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A Variação de Capacidades Burocráticas na Administração Pública Federal Brasileira: uma Análise com Dados de Survey

Resumo

Este trabalho tem como objetivos demonstrar a variação de capacidades burocráticas no interior da administração pública federal brasileira, no que diz respeito às organizações pertencentes a diversos setores de políticas públicas, assim como verificar proposições teóricas da literatura acerca da relação entre as características da burocracia pública e a ação estatal. Para tais fins, dados provenientes de questionário aplicado junto aos servidores públicos federais brasileiros foram analisados por meio de um conjunto de técnicas de análise multivariada. Os achados indicam que as organizações com maior percepção de “weberianidade” burocrática estão correlacionadas a organizações inovadoras e com culturas organizacionais restritivas à corrupção. Da mesma forma, organizações com maior autonomia burocrática estão associadas a organizações mais eficazes. Contudo, a variação observada entre capacidades e desempenho percebidos não caracterizou um padrão claramente identificável de tipo de organização com setores de políticas públicas. Nesse sentido, o artigo contribui com a literatura ao acrescentar nuances à abordagem das “ilhas de excelência” ao verificar que a assimetria de capacidades no interior do Poder Executivo brasileiro é mais complexa do que o indicado por pesquisas anteriores.

burocracia; organizações públicas; capacidade estatal; corrupção, inovação e eficácia; setores de política pública

Abstract

This paper aims to demonstrate the variation in bureaucratic capacities within the Brazilian Federal Public Administration concerning organizations belonging to different policy sectors and verify theoretical propositions in the literature about the relationship between the characteristics of public bureaucracy and state action. For such purposes, data from a questionnaire applied to Brazilian federal civil servants were analyzed using a set of multivariate analysis techniques. The findings indicate that organizations with a greater perception of bureaucratic "weberianess" are correlated with innovative organizations and organizational cultures that restrict corruption. Likewise, organizations with greater bureaucratic autonomy are associated with more effective organizations. However, the observed variation between perceived capabilities and performance did not characterize a clearly identifiable pattern of organization type with public policy sectors. In this sense, the article contributes to the literature by adding nuances to the "islands of excellence" approach by verifying that the asymmetry of capabilities within the Brazilian executive branch is more complex than indicated by previous research.

bureaucracy; public organizations; state capacity; corruption, innovation and effectiveness; policy sectors

Introdução

A proliferação de estudos sobre capacidade estatal em anos recentes é um indicador de que o conceito continua sendo atual para a análise da ação do Estado e seu desempenho (Centeno, Kohli, Yashar, & Mistree, 2017). Cobrindo uma série de temas, o conceito tem servido a diversos propósitos, desde os clássicos estudos sobre state building , desenvolvimentismo, até o combate à corrupção, violência, segurança pública, entre outros ( Cingolani, 2018)Cingolani, L. (2018). The role of state capacity in development studies. Journal of Development Perspectives, 2(1-2), 88-114. doi: 10.5325/jdevepers.2.1-2.0088 . Nada obstante, deve-se lembrar que a capacidade Estatal não é um atributo fixo ou uniforme, pois varia dentro do próprio aparelho estatal, entre áreas de políticas públicas e entre as organizações que as compõem. É sobre esse tópico que este artigo se debruça.

A desagregação e discriminação de organizações e setores de políticas públicas e sua análise pelas lentes do conceito de capacidade estatal, especificamente da dimensão burocrática do conceito, é um tema relativamente recente da literatura. Em estudo comparativo com países da América Latina, Gingerich (2012) encontrou maior variação na capacidade burocrática entre as organizações internas aos Estados nacionais do que entre países. Bersh, Praça e Taylor (2013; 2017) mapearam um arquipélago de excelência na burocracia federal brasileira, indicando uma pluralidade de organizações quanto a quesitos de autonomia e meritocracia no serviço público federal brasileiro. Souza (2016)Souza, C. (2016). Capacidade burocrática no Brasil e na Argentina: quando a política faz a diferença. In: Gomide, A. A.; Boschi, R. R. (Ed), Capacidades Estatais em Países Emergentes: o Brasil em perspectiva comparada (pp. 51-104). Rio de Janeiro. RJ. IPEA. afirma que alguns setores de políticas públicas no Brasil, como infraestrutura e política social, são menos profissionalizados em relação a setores de controle. Cavalcante e Lotta (2021)Cavalcante, P., Lotta, G. (2021). Are Governance Modes Alike? An Analysis Based on Bureaucratic Relationships and Skills. International Journal of Public Administration, 1-16. doi: 10.1080/01900692.2021.1874983 também encontraram variações importantes nas habilidades e relacionamentos de burocracias entre diferentes áreas de políticas.

A mensuração do conceito em tela é outra questão discutida pela literatura, pois o nível de capacidade que as organizações estatais possuem não pode ser diretamente avaliado pela observação do resultado de suas ações, sob o risco de conclusões tautológicas ( Kocher, 2010Kocher, M. A. (2010). State capacity as a conceptual variable. Yale Journal of International Affairs, 5, 137-147. ). Analiticamente, a capacidade está separada dos resultados da ação estatal, o que muitas vezes é desconsiderado nas análises baseadas no conceito ( Centeno et al., 2017Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., Mistree, D. (2017). Unpacking states in the developing world. In. Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., & Mistree, D. (Eds.). States in the developing world (pp.1-34). Cambridge University Press. ; Cingolani, 2018Cingolani, L. (2018). The role of state capacity in development studies. Journal of Development Perspectives, 2(1-2), 88-114. doi: 10.5325/jdevepers.2.1-2.0088 ; Gomide, Pereira, & Machado, 2018Gomide, A. D. Á., Pereira, A. K., Machado, R. A. (2018). Burocracia e capacidade estatal na pesquisa brasileira. In. Pires, R. O., Lotta, G. O., Oliveira, E. Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas (pp. 85-104). Brasília. DF. Ipea/Enap. ). Ademais, o conceito de capacidade estatal possui uma ampla gama de propósitos e níveis de abstração (Williams, 2020), indo desde a análise macrocomparativa até o exame de organizações. Nesse sentido, este trabalho adota a abordagem de Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 , Centeno et al. (2017)Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., Mistree, D. (2017). Unpacking states in the developing world. In. Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., & Mistree, D. (Eds.). States in the developing world (pp.1-34). Cambridge University Press. , Dahlström e Lapuente (2017)Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. , dentre outros, de associar a capacidade estatal com a qualidade da burocracia ou a competência organizacional dos servidores públicos para a implementação de políticas públicas, independentemente de suas finalidades. Isso dota o conceito de neutralidade normativa. Assim, quando analisamos as organizações do Poder Executivo federal do Estado brasileiro por meio das variáveis de desempenho, não estamos emitindo nenhum juízo de valor sobre as finalidades ou o conteúdo das políticas por eles implementadas.

Empiricamente, este trabalho contribui ao verificar por meio de evidências o pressuposto de variação de capacidades no interior do Poder Executivo do Estado tanto ao nível de organizações individuais quanto entre setores de políticas públicas1 1 . Assim como Fukuyama (2013) , focamos a discussão na burocracia do poder Executivo. , respondendo às seguintes perguntas: Como se dá a variação de capacidades entre organizações da administração pública federal brasileira? Existe algum padrão de associação entre as variáveis de desempenho percebido das organizações com o setor de política pública em que elas estão inseridas?

A operacionalização do conceito de desempenho organizacional adotado nesta pesquisa contou com três variáveis dependentes adotadas na literatura ( Dahlström & Lapuente, 2017Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. ): eficácia, inovação e restrição à corrupção. Como variáveis explicativas elencamos (também com base em teoria) o que definimos como “weberianidade”, autonomia burocrática, recursos organizacionais, coordenação intraestatal e relacionamento Estado-sociedade.

O teste de hipóteses realizado serviu para avaliar o poder explicativo de diferentes abordagens acerca dos determinantes da capacidade estatal. Além da abordagem “weberiana” sobre a burocracia, que enfatiza a profissionalização e impessoalidade do serviço público, passamos por teorias sobre a ‘autonomia inserida’, em que a conectividade da burocracia pública com atores não estatais importa ( Evans, 1995Evans, P. B. (1995). Embedded autonomy: States and industrial transformation. Princeton. Princeton University Press. ); a autonomia da burocracia frente aos interesses políticos ( Fukuyama, 2013Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 ); e as habilidades e os recursos que servidores contam para o desempenho de suas funções (Wu, Ramesh, & Howlett, 2018).

Para tais fins, dados coletados por meio de survey com a burocracia federal brasileira foram analisados por técnicas de análise multivariada: uma série de regressões beta, para testar as hipóteses de correlações existentes entre as variáveis dependentes e explicativas deste trabalho; e análise de correspondência múltipla, com o objetivo de identificar as associações existentes entre os tipos de organizações, capacidades e desempenho.

Além desta introdução, este artigo organiza-se da seguinte maneira. A próxima seção apresenta a abordagem teórica, as variáveis empregadas, assim como as hipóteses da pesquisa. A base de dados utilizada e a operacionalização dos conceitos são objeto da seção 3. Os resultados das regressões Beta e das análises de correspondência são apresentados na seção 4. A seção 5 discute os achados da análise multivariada. Por fim, a última seção conclui o trabalho.

Teoria, variáveis e hipóteses

O uso do conceito de capacidade estatal cresceu tanto em intensidade quanto em extensão ( Sartori, 1970Sartori, G. (1970). Concept misformation in comparative politics. The American political science review, 64(4), 1033-1053. ) nas últimas décadas. Isso promoveu uma diversidade de usos do conceito, que, de acordo com Cingolani (2018)Cingolani, L. (2018). The role of state capacity in development studies. Journal of Development Perspectives, 2(1-2), 88-114. doi: 10.5325/jdevepers.2.1-2.0088 , apresentam, ao menos, quatro abordagens: belicista, weberiana, relacional e da escolha racional. Embora essas abordagens não sejam estanques entre si, elas possuem nuances no modo que entendem a dinâmica de construção conceitual.

A tradição belicista ( Tilly, 1992Tilly, C. (1992). Coercion, capital, and European states, AD 990-1992. Oxford. Basil Blackwell. ) busca responder como as variações nos processos de formação estatal respondem às necessidades militares de diferentes países, assim como o impacto de guerras internas e externas afetam o funcionamento dos Estados ( Centeno, 2002Centeno, M. A. (2002). Blood and debt: War and the nation-state in Latin America. Penn State Press. ). A perspectiva weberiana (ou estadocêntrica) apresenta o Estado como um poder autônomo, capaz de implementar objetivos oficiais, mesmo em relação à oposição de poderosos atores sociais ou em face de circunstâncias socioeconômicas adversas ( Skocpol, 1985Skocpol, T. (1985) Bringing the State back in: strategies of analysis in current research. In. Rueschemeyer, D., Evans, P. B., & Skocpol, T. (Eds.). Bringing the State back in. Cambridge. Cambridge University Press. ). No interior dessa perspectiva está inserido o debate sobre os determinantes históricos de uma administração pública orientada pelo mérito versus o uso (neo)patrimonialista das instituições estatais ( Dahlström & Lapuente, 2017Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. ). O insulamento de burocracias para a consecução dos objetivos das lideranças políticas é tema dos trabalhos de Geddes (1990Geddes, B. (1990). Building" state" autonomy in Brazil, 1930-1964. Comparative Politics, 22(2), 217-235. doi: 10.2307/422315 ; 1994), que enfatizam as trocas entre políticos e burocratas na indicação de gestores públicos capazes de aumentar as chances de crescimento e desenvolvimento do país, assim como a construção de apoios políticos para sua continuidade na liderança do Estado. Já a tradição relacional indica interações específicas entre Estado e sociedade como determinante principal do processo de construção do poder Estatal. Migdal (1988)Migdal, J. S. (1988). Strong societies and weak states: state-society relations and state capabilities in the Third World. Princeton. Princeton University Press. define capacidade estatal como as habilidades dos líderes estatais usarem agências estatais para conduzir a população a seus desígnios. Para o autor, alguns líderes são capazes de estabelecer regras de comportamento efetivas para sociedade, enquanto outros não são bem-sucedidos. A explicação central para a capacidade estatal repousa na distribuição do controle social entre diversas organizações, incluindo o Estado. Por último, a perspectiva institucionalista da escolha racional entende a capacidade estatal com foco na dimensão legal, em que as instituições são fundamentais para promover um ambiente adequado para o investimento e a inovação ( Cárdenas, 2010Cárdenas, M. (2010). State capacity in Latin America. Economía, 10(2), 1-45. ; North, 1990)North, D. C. (1990). Institutions, institutional change and economic performance. Cambridge. Cambridge university press. . Besley e Persson (2011)Besley, T., Persson, T. (2011). Pillars of prosperity: The political economics of development clusters. Princeton. Princeton University Press. analisam, a partir dessa perspectiva, que altas correlações de capacidade fiscal e legal resultam em Estados mais eficientes e com melhores indicadores de eficácia estatal. Essa pluralidade analítica e conceitual reflete um campo de estudo em desenvolvimento, aprofundando o conhecimento acerca da ação estatal e seus resultados no desenvolvimento econômico, político e social ( Cingolani, 2018)Cingolani, L. (2018). The role of state capacity in development studies. Journal of Development Perspectives, 2(1-2), 88-114. doi: 10.5325/jdevepers.2.1-2.0088 .

Os determinantes do desempenho governamental têm sido debatidos na última década pela literatura a partir principalmente da perspectiva da burocracia do Poder Executivo ( Centeno et al. 2017Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., Mistree, D. (2017). Unpacking states in the developing world. In. Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., & Mistree, D. (Eds.). States in the developing world (pp.1-34). Cambridge University Press. ; Dahlström & Lapuente, 2017Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. ; Fukuyama, 2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 . Para Fukuyama, a governança (ou a capacidade do Poder Executivo de fazer e aplicar as leis e fornecer bens e serviços) está associada ao desempenho dos burocratas (os agentes) na realização das diretrizes fixadas pelos mandatários políticos (os principais). Ou seja, a governança estaria relacionada à capacidade de execução dos burocratas das ações públicas decididas na esfera política. Para o citado autor, critérios processuais seriam os mais adequados para mensurar tal capacidade, uma vez que medidas de resultado trariam consigo problemas. Como nos alertam Kocher (2010)Kocher, M. A. (2010). State capacity as a conceptual variable. Yale Journal of International Affairs, 5, 137-147. e Enriquez e Centeno (2012)Enriquez, E., Centeno, M. A. (2012). State capacity: utilization, durability, and the role of wealth vs. history. International and multidisciplinary journal of social sciences, 1(2), 130-162. 10.4471/rimcis.2012.07
https://doi.org/10.4471/rimcis.2012.07...
, a mensuração da capacidade pelos resultados pode gerar tautologia e circularidades nas análises, dificultando interpretações e buscas de nexos causais. Por conseguinte, os atributos da burocracia, a forma como os burocratas públicos são recrutados e promovidos (com base no mérito ou por critérios políticos) e o nível de autonomia individual que possuem para a implementar as ações a eles atribuídas (ou o grau de discricionariedade concedida aos burocratas para a implementação de seus mandatos), seriam as principais variáveis para avaliar a governança ou a capacidade estatal. Esclarece-se que, para Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 , o oposto da autonomia burocrática seria a subordinação ou a interferência política na implementação das ações via micro gerenciamento do burocrata (agente) pelo político (principal).

Dahlström e Lapuente (2017)Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. relacionam a qualidade dos governos com a forma como funcionam, ou seja, para eles, governos de alta qualidade seriam aqueles que executam suas ações de forma impessoal, proba e eficaz. Ressalte-se o destaque dado à probidade administrativa, para além da eficácia, como um dos fatores para se avaliar a ação governamental. Conforme Dahlström e Lapuente, a forma em que as relações entre políticos e burocratas são moldadas afeta o desempenho dos governos. Assim, a separação de carreiras entre políticos e burocratas seria a maneira de se obter um governo de alta qualidade e desempenho. Para essa separação ocorrer é condição sine qua non a existência de uma burocracia impessoal e baseada no mérito. Nas palavras dos autores:

Pensamos que o sinal mais importante da extensão em que as carreiras de políticos e burocratas são separadas é enviado quando os recrutamentos são feitos. Recrutamentos baseados em lealdade política sinalizam que carreiras burocráticas, independentemente dos regulamentos de jure, estão vinculadas aos políticos. Nesses casos, os destinos profissionais dos burocratas são integrados aos de seus senhores políticos. Por outro lado, quando os recrutamentos se baseiam nos méritos do candidato, isso indica que são os colegas profissionais, em vez de os mestres políticos, que influenciam as carreiras burocráticas. Instituições que garantem um sistema de recrutamento baseado no mérito, e não em considerações políticas, são consequentemente recursos importantes para um governo de alta qualidade. ( Dahlström & Lapuente, 2017Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. , p. 2, tradução nossa)

Portanto, com duas carreiras coabitando o aparato estatal, cada uma delas possuindo canais de responsabilização distintos (uma baseada em critérios políticos e outra em critérios profissionais de revisão por pares), uma poderia fiscalizar e restringir as atividades (potencialmente) corruptas da outra.

Ressalte-se que a necessidade da separação entre as carreiras política e administrativa também foi uma preocupação essencial para Max Weber, que enfatizou a necessidade de operação do serviço público dentro de uma ética da convicção, voltada exclusivamente para a obediência dos códigos e regulamentos para a efetiva implementação das decisões distribuídas pelos políticos que são, em última instância, os responsáveis pelas decisões ( Weber, 2004Weber, M. (2004). Ciência e política: duas vocações. São Paulo, SP. Editora Cultrix. )2 2 . Se o burocrata deve elevar a regra e a ordem à condição de convicção pessoal, o político de vocação tem o dever de lutar para transformar suas convicções íntimas em ordem e regra ( Teixeira, 1999 ). Desse modo, para Weber, a ética da convicção em contraponto à ética da responsabilidade é o que marca a diferença das profissões de burocratas e políticos no Estado moderno. . Nesse sentido, Evans e Rauch (1999)Evans, P., Rauch, J. E. (1999). Bureaucracy and growth: A cross-national analysis of the effects of" Weberian" state structures on economic growth. American sociological review, 64(5), 748-765. doi: 10.2307/2657374 sugerem que uma burocracia pública baseada no mérito e com status distintivo (i.e., possuindo termos e condições especiais de emprego) criaria um ethos especial e um espírito de corpo capaz de isolar essa instituição de ser capturada por grupos de interesse e dificultar a corrupção.

Apesar dos argumentos que ressaltam o papel crítico das burocracias do tipo ideal weberiano para o desempenho governamental, a abordagem da Nova Gestão Pública (NGP) levanta dúvidas sobre a relação entre os atributos daquele tipo ideal e a eficácia dos governos, sobretudo na capacidade de inovação, seja por meio da adoção de novos processos administrativos ou pelo desenvolvimento de novos bens e serviços ( Osborne & Gaebler, 1992Osborne, D., Gaebler, T. (1992). Reinventing Government. New York. Penguin Press. ). Isso aconteceria, conforme a NGP, devido à incapacidade de sistemas hierárquicos, formais e impessoais de se adaptarem a uma sociedade e economia em rápida mudança, baseada em informações e intensiva em conhecimento ( Verhoest, Verschuere, & Bouckaert, 2007Verhoest, K., Verschuere, B., Bouckaert, G. (2007). Pressure, legitimacy, and innovative behavior by public organizations. Governance, 20(3), 469-497. doi: 10.1111/j.1468-0491.2007.00367.x ).

Nada obstante, trabalhos como os de Suzuki e Demircioglu (2017)Suzuki, K., Demircioglu, M. (2017). Rediscovering Bureaucracy: Bureaucratic Professionalism, Impartiality and Innovation. Working Paper Series 2017: 7, 2-36. hdl.handle.net/2077/52880 apresentam evidências que burocracias caracterizadas por recrutamento e promoção baseados no mérito (ou seja, com características do tipo ideal weberiano), são, sim, capazes também de promover inovações. Isso porque, conforme os autores, um sistema de recrutamento baseado no mérito traria para as organizações do setor público as pessoas mais competentes e habilidosas que, por sua vez, aplicariam seus conhecimentos e expertise para o desenvolvimento de novos processos e serviços. Do contrário, continua o raciocínio deles, a falta de profissionalismo e estabilidade desmotivaria os servidores públicos a se empenhar em suas funções e trazer novas ideias. Igualmente, Nistotskaya e Cingolani (2016)Nistotskaya, M., Cingolani, L. (2016). Bureaucratic structure, regulatory quality, and entrepreneurship in a comparative perspective: Cross-sectional and panel data evidence. Journal of Public Administration Research and Theory, 26(3), 519-534. doi: 10.1093/jopart/muv026 alegam, sustentados em evidências, que o recrutamento meritocrático e a estabilidade no trabalho aumentam a confiança no ambiente de trabalho e que isso conduz a uma burocracia mais inovadora. Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 também alega que é a autonomia burocrática que permite que experimentação e riscos associados à inovação sejam assumidos pela burocracia, pois em uma burocracia autônoma e baseada no mérito, o chefe dá ordens gerais para que algo seja feito e os subordinados descobrem a melhor forma de fazê-lo. Coadunando a essas proposições, os trabalhos de Bysted e Jespersen (2014)Bysted, R., Jespersen, K. R. (2014). Exploring managerial mechanisms that influence innovative work behaviour: Comparing private and public employees. Public Management Review, 16(2), 217-241. doi: 10.1080/14719037.2013.806576 , assim como o de Bysted e Hansen (2015)Bysted, R., Hansen, J. R. (2015). Comparing public and private sector employees' innovative behaviour: Understanding the role of job and organizational characteristics, job types, and subsectors. Public Management Review, 17(5), 698-717. doi: 10.1080/14719037.2013.841977 , apontam que autonomia e discricionariedade burocrática possuem fortes efeitos positivos sobre a inovação. Por fim, a partir de uma perspectiva de desenvolvimento histórico-institucional, Skowronek (1982)Skowronek, S. (1982). Building a new American state: The expansion of national administrative capacities, 1877-1920. Cambridge. Cambridge University Press. e Skocpol e Finegold (1982)Skocpol, T., Finegold, K. (1982). State capacity and economic intervention in the early New Deal. Political science quarterly, 97(2), 255-278. doi: 10.2307/2149478 , analisando o caso do Estado estadunidense, e Sikkink (1993)Sikkink, K. (1993). Las capacidades y la autonomía del Estado en Brasil y la Argentina. Un enfoque neoinstitucionalista. Desarrollo Económico, 32(128), 543-574. doi: 10.2307/3467177 , comparando as instituições brasileiras e argentinas, indicam que a formação de burocracias profissionais com relativa autonomia diante jogo político são fundamentais para alavancar importantes oportunidades de inovações institucionais no funcionamento da administração pública3 3 . Para efeito do trabalho, focaremos apenas nos servidores públicos do poder executivo federal, mesmo entendendo que a administração pública é formada pelo conjunto de organizações instituídas para consecução de objetivos de governo, como a prestação de serviços públicos. .

Variáveis

Com base em Dahlström e Lapuente (2017)Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. , operacionalizamos o desempenho organizacional por meio de três variáveis: (a) eficácia, (b) restrição à corrupção, e (c) inovação. A primeira concerne ao grau de alcance dos objetivos ou resultados pretendidos pelas organizações. A segunda refere-se à existência de um ambiente organizacional inibitivo à corrupção e a malversação de recursos públicos. Por fim, a última variável alude à existência de práticas organizacionais inovadoras, permitindo que os riscos associados à inovação sejam assumidos pela burocracia.

Quanto às variáveis explicativas, foram selecionadas cinco delas com base na literatura. Além das características da burocracia (meritocracia e autonomia) discutidas por Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 , levou-se também em conta: a interação dos burocratas com o setor privado e organizações da sociedade civil; a dotação de recursos organizacionais; e a existência de coordenação intra e interorganizacional.

Ressalte-se que autonomia não significa que os burocratas devem ser isolados da sociedade ou do poder político. Se o mandato das burocracias é fornecer serviços públicos de qualidade, ela precisa do feedback dos cidadãos a quem está servindo, e isso não exclui a colaboração com empresas do setor privado ou organizações da sociedade civil ( Fukuyama, 2013Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 ). Isso remete ao conceito de autonomia inserida ( embedded autonomy ) de Evans (1995)Evans, P. B. (1995). Embedded autonomy: States and industrial transformation. Princeton. Princeton University Press. , no qual os burocratas precisam ser protegidos da captura por grupos de interesses, mas ao mesmo tempo serem responsivos ao poder político e à sociedade em relação a objetivos maiores.

Ademais, a capacidade de ação do Poder Executivo do Estado depende não só do grau de profissionalização e expertise da sua burocracia, mas também na existência de recursos adequados, humanos e materiais. Wu et al.(2018)Wu, X., Ramesh, M., Howlett, M. (2018). Policy capacity: Conceptual framework and essential components. In. Wu, X., Howlett, M., & Ramesh, M. (Eds.). Policy capacity and governance: Assessing governmental competences and capabilities in theory and practice (pp. 1-25). London. Palgrave Macmillan. afirmam que esses fatores são críticos para o desempenho organizacional. Por fim, a ação da burocracia deve ser coesa e organizada. Instrumentos de coordenação intra e interorganizacional são essenciais para isso. De acordo com Lodge e Wegrich (2014)Lodge, M., & Wegrich, K. (Eds.). (2014). The problem-solving capacity of the modern State: Governance challenges and administrative capacities. Oxford. Oxford University Press. a capacidade de coordenação da ação estatal é crítica para o desempenho governamental. Para eles, problemas de coordenação minam a eficácia e o desempenho das organizações governamentais.

Logo, esta pesquisa trabalha com as seguintes hipóteses:

  1. Estão positivamente associadas a organizações públicas eficazes as burocracias: (a) baseadas no mérito; (b) autônomas; (c) dotadas de recursos humanos e materiais; (d) que interagem com a sociedade e o setor privado; e que (e) atuam de forma coordenada com outras organizações públicas.

  2. Estão associadas a organizações inovadoras as burocracias públicas: (a) baseadas no mérito; e (b) com alto nível de autonomia.

  3. Estão associadas a organizações que dificultam práticas de corrupção as burocracias públicas baseadas no mérito.

Dados

Os dados usados na análise e no teste de hipóteses foram coletados por meio de survey , aplicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) junto aos servidores da administração pública federal brasileira, entre maio e julho de 2018 (ver detalhes em Pereira et al. 2019Pereira, A. K, et al. (2019). Qualidade do governo e capacidade estatal. Relatório de Pesquisa. Brasília. DF. Ipea. ). O questionário foi elaborado em parceria com a equipe do “Projeto Governança”, conduzido pelo Center on Democracy, Development and The Rule of Law (CDDRL), da Universidade de Stanford. As questões formuladas tiveram como base o Federal Employee Viewpoint Survey (FEVS), que busca medir as percepções dos burocratas federais estadunidenses acerca das características e condições de trabalho em suas respectivas organizações. Foram ainda adaptadas e inseridas perguntas do questionário utilizado por Ramesh, Howlett e Saguin (2016), como também outras questões sugeridas pelos pesquisadores do Ipea, tendo em vista as especificidades do caso brasileiro.

O universo amostral da pesquisa foi composto de servidores públicos federais, com vínculo permanente e postos comissionados, tanto de órgãos da administração direta quanto da administração indireta, como autarquias, fundações e agências reguladoras. Foram excluídos da amostra bancos e os chamados burocratas de linha de frente (policiais, médicos, enfermeiras, professores).

Acredita-se que arguir os servidores públicos diretamente para obter informações sobre o funcionamento da burocracia é uma maneira de obter dados mais confiáveis quando comparado com os dados de survey realizados apenas com especialistas. Os burocratas possuem uma compreensão baseada na experiência e, portanto, têm algo único para oferecer ao estudo sobre o funcionamento dos governos, lançando novas luzes sobre processos que moldam o desempenho das organizações públicas (Boittin, Distelhorst, & Fukuyama, 2016). Uma limitação de se utilizar as percepções dos servidores como fonte de dados é não se ter uma medida externa para conferir a distância entre a percepção dos respondentes e a realidade objetiva das organizações. Há também a possibilidade do chamado “efeito halo” (a interferência causada devido à simpatia que o avaliador tem pela pessoa ou ente que está sendo avaliado). Entretanto, conforme apontado, acredita-se que as vantagens de se trabalhar com uma amostra significativa de respondentes diretamente engajada no aparato do governo federal compensam as desvantagens existentes do uso de dados de questionário.

A amostra representativa dos órgãos da administração pública federal brasileira perfez 3,2 mil servidores públicos de um universo aproximado de 263 mil. Dos questionários enviados, 21% foram respondidos ( Pereira et al., 2019Pereira, A. K, et al. (2019). Qualidade do governo e capacidade estatal. Relatório de Pesquisa. Brasília. DF. Ipea. ). A partir da fórmula de amostragem4 4 . E=quantil(1−α)×100%SnN−nN−1 , em que E representa a margem de erro, N é o tamanho da população e n é o tamanho da amostra. Para um tamanho de amostra maior ou igual a 30, o quantil(1−α)×100% é igual a Z1−α/2: quantil da distribuição normal para o nível de of(1−α)×100% de confiança; e para uma amostra menor do que 30, o quantil(1−α)×100% é dado por T1−α/2: quantil da distribuição T de student para o nível de (1−α)×100% de confiança. , selecionamos 36 organizações, contando com uma margem de erro menor do que 10% em relação a amostra, preservando a integridade e fidedignidade das percepções dos respondentes. Essa seleção representou 90% da amostra inicial da pesquisa. As organizações que não atingiram margem de erro satisfatória, abaixo de 10%, foram excluídas das análises. As estatísticas descritivas das respostas do questionário aplicado encontram-se no Apêndice I. A fim de não expor as organizações, tampouco possibilitar alguma tentativa de identificação dos respondentes, os órgãos receberam um código de acordo com o setor de política pública no qual ele está inserido.

Sabemos que as organizações públicas federais são diferentes em diversos aspectos, quanto ao nível de autonomia e natureza. De acordo com os objetivos deste trabalho, diferenciamos as organizações conforme seu tipo (direta e indireta) e setor de política pública, conforme a Tabela 1 . Os dados sobre número de respondentes por tipologia organizacional e tipo de vínculo com a administração pública encontram-se no Anexo I .

Tabela 1
Lista de organizações analisadas

Mensuração

Como mencionado, são três variáveis dependentes: (a) eficácia, (b) inovação e (c) restrição à corrupção. A primeira mensura a percepção dos burocratas sobre o alcance dos resultados esperados para as suas organizações no ano anterior à aplicação do questionário. A segunda variável dependente mede a opinião do servidor a respeito do nível de criatividade e inovação da organização à qual ele pertence. Por fim, a terceira variável dependente diz respeito à percepção do burocrata sobre o grau de restrição da cultura da organização a que ele pertence com práticas de corrupção. As perguntas do survey selecionadas para a mensuração das variáveis dependentes podem ser encontradas na Tabela 2 , com o respectivo código original do questionário. Todas as questões estão na escala Likert, variando de 1 a 5, sendo 1 total discordância em relação à afirmação e 5 a total concordância5 5 . A escala do índice ‘recursos’ ( Tabela 3 ) foi invertida para manter a padronização adotada neste artigo. O questionário aplicado em formato completo pode ser conferido em Pereira et al. (2019) . . É importante mencionar que na ausência de medidas objetivas para as variáveis dependentes e diante do desafio de encontrar medidas padrão para diferentes setores de políticas, optamos por utilizar apenas as perguntas do survey por serem comuns a todos eles, apesar das limitações dessa estratégia.

Tabela 2
Variáveis dependentes e indicadores

As cinco variáveis explicativas foram construídas com base nas questões indicadas na Tabela 3 . As perguntas selecionadas para mensurar as variáveis “weberianidade” e “autonomia” foram as mesmas utilizadas por Boittin et al. (2016)Boittin, M., Distelhorst, G., Fukuyama, F. (2016) Reassessing the Quality of Government in China. Osgoode Legal Studies Research Paper Series. 197. . Já a escolha das questões para “recursos” e “coordenação” tiveram como base Ramesh et al. (2016)Ramesh, M., Howlett, M. P., Saguin, K. (2016). Measuring individual-level analytical, managerial and political policy capacity: A survey instrument. Lee Kuan Yew School of Public Policy. Research Paper, n.16-07. , enquanto as questões de “relacionamentos” foram baseadas em Evans (2014)Evans, P. B. (2014). The capability enhancing developmental State: concepts and national trajectories. In. Kim, E. M. (Ed.). The South Korean Development Experience: beyond aid (pp. 83-110). London. Palgrave Macmillan. .

Tabela 3
Variáveis explicativas e indicadores

A instrumentalização das variáveis explicativas e dependentes foi feita com base no cálculo da proporção de respostas de concordância em relação às questões, considerando as respostas quatro e cinco na escala Likert. Ou seja, cada variável neste artigo foi calculada para cada órgão tomando a razão entre a quantidade de respostas concordantes (“concordo” e “concordo fortemente”) em relação ao total de respostas (isto é, a proporção de respostas concordantes).

Foi conduzida uma análise fatorial confirmatória (AFC) para validar a composição das variáveis independentes ou fatores (ver Apêndice II). Para avaliar o ajuste do modelo fatorial utilizou-se os índices de ajuste Comparative Fit Index (CFI), Tucker Lewis Index (TLI) e Standardized Root Mean Square Residual (SRMR). Os índices CFI e TLI medem o ajuste relativo do modelo observado ao compará-lo com o modelo base, em que valores acima de 0,95 indicam ótimo ajuste e os superiores a 0,90 indicam ajuste adequado ( Bentler, 1990Bentler, P. M. (1990). Comparative fit indexes in structural models. Psychological bulletin, 107(2), 238-246. doi: 10.1207/s15327906mbr2502_3 ; Hu & Bentler, 1999Hu, L. T., Bentler, P. M. (1999). Cutoff criteria for fit indexes in covariance structure analysis: Conventional criteria versus new alternatives. Structural equation modeling: a multidisciplinary journal, 6(1), 1-55. doi: 10.1080/10705519909540118 ). Por sua vez, o SRMR reporta a média padronizada dos resíduos (discrepâncias entre a matriz observada e modelada), sendo que índices menores que 0,10 são indicativos de bom ajuste ( Kline, 2005)Kline, R. B. (2005). Principles and Practice of Structural Equation Modeling (2a. ed.). New York. The Guilford Press. .

As medidas de ajuste da AFC, CFI (0,98), TLI (0,97) e SRMR (0,028), evidenciam um ótimo ajuste e aderência dos fatores aos dados. Nesse sentido, tais resultados validam empiricamente a composição dos construtos, os quais são operacionalizados como variáveis explicativas na análise de regressão. Notou-se a presença de covariância significativa entre os fatores “weberianidade” e “autonomia” (0,46) e “coordenação” e “relacionamentos” (0,56). Contudo, os valores do fator de inflação da variância (VIF) calculados não sugerem a existência do problema de multicolinearidade no modelo. O maior VIF encontrado é 2,12 para a variável weberianidade, encontrando-se abaixo de valores críticos, tais como 5 ou 10 ( Fox, 2016Fox, J. (2016). Applied Regression Analysis and Generalized Linear Models (3a ed.). London. Sage Publications. ; Fox & Monette, 1992Fox, J., Monette, G. (1992). Generalized collinearity diagnostics. Journal of the American Statistical Association, 87(417), 178-183. doi: 10.1080/01621459.1992.10475190 ) (ver Apêndice III).

Resultados

Foram empregadas duas técnicas de análise multivariada dos dados. A primeira foi a Regressão Beta, apropriada para teste de hipóteses em situações em que a variável dependente é restrita ao intervalo (0 a 1), como ocorre com taxas e proporções. Na regressão Beta os dados são analisados de acordo com o modelo teórico, indicando a distribuição das respostas e estabelecendo correlações entre os diferentes índices do modelo ( Ferrari & Cribari-Neto, 2004Ferrari, S., Cribari-Neto, F. (2004). Beta regression for modelling rates and proportions. Journal of applied statistics, 31(7), 799-815. doi: 10.1080/0266476042000214501 ).

Num segundo momento, foi realizada uma Análise de Correspondência Múltipla, técnica descritiva de análise de dados, com o intuito de fornecer uma compreensão visual das associações ou padrões de relação entre as variáveis de pesquisa e as organizações pesquisadas ( Greenacre, 2017Greenacre, M. (2017). Correspondence analysis in practice (3a. ed.). New York. Chapman and Hall/CRC. ). Nesse sentido, dois gráficos bidimensionais foram plotados: um contendo os indicadores de desempenho (inovação, corrupção e resultados) e sua associação com o tipo de organizações analisadas; e outro relacionando essas organizações às dimensões do conceito de capacidade estatal analisadas (meritocracia, autonomia, recursos, coordenação, e relação com a sociedade).

Regressão Beta

O modelo de regressão Beta foi utilizado para testar as hipóteses sobre as correlações existentes entre as variáveis dependentes e explicativas da pesquisa. Usando a função de ligação log , a especificação do modelo é dada por:

log μ i = β 0 + β 1 W E B i + β 2 A U T i + β 3 R E C i + β 4 C G i + β 5 R S i

com i = 1,...,36, sendo logi) o logaritmo da proporção média para o i -ésimo órgão; WEB idenota a proporção de respostas de concordância no índice de Weberianidade para o i -ésimo órgão; de forma análoga, AUT irepresenta Autonomia; REC irepresenta Recursos; CG iCoordenação Governamental e RS iRelacionamento com a Sociedade.

Os coeficientes do modelo representam uma mudança média na variável dependente para uma unidade de mudança na variável explicativa, tudo o mais constante no modelo. Como todas as variáveis estão no intervalo de 0 a 1, inclusive as variáveis explicativas, consideram-se a unidade de mudança como sendo igual a 0,01. Dessa forma, de acordo com a especificação do modelo, é possível mostrar que um coeficiente igual a β representa um acréscimo de β×0,01 (isto é, β/100) na proporção média da variável dependente. Pode-se ainda formular tal interpretação em termos de porcentagens: para cada aumento de 1% na variável explicativa espera-se um acréscimo de β% na variável dependente.

O teste de hipóteses entre a associação da variável dependente eficácia e o conjunto das variáveis explicativas indicou que a autonomia individual se encontra positiva e significativamente correlacionada à eficácia organizacional (p-valor < 0,05), como mostra a Tabela 4 . Isso significa que a percepção dos respondentes da eficácia organizacional é maior à medida que aumenta a percepção da autonomia dos burocratas na execução de suas funções e a disponibilidade de recursos. O ajuste do modelo é capaz de explicar cerca de 40% da variação presente na variável dependente. A cada 1% de incremento na variável autonomia espera-se, em média, que a percepção de eficácia das organizações seja 1,54% maior. No entanto, a correlação entre a variável eficácia com as outras variáveis independentes do modelo não foram estatisticamente significativas, ao contrário do teoricamente esperado. Assim, apenas a hipótese 1.b foi corroborada.

Tabela 4
Resultados – regressões Beta

Quanto à variável dependente inovação, foi constatado que apenas a variável explicativa weberianidade burocrática está positivamente correlacionada a ela de forma estatisticamente significativa (p-valor < 0,001). Conforme o segundo grupo de hipóteses deste trabalho, era esperado que, junto à weberianidade, a autonomia individual também estivesse significativamente correlacionada à inovação, porém, isso não foi encontrado. Ou seja, apenas a hipótese 1.a foi corroborada. Assim, para cada 1% de percepção positiva acerca da existência de características weberianas nas organizações analisadas espera-se, em média, que a percepção da variável inovação tenha um incremento de 4,41%.

Por último, corroborando a hipótese 3 deste trabalho, encontramos significância estatística na correlação positiva entre a variável explicativa weberianidade (p-valor < 0,001) e a variável dependente percepção de inibição à corrupção. Isso significa que a percepção dos burocratas acerca da cultura organizacional de sua organização de trabalho em dificultar práticas de corrupção aumenta em conjunto com a percepção de weberianidade burocrática. A cada 1% de incremento nessa variável nas organizações espera-se, em média, que naquela aumente em 4,15%. Ressalte-se que os coeficientes de correlação entre weberianidade e inovação e weberianidade e restrição à corrupção (4,41% e 4,15%, respectivamente) foram bem maiores do que o encontrado na relação existente entre autonomia e eficácia (1,54%).

Análise de correspondência

A análise de correspondência múltipla resultou nas Figuras 1 e 2 . A primeira plota a associação entre as variáveis dependentes e os tipos de organizações de interesse dentre as pesquisadas.

O teste qui-quadrado de independência entre as linhas e colunas da tabela (Apêndice I) com os valores das variáveis foi igual a 163,62 com p-valor < 0,0001.

Pela análise da Figura 1 , consegue-se captar associação entre os tipos de organizações-setores e as variáveis restrição à corrupção, inovação e eficácia.

Figura 1
Dispersão de organizações e variáveis dependentes

Alguns padrões de distribuição das organizações pesquisadas podem ser observados no gráfico. Quanto à variável inovação, percebe-se em entorno um agrupamento de organizações da administração indireta ligadas à pesquisa (P3, P1) e de organizações da administração direta dos setores produtivo (MI2), socioambiental (MS3), núcleo de governo (N4) e policial (F2).

Por sua vez, entre as organizações mais distantes do ponto representativo da variável inovação estão órgãos da administração indireta ligados aos setores de infraestrutura e produtivo (E1, E2) e petróleo, gás e telecomunicações (AR4), assim como órgãos da administração direta ligados aos setores de defesa de direitos (D1) e núcleo de governo (N6).

Em relação à variável eficácia, destacam-se em proximidade ao seu vetor as agências reguladoras (AR4, AR5), ministério da área socioambiental (MS1) e uma autarquia social (S1). Entre as organizações mais distantes do vetor da variável eficácia encontram-se órgãos da administração indireta ligados aos setores de pesquisa (P1) e agências reguladoras (AR1), e órgãos da administração direta ligados aos setores de proteção de direitos (D2, D1) e do núcleo de governo (N6).

Por último, órgãos da administração direta ligados ao núcleo de governo (N6), organização da administração indireta de defesa de direitos (D1) e força policial federal (F1), agência reguladora (AR1) e empresa pública do setor produtivo (E2) estão mais associadas à variável restrição à corrupção. Por outro lado, as organizações mais distantes desse vetor são organizações da administração direta ligadas aos setores socioambiental (MS1, MS4) e policial (F2), organizações da administração indireta ligadas aos setores de pesquisa (P3) e regulação fundiária e saúde (S2). O que chama a atenção na análise da variável restrição à corrupção é que uma quantidade considerável de organizações aninhadas nesse ponto da Figura 1 estão mais distantes das variáveis inovação e eficácia. Isso parece indicar que a percepção de restrição à corrupção caminha em sentido inverso à inovação e a eficácia das organizações.

A segunda análise de correspondência múltipla ( Figura 2 ) visou associar as organizações pesquisadas com as dimensões do conceito de capacidade estatal delimitadas (weberianidade, autonomia, recursos, coordenação e relacionamento) para avaliar como tais capacidades variam entre os tipos de organizações-setores de políticas. As duas primeiras dimensões do gráfico explicam 72,6% da variabilidade ( Figura 2 ). O teste qui-quadrado de independência entre as linhas e colunas da tabela ( Anexo I ) foi igual a 302,56, com p-valor < 0,0001. Isso indica que o teste foi significativo e os resultados são passíveis de replicação.

Figura 2
Dispersão de organizações e variáveis explicativas

A Figura 2 revela uma concentração de organizações com mais recursos humanos e materiais da administração indireta ligadas aos setores de transportes terrestres, aquaviários e aviação (AR2, AT1), saúde complementar e vigilância sanitária (AS1), e organizações da administração direta dos setores núcleo de governo (N5), socioambiental (MS2) e uma empresa de infraestrutura e do setor produtivo (E1). De outro lado, entre as organizações que aparecem menos associadas à variável recursos estão organizações da administração direta dos setores socioambiental (MS3, MS5), defesa de direitos (D2) e núcleo de governo (N6), e apenas um órgão da administração indireta ligado ao setor de regulação fundiária e saúde (S1).

Para a variável relacionamento com a sociedade civil e empresas privadas, observamos duas organizações da administração direta do setor socioambiental (MS3, MS5) e três órgãos da administração indireta do setor de transportes terrestres, aquaviário e aviação (AT3, AR3, AR1). Isso pode ser explicado, em parte, pelos canais de relacionamentos institucionalizados desses órgãos funcionarem por meio de conselhos com a representação de concessionários e usuários. De outro lado, opostas ao vetor de relacionamento com a sociedade, estão organizações da administração direta ligadas aos setores núcleo de governo (N1, N5, N2) e socioambiental (MS2), organizações da administração indireta ligadas aos setores de pesquisa e tecnologia (P3) e regulação fundiária e saúde (S2).

As organizações da administração direta ligadas aos setores de defesa de direitos (D2), núcleo de governo (N5, N1, N6, N2, N3) e socioambiental (MS5) são mais próximas do ponto da variável coordenação, sendo percebidos como órgãos nodais no interior da administração pública federal brasileira. As organizações da administração indireta estão mais distantes do ponto representativo de coordenação ligados aos setores de saúde complementar e vigilância sanitária (AS1), petróleo, gás e telecomunicações (AR3), transportes terrestres, aquaviário e aviação (AT1) e pesquisa (P3, P1).

Os pontos representativos das variáveis autonomia e weberianidade, por sua vez, não se mostraram bons discriminantes das organizações analisadas, uma vez que eles se encontram mais próximos ao ponto de origem do plano cartesiano. No que concerne à autonomia, os órgãos reguladores da administração indireta ligados aos setores de petróleo, gás e telecomunicações (AR4), pesquisa (P3) regulação fundiária e saúde (S2) estão mais próximos ao ponto representativo da variável, assim como organizações da administração direta ligadas aos setores núcleo de governo (N2, N1) também são caracterizadas pelos respondentes como mais autônomas. Entre as organizações da administração indireta com menor autonomia podem ser elencadas as pertencentes ao setor de petróleo, gás e telecomunicações (AR2), transportes terrestres, aquaviário e aviação (AT2) e saúde complementar e vigilância sanitária (AS1). Apenas uma organização da administração direta ligada ao setor polícia (F1) é indicada com menor autonomia.

Quanto à variável weberianidade, as organizações da administração indireta ligadas ao setor de pesquisa (P1, P3) se destacam como as mais próximas ao vetor da variável, seguidas por organizações da administração direta ligadas aos setores socioambiental (MS4) e policial (F2). As organizações menos weberianas da administração direta estão próximas aos ministérios socioambientais (MS5, MS3), enquanto as organizações da administração indireta ligadas aos setores de petróleo, gás e telecomunicações (AR2) e transportes terrestres, aquaviário e aviação (AT2) encontram-se mais afastadas do vetor representativo da variável.

Discussão

A literatura revisada indica que burocracias públicas baseadas no mérito, dotadas de autonomia e de recursos adequados, e que interagem entre si e com a sociedade, estariam positivamente associadas a organizações eficazes (ou seja, que alcançam os resultados esperados). Contudo, a partir da análise dos dados coletados, nosso teste de hipóteses corroborou apenas a correlação da variável autonomia burocrática com a eficácia organizacional. As outras variáveis não atingiram significância estatística e, assim, não passaram no teste de hipóteses. Deve-se ressaltar, contudo, que tal resultado não invalida as respectivas dimensões associadas ao conceito de capacidade estatal, porque, como alega Centeno et al. (2017)Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., Mistree, D. (2017). Unpacking states in the developing world. In. Centeno, M. A., Kohli, A., Yashar, D. J., & Mistree, D. (Eds.). States in the developing world (pp.1-34). Cambridge University Press. , a capacidade é um potencial que pode ou não ser utilizado pelo poder político.

No que concerne à autonomia, especificamente, o conjunto de indicadores que mede tal variável relaciona-se à percepção do servidor sobre a utilização de suas habilidades, o encorajamento que ele recebe para aplicar sua expertise e o envolvimento nas decisões que afetam suas rotinas de trabalho. Assim, essa variável indica o grau de discricionariedade que os servidores detêm no cumprimento de suas funções. Essa discussão nos remete a Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 , acerca da importância da autonomia operacional dos burocratas, isto é, sem o microgerenciamento administrativo dos superiores políticos, na fase de implementação das políticas públicas.

Por sua vez, a variável inovação organizacional está correlacionada significativamente apenas à variável weberianidade (ou o nível de meritocracia da burocracia). Os resultados da regressão beta indicam que os burocratas pertencentes às organizações que recrutam e promovem seus servidores com base no mérito as percebem como mais inovadoras. Isso corrobora as expectativas teóricas apresentadas, como o argumento de Suzuki e Demircioglu (2017)Suzuki, K., Demircioglu, M. (2017). Rediscovering Bureaucracy: Bureaucratic Professionalism, Impartiality and Innovation. Working Paper Series 2017: 7, 2-36. hdl.handle.net/2077/52880 de que um sistema de recrutamento meritocrático traria para as organizações do setor público os funcionários mais competentes e habilidosos que, por sua vez, aplicariam seus conhecimentos e expertise para o desenvolvimento de novos processos e serviços. Contudo, com base na técnica utilizada não daria para refutar o pressuposto do efeito da autonomia burocrática para o mesmo resultado. Isso exigiria o uso de técnicas experimentais randomizadas, por exemplo.

Por fim, a análise corroborou a hipótese de que burocracias com atributos weberianos estão positiva e significativamente correlacionadas com órgãos cuja cultura é percebida pelos servidores como restritiva a práticas de corrupção. Esse resultado vai ao encontro dos argumentos de Evans e Rauch (1999)Evans, P., Rauch, J. E. (1999). Bureaucracy and growth: A cross-national analysis of the effects of" Weberian" state structures on economic growth. American sociological review, 64(5), 748-765. doi: 10.2307/2657374 e Dahlström e Lapuente (2017)Dahlström, C., Lapuente, V. (2017). Organizing leviathan: Politicians, bureaucrats, and the making of good government. Cambridge. Cambridge University Press. de que a seleção meritocrática de burocratas pode evitar sua captura “política”, o rent-seeking e a corrupção.

No que concerne ao outro objetivo do trabalho, de verificar a variação das capacidades estatais entre as organizações da administração federal brasileira, percebeu-se que se a “weberianidade” e a “autonomia” não são as variáveis mais discriminatórias, “recursos”, “relacionamento” e “coordenação” o são.

A variável recursos organizacionais discrimina positivamente as agências reguladoras dos setores de petróleo, gás e telecomunicações, transportes terrestres, aquaviário e aviação, saúde complementar e vigilância sanitária, assim como ministérios da área socioambiental, vis-à-vis as organizações dos setores de proteção de direitos e regulação fundiária e saúde. Do mesmo modo, a coordenação governamental discrimina positivamente os ministérios do núcleo de governo, quando contrastados com as agências reguladoras e organizações de pesquisa. Isso faz sentido, uma vez que a função do núcleo de governo é coordenar as ações governamentais, enquanto as agências reguladoras e órgãos de pesquisa agem de forma mais autônoma. Por último, observando o padrão de discriminação das organizações em relação à variável relacionamento com a sociedade, os burocratas das agências reguladoras se percebem relacionando-se mais as com organizações da sociedade civil e empresas privadas, diferentemente dos ministérios pertencentes ao núcleo de governo. Isso não surpreende, já que tais relações são inerentes à própria atividade regulatória.

Uma grande dispersão de setores de políticas públicas foi encontrada entre os tipos de organizações e suas correspondências com as variáveis dependentes do estudo. Uma ligeira predominância das agências reguladoras foi observada junto à variável eficácia ( Figura 1 ). Uma explicação para isso pode estar no fato de que são órgãos especializados que requerem expertise por atuarem na regulação de setores específicos. Organizações do setor de pesquisa estiveram mais próximas do ponto inovação, e uma completa dispersão de organizações e setores próximos do ponto da variável restrição à corrupção.

A variação de capacidades e de desempenho observado no interior da burocracia federal brasileira nos leva a corroborar as afirmações da literatura acerca das assimetrias existentes entre as organizações que habitam a ecologia do aparato estatal. Contudo, a extensa variação de capacidades e desempenho, observada neste trabalho, tende a nublar a distinção de organizações pertencentes às denominadas “ilhas de excelência” ou “ pockets of effectiveness ” ( Geddes, 1990Geddes, B. (1990). Building" state" autonomy in Brazil, 1930-1964. Comparative Politics, 22(2), 217-235. doi: 10.2307/422315 ; Roll, 2014Roll, M. (ed.) (2014). The Politics of Public Sector Performance: Pockets of Effectiveness in Developing Countries. Oxford. Routledge. )6 6 . Para Roll (2014 , p. 24), “bolsões de eficácia” são organizações públicas relativamente eficazes no fornecimento de bens e serviços públicos, apesar de operarem em um ambiente em que a eficácia não é a norma. . Embora tenhamos conseguido discriminar duas ou mais organizações próximas variáveis analisadas, a dispersão de capacidades e do desempenho observados não caracterizou um padrão claramente identificável de tipo de ou de setor de política pública. Em outras palavras, com base nos dados analisados, nenhuma organização pôde ser considerada uma ilha de excelência ou um bolsão de eficácia. Tal achado nos leva a argumentar que para a administração pública federal brasileira contemporânea a relação entre organizações, capacidades e desempenho assume padrões e formas mais complexas, indo além do que a ideia corrente de pockets of effectiveness é capaz de contemplar.

Conclusão

Este artigo teve o duplo objetivo de demonstrar a variação de capacidades no interior da administração pública federal brasileira, tanto ao nível de organizações individuais quanto setores de políticas públicas, e de verificar proposições teóricas da literatura acerca da relação entre as características da burocracia pública e o desempenho da ação estatal.

Por meio da análise de dados primários, coletados via survey aplicado aos servidores civis federais, indicamos que os atributos do conceito de capacidade estatal são percebidos de maneira distinta entre as organizações do aparato do governo federal. Os achados da pesquisa reforçam as indicações de que a mensuração e análise das capacidades estatais devem ter o foco não apenas na perspectiva comparativa entre Estados nacionais, mas também à dinâmica interna intraestatal ou organizacional. Nesse sentido, o artigo contribui com a literatura ao acrescentar nuances à abordagem das “ilhas de excelência”, verificando que a assimetria de capacidades no interior do Poder Executivo brasileiro é mais complexa do que o indicado por pesquisas anteriores. Ou seja, não há uma concentração de capacidades e resultados em um conjunto limitado de organizações, mas uma distribuição dispersa e assimétrica entre os vários tipos de organizações e setores de política pública.

Pudemos testar, com base em evidências empíricas, algumas das proposições teóricas presentes na literatura. Os achados corroboram várias delas, sobretudo acerca do efeito da meritocracia e autonomia burocrática sobre a eficácia, inovação e corrupção percebida nas organizações públicas. Os achados da pesquisa indicam que as organizações públicas federais com maior percepção de weberianidade burocrática estão correlacionadas a organizações mais inovadoras e com culturas organizacionais mais restritivas à corrupção. Da mesma maneira, organizações em que os burocratas apresentam maior percepção de autonomia individual estão correlacionadas a organizações mais eficazes.

Entre as limitações do artigo encontra-se a amostra limitada a 36 organizações públicas e o fato de que os dados se referem a um momento específico no tempo (o ano de 2018). Dados longitudinais seriam necessários para se robustecer os achados. Outra limitação encontra-se na própria utilização de dados provenientes de survey , sobretudo para aferição do desempenho organizacional. Contudo, os pontos fortes da pesquisa residem na utilização de dados originais para a operacionalização das variáveis indicadas pela literatura (as percepções dos próprios burocratas acerca das organizações em que atuam), bem como na mensuração do conceito de capacidade de execução do Estado, sem cair nas análises circulares ou argumentações tautológicas, tão comuns a essa literatura.

Como sugestão para pesquisas futuras, podemos indicar o aprofundamento da análise para os tipos de carreiras (típicas de Estado, regulocratas etc.) e/ou as diferentes funções dos burocratas (como formulação, implementação e avaliação). Como a variação de capacidades no interior da federação é ainda um assunto pouco explorado, sugerimos também pesquisas sobre esse tópico, especialmente quando o ambiente de políticas públicas exige coordenação de ações entre entes federados.

References

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Notas

  • 1
    . Assim como Fukuyama (2013)Fukuyama, F. (2013). What is governance?. Governance, 26(3), 347-368. doi: 10.1111/gove.12035 , focamos a discussão na burocracia do poder Executivo.
  • 2
    . Se o burocrata deve elevar a regra e a ordem à condição de convicção pessoal, o político de vocação tem o dever de lutar para transformar suas convicções íntimas em ordem e regra ( Teixeira, 1999Teixeira, C. C. (1999). Honra moderna e política em Max Weber. Mana, 5(1), 109-130. doi: 10.1590/S0104-93131999000100005 ). Desse modo, para Weber, a ética da convicção em contraponto à ética da responsabilidade é o que marca a diferença das profissões de burocratas e políticos no Estado moderno.
  • 3
    . Para efeito do trabalho, focaremos apenas nos servidores públicos do poder executivo federal, mesmo entendendo que a administração pública é formada pelo conjunto de organizações instituídas para consecução de objetivos de governo, como a prestação de serviços públicos.
  • 4
    . E=quantil(1α)×100%SnNnN1 , em que E representa a margem de erro, N é o tamanho da população e n é o tamanho da amostra. Para um tamanho de amostra maior ou igual a 30, o quantil(1α)×100% é igual a Z1α/2: quantil da distribuição normal para o nível de of(1α)×100% de confiança; e para uma amostra menor do que 30, o quantil(1α)×100% é dado por T1α/2: quantil da distribuição T de student para o nível de (1α)×100% de confiança.
  • 5
    . A escala do índice ‘recursos’ ( Tabela 3 ) foi invertida para manter a padronização adotada neste artigo. O questionário aplicado em formato completo pode ser conferido em Pereira et al. (2019)Pereira, A. K, et al. (2019). Qualidade do governo e capacidade estatal. Relatório de Pesquisa. Brasília. DF. Ipea. .
  • 6
    . Para Roll (2014Roll, M. (ed.) (2014). The Politics of Public Sector Performance: Pockets of Effectiveness in Developing Countries. Oxford. Routledge. , p. 24), “bolsões de eficácia” são organizações públicas relativamente eficazes no fornecimento de bens e serviços públicos, apesar de operarem em um ambiente em que a eficácia não é a norma.
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento: Os autores não receberam apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.
Editor Associado: Wescley Silva Xavier

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Abr 2020
  • Aceito
    21 Jul 2021
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