliding and the backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics”. UN Women discussion paper series, nº 35, junho 2020. Disponível em: <https://www.unwomen.org/sites/default/files/Headquarters/Attachments/Sections/Library/Publications/2020/Discussion-paper-Democratic-backsliding-and-the-backlash-against-womens-rights-en.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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, p. 25-26, tradução nossa)6 6 No original: “By actively intervening in the conflict between women’s movements and their opponents - either by designing and bolstering counter movements or by providing them with a strong institutional power base - governments give oppositional actors headway above women’s movements. The examples of Hungary and Poland show governments that actively take the side of antifeminist actors and even actively promote civil society initiatives that oppose women’s rights agendas” (Krizsán; Roggeband, 2020, p. 25-26). .

Entendemos que o Brasil, no período da presidência de Jair Bolsonaro (2019-2022), é também um caso a ser estudado tendo em vista essa problematização. No diálogo com o framework relacional proposto por Krizsán e Roggeband (2020)Krizsán, A.; Roggeband, C. “Democratic backsliding and the backlash against women’s rights: Understanding the current challenges for feminist politics”. UN Women discussion paper series, nº 35, junho 2020. Disponível em: <https://www.unwomen.org/sites/default/files/Headquarters/Attachments/Sections/Library/Publications/2020/Discussion-paper-Democratic-backsliding-and-the-backlash-against-womens-rights-en.pdf>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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, realizamos um estudo de caso da reação à igualdade de gênero no país, no contexto de ascensão da extrema-direita ao poder.

O foco deste artigo são os atores e processos de ocupação do Estado. O argumento que o artigo defende é que, com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, o contramovimento antifeminista obteve vantagens significativas em relação aos movimentos feministas e se beneficiou de uma dinâmica de ocupação do Estado de tipo coalizão convergente, cujos contornos serão explorados na seção a seguir. No caso brasileiro, o Executivo federal não apenas assumiu uma postura, pública e militante, ativamente hostil às causas feministas como impediu que grupos sociais vinculados a essa agenda participassem da construção das políticas públicas. Essa alteração do padrão de relação entre Estado e sociedade caracteriza-se pelo acesso dos atores e agendas do contramovimento a posições de comando em ministérios-chave, após um ciclo de acesso de atrizes e agendas feministas a arenas estatais. As diretrizes antifeministas, combinadas com exclusão de atores do movimento feminista dos processos políticos, afetaram as políticas públicas, produzindo retrocessos nas políticas de igualdade de gênero.

A pesquisa mapeou os atores do contramovimento antifeminista em três ministérios, o Ministério da Saúde (MS), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e o Ministério da Educação (MEC). Para tanto, identificamos as pessoas que ocuparam o primeiro e o segundo escalão entre janeiro de 2019 e dezembro de 2022. Coletamos dados sobre suas trajetórias, posição na gestão, envolvimento com políticas específicas e com dinâmicas de mobilização e parcerias com a sociedade civil.

A escolha dos ministérios justifica-se por serem pastas historicamente competentes para formulação de políticas relacionadas a direitos das mulheres e agendas de gênero. Os dados e informações foram coletados de bases documentais, como o Diário Oficial da União, sites dos referidos ministérios, atos normativos, entrevistas disponíveis nas mídias digitais, e redes sociais pessoais, além de extenso material jornalístico e literatura secundária.

Este artigo se divide em quatro seções, além de introdução e conclusão. Na primeira, intitulada “O contexto da disputa: a reação em um governo de coalizão convergente antifeminista”, é apresentada breve revisão da bibliografia sobre a reação à agenda de igualdade de gênero, assim como uma contextualização de como essa reação tem se manifestado no Brasil. O foco é o governo de Jair Bolsonaro, em que se identifica a emergência de uma coalizão convergente antifeminista. As seções 2, 3 e 4 são dedicadas a cada um dos três ministérios analisados, respectivamente, MMFDH, MS e MEC. Nelas, apresentamos os perfis dos atores que são parte do contramovimento antifeminista, apontando suas conexões com os temas destacados. A conclusão compara os padrões de ocupação dos três ministérios e discute suas implicações.

O contexto da disputa: a reação em um governo de coalizão convergente antifeminista

Na América Latina, as desigualdades persistentes têm dimensões de gênero, que se combinam com as de classe, raça e etnia, entre outras. Os obstáculos a sua superação se confundem, de certo modo, com a própria organização dessas sociedades, já que o acesso aos espaços de poder é historicamente masculino, branco e, em muitos países da região, fortemente conectado a valores religiosos conservadores.

Não obstante a longa duração das desigualdades e violências que atingem as mulheres, em particular as negras e indígenas, no Brasil e na região latino-americana, as últimas décadas representaram avanços nas políticas e no comprometimento dos Estados com as agendas igualitárias. Especialmente no contexto da “virada à esquerda”, a partir do final dos anos 1990, o enfrentamento das desigualdades se deu pela adoção de políticas públicas com esse objetivo, com a participação de atores da sociedade civil comprometidos com agendas de direitos humanos, como a feminista e antirracista (Benza; Kessler, 2020Benza, G.; Kessler, G. La ¿nueva? estructura social en América Latina: cambios y persistencias después de la ola de gobiernos progresistas. Buenos Aires: Siglo XXI, 2020.).

Entretanto, a partir da segunda década dos anos 2000, essa trajetória de conquistas tem sido desafiada pelo fortalecimento de governos e atitudes políticas ‒ de lideranças políticas, partidos e na sociedade civil ‒, hostis às políticas de igualdade de gênero. A literatura internacional sobre a reação às políticas para a igualdade de gênero e a diversidade sexual busca compreender suas características e efeitos em diferentes contextos políticos, com atenção às relações entre Estado, contramovimento e movimento feminista.

No já clássico Backlash: o contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres (2001), publicado originalmente nos Estados Unidos em 1991, Susan Faludi diagnosticava uma reação contra os avanços reais ou imaginados das mulheres na contemporaneidade. Buscando ampliar o alcance instrumental do conceito, Jane Mansbridge e Shauna L. Shames (2008) definiram backlash como reação a algo feito por outros e que produziu resultados que alguns atores percebem como perdas. Elas se referem especificamente a perdas em poder como capacidade de produzir efeitos, como no caso da definição de políticas públicas, das alocações orçamentárias e, de modo mais geral, da orientação assumida pelo Estado. As reações não incidem de maneira homogênea sobre os temas das políticas feministas. Htun e Weldon (2010Htun, M.; Weldon, S. L. “When Do Governments Promote Women’s Rights: A Framework for the Comparative Analysis of Sex Equality Policy”. Perspectives on Politics, vol. 8, nº 1, p. 207-216, mar. 2010. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/25698527>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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e 2018) mostram que a desagregação por issues permite compreender que os níveis de conflito diferem, a depender de seu caráter doutrinário ou secular e de suas implicações de classe ou de status. Em sentido similar, Javier Corrales (2021)Corrales, J. The Politics of LGBTQ Rights Expansion in Latin America and the Caribbean: Elements in Politics and Society in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2021. aponta para diferenças importantes entre as temáticas LGBTQ+ e do aborto na América Latina, com maior tolerância da população, assim como disposição de atores político-partidários, a incorporar direitos na primeira mais do que na segunda.

Atores e alianças são fundamentais ao modo como as disputas e reações se definem. Davi Paternotte (2020)Paternotte, D. Backlash: a misleading narrative, [online]. Engenderings (Blog), 2020. Disponível em: <https://blogs.lse.ac.uk/gender/2020/03/30/backlash-a-misleading-narrative/>. Acesso em: 22 dez. 2022.
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nos alerta para o risco de que a própria noção de reação (backlash) reduza a complexidade das disputas, já que não há uma convergência estática. Atores distintos podem se movimentar e fazer alianças de modo diverso, a depender do que está em jogo. Nessa mesma direção, Juan Vaggione (2018)Vaggione, J. "Sexuality, Religion, and Law in Latin America: Frameworks in Tension". Religion & Gender, vol. 8, nº 1, p. 14-31, 2018. afirma que a dinâmica conflitiva da “politização reativa” varia a depender das alianças que se estabelecem e das oportunidades para atuar nas arenas estatais e mobilizar setores da sociedade civil para disputas públicas. A literatura sobre a reação à agenda de igualdade de gênero no Brasil é recente, se a delimitamos aos esforços para compreender as respostas à incorporação de políticas feministas pelo Estado. Ela não se confunde, nesse sentido, com os estudos sobre os obstáculos históricos ao avanço de agendas de direitos, como as barreiras ao direito ao aborto no país (Rocha, 2006Rocha, M. I. B. “A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese”. Revista Brasileira de Estudos da População, vol. 23, nº 2, p. 369-379, jul.-dez. 2006. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/rbepop/a/NS7sgZvBfqDStLF8QzY3Ynf/?lang=pt&format=pdf>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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). Ainda que existam conexões entre esses obstáculos e as reações atuais, que se beneficiam, por exemplo, das organizações e redes “pró-vida” preexistentes, alguns eventos passaram a chamar a atenção das pesquisadoras. Entre eles, está a utilização da expressão “ideologia de gênero”, difundida na política nacional a partir de 2012 (Teixeira; Biroli, 2022Teixeira, R.; Biroli, F. “Contra o gênero: a ‘ideologia de gênero’ na Câmara dos Deputados brasileira”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 38, p. 1-40, 2022. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-3352.2022.38.248884>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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). Estão, também, as novas alianças entre católicos e evangélicos conservadores para impedir o avanço de políticas e linguagens feministas (Biroli; Machado; Vaggione, 2020).

Nas análises sobre as campanhas contra a “ideologia de gênero”, ganhou peso a noção de que se trata de um “significante vazio” (Junqueira, 2018Junqueira, R. “A invenção da ‘ideologia de gênero’: a emergência de um cenário político-discursivo e a elaboração de uma retórica reacionária antigênero”. Psicologia Política, vol. 18, nº 43, p. 449-502, set-dez. 2018. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2018000300004>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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) ou “cola simbólica” (Kovats; Poim, 2015Kovats, E.; Poïm, M. Gender as symbolic glue: The position and role of conservative and far-right parties in the anti-gender mobilizations in Europe. Brussels: Foundation for European Progressive Studies, 2015.). Estrategicamente mobilizada desde os anos 1990, essa noção tem maleabilidade suficiente para que se possa ativá-la na oposição a diferentes agendas, assim como um caráter polissêmico e múltiplo que permite estigmatizar movimentos que são alvo de campanhas difamatórias. Também se pode apontar como elementos da reação o maior destaque a questões de gênero e sexualidade nas disputas eleitorais; a reemergência da religião na esfera pública, inclusive como clivagem política e eleitoral; e o reenquadramento da oposição à igualdade de gênero em termos de direitos familiares, direitos das crianças e direitos religiosos (Biroli; Caminotti, 2020Biroli, F.; Caminotti, M. “The Conservative Backlash against Gender in Latin America”. Politics & Gender, vol. 16, 2020. Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/journals/politics-and-gender/article/abs/conservative-backlash-against-gender-in-latin-america/14D10524793D61122478A8A391C33E22>. Acesso em: 24 abr. 2024.
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; Burity, 2015Burity, J. “A cena da religião pública: contingência, dispersão e dinâmica relacional”. Novos Estudos. CEBRAP, nº 102, p. 89-105, jul. 2015. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/nec/a/FV44zNnSZC6Yd9xP5gHLr9r/?format=pdf⟨=pt>. Acesso em: 24 abr. 2024.
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; Corrales, 2021Corrales, J. The Politics of LGBTQ Rights Expansion in Latin America and the Caribbean: Elements in Politics and Society in Latin America. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.).

O desenho desta pesquisa parte do entendimento de que as reações ganham forma em contextos específicos, frente a mudanças e avanços promovidos nas décadas anteriores. Os atores que reagem procuram reaver o espaço e o controle sobre as políticas estatais (reaver perdas, no sentido apontado por Mansbridge e Shames, 2008Mansbridge, J.; Shames, S. L. "Toward a Theory of Backlash: Dynamic Resistance and the Central Role of Power". Politics & Gender, vol. 4, nº 4, p. 623-634, 2008.). Aqui definidos como parte de um contramovimento, os atores contrários às políticas feministas disputam ativamente o Estado e a sociedade, procurando obter vantagens em relação aos movimentos feministas e bloquear ou ressignificar suas agendas. Na literatura de movimentos sociais, o núcleo duro do conceito de contramovimento remete à ideia de que o “sucesso” – real ou imaginado – de um movimento, em determinado estágio do conflito em torno de uma temática, tende a gerar processos de construção de organizações e mobilizações de oposição a essas conquistas (Silva; Pereira, 2020Silva, M. K.; Pereira, M. M. “Movimentos e contramovimentos sociais: o caráter relacional da conflitualidade social”. Revista Brasileira de Sociologia, vol. 8, nº 20, p. 26-49, set-dez 2020. Disponível em: <https://doi.org/10.20336/rbs.647>. Acesso em: 22 abr.2024.
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; Lind; Stepan-Norris, 2011Lind, B.; Stepan-Norris, J. “The relationality of movements: Movement and countermovement resources, infrastructure, and leadership in the Los Angeles Tenants’ Rights mobilization, 1976–1979”. American Journal of Sociology, vol. 116, nº 5, p. 1564-1609, 2011. Disponível em: <https://www.jstor.org/stable/10.1086/657507>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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; Lo, 1982Lo, C. Y. H. "Countermovements and conservative movements in the contemporary U.S". Annual Review of Sociology, vol. 8, p. 107-134, 1982.).

O conceito de contramovimento oferece a possibilidade de compreender as mudanças na dinâmica dos conflitos a partir da emergência de atores que, para reagir a ameaças aos seus interesses, decidem assumir a forma de movimentos sociais, tomando parte ativa do confronto político7 7 Para uma análise do conceito de confronto político, ver Dynamics of contention (Tilly; McAdam; Tarrow, 2001). . Ou seja, há momentos em que o “sucesso” de um movimento (aqui pensado em termos de publicização de suas pautas e/ou conquistas institucionais) atinge de tal modo os antagonistas que eles também assumem a forma de movimento social – organizam-se coletivamente para disputar o Estado e a sociedade; constroem campanhas, utilizando repertório variado, e batalham pelo enquadramento simbólico dos conflitos, visando construir o contra-ataque e disputar os rumos da agenda. O contramovimento antifeminista reage, mas também produz alternativas; bloqueia direitos, mas também os ressignifica; contrapõe-se ao sistema internacional de direitos humanos, mas incorpora sua linguagem ao defender os direitos do “não nascido” e “da família”.

No Brasil, a eleição de Jair Bolsonaro ofereceu oportunidades políticas sem precedentes para o contramovimento antifeminista avançar suas agendas no Estado e na sociedade. Como em outros países da América Latina, esses atores têm importante presença no Legislativo e a judicialização das disputas tem se tornado mais frequente (Vaggione, 2018Vaggione, J. "Sexuality, Religion, and Law in Latin America: Frameworks in Tension". Religion & Gender, vol. 8, nº 1, p. 14-31, 2018.; Rousseau, 2020Rousseau, S. “Anti-gender activism in Peru and its impact on state policy”. Politics & Gender, vol. 16, nº 1, mar. 2020. Disponível em: <https://www.cambridge.org/core/journals/politics-and-gender/article/abs/antigender-activism-in-peru-and-its-impact-on-state-policy/2A6396F98EC482ED4F1307D09BAA5940>. Acesso em: 22 abr. 2024.
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). Porém, os efeitos da configuração de um governo abertamente alinhado a perspectivas antifeministas podem ser distintos, como discutiremos aqui.

No Executivo federal, entre 2019 e 2022, atores antifeministas ocuparam cargos em ministérios estratégicos para a promoção das políticas de gênero, como evidenciaremos a seguir. A capacidade do contramovimento de influenciar as políticas públicas, a partir dessa posição de insider, foi facilitada por uma configuração relacional do Estado que exclui a presença de projetos e interesses divergentes àqueles da coalizão de poder, mantendo os grupos antagônicos apartados da possibilidade de acessar recursos públicos e incidir sobre as políticas públicas. É o que aqui chamamos de coalizão convergente.

Como fartamente discutido pela literatura dedicada à análise do governo Bolsonaro, a chegada da extrema-direita ao poder alterou os padrões de ocupação do Estado, em relação à Nova República.

Entre 1988 e 2016, o padrão foi a incorporação de grupos com interesses conflitantes no interior do aparato estatal, incluindo novos atores e demandas no processo de produção e implementação de políticas públicas. Essa tendência se fortaleceu nos governos petistas, sendo parte importante do que se convencionou chamar de lulismo (Singer, 2012Singer, A. Os sentidos do lulismo: Reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.), em cuja base está a proeminência da lógica de conciliação de interesses. Grupos econômicos e elites políticas que historicamente acessaram recursos do Estado e exerceram influência na modelagem da agenda mantiveram e até ampliaram sua presença no aparato estatal. A diferença em relação ao que viria depois é que, na “sala ao lado”, lideranças de movimentos sociais e sindicais ocupavam posições no alto escalão do governo, graças à maior permeabilidade do Estado aos movimentos, que marcou as gestões petistas (Abers; Serafim; Tatagiba, 2014).

Naquela configuração, os mecanismos de participação já contemplados na Constituição de 1988 tornaram-se mais efetivos. O contexto internacional favoreceu a luta dos movimentos de mulheres e feministas pela institucionalização de suas pautas, tendo como um resultado visível a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2003-2016), que correspondeu a uma nova etapa do feminismo estatal no Brasil. Ao mesmo tempo, um “fluxo horizontal de discursos e práticas” (Alvarez, 2014Alvarez, S. “Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo político feminista”. Cadernos Pagu, nº 43, p. 13-56, 2014. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0104-8333201400430013>. Acesso em: 11 abr. 2024.
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, p. 17) fez com que atores e agendas feministas estivessem presentes em diferentes espaços da sociedade civil brasileira.

As tensões e reações à agenda de igualdade de gênero já estavam presentes nos governos petistas, mas as oportunidades para o contramovimento se ampliaram no segundo mandato de Dilma Rousseff, principalmente a partir da evocação da “ideologia de gênero” como estigma associado à esquerda, aos governos petistas e à presidenta. Duas narrativas foram ativadas e se multiplicariam, compondo matrizes do repertório discursivo dos contramovimentos de oposição à igualdade de gênero: as mudanças políticas das décadas anteriores ameaçavam “a família” e a infância, bem como a autoridade dos pais e a liberdade religiosa; a “maioria cristã” deveria determinar a legislação e a política nacional, em vez de ideologias estranhas aos valores nacionais.

O “bolsonarismo” encontrou terreno fértil nas campanhas contra o gênero e as fortaleceu, incentivando a polarização. A defesa da “ordem moral” e da “família”, que não é nova, foi convocada contra as “ideologias marxistas” e “de gênero”, para justificar o desmonte de políticas igualitárias e de reconhecimento. Em que pese a heterogeneidade dos grupos que passariam a compor a coalizão governista com a eleição de Bolsonaro, eles convergiram na defesa de determinados projetos e interesses, exercendo capacidade de veto sobre agendas societárias que lhes fossem antagônicas. Entre esses grupos, não havia atores comprometidos com políticas igualitárias e de diversidade, como as feministas, para a diversidade sexual, ou antirracistas. Isso permitiu que a oposição a esses valores se tornasse uma diretriz política oficial, que não encontrou dissidências na aliança formada e que apagou, por meio de constrangimento e repressão, as discordâncias existentes nas arenas estatais (no caso de servidores públicos). Como dito anteriormente, é a isso que chamamos coalizão convergente. Como mostramos adiante, acoalizão que sustentou o governo Bolsonaro foi heterogênea, sem ser plural em relação à agenda de gênero, o que deu ao contramovimento antifeminista condições vantajosas para atuar. Nas próximas seções, fundamentamos esse argumento com a análise da atuação do contramovimento antifeminista nos três ministérios pesquisados – Mulher, Família e Direitos Humanos; Saúde; Educação. Eles são estratégicos para as agendas feministas.

O contramovimento no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos

Em 2003, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), foi criada a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), com status ministerial. Reivindicação histórica dos movimentos feministas, recomendada em documentos internacionais como a Plataforma de Pequim (1995), tratava-se de uma conquista relevante para a politização progressista das agendas de gênero no Brasil. Com a atuação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM) e a pressão dos movimentos sociais, a SPM originou um processo de transversalização da agenda de gênero, que passaria a ter maior presença também em outros ministérios. Os efeitos foram variáveis, mas para nossa análise aqui é importante reconhecer que a criação da SPM abriu espaços para a atuação feminista no Estado, legitimando as perspectivas feministas em meio às disputas e aos limites orçamentários existentes.

Em 2015, durante a crise política que levaria ao golpe parlamentar de 2016, Dilma Rousseff fundiu a SPM, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a Secretaria Nacional de Direitos Humanos (SDH), criando o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos8 8 A Lei nº 13.266, de 5 de abril de 2016, oficializou a extinção das Secretarias e renomeou o Ministério, tornando-o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. . Quando seu vice, Michel Temer, assumiu a presidência da República, o ministério foi extinto e as secretarias foram incorporadas ao Ministério da Justiça e da Cidadania. Em 2017, passariam a integrar a Secretaria Geral da Presidência, sendo posteriormente, em 2018, transferidas para a Secretaria de Direitos Humanos.

Esse foi o percurso até que se chegasse, em 2019, ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), com a ativação desse dispositivo institucional em uma perspectiva oposta aos objetivos para os quais foi criado. Sua criação é, de certo modo, o reconhecimento paradoxal de que as lutas pela institucionalização das políticas de gênero ganharam legitimidade. A novidade está na utilização desse espaço para políticas de gênero orientadas por perspectivas convencionais, como a da valorização da família. E, no que toca diretamente este artigo, em sua gestão por indivíduos com compromissos antagônicos àqueles dos movimentos feministas.

O mapeamento geral dos atores dos primeiro e segundo escalões (Anexo 1) mostrou que os religiosos são a coalizão de governo que predomina no MMFDH, com significativa presença evangélica e, em menor número, católica. A direita partidária que compõe o ministério é ligada, principalmente, ao partido Republicanos, que é, entre os partidos brasileiros, aquele com identidade evangélica mais definida, comandado por lideranças da Igreja Universal do Reino de Deus.

Anexo 1
Perfis dos quadros de 1º e 2º escalão dos MMFDH, MS e MEC (2019-2022)

Os cargos principais do ministério são ocupados por mulheres que têm em comum o ativismo antiaborto, com atuação pública reconhecida, em uma perspectiva moral na qual a família, a infância e os “não nascidos” têm prioridade, em relação às mulheres, como sujeitos de direitos. Outra característica comum às ocupantes dos cargos mais relevantes da pasta é que têm formação e atuação jurídica. É o caso de ministras e secretárias de maior destaque, Damares Alves, Cristiane Britto e Ângela Gandra Martins, de que falaremos a seguir.

A ministra Damares Alves esteve à frente da pasta por mais de três anos, deixando o cargo em março de 2022 para candidatar-se a senadora no DF, pelo partido Republicanos, tendo sido eleita com 44,98% dos votos válidos. Advogada e pastora evangélica, atuante na Igreja Batista Lagoinha, Alves tem experiência no Congresso Nacional, onde atuou como assessora da Frente Parlamentar Evangélica e do Senador Magno Malta (PL/ES), também pastor evangélico. Identificada com a defesa de crianças indígenas em uma perspectiva cristã-missionária, é fundadora da Atini: Voz Pela Vida, cuja prioridade é o combate ao infanticídio. Ela foi, também, Secretária Geral do Movimento Brasil Sem Aborto, o maior na temática no país. Como ministra, levou o ativismo contra o aborto a um novo patamar, opondo-se ao aborto em casos permitidos por lei por meio de ações espetacularizadas. Um exemplo foi seu envolvimento direto na tentativa de impedir a interrupção da gestação de uma criança de 10 anos violada pelo tio no Espírito Santo9 9 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/09/ministra-damares-alves-agiu-para-impedir-aborto-de-crianca-de-10-anos.shtml >. Último acesso em: 16 dez. 2022. .

Quando Alves licenciou-se do cargo, o ministério foi assumido por Cristiane Britto, que havia sido Secretária Nacional de Políticas para Mulheres desde maio de 2019. Britto é advogada especialista em Direito Eleitoral e advogou para o Republicanos (DF), partido ao qual é filiada. Conselheira da OAB-DF, foi uma das fundadoras da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e atua em grupos voltados para a liderança feminina na política. Como Secretária, lançou o projeto Mais Mulheres no Poder10 10 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/mais-mulheres-na-politica/mulheres-no-poder>. Último acesso em: 16 dez. 2022. , reforçando, na pauta do MMFDH, a temática da participação política feminina e do combate à violência política contra as mulheres.

À frente da SNPM, Britto evitou expressar-se com base em sua religiosidade. Ao ascender ao cargo de ministra, contudo, reposicionou-se publicamente. Já no discurso de posse, comprometeu-se em continuar o trabalho de Alves, dizendo que “a família continuará sendo a base das nossas políticas públicas” e “os valores que nos guiam continuam sendo Deus, Pátria, Família e Liberdade!”. O comprometimento com agendas familistas, contudo, precedeu esse deslocamento. Sob o comando de Britto, a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM) formulou o programa “Mães do Brasil”11 11 Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.987-de-8-de-marco-de-2022-384520799.>. Último acesso em: 24 abr. 2024. , lançado estrategicamente em 08 de março de 2022 e destinado à “proteção integral da dignidade das mulheres” por meio do amparo ao “exercício da maternidade”, “desde a concepção até o cuidado com os filhos”. O ativismo antiaborto é central ao modo como a maternidade aparece nas ações do programa, que tem como objetivo “fomentar ações para a promoção dos direitos relativos à gestação e à maternidade, de modo a garantir os direitos da criança nascida e por nascer”12 12 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/dezembro/governo-federal-certifica-embaixadoras-do-maes-do-brasil-e-lanca-novas-funcionalidades-no-aplicativo-do-programa>. Último acesso em: 20 dez. 2022. .

Em evento em junho de 2022, já ministra, Britto anunciaria o Mães do Brasil como o “primeiro programa pró-vida do governo”13 13 Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.987-de-8-de-marco-de-2022-384520799>. Último acesso em: 22 abr. 2024. . No mesmo mês, solicitaria ao Ministério Público que apurasse “a responsabilidade cível e criminal da equipe médica que realizou o procedimento de aborto” e acionaria os Conselhos Federal e Regional de Medicina, “a fim de apurar a conduta ética da equipe médica que realizou o procedimento de aborto na 29ª semana de gestação”14 14 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/governo-bolsonaro-pede-investigacao-de-medicos-que-realizaram-aborto-legal-em-crianca-estuprada.shtml>. Último acesso em: 22 abr. 2024. , em outro caso de uma menina de 11 anos gestante, com direito a realizar o aborto pela legislação vigente no país.

Ao tornar-se ministra, Britto seria substituída pela ativista antiaborto Ana Muñoz Reis. Cientista social, Reis compôs a equipe do MMFDH desde a transição de governo, ocupando posições na Secretaria Executiva e na Secretaria Nacional da Família (SNF). Católica com experiência em “Assessoria e Relações Institucionais autônoma Pró-Vida”, conforme currículo disponibilizado pelo ministério, tinha registrada em seu nome a empresa Observatório Vitae, que sabemos ter disponibilizado relatório sobre a “ideologia de gênero” no governo de São Paulo15 15 Disponível em: <http://docplayer.com.br/106075287-Observatorio-vitae-briefing-sp-2017-ideologia-de-genero-perspectiva-de-genero-no-governo-de-sao-paulo-sumario-genero-por-orgao.html. Último acesso em: 16 dez. 2022. e clipagem de notícias nacionais e internacionais sobre gênero, vida (aborto), educação, política, ativismo judicial e igreja16 16 Disponível em: <https://paulofernando.com.br/wp-content/uploads/2021/02/Clipping-Vitae-De-30-01-a-05-02.pdf>. Último acesso em: 16 dez. 2022. .

A terceira atriz de maior destaque, mencionada antes, é Ângela Gandra Martins, que esteve à frente da Secretaria Nacional da Família durante todo o governo Bolsonaro. Advogada, professora no Programa de Pós-Graduação na Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro da Academia Brasileira de Filosofia (ABF), da Academia Paulista de Letras Jurídicas (APLJ) e da União de Juristas Católicos de SP (Ujucasp), a trajetória jurídica de Gandra Martins é marcada pelo ativismo católico ultraconservador contra o aborto. Em 2018, ela chamou a atenção da então futura ministra Damares Alves ao representar a Ujucasp na audiência pública sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana (ADPF 442), no Supremo Tribunal Federal. Filha do jurista Ives Gandra Martins, é parte de uma família de católicos ligados à Opus Dei, organização católica que professa visões extremadas das hierarquias de gênero e do controle do prazer sexual. Ela também se destaca nas redes internacionais antifeministas, tendo participado de ações e reuniões contrárias ao aborto em diferentes países, entre eles Estados Unidos17 17 Disponível em: <https://www.estadao.com.br/politica/secretaria-da-familia-de-bolsonaro-participou-de-decisao-contra-aborto-na-suprema-corte-dos-eua/>. Último acesso em: 06 dez. 2022. e Polônia, onde cultiva relações com a organização católica ultraconservadora Ordo Iuris18 18 Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/colunas/juliana-dal-piva/2021/02/23/damares-angela-gandra-aborto-polonia.htm>. Último acesso em: 06 dez. 2022. .

Sob seu comando, a SNF foi o principal veículo de difusão de um ideal familista pelo governo federal, nacional e internacionalmente. O programa “Famílias Fortes”, lançado em 2019, afasta a discussão sobre as causas estruturais ou sistêmicas da violência, assumindo que “se a gente conseguir fortalecer, rever relacionamentos, todo o desequilíbrio vai ser prevenido e, depois, mais bem acompanhado”19 19 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/outubro/dez-municipios-aderem-ao-projeto-familias-fortes>. Último acesso em: 16 dez. 2022. . No lançamento de uma parceria com a organização antiaborto Cervi, Gandra mencionaria a necessidade de “fortalecer os vínculos familiares desde o primeiro momento de uma vida concebida”20 20 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2022/marco/programa-familias-fortes-vai-acolher-mulheres-em-situacao-de-vulnerabilidade-em-sao-paulo-sp>. Último acesso em: 16 dez. 2022. .

Em junho de 2020, a SNF lançou o Observatório Nacional da Família (ONF), com o objetivo de produzir material acadêmico-científico voltado à afirmação da família como “primeiro e fundamental contexto de constituição integral da pessoa, cenário privilegiado para a transmissão de valores e primeiro sistema de proteção social para seus membros”21 21 Disponível em: <https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-1.643-de-19-de-junho-de-2020-262754529>. Último acesso em:24 abr. 2024. . No âmbito do ONF estava o Programa Família e Políticas Públicas no Brasil, uma parceria entre a SNF e a CAPES (MEC), que concedia bolsas de estudos a pesquisadores de mestrado, doutorado e pós-doutorado para realizarem estudos sobre família na perspectiva do ministério22 22 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/observatorio-nacional-da-familia/editais-em-destaque>. Último acesso em: 16 dez. 2022. .

Na agenda do aborto, destacavam-se também atrizes de menor peso político, mas que colaboram para o entendimento das redes diversas que compõem o contramovimento. Citamos três.

Sara Giromini (conhecida como Sarah Winter) foi Coordenadora da Atenção Integral à Gestante e à Maternidade, no Departamento de Promoção da Dignidade da Mulher do MMFDH em 2019. Ex-ativista do movimento feminista ucraniano Femen, tornou-se uma ativista radical da extrema-direita brasileira, tendo liderado, em junho de 2020, o grupo paramilitar de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro “300 do Brasil”, o que a levou a ser investigada e presa por atentar contra a democracia. No mesmo ano, Giromini foi a responsável por difundir nas redes sociais os dados da menina de 10 anos, cujo aborto o MMFDH tentou impedir, com envolvimento já mencionado da ministra Damares Alves.

Sandra Terena comandou a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção de Igualdade Racial (SNPIR) entre janeiro de 2019 e setembro de 2020. Jornalista, cineasta e especialista em Políticas Públicas em Direitos Humanos, é descendente dos povos Terena, presidiu a ONG Aldeia Brasil e produziu o documentário “Quebrando o Silêncio”. Nele, como Alves, ela denuncia a suposta omissão do poder público quanto ao infanticídio em aldeias indígenas. Terena também é uma das principais defensoras do Projeto de Lei nº119/2015, de autoria do então deputado e pastor da Igreja Presbiteriana Henrique Afonso, à época do PV-AC e integrante da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara dos Deputados. Sugerido pela ONG Atini, de Alves, o PL pretende coibir o exercício de “práticas tradicionais nocivas” em comunidades indígenas, entre as quais o infanticídio. Terena frequenta a Igreja Cristã Presbiteriana e foi demitida depois que seu marido, o blogueiro bolsonarista Oswaldo Eustáquio, passou a ser investigado pelo STF no inquérito que apura financiamento e organização de atos antidemocráticos23 23 Ver: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/26/pf-prende-blogueiro-bolsonarista-em-inquerito-que-apura-atos-antidemocraticos.ghtml>. Último acesso em: 22 abr. 2024. .

Por fim, mencionamos a economista e doutora em Ciência Política Viviane Petinelli, secretária-executiva adjunta do MMFDH, ativista contra a “ideologia de gênero na educação”24 24 Disponível em: <https://www.gospelprime.com.br/politicas-sociais-em-uma-nacao-transformada/>. Último acesso em: 16 dez. 2022. e o direito ao aborto. Evangélica, posiciona-se contra o papel do Estado na educação e recorre a argumentos econômicos contra o aborto25 25 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=rzlVq8SouZg>. Último acesso em: 16 dez. 2022. . Mobilizou-se, com Ângela Gandra Martins e Alexandre Moreira, que foi Secretário Nacional de Proteção Global, para editar, em abril de 2019, ato normativo que autorizou a educação domiciliar (homeschooling)26 26 Atualmente, está em tramitação no Senado proposta nesse sentido, o Projeto de Lei 1388/2022, já aprovado na Câmara dos Deputados (PL 3179/2012), contudo, é de iniciativa parlamentar. . Moreira é um advogado católico, Diretor Jurídico da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) e consultor da Global Homeschool Exchange (GHEX), além de ser membro da Comissão de Educação da OAB/DF.

Em síntese, as relações estabelecidas entre Estado, movimento e contramovimento evidenciam mudanças importantes na participação societal sob o governo da extrema-direita. Em vez das integrantes de movimentos e organizações feministas e das feministas acadêmicas, antes presentes na Secretaria de Políticas para Mulheres (2003-2015), as ocupantes de cargos de destaque eram ativistas ligadas a organizações cristãs indigenistas e antiaborto e/ou a grupos e partidos com essa mesma atuação no Legislativo e no Judiciário. As novas diretrizes e padrões da participação são também revelados pelas parcerias do ministério com organizações da sociedade civil. Destacamos o Centro de Restauração pela Vida (Cervi), parceiro no programa “Mães do Brasil” e em outras políticas com perspectiva familista adotadas pelo ministério. Trata-se de uma instituição católica contra o aborto, que tem mais de 20 anos de atuação para evitar o aborto inclusive em casos permitidos pela legislação brasileira, como gestação decorrente de estupro. Apesar das duas décadas de existência, essa foi a primeira vez em que atuou em parceria com o ministério dedicado a políticas para mulheres.

O contramovimento no Ministério da Saúde (MS)

Diferentemente do MMFDH, em que há uma hegemonia dos religiosos conservadores, no MS identifica-se a presença de um corpo técnico composto por médicos de carreira consolidada, vários deles com larga experiência em posições de gestão no setor público (ver Anexo 1). Não obstante, o governo da extrema-direita promoveu cinco militares a primeiro e segundo escalões desse ministério, dentre eles o general Eduardo Pazuello, responsável pelo comando da pasta durante parte da pandemia de Covid-19 (2020-21). Ademais, Jair Bolsonaro também indicou ativistas contrários ao aborto para o comando de secretarias. Mudanças institucionais, perseguições e constrangimentos podem ter limitado a atuação de servidores comprometidos com o direito das mulheres à saúde integral. É o caso da extinção da Área Técnica de Saúde da Mulher, que tinha como foco principal o Programa Integral para a Saúde da Mulher (PAISM), uma reivindicação dos movimentos de mulheres e feministas instituído em 1983, na primeira etapa de institucionalização das políticas de gênero no país.

O primeiro a assumir o Ministério da Saúde no governo Bolsonaro, Luiz Henrique Mandetta, representava a direita partidária. Deputado pelo estado de Mato Grosso do Sul, pelo partido DEM (atual União Brasil), entre 2011 e 2019, Mandetta é médico ortopedista. No período de um ano e três meses à frente da pasta, não cedeu abertamente à linguagem do “contramovimento antifeminista”, nem se opôs com vigor ao avanço dessa posição no ministério. Deixaria o cargo devido a conflitos com Bolsonaro no período da pandemia de Covid-19, quando se opôs ao negacionismo e ao anticientificismo.

Em abril de 2020, ele seria substituído pelo médico oncologista e empresário carioca Nelson Luiz Sperle Teich, que ficou no cargo apenas um mês. Sócio da consultoria de serviços médicos Teich Health Care, atuou como consultor informal na campanha eleitoral do presidente, em 2018. Pediu demissão por desacordo com Bolsonaro na gestão da pandemia, recusando-se a indicar tratamento não comprovado cientificamente27 27 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-05-06/teich-expoe-obsessao-de-bolsonaro-por-cloroquina-e-critica-endosso-do-conselho-federal-de-medicina-ao-remedio.html>. Último acesso em: 16 dez. 2022. .

O contexto de conflitos na gestão da pandemia abriu a oportunidade para que o MS fosse comandado por um militar, o general do Exército Eduardo Pazuello, que assumiu o cargo de Ministro da Saúde em maio de 2020. Especializado em tarefas administrativas e logísticas, a primeira experiência de Pazuello na área de gestão de saúde foi como Secretário-Executivo do MS, pouco mais de um mês antes de tornar-se ministro. Na sua gestão, além do negacionismo e do anticientificismo, o antifeminismo passaria a ser assumido abertamente como diretriz, com a indicação de Raphael Parente para o comando da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS). Expoente do ativismo antiaborto, Parente é médico ginecologista e católico. Em outubro de 2019, antes de assumir a SAPS, Parente escreveu um artigo no jornal Folha de S.Paulo contra o que chamou de “ativismo pró-aborto”. No texto, ele dizia que a militância pelo direito ao aborto usava dados falsos sobre o impacto do aborto ilegal, para enquadrá-lo como problema de saúde pública. Também criticava a postura do MS sobre o tema, evidenciando as resistências do corpo técnico, que limitariam as ações de Bolsonaro28 28 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/governo-nomeia-medico-contra-ativismo-pro-aborto-para-atencao-primaria-na-saude.shtml>.Último acesso em: 16 dez. 2022. .

Vale registrar, assim, que as condições para o avanço do contramovimento guardam relação com a ascensão de atores conservadores a cargos de comando, ainda que esses não tenham como prioridade o combate a agendas feministas e o reenquadramento de políticas em perspectiva cristã.

Foi, assim, sob o comando de Pazuello que o MS publicou a Portaria 2.282, de 27 de agosto de 2020, que obrigaria os serviços de saúde a realizar um ultrassom e mostrar a imagem do feto à mulher gestante em decorrência de estupro que optasse por um aborto. A portaria determinava que os profissionais comunicassem à polícia todos os casos de acesso ao aborto legal no país. Foi modificada após pressões dos movimentos feministas, ilustrando padrões de disputa que dependeram, nesse período, de denúncias públicas e visibilidade midiática. Antes, em junho de 2020, o então ministro havia exonerado servidores da área da Saúde das Mulheres que elaboraram uma nota técnica para manutenção dos serviços de atendimento a gestantes, vítimas de violência sexual, e a disponibilização de exames preventivos e de métodos contraceptivos durante a pandemia29 29 Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/06/05/pazuello-exonera-coordenadores-de-area-dedicada-a-saude-sexual-de-mulheres-e-homens.ghtml>. Último acesso em: 24 abr. 2024. .

O quarto nome a assumir o ministério, após escândalos envolvendo Pazuello30 30 Note-se que, apesar do desempenho negativo na condução do MS durante a pandemia, Pazuello logrou eleger-se deputado federal pelo Partido Liberal, o mesmo ao qual Bolsonaro encontra-se presentemente filiado. Não só, foi o segundo mais bem votado para o cargo no estado do Rio de Janeiro. , foi o médico cardiologista Marcelo Queiroga, em março de 2021. Aliado de primeira hora do bolsonarismo, foi presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia e atuou na equipe de transição do governo. Em sua gestão, o contramovimento antifeminista ampliou sua força, inclusive para bloquear, por meio de exonerações, a ação de servidores e conselheiros que agiram para exigir do ministério o cumprimento da legislação atual relativa ao aborto.

Seguindo os passos de seu antecessor, em agosto de 2021, Queiroga revogou a Resolução nº 617 do Conselho Nacional de Saúde, de 23 de agosto de 2019, que afirmava ser dever do Ministério da Saúde garantir o aborto legal, assegurando assistência integral e humanizada à mulher. A revogação se deu dias após o Ministério da Saúde ter homologado a Resolução, respondendo à pressão de ativistas contrários ao direito ao aborto, entre eles a deputada federal bolsonarista Chris Tonietto (PL-RJ)31 31 Disponível em: <https://www.acidigital.com/noticias/ministro-da-saude-volta-atras-sobre-resolucao-do-cns-que-trata-do-aborto-no-sus-28262>. Último acesso em: 24 abr. 2024. .

Em março de 2022, Parente, já como Secretário de Atenção Primária à Saúde, elaborou uma cartilha para gestantes que ignorava a legislação brasileira, afirmando que “todo aborto é crime” e que os casos de aborto previstos em lei devem ser acompanhados por “investigação política”. As denúncias de movimentos feministas ecoaram na imprensa32 32 Foram publicadas matérias denunciando a manobra do governo em diferentes veículos da imprensa, entre eles O Globo <https://g1.globo.com/saude/noticia/2022/06/08/cartilha-editada-pelo-ministerio-da-saude-diz-que-todo-aborto-e-crime-e-defende-investigacao-policial.ghtml>. Último acesso em: 24 abr. 2024); Folha de S. Paulo <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/06/secretario-da-saude-defende-guia-sobre-aborto-e-diz-que-nao-adiara-data-de-debate.shtml>. Último acesso em: 24 abr. 2024.) e Correio Braziliense <https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2022/06/5014083-cartilha-do-ministerio-da-saude-diz-que-todo-aborto-e-crime.html>. Último acesso em: 24 abr.2024). . Três meses depois, o Ministério da Saúde publicaria versão revisada, em que foi retirada a passagem equivocada de que “todo aborto é crime”, mas mantida a sugestão de que “outros fatores sejam levados em consideração além da idade”33 33 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/09/ministerio-refaz-cartilha-sobre-aborto-e-minimiza-riscos-de-gravidez-na-adolescencia.shtml>. Último acesso em: 24 abr. 2024. em caso de gravidez de crianças e adolescentes – casos que configuram estupro e, a depender do desenvolvimento do corpo da menina, risco de vida para a gestante, ambas exceções à legislação que criminaliza o aborto no país. O médico católico Raphael Parente, em sua posição de secretário do Ministério da Saúde, também atuou com a advogada evangélica e ministra Damares Alves para modificar o enquadramento das campanhas de prevenção à gestação na adolescência. Estas passariam a definir o problema pelo viés do “risco sexual precoce”. Em 2019, a Lei n° 13.798 instituiu a Semana Nacional de Prevenção à Gravidez na Adolescência34 34 Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-02/governo-lanca-campanha-para-reduzir-gravidez-na-adolescencia>. Último acesso em: 20 dez. 2022. . O reenquadramento viria depois e permite acompanhar a expansão do “contramovimento antifeminista” no MS. No lançamento da Semana, em 2019, o então Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta defendeu a educação sexual nas escolas – “não dá para não fazer”, disse –, com base em dados sobre a gravidez na adolescência no Brasil. A campanha veiculada em parceria com o MMFDH, contudo, propagava a abstinência sexual, em vez de apresentar políticas para a prevenção da gestação indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis. À época, Damares Alves defendeu a campanha afirmando que “existem consequências graves, físicas e emocionais, para o sexo antes da hora [...] Vamos cuidar das ‘novinhas’, e não apenas chamá-las para o sexo”35 35 Disponível em: <https://exame.com/brasil/campanha-polemica-que-inclui-incentivo-a-abstinencia-sexual-e-lancada/>. Acesso em: 16 dez. 2022. . Ao mesmo tempo, o então Ministro da Educação Ricardo Vélez Rodriguez, um dentre vários “olavistas”36 36 Entendemos como olavistas atores que foram alunos e/ou são admiradores assumidos de Olavo de Carvalho. Falecido em janeiro de 2022, Carvalho foi o maior “intelectual da nova direita brasileira” (Chaloub; Perlatto, 2015) e um “guru ideológico” do governo Bolsonaro. Escritor, autoproclamado filósofo e professor, Olavo de Carvalho, formou e/ou inspirou parte considerável da direita hodierna e pode ser visto como um ator da extrema-direita internacional (Teitelbaum, 2020). que passaram pelo MEC (ver Anexo 1), falava na necessidade de atualização do programa Saúde na Escola “em diálogo, sobretudo, com as famílias”.

Dois anos depois, em 2021, os eventos e notícias oficiais da Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência trariam com centralidade a mensagem de que a prevenção passa pelo adiamento da vida sexual, sob o slogan “Tudo tem seu tempo” e a orientação “Converse com sua família”, excluindo referências à educação sexual nas escolas37 37 Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2021/fevereiro/semana-nacional-de-prevencao-a-gravidez-na-adolescencia-e-celebrada-com-acoes-de-conscientizacao>. Acesso em: 20 dez. 2022. . O lançamento do Plano Nacional de Prevenção Primária do Risco Sexual Precoce e Gravidez na Adolescência, pelo Decreto n° 11.074/2022, institucionalizava o enquadramento da noção de “risco sexual precoce”.

No mesmo período, a agenda de combate à violência obstétrica seria hostilizada e rejeitada como “ideologia”. O que “inventam ser violência obstétrica”, segundo o secretário Raphael Parente, estaria associado à “obsessão pelo parto normal [que] mata as mulheres”38 38 Ver: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/comissao-de-defesa-dos-direitos-da-mulher-cmulher/arquivos-de-audio-e-video/RaphaelCamaraMdicoginecologistaeobstetra >. Acesso em: 16 dez. 2022. . Em maio de 2022, a secretaria comandada por ele lançou uma nova “Caderneta da Gestante”, que ignora orientações anteriores para o parto humanizado e inclui práticas não recomendadas39 39 Ver a cartilha em: <http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/publicacoes/caderneta_gestante.pdf > e críticas e ações contrárias em <http://www.cofen.gov.br/nova-caderneta-para-gestantes-contraria-evidencias-e-diretrizes-do-ms_98900.html> e <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2022/05/13/mp-pede-que-tcu-investigue-ministerio-da-saude-por-cartilha-da-gestante.htm>. Acesso em: 16 dez. 2022. por organizações médicas, como o incentivo à cesariana a pedido, a realização da episiotomia e da manobra de Kristeller, e a amamentação como método contraceptivo suficiente no pós-parto40 40 Portarias e cartilhas aqui mencionadas seriam revogadas em 2023, juntamente com outros decretos e documentos, após a eleição do presidente Lula. Ver: <https://aps.saude.gov.br/noticia/20357>. Último acesso em: 24 abr. 2024. .

Porém, mais uma vez, a agenda transversal ao contramovimento é a contrária ao direito ao aborto. Além da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, outras três secretarias abrigaram atores com esse perfil, com efeitos sobre as políticas públicas. A Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde foi liderada por Hélio Angotti Neto, olavista que é médico e autor de livros sobre medicina, filosofia e bioética nos quais se posiciona contra o aborto, além de membro da Center for Bioethics and Human Dignity, associação médica cristã. A Secretaria Especial de Saúde Indígena contou com Silvia Nobre Waiãpi, tenente do exército, atriz e fisioterapeuta. Waiãpi fez parte do governo Bolsonaro desde a transição, quando se aproximou de Damares Alves41 41 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/atriz-militar-atleta-quem-e-silvia-waiapi-a-india-do-time-de-bolsonaro/>. Acesso em: 20 dez. 2022. , e, em 2022, seria eleita deputada federal pelo PL, no Amapá. Por fim, a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde foi liderada por Mayra Pinheiro, médica servidora do Ministério do Trabalho e ativista do grupo conservador “Associação Médicos pela Vida” e do grupo de médicos cearense “Ainda há bem”, que, em ação em Fortaleza, espalhou outdoors com as mensagens “Quem defende a vida não pode ser a favor do aborto”42 42 Disponível em: <https://marcozero.org/movimento-de-medicos-que-mistura-aborto-com-cloroquina-tem-ligacoes-com-ministerio-da-saude/>. Acesso em: 16 dez. 2022. .

Assim, nesse caso, espaços e cargos antes ocupados por médicos e médicas sanitaristas, alinhados ou integrantes de movimentos pelos direitos das mulheres, receberam atores nomeados por sua atuação em organizações cristãs conservadoras. Têm destaque, nesse caso, médicas e médicos que já atuavam contra o direito ao aborto e tiveram, com o governo Bolsonaro, oportunidades de estar à frente de políticas de saúde no nível federal.

O contramovimento no Ministério da Educação (MEC)

A composição do MEC é, como no caso do MS, heterogênea por abrigar diferentes grupos da coalizão bolsonarista. Nesse caso, destacam-se no contramovimento os atores associados ao propagandista e autodenominado filósofo Olavo de Carvalho. Há, também, atores com trajetória de atuação no mercado financeiro e interesses privados, religiosos, servidores técnicos e, em menor medida, militares. No primeiro e no segundo escalão não há atores com trajetórias de atuação na direita partidária, e sim partidos políticos aliados atuando intensamente no Fundo Nacional para o Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre outras arenas nas quais se realiza a alocação federativa de recursos43 43 Ver: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2022/07/30/fundo-de-educacao-fnde-centrao-orcamento-secreto-emenda-de-relator.htm> e <https://www.poder360.com.br/governo/bolsonaro-me-mandou-entregar-fnde-ao-centrao-diz-weintraub/>, acessados em: 16 dez. 2022. .

O comando do ministério esteve nas mãos de ativistas com forte atuação pública contra a “ideologia de gênero” e a “doutrinação nas escolas”, e em defesa do criacionismo e/ou do revisionismo em relação à ditadura militar. Todos esses conflitos estavam colocados antes na sociedade civil e no Legislativo, impulsionados principalmente pelo Movimento Escola Sem Partido (MESP)44 44 O movimento foi criado em 2004, pelo advogado e procurador paulista Miguel Nagib. Seu foco inicial era na “doutrinação marxista” nas escolas, tendo incorporado a oposição ao pensamento crítico nas agendas de gênero e raça no contexto dos debates sobre o Plano Nacional de Educação (2014-24). Admirador de Olavo de Carvalho, Nagib romperia com ele e explicitaria publicamente tensões com Bolsonaro, por esperar maior espaço para o MESP no governo. Apesar disso, sua agenda pode ser pensada como uma diretriz assumida oficialmente no período. , mas foi com a eleição da extrema-direita que o combate a pautas transversais na educação, gênero em particular, e a perseguição aos professores se tornou política oficial do MEC.

A oposição à educação crítica, com enfoque nos direitos humanos, em igualdade e diversidade de gênero, foi bandeira do Movimento Escola Sem Partido e, paralelamente, teve na figura de Olavo de Carvalho um de seus mais ardorosos propagadores antes ainda do advento do bolsonarismo. Em 2018, ela se tornaria um dos eixos da campanha eleitoral de Bolsonaro, estrategicamente mobilizada em narrativas falsas e discriminatórias que alimentaram o antipetismo. Uma vez eleito, Bolsonaro produziu mudanças na estrutura do ministério, com destaque para a extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI). A SECADI havia sido criada em 2004, como resposta às demandas dos movimentos sociais para que “as políticas educacionais passassem a reconhecer discriminações, desigualdades, racismos, sexismos” (Jakimiu, 2021Jakimiu, V. C. L. “A extinção da SECADI: A negação do direito à educação para (e com a) diversidade”. Revista de Estudos em Educação e Diversidade, vol. 2, nº 3, p. 115-137, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.22481/reed.v2i3.8149>. Acesso em: 22 abr. 2024.
https://doi.org/10.22481/reed.v2i3.8149...
, p. 117), que impactam o acesso, a permanência e o sucesso no ambiente escolar (Carreira, 2019). Na pasta eram abrigadas as políticas dirigidas a alfabetização de jovens e adultos, educação no campo, indígena, em áreas remanescentes de quilombos, com foco nas relações étnico-raciais, em direitos humanos e educação especial (Jakimiu, 2021Jakimiu, V. C. L. “A extinção da SECADI: A negação do direito à educação para (e com a) diversidade”. Revista de Estudos em Educação e Diversidade, vol. 2, nº 3, p. 115-137, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.22481/reed.v2i3.8149>. Acesso em: 22 abr. 2024.
https://doi.org/10.22481/reed.v2i3.8149...
, p. 119).

No seu lugar, foi criada a Secretaria de Alfabetização (SEALF), por quatro anos coordenada por um ator central do contramovimento na área educacional, Carlos Nadalim, de quem falaremos a seguir. O próprio presidente Jair Bolsonaro comemorou a mudança em sua conta na rede social Twitter, evidenciando os termos em que a disputa foi levada a público no período: “Ministro da Educação desmonta secretaria de diversidade e cria pasta de alfabetização. Formar cidadãos preparados para o mercado de trabalho. O foco oposto de governos anteriores, que propositalmente investiam na formação de mentes escravas das ideias de dominação socialista” (5:51 pm, 2 de janeiro de 2019).

A reação da sociedade e das instituições aos posicionamentos radicais de extrema-direita e a acirrada disputa entre os grupos da coalizão governista pelo MEC geraram uma alta rotatividade em seu comando, com constantes vetos a nomeações. Entre janeiro de 2019 e abril de 2022, o MEC teve quatro ministros. O primeiro foi Ricardo Vélez Rodríguez. Teólogo e professor, indicado por Olavo de Carvalho, levou seus alunos e seguidores daquele para o segundo escalão do ministério. Ficou três meses no cargo, envolvendo-se em propostas de revisão histórica do golpe de 1964 nos livros didáticos, defendendo a obrigatoriedade do hino nacional e incentivando os alunos a gravarem e denunciarem seus professores por “doutrinação”. A imprensa atribuiu sua queda a uma disputa entre olavistas e militares45 45 Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/03/12/politica/1552420072_316199.html>. Acesso em: 16 dez. 2022. .

Em 8 de abril de 2019, Abraham Weintraub, assumiu o MEC. Economista com trajetória no mercado financeiro, foi aluno de Olavo de Carvalho, a quem se atribui sua indicação ao ministério, associada às boas relações mantidas entre ele e os filhos do presidente. Durante sua gestão, atacou sistematicamente as universidades públicas46 46 Embora ele mesmo seja professor em uma, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). e os intelectuais, o STF, a esquerda em geral e o feminismo. Postagens nas redes sociais lhe renderam acusações de racismo e xenofobia. Renunciou ao cargo em junho de 2020, após o vazamento de um áudio de reunião ministerial na qual defendia a prisão de ministros do STF47 47 Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/eu-por-mim-botava-esses-vagabundos-todos-na-cadeia-comecando-no-stf-diz-ministro-da-educacao-em-reuniao.ghtml>. Acesso em: 24 abr. 2024. Após a saída de Weintraub, foi indicado para a pasta, pelos militares, Carlos Alberto Dacotelli, o qual, contudo, não chegou a assumir por “inadequação curricular”. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/07/01/diario-oficial-publica-ato-que-anula-nomeacao-de-decotelli-para-ministro-da-educacao.ghtml>. Acesso em: 06 dez. 2022. .

O terceiro a ocupar a direção do MEC foi Milton Ribeiro. Advogado, teólogo e pastor presbiteriano, foi vice-reitor da Universidade Mackenzie. Esteve no comando da pasta por um ano e nove meses. Sua indicação teria partido do ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, depois indicado ao Tribunal de Contas da União, o policial militar e advogado Jorge Oliveira, e do então chefe da Advocacia Geral da União (AGU) e atual ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), André Mendonça, que também é pastor presbiteriano. O ministro Milton Ribeiro recorreria a uma noção presente nas reações à igualdade de gênero e à diversidade sexual em diferentes partes do mundo, a de que essas agendas representam um risco para a infância. Para ele, não se poderia “ensinar coisa errada” para as crianças, como que “nasceu homem, mas pode ser mulher”, algo que mais uma vez remete à estratégia de afirmar a existência de uma “ideologia de gênero” para barrar discussões nas escolas48 48 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/03/nao-tem-esse-negocio-de-ensinar-voce-nasceu-homem-pode-ser-mulher-diz-ministro-da-educacao.shtml>. Acesso em: 06 dez. 2022. . Ribeiro foi denunciado pela Procuradoria Geral da República por crime de homofobia, ao dizer em entrevista que a homossexualidade estava relacionada a famílias desajustadas. Sua queda viria pela revelação de um esquema de corrupção dentro do MEC, em que pastores evangélicos estariam cobrando propinas de prefeituras para favorecê-las49 49 Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/06/25/escandalo-do-mec-veja-a-cronologia-do-caso-que-levou-a-prisao-de-milton-ribeiro-e-ao-pedido-de-investigacao-contra-bolsonaro.ghtml>. Acesso em: 06 dez. 2022. .

O último Ministro da Educação de Jair Bolsonaro é Victor Godoy, número 2 da pasta na gestão de Ribeiro. Godoy é servidor de carreira da Controladoria Geral da União (CGU) e pós-graduado em Altos Estudos em Defesa Nacional pela Escola Superior de Guerra (ESG). Como Secretário-Executivo, Godoy participou de reuniões com os pastores que compunham o gabinete paralelo da pasta, no esquema que derrubou Ribeiro50 50 Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2022/05/5007051-mec-victor-godoy-diz-que-so-esteve-com-pastores-por-intermedio-de-ribeiro.html>. Acesso em: 16 dez. 2022. .

A atuação do secretário de Alfabetização, Carlos Nadalim, olavista e católico mencionado antes, também merece atenção. Nadalim encabeçou as alterações realizadas no edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e defendeu mudanças na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com apoio de ministros. Suas ideias circulam na internet desde 2013, quando ele criou o blog “Como educar seus filhos”. Dentre suas pautas está a defesa do ensino domiciliar, o combate a Paulo Freire e a defesa do método fônico de alfabetização. A defesa da educação domiciliar, que se expandiu com o crescimento da extrema-direita, tem sido mobilizada por novas organizações, como “Educação Domiciliar Brasil (ED Brasil)”, que disponibiliza material didático e sugere a leitura de publicações de Nadalim. Este conta também com canal bem estruturado na plataforma de vídeo online YouTube.

A política mais evidente do governo Bolsonaro para a educação foi o desfinanciamento. Porém, em termos propositivos e de reenquadramento, destacam-se os esforços para a revisão dos livros didáticos. Em janeiro de 2019, o Ministro Ricardo Vélez Rodriguez publicou uma nova versão do edital que orientava a produção de livros didáticos, suprimindo textos que tornavam obrigatórios os compromissos com a agenda de não violência contra a mulher e a promoção das culturas quilombolas e dos povos do campo, assim como a diversidade étnica da população. Essa diretriz foi mantida na gestão do ministro Abraham Weintraub. Depois dele, o pastor Milton Ribeiro nomeou como coordenadora de materiais didáticos Sandra Ramos, ativista do Movimento Escola Sem Partido51 51 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2021/02/na-pandemia-mec-tem-o-menor-orcamento-para-educacao-basica-da-decada.shtml>. Acesso em: 24 abr. 2024. . Pedagoga, doutora em Educação e professora na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Ramos é evangélica da Igreja Batista e se define como “uma lutadora contra o movimento de ideologia de gênero nos livros didáticos”52 52 Disponível em: <https://portalodia.com/noticias/politica/candidata-se-declara-conservadora-e-propoe-uma-gestao-participativa-na-ufpi-378512.html>. Acesso em: 16 dez. 2022. . Em seu ativismo aproximou-se de Damares Alves e Viviane Petinelli, do MMFDH. As três engajaram-se na objeção à proposta da BNCC de 2017, denunciando a presença da referida “ideologia” em seu conteúdo. Em artigo publicado em 2018 no blog de Carlos Nadalim53 53 Disponível em: <https://deolhonolivrodidatico.blogspot.com/2018/11/uma-analise-sobre-versao-homologada-da.html>. Acesso em: 16 dez. 2022. O texto também é assinado por Orley Silva. Professor, evangélico e ativista do MESP, Silva foi da equipe de transição do MEC. , as futuras integrantes do governo Bolsonaro sugerem alterações ao documento para “retirar todas as ideias, premissas e estratégias pedagógicas da ideologia de gênero”, “eliminar todas as interferências e violações do direito dos pais à educação moral dos filhos” e “assegurar a neutralidade política e o pluralismo de ideias em sala de aula”.

Com o mesmo objetivo, as interferências denunciadas no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, confirmam que, para manter as orientações do contramovimento antifeminista, foi necessário, como no MS, constranger e censurar servidores técnicos. Em novembro de 2021, 37 servidores do Instituto Nacional de Pesquisa e Estudos Educacionais (Inep), responsável pela avaliação no âmbito do Exame Nacional do Ensino Médio, denunciaram interferência do governo, com motivações ideológicas. Haveria, segundo documento que enviaram ao Tribunal de Contas da União, “diretriz do Presidente da República para indução ideológica no exame, com críticas reiteradas a diversas questões”, envolvendo gênero, racismo, movimentos sociais e a ditadura militar de 196454 54 Ver “Ditadura e igualdade de gênero: temas estão na mira de Bolsonaro desde 2019”, em: <https://educacao.uol.com.br/noticias/2021/11/20/enem-ditadura-movimentos-sociais-censura-bolsonaro.htm>. Acesso em: 5 dez. 2022. . Danilo Dupas Ribeiro era o presidente do Inep à época, permanecendo no cargo até dezembro de 2022. Economista e professor, sua experiência em gestão relaciona-se à administração do Fundo de Pesquisa e assessoria ao Instituto Presbiteriano Mackenzie (IPM). Antes de chefiar o Inep, ele havia sido indicado pelo governo Bolsonaro como titular da Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres).

Nos dois anos que antecederam a presidência de Dupas, o Inep foi chefiado por Marcus Rodrigues, Elmar Vicenzi e Alexandre Lopes. Os três deixaram a pasta envolvidos em “polêmicas” em relação ao Enem, demonstrando a relevância da prova nas ofensivas travadas contra uma educação crítica e inclusiva. No caso de Rodrigues, a saída resultou de tentativa de revisão do banco de questões da prova; Vicenzi deixaria o Inep após a denúncia de tentativa de intervenção do Presidente da República na definição das questões; Lopes sairia em decorrência de críticas públicas feitas por Bolsonaro ao conteúdo do Enem. Uma das questões em xeque indica que a oposição vai além de temas mais contenciosos, como sexualidade, já que o tema eram as desigualdades salariais entre mulheres e homens. Em suas redes, o então presidente afirmou que a desigualdade é uma questão da “iniciativa privada” e que “[o Enem] faz umas questões absurdas sempre pregando a igualdade, mas por baixo”55 55 Disponível em: <https://veja.abril.com.br/politica/queda-do-presidente-do-inep-foi-motivada-por-discussao-de-genero-no-enem/>. Acesso em: 24 abr. 2024. .

Como no MMFDH e no MS, os atores do contramovimento que ocuparam cargos de primeiro e segundo escalão expõem as redes e organizações que passam a participar diretamente da gestão pública, no governo federal, com a eleição da extrema-direita. As diretrizes conservadoras cristãs se combinam, com níveis variados de tensão, em cada um desses ministérios, com outras perspectivas e interesses que compuseram a coalizão bolsonarista.

Conclusões

Desde a crise aguda de 2016 e, em particular, com a vitória da extrema-direita em 2018, o aparato de Estado tem sido direcionado para suspender ou ressignificar as agendas de direitos e distributivas. Ações voltadas para a redução dos controles sociais sobre os processos políticos ampliaram as possibilidades de captura do aparato estatal por interesses privados, como os de agentes econômicos nas áreas de saúde e educação, e de coletividades que operam com lógicas exclusivistas, como as Igrejas, naquelas áreas e nas agendas de gênero, especificamente. Nesse ponto, a privatização se encontra com um fenômeno politicamente importante, que são a redução da pluralidade no ambiente estatal e a modificação nos padrões de participação da sociedade civil. Passa-se, assim, de uma lógica que opera com interesses mais difusos e reconhece conflitos sociais estruturais para outra que opera abertamente com interesses concentrados, repelindo os conflitos sociais pela recusa de sua validade ou pela repressão justificada em nome da ordem.

Partindo desses marcos gerais, este artigo buscou flagrar a dinâmica de ocupação do Estado no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), em ministérios estratégicos para a promoção das políticas de igualdade de gênero: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Ministério da Saúde e Ministério da Educação.

Os resultados mostram que o governo da extrema-direita ofereceu oportunidades sem precedentes para que o contramovimento antifeminista atuasse em uma coalizão convergente, isto é, uma aliança governista heterogênea, mas que não inclui grupos orientados para a promoção da igualdade de gênero. Operar em uma dinâmica relacional com essas características permitiu ao contramovimento exercer inédito poder de veto sobre as políticas igualitárias.

Nos três ministérios, pode-se destacar a relevância de atores conservadores religiosos em ações para bloquear agendas feministas e para propor políticas que afirmam a ordem familiar tradicional. Estas assumem perspectiva heteronormativa e binária, mas também de controle acentuado sobre a sexualidade e a capacidade e a autonomia reprodutiva de jovens e mulheres. Nas três pastas, é possível verificar a presença de atores evangélicos e católicos, mas principalmente a aliança entre eles. Mulheres e homens que se autodefinem como de direita e cristãos, com ativismo anterior em pautas antifeministas, são protagonistas. Predominam advogadas, juristas e médicos/as. Uma contribuição original dessa pesquisa é, ainda, apontar para a importância e os efeitos, nas políticas públicas, das alianças entre atores religiosos e outros setores da coalizão bolsonarista, como os militares e grupos que operam com interesses de mercado. Mostra, ainda, que a expansão do contramovimento no Estado criou oportunidades para suas lideranças, que passaram a gerir políticas públicas nos três ministérios, mas também para organizações da sociedade civil, que se tornaram as novas parceiras na construção das políticas públicas.

A pesquisa também evidencia as diferenças entre os ministérios. O MMFDH tem a liderança global de religiosas conservadoras, com expertise política e jurídica. Foi o mais estável entre os três e implementou políticas de “fortalecimento da família” em termos morais, enquanto reduzia recursos para políticas de combate à violência contra mulheres e meninas e colocava na cena pública ações para evitar o acesso ao aborto nos casos permitidos por lei, em particular o de crianças violentadas e que sofriam risco de morte caso a gestação fosse mantida.

No MEC e no MS a heterogeneidade é maior, assim como a necessidade de constranger resistências de corpos técnicos sólidos.

Na Saúde, têm destaque médicos conservadores cristãos. O contexto da pandemia pode ter dificultado a reformulação de políticas, mas o processo de substituição de ministros ampliou o impacto do bolsonarismo, na forma do negacionismo e do anticientificismo, assim como o avanço do contramovimento antifeminista. Nesse caso, os objetivos principais foram reduzir o acesso ao aborto legal, implementar diretrizes para a abstinência sexual entre adolescentes e bloquear agendas feministas como a do combate à violência obstétrica. A presença de um general à frente do ministério abriu oportunidades para a atuação do contramovimento, ampliada na gestão de um médico bolsonarista.

Na Educação, a aderência a perspectivas ideológicas contrárias à diversidade e com claro viés antifeminista esteve presente entre ministros e secretários com proveniências distintas, destacando-se olavistas e evangélicos conservadores (em relação que se mostrou por vezes tensa), mas também atores com interesses empresariais e da política profissional. Além dos ataques e desfinanciamento das políticas educacionais, as diretrizes para a compra de livros didáticos e para o conteúdo de exames nacionais foram o principal foco do contramovimento.

Nos dois ministérios, para que o contramovimento tivesse efeito nas políticas públicas, foi preciso constranger servidores. De outro lado, em busca de limitar esses efeitos, atores comprometidos com a promoção de direitos em perspectivas igualitárias e de diversidade denunciaram os vieses e ilegalidades nas políticas, o que gerou instabilidade (MEC) e permitiu reverter parcialmente as diretrizes bolsonaristas (MS). No MMFDH, a liderança de Damares Alves, associada ao baixo orçamento da pasta, pode ter garantido maior estabilidade. Nele, os efeitos do contramovimento foram globais, isto é, atravessaram todas as ações, com o objetivo de instaurar uma nova política de gênero. Esse ministério também teve papel relevante na transversalização dessa nova política, com a coordenação entre ministérios para o avanço das diretrizes do contramovimento.

Nas três arenas institucionais, a principal agenda que articula o contramovimento é a oposição ao direito ao aborto. Esse é o principal eixo do bloqueio a políticas, embora elas ocorram também em outras agendas, como a educação para a igualdade de gênero e a diversidade sexual. Ele também aponta para a relação entre organizações preexistentes (“pró-vida”) e novas organizações e formas de ativismo, assim como para a relevância de parcerias com organizações cristãs.

Porém, é a atuação pelo “fortalecimento das famílias” e pela proteção à infância contra supostos riscos associados à sexualização e às drogas que articula o contramovimento em sua dimensão produtiva, isto é, na construção de novas alternativas políticas. Esse eixo permite ressignificar direitos, que contemplariam nascidos e não nascidos em uma ordem familiar estabilizada pela adesão à moralidade heteronormativa e, podemos dizer, patriarcal. A promoção de políticas para a família e o suporte à produção de conhecimento para legitimar essa agenda são alguns exemplos.

Avança-se, assim, ao mesmo tempo, no desmonte de políticas e em reenquadramento e tradução da linguagem feminista, em uma dinâmica de contramovimento em que a mimese do que os movimentos feministas promoveram nos anos anteriores se faz pela inversão: desfazendo e refazendo em sentido inverso. Se o exemplo mais eloquente é o MMFDH, por tratar-se do uso de uma estrutura institucional criada a partir das demandas históricas dos movimentos feministas, a ocupação do MEC e do MS é também reveladora de ao menos dois mecanismos fundamentais. Um deles é que o veto às agendas feministas de direitos, assim como à linguagem feminista, não encontra resistência em nenhum dos atores da coalizão. O segundo é que a liderança de atores conservadores religiosos, em alianças heterogêneas, produziu novas sinergias e possibilidades de avançar políticas antifeministas (em especial as de tipo “familista”), ainda que não tenha eliminado tensões e disputas, já que outras lógicas e interesses (por exemplo, empresariais) seguem ativas.

Entendemos que o padrão de ocupação do Estado que aqui mostramos e discutimos faz parte da dinâmica de erosão da democracia no país. A dimensão que se revela de maneira mais direta nos nossos dados é a da limitação do pluralismo no Estado, no caso, no Executivo federal. A coalizão convergente instaurada pelo governo de extrema-direita foi a condição para o avanço de pautas contrárias aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, servidores técnicos de carreira pública que discordassem ou procurassem pressionar pelo compromisso com a legislação vigente sofreram assédio, podendo ser exonerados ou afastados (Cardoso Junior et al., 2022). O veto a temas e posições foi possível porque havia menos pluralidade, mas foi também um mecanismo para calar a pluralidade que permanece no corpo técnico, entre servidores e conselheiros.

A defesa da família sem orçamento e agenda de direitos sociais é uma quimera, mas “funciona” politicamente, já que permite justificar as novas diretrizes políticas. Como “moralidade compensatória” (Biroli, 2018Biroli, F. Gênero e Desigualdades, limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo. 2018., 2020Biroli, F. “The backlash against gender equality in Latin America: Temporality, Religious Patterns, and the Erosion of Democracy”. Lasa Forum, Guadalajara, vol. 51, nº 2, p. 22-26, 2020. Disponível em: <https://forum.lasaweb.org/files/vol51-issue2/Dossier1-3.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2024.
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) e matéria para a construção de inimigos, ela é estratégica para mobilizar setores da sociedade expostos à linguagem religiosa conservadora. Tem, ainda, potencial de conectar-se a emoções cotidianas, como as inseguranças em relação aos filhos, o medo e as incertezas associados à precariedade, à pobreza e à violência.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2023
  • Aceito
    23 Nov 2023
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