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Vai Trabalhar, Vagabundo! Desvio e Estigma no Trabalho do Artista de Rua e suas Implicações Organizativas

Resumo

O nosso objetivo neste artigo é analisar o trabalho dos artistas circenses no semáforo a partir de um olhar sociológico. Diante disso, este texto busca contribuir para o avanço do debate sobre trabalho, indo além da perspectiva psicológica individualista que predomina na área de administração e nos estudos organizacionais. Assumindo o trabalho enquanto uma prática social oriunda de processos organizativos, utilizamos as noções clássicas — derivadas da sociologia — de estigma e desvio e uma posição crítica à racionalidade neoliberal, com o objetivo de contribuir teoricamente para se pensar o trabalho por uma lógica não tradicional. Olhamos para as organizações fora das organizações como, por exemplo, família, a rua e a cidade. A partir de dezoito entrevistas semiestruturadas com artistas, apresentamos como principais resultados que o estigma de vagabundos e sujos e as dificuldades de relacionamento com as famílias são os principais entraves desse tipo de trabalho realizado pelos artistas. Concluímos que a racionalidade neoliberal orientada para o mercado, que se apropria do trabalho das pessoas fazendo da maximização do lucro a própria racionalidade da vida, contribui para que os artistas circenses no semáforo sejam considerados desviantes e estigmatizados, abrindo espaço para um discurso raivoso, promotor de violências e preconceitos. Nesse sentido, é preciso transformar o “vai trabalhar, vagabundo!” em compreensão e respeito ao diferente.

desvio; racionalidade neoliberal; artista de rua; estigma; trabalho

Abstract

The aim of the current study is to analyze the work of street (circus) performers at traffic lights, from a sociological perspective. Therefore, this article focuses on contributing to improve debates about work, by going beyond the individualistic psychological perspective prevailing in the Business Management field and in organizational studies. By assuming work as social practice arising from organizing processes, it uses the classic concepts — deriving from Sociology — of stigma and deviance, as well as takes a critical position about neoliberal rationality, to theoretically contribute to process to think about work based on a non-traditional logic. It analyzes organizations outside organizations, such as family, the streets and the city. The main findings observed in the current study, based on eighteen semi-structured interviews conducted with street artists, enabled seeing that stigmas, such as tramps and filthy people, imposed on these artists, as well as difficulties in their relationship with their families, are the main obstacles to the type of work carried out by them. It was possible concluding that market-oriented neoliberal rationality, which appropriates people’s work and turns profit maximization into the very rationality of life, contributes for circus artists who work at traffic lights to be considered deviant and stigmatized, as well as opens room for angry discourses capable of promoting violence and prejudice. Thus, it is necessary changing the “get a job, you tramp!” statement into understanding of and respect for different individuals.

deviance; neoliberal rationality; street artist; stigma; work

Introdução

Os debates sobre trabalho são transdisciplinares e acontecem a partir de olhares diversos. No campo da administração, a discussão ocorre predominantemente na área de gestão de pessoas, orientada por uma perspectiva individualista (psicológica-subjetivista) sobre os sentidos do trabalho ( Colet & Mozzato, 2019Colet, D. S., Mozzato, A. R. (2019). Respeitável público, o sentido do trabalho para o artista circense vai começar! Pensamento & Realidade, 34(1), 111-127. doi:10.23925/2237-4418.2019v34i1p111-127
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; Silva, Brito, & Campos, 2020; Werner, Girelli, & Dal Magro, 2017) em temas como qualidade de vida no trabalho, carreira e competências. No campo dos estudos organizacionais, as pesquisas sobre trabalho, em geral, são voltadas para a sua precarização e poucos estudos discutem como o trabalho pode ser um meio para entender outros ordenamentos sociais ( Graceffa & Heusch, 2017Graceffa, S., Heusch, S. (2017). Reinventing the world of work. Transfer: European Review of Labour and Research, 23(3), 359-365. doi:10.1177/1024 258917707870 ; Siqueira, Dias, & Medeiros, 2019) ou organizações fora das organizações ( Ahrne & Brunsson, 2011)Ahrne, G., Brunsson, N. (2011). Organization outside organizations: The significance of partial organization. Organization, 18(1), 83-104. doi:10.1177/1350508410376256 . Neste artigo, a discussão está orientada para o campo dos estudos organizacionais, considerando o trabalho enquanto um fenômeno social relevante para entender outras formas organizativas com implicações econômicas, políticas e sociais ( Delbridge & Sallaz, 2015)Delbridge, R., Sallaz, J. J. (2015). Work: Four worlds and ways of seeing. Organization Studies, 36(11), 1449-1462. doi:10.1177/0170840615612021 .

Nesse sentido, o nosso olhar está voltado para como podemos entender preconceitos e marginalizações relacionados ao trabalho, que causam impactos em organizações como a família, a rua e a cidade, tomando como referência o trabalho do artista de rua, especificamente o artista circense no semáforo, com base em uma perspectiva socioestrutural (Bridi, Braga, & Santana, 2018; Sorj, 2000)Sorj, B. (2000). Sociologia e trabalho: mutações, encontros e desencontros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15(43), 25-34. doi:10.1590/S0102-69092000000200002 . O objetivo é analisar o trabalho dos artistas circenses no semáforo a partir de um olhar sociológico.

O trabalho do artista de rua é frequentemente associado a mendicância, pobreza e trabalho infantil ( Marina, 2018Marina, P. (2018). Buskers of New Orleans: Transgressive Sociology in the Urban Underbelly. Journal of Contemporary Ethnography, 47(3), 306-335. doi:10.1177/0891241616657873 ; Palacios, 2011Palacios, R. (2011). Not just balls in the air: Young jugglers and their practical understanding of post-dictatorship Chile. Ethnography, 12(3), 293-314. doi:10.1177/1466138110362011 ; Simpson, 2011Simpson, P. (2011). Street performance and the city: Public space, sociality, and intervening in the everyday. Space and Culture, 14(4), 415-430. doi:10.1177/1206331211412270 ). Os artistas, por vezes, são vistos como sujos ( Douglas, 1966Douglas, M. (1966). Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições 70. ) e vagabundos, além de serem agredidos por aqueles que os marginalizam e que não consideram a arte circense apresentada em um semáforo como um trabalho. Parece contraditório que uma sociedade que estigmatiza a arte circense performada no semáforo estar disposta a pagar por uma apresentação em um circo tradicional de lona e itinerante (Aguiar, Carrieri, & Souza, 2016; Natt, Aguiar, & Carrieri, 2019). O que motiva esta pesquisa é justamente apresentar um olhar sociológico sobre como são construídas as noções de estigma e desvio sobre o trabalho dos artistas circenses a partir das experiências reportadas pelos próprios artistas. Essa motivação vai ao encontro do aumento de interesse sobre a concepção de estigma presente nos estudos organizacionais e na administração (Campana, Duffy, & Micheli, 2022; Roulet, 2015Roulet, T. J. (2015). “What good is Wall Street?” Institutional contradiction and the diffusion of the stigma over the finance industry. Journal of Business Ethics, 130(2), 389-402. doi:10.1007/s10551-014-2237-1 ; Tracey & Phillips, 2016Tracey, P., Phillips, N. (2016). Managing the consequences of organizational stigmatization: identity work in a social enterprise. Academy of Management Journal, 59(3), 740-65. doi:10.5465/amj.2013.0483 ; Zhang, Wang, Toubiana, & Greenwood, 2021).

A percepção dos artistas de rua como marginais pode estar associada aos altos índices de criminalidade ( Rodrigues et al., 2022Rodrigues, N. C. P., Lino, V. T. S., Bastos, L. S., O'Dwyer, G., Monteiro, D. L. M., Reis, I. N. C., Frossard, V. C., Andrade, M. K. N. (2022). Temporal evolution of homicide mortality in Brazilian capitals from 2005 to 2019. Journal of Aggression, Conflict and Peace Research, 14(3), 201-214. doi:10.1108/JACPR-08-2021-0623
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; Soares, 2014Soares, A. M. C. (2014). O acúmulo da violência e da criminalidade na sociedade brasileira e a corrosão dos direitos humanos. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, 2(3), 161-189. Recuperado de https://bit.ly/3Qx8hsZ
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) e à desigualdade social (Campello, Gentili, Rodrigues, & Hoewell, 2018) no Brasil, o que torna a vivência na rua ainda mais estigmatizada, considerada violenta e de status social inferior. A violência e a exclusão dos que permanecem e/ou trabalham na rua estão presentes na literatura em temas como tráfico de drogas, biscateiros, violência e população em situação de rua ( Barbosa, 2014Barbosa, R. S. (2014). Territórios dos excluídos: as territorializações de crianças e adolescentes em situação de risco no espaço urbano de Campina Grande – PB. (Dissertação de mestrado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE. ; Botti et al., 2010Botti, N. C. L., Castro, C. G., Silva, M. F., Silva, A. K., Oliveira, L. C., Castro, A. C. H. O. A., Fonseca, L. L. K. (2010). Prevalência de depressão entre homens adultos em situação de rua em Belo Horizonte. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 59(1), 10-16. doi:10.1590/S0047-20852010000100002 ; Ecker, 2017Ecker, D. D. (2017). Crianças em situação de rua: malabares da exclusão. Ciências Psicológicas, 11(2), 139-148. doi:10.22235/cp.v11i2.1483 ; Zaluar, 1994)Zaluar, A. (1994). Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, RJ: Revan. .

Para aqueles que percebem a rua não apenas como local de passagem, mas um lugar de trabalho — como os trabalhadores de arte na rua ou pessoas que exercem outras atividades como a prostituição —, a violência passa a fazer parte do cotidiano (Oliveira, Guimarães, & Ferreira, 2017; Sanders, 2016Sanders, T. (2016). Inevitably violent? Dynamics of space, governance, and stigma in understanding violence against sex workers. Studies in Law, Politics and Society, 71, 93-114. doi:10.1108/s1059-433720160000071005 ; Silva & Cappelle, 2015)Silva, K. A. T., Cappelle, M. C. A. (2015). Sentidos do trabalho apreendidos por meio de fatos marcantes na trajetória de mulheres prostitutas. Revista de Administração Mackenzie, 16(6), 19-47. doi:10.1590/1678-69712015/administracao.v16n6p19-47 . A rua por si só já é percebida como um espaço de vulnerabilidade e riscos. Apresentar a arte circense no semáforo elenca uma série de elementos relacionados à violência urbana, os perigos inerentes à atividade circense ( Mandell, 2016)Mandell, C. H. (2016). Circo: risco, performatividade e resistência. Sala Preta, 16(1), 71-81. doi:10.11606/issn.2238-3867.v16i1p71-81 , além dos riscos à saúde, como a incidência de raios solares que pode causar danos à visão ( Rincón-Suarez & Jiménez-Barbosa, 2017)Rincón-Suarez, K. N., Jiménez-Barbosa, I. A. (2017). Salud visual y percepción social de malabaristas de la ciudad de Bogotá, Colombia. Universidad y Salud, 19(3), 340-351. doi:10.22267/rus.171903.96 .

A literatura encontrada sobre artistas de rua que performam no semáforo vincula a arte de rua praticada nos semáforos com a exclusão social ( Ataíde, 2016Ataíde, M. A. (2016). Meninos públicos na via pública: o malabarismo como espetáculo ou a reprodução da pobreza. Emancipação, 16(1), 145-161. doi:10.5212/Emancipacao.v.16i1.0009
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; Ecker, 2017Ecker, D. D. (2017). Crianças em situação de rua: malabares da exclusão. Ciências Psicológicas, 11(2), 139-148. doi:10.22235/cp.v11i2.1483 ), considerando a atividade artística, inclusive, como mendicância (Buscariolli, Carneiro, & Santos, 2016; Leal & Montrone, 2018)Leal, P. H., Montrone, A. V. G. (2018). Do olhar nos faróis ao convívio com malabaristas: a prática social do pedir nos semáforos. Educação e Cultura Contemporânea, 15(38), 265-294. doi:10.5935/2238-1279.20180014 . Entretanto, o artista de rua é mais um tipo de personagem que trabalha no semáforo ( Façanha, 2007Façanha, J. M. S. (2007, agosto). Semáforo: parada obrigatória! um lugar praticado por personagens e histórias. Artigo apresentado na III Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís, MA. ; Infantino, 2021)Infantino, J. (2021). “El arte callejero no es delito”: procesos de politización de la cultura en la Ciudad de Buenos Aires, Argentina. Etnográfica — Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 25(3), 657-679. doi:10.4000/etnografica.10614 . O estudo de Buscariolli et al. (2016)Buscariolli, B., Carneiro, A. T., Santos, E. (2016). Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes? Cadernos Metrópole, 18(37), 879-898. doi:10.1590/2236-9996.2016-3713 traz justamente a discussão: a arte de rua pode ser considerada trabalho? Os autores analisam diversos tipos de arte de rua (música, dança, artes cênicas, pintura e malabares/mágica/entretenimento) e relatam a dificuldade em considerar a categoria circense como arte. Por outro lado, há trabalhos ( Duprat, 2014Duprat, R. M. (2014). Realidades e particularidades da formação profissional circense no Brasil: rumo a uma formação técnica e superior (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP. ; Palacios, 2011)Palacios, R. (2011). Not just balls in the air: Young jugglers and their practical understanding of post-dictatorship Chile. Ethnography, 12(3), 293-314. doi:10.1177/1466138110362011 que discutem como os níveis de envolvimento dos movimentos circenses, seja acrobático ou com brinquedos ( juggling , equilíbrio, manipulação), exigem muito treinamento e o domínio completo do exercício praticado. A tradição e a história circense relatam que o circo tem como característica o nomadismo e a necessidade de estar na rua, buscando se aproximar da arte popular, apresentando-se em praças e feiras ( Bolognesi, 2003Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, SP: Unesp. ; Carrieri, Quaresma, Palhares, & Aguiar, 2020).

Neste estudo, buscamos trazer um olhar sociológico para o trabalho dos artistas circenses no semáforo de modo a contribuir para o avanço do debate sobre trabalho enquanto organizador social que explica outros fenômenos sociais. É necessário entender o trabalho como um processo organizativo ( Czarniawska, 2008Czarniawska, B. (2008). A theory of organizing. Cheltenham: Edward Elgar Press. ) que está inserido em um conjunto de práticas sociais e arranjos materiais ( Schatzki, 2005Schatzki, T. R. (2005). The sites of organizations. Organization Studies, 26(3), 465-484. doi:10.1177/0170840605050876 ). Portanto, o trabalho é entendido aqui como um constante organizar, com foco no que o artista circense de semáforo faz e como isso acontece ( Schatzki, 2006Schatzki, T. R. (2006). Organizations as they happen. Organization Studies, 27(12), 1863-1873. doi:10.1177/0170840606071942 ). Dessa maneira, abre-se uma possibilidade de olhar o que é feito pelo artista circense que atua no semáforo para além do entendimento habitual dos grupos estabelecidos na sociedade ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ).

A nossa contribuição é no campo dos estudos organizacionais, buscando entender como diferentes maneiras de pensar o fenômeno trabalho estão dispostas na estrutura social de forma mais ampla, diferentemente do mainstream da administração, que adota um olhar predominantemente psicológico e individualista do trabalho ( Colet & Mozzato, 2019Colet, D. S., Mozzato, A. R. (2019). Respeitável público, o sentido do trabalho para o artista circense vai começar! Pensamento & Realidade, 34(1), 111-127. doi:10.23925/2237-4418.2019v34i1p111-127
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; Werner et al., 2017)Werner, L., Girelli, S., & Dal Magro, M. L. P. (2017). Bem-vindos ao espetáculo: sentidos do trabalho para artistas circenses. Revista de Ciências Humanas, 51(2), 456-476. doi:10.5007/2178-4582.2017v51n2p456 . Orientados por uma perspectiva de trabalho como processo organizativo, utilizamos as noções de estigma e desvio ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Goffman, 2008)Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. e uma posição crítica à racionalidade neoliberal acerca do trabalho (Carmo, Assis, Gomes, & Teixeira, 2021; Dardot & Laval, 2016)Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. , com o objetivo de contribuir teoricamente para se pensar o trabalho por uma lógica não tradicional ( Bridi et al., 2018Bridi, M. A., Braga, R., Santana, M. A. (2018). Sociologia do trabalho no Brasil hoje: balanço e perspectivas. Revista Brasileira de Sociologia, 6(12), 42-64. doi:10.20336/rbs.244 ; Dubar, 2012)Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 que ajude a entender outras formas de ordenamento social a partir dele.

O trabalho enquanto processo organizativo

O processo organizativo ( organizing ) envolve a articulação entre humanos e não-humanos em torno de uma prática social ( Czarniawska, 2008Czarniawska, B. (2008). A theory of organizing. Cheltenham: Edward Elgar Press. ). Ele representa a forma de organizar de uma coletividade, possibilitando identificar o próprio processo organizativo enquanto uma organização, uma prática social. Nesse sentido, a adoção da noção de processo organizativo em vez de organização tem dois intuitos. O primeiro é de não reduzir o entendimento de organização enquanto uma instituição formal (organização enquanto substantivo). O segundo é de não utilizar o termo organização como adjetivo, de modo a determinar a priori o que vem a ser ou estar organizado. O pressuposto é que organização é algo em constante movimento, um processo que enseja pensá-la como um verbo ( organizing ). Dessa maneira, é possível acessar e compreender os fenômenos sociais por múltiplos olhares e entendimentos que possibilitem entender o que se faz e como é (na prática), e não como deveria ser feito ou como deveria ser (predomínio da visão dominante) algum fenômeno social, como o trabalho, por exemplo.

Pensar o trabalho enquanto um processo organizativo é uma maneira de olhar para o que os praticantes entendem ser uma determinada prática social. Portanto, em vez de assumir a priori o que é trabalho e classificar o que se encaixa ou não nessa classificação, entende-se o trabalho como uma prática social ( Schatzki, 2005Schatzki, T. R. (2005). The sites of organizations. Organization Studies, 26(3), 465-484. doi:10.1177/0170840605050876 ) que é resultado de um processo organizativo ( Czarniawska, 2008Czarniawska, B. (2008). A theory of organizing. Cheltenham: Edward Elgar Press. ) constante que nos ajuda a ter outras percepções sobre os fenômenos sociais e o que pode ser considerado organização ( Duarte & Alcadipani, 2016Duarte, M. F., Alcadipani, R. (2016). Contribuições do organizar (organizing) para os estudos organizacionais. Organizações & Sociedade, 23(76), 57-72. doi:10.1590/1984-9230763 ; Possas, Medeiros, & Valadão, 2017).

Como resultado de um processo organizativo, o trabalho é uma prática social que assume múltiplas formas organizativas. O trabalho do artista circense no semáforo é uma dessas possibilidades organizativas do trabalho enquanto prática social. Esse entendimento implica perceber que o trabalho estabelece mútuas relações com outras práticas sociais de maneira a constituir e ser constituído por essas relações. Desse modo, a rua, a cidade e a família, por exemplo, são outros processos organizativos que influenciam e são influenciados pelo trabalho enquanto prática social.

A mútua influência de práticas sociais e processos organizativos levam a construções e percepções diversas sobre o que são a rua, a cidade, a família e o próprio trabalho. Dar espaço para entender as coisas como elas acontecem ( Schatzki, 2006Schatzki, T. R. (2006). Organizations as they happen. Organization Studies, 27(12), 1863-1873. doi:10.1177/0170840606071942 ), além de oportunizar o entendimento de múltiplas formas de organizar que recebem o mesmo nome (como o trabalho), facilita compreender também como ideias e ideologias dominantes se consolidam como “a verdade” ou “o correto”, criando estigmas ( Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ; Goffman, 2000) que acabam sendo considerados como desvios ( Becker, 2008)Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. em um processo contínuo de controle social. Debater se o que faz o artista circense no semáforo é trabalho não deve descartar a própria percepção dessas pessoas sobre o que elas fazem. Ao mesmo tempo, esse fazer (prática social) influencia e é influenciado por outras práticas sociais e pelos controles exercidos pelas ideias e ideologias dominantes nas sociedades. A razão neoliberal ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Goergen, 2019)Goergen, P. L. (2019). Cultura e formação: a ideia de formação humana na sociedade contemporânea. Pro-Posições, 30, 1-21. doi:10.1590/1980-6248-2017-0193 é uma dessas formas de controle social que tem implicações diretas sobre o que é ou não trabalho e suas formas de organizar.

O trabalho sob a racionalidade neoliberal

O neoliberalismo busca “reintroduzir o trabalho como campo de análise econômica” ( Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes. , p. 303) pela teoria do capital humano com viés exclusivamente econômico-financeiro em que o trabalhador é a empresa de si mesmo — um “empreendedor” ( Bridi et al., 2018Bridi, M. A., Braga, R., Santana, M. A. (2018). Sociologia do trabalho no Brasil hoje: balanço e perspectivas. Revista Brasileira de Sociologia, 6(12), 42-64. doi:10.20336/rbs.244 ; Sorj, 2000Sorj, B. (2000). Sociologia e trabalho: mutações, encontros e desencontros. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15(43), 25-34. doi:10.1590/S0102-69092000000200002 ). O trabalhador é visto como uma máquina, um corpo que gera lucro a partir da sua força de trabalho, de suas aptidões e competências ( Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège France (1978-1979). São Paulo, SP: Martins Fontes. ; Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A brief history of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press. ).

Essa perspectiva, do neosujeito , evidencia um conjunto de características relacionadas à individualização e à competição ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Goergen, 2019)Goergen, P. L. (2019). Cultura e formação: a ideia de formação humana na sociedade contemporânea. Pro-Posições, 30, 1-21. doi:10.1590/1980-6248-2017-0193 . Os problemas sociais se tornam responsabilidade do indivíduo, já que somente ele pode mudar seu próprio destino a partir das competências que desenvolveu (e escolheu desenvolver) ao longo de sua vida ( Harvey, 2005)Harvey, D. (2005). A brief history of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press. . O pensamento neoliberal não está presente apenas no campo do trabalho, mas é uma racionalidade que permeia toda a estrutura social, com implicações nas formas de pensar o sistema jurídico, na educação, no atendimento à saúde, entre outros ordenamentos sociais, assumindo que a lógica empresarial capitalista deve ser a referência para todos os âmbitos da vida individual e das instituições, inclusive as de governo ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Paulani, 2006)Paulani, L. M. (2006). O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In J. C. F. Lima, L. M. W. Neves (Orgs.), Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo (pp. 67-107). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. .

Essa lógica enraizada nas estruturas sociais passa a influenciar os comportamentos das pessoas e suas formas de ver e compreender o mundo. A razão neoliberal entende a política social como prejudicial ao equilíbrio econômico-social, já que o indivíduo é dono de seu próprio destino na medida em que detém suas habilidades e competências para competir no mercado, orientado pela meritocracia e pela livre concorrência. Becker (2008)Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. e Souza (2019)Souza, J. (2019). A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro, RJ: Estação Brasil. explicam que regras impostas socialmente têm uma relação com o poder político e econômico, pois os grupos estabelecidos (as elites) são capazes de impor as regras de modo que os favoreçam sob o rótulo de meritocracia ( Sandel, 2020Sandel, M. (2020). A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? (2a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. ; Souza, 2019Souza, J. (2019). A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro, RJ: Estação Brasil. ).

A racionalidade neoliberal perpassa não apenas pelas políticas penais, mas também transforma as relações sociais e econômicas, precarizando o trabalho e desarticulando movimentos organizados como os sindicatos ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A brief history of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press. ; Paulani, 2006)Paulani, L. M. (2006). O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In J. C. F. Lima, L. M. W. Neves (Orgs.), Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo (pp. 67-107). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. . Essa concepção não se distancia da história laboral do circo. Iniciando como circo-família, o circo brasileiro passa por uma transformação capitalista a partir do final do século XX em que grandes empresas organizam espetáculos com “contratos de mão de obra especializada” ( Bolognesi, 2003, pBolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, SP: Unesp. , p. 49). De acordo com Bolognesi, o modelo empresarial empregado pelas grandes companhias de circo busca “favorecer unicamente o empresário” em detrimento dos artistas, causando a desunião da classe circense e a precarização do trabalho (p. 50).

A atuação dos artistas circenses do semáforo é uma nova realidade circense que buscou se manter viva apesar das mudanças estruturais consequentes da lógica capitalista e neoliberal. É um circo sin carpa ( Infantino, 2013Infantino, J. (2013). La cuestión generacional desde un abordaje etnográfico: jóvenes artistas circenses en Buenos Aires. Última Década, 21(39), 87-113. doi:10.4067/S0718-22362013000200005 ) em que os artistas performam nos semáforos e arrecadam suas contribuições financeiras passando o chapéu ( Marina, 2018Marina, P. (2018). Buskers of New Orleans: Transgressive Sociology in the Urban Underbelly. Journal of Contemporary Ethnography, 47(3), 306-335. doi:10.1177/0891241616657873 ). Em alguns aspectos as performances circenses do semáforo se aproximam das grandes companhias de circo — o aspecto nômade, a busca por autonomia e a liberdade ( Werner et al., 2017Werner, L., Girelli, S., & Dal Magro, M. L. P. (2017). Bem-vindos ao espetáculo: sentidos do trabalho para artistas circenses. Revista de Ciências Humanas, 51(2), 456-476. doi:10.5007/2178-4582.2017v51n2p456 ) — e em outros, se afastam — como a lógica mercadológica neoliberal ( Bolognesi, 2003Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, SP: Unesp. ; Infantino, 2013Infantino, J. (2013). La cuestión generacional desde un abordaje etnográfico: jóvenes artistas circenses en Buenos Aires. Última Década, 21(39), 87-113. doi:10.4067/S0718-22362013000200005 ).

Com as consequências de um modelo neoliberal — enfraquecimento das instituições, desarticulação de movimentos sociais, ausência de políticas sociais estatais, deflação salarial, aumento das desigualdades sociais, precarização das relações de trabalho, concorrencialismo como estilo de vida —, torna-se cada vez mais difícil para o indivíduo ter um equilíbrio social/financeiro. Essa dificuldade se apresenta ainda mais acentuada para os artistas circenses de rua que, por vezes, são considerados mendigos ( Buscariolli et al., 2016Buscariolli, B., Carneiro, A. T., Santos, E. (2016). Artistas de rua: trabalhadores ou pedintes? Cadernos Metrópole, 18(37), 879-898. doi:10.1590/2236-9996.2016-3713 ; Leone, 2012Leone, M. (2012). Begging and belonging in the city: A semiotic approach. Social Semiotics, 22(4), 429-446. doi:10.1080/10350330.2012.693294 ).

Na perspectiva funcionalista do trabalho ( Dubar, 2012Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 ), as atividades são divididas em profissão e ocupação, sendo as profissões reservadas para pessoas qualificadas (do ponto de vista social e educacional), enquanto as ocupações são guardadas para os que não têm formação em uma das carreiras consideradas como profissão. Nessa leitura, os artistas de rua não são considerados como profissionais.

Essa hierarquização entre profissões e ocupações pode ser compreendida pela lógica do “sujeito produtivo” ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. , p. 325), que de forma utilitarista e de distinção social o indivíduo deve ser o mais eficaz (leia-se lucrativo) possível na realização do seu trabalho. Os detentores de profissões são recompensados financeiramente e com status social (ser médico, por exemplo), enquanto as ocupações destinadas aos demais trabalhadores se restringem à troca financeira de trabalho por dinheiro como modo de sobrevivência, com pouco ou nenhum reconhecimento social. Para o artista circense “sem lona”, o trabalho assume um lugar de ocupação sem o mesmo status social dos artistas dos circos tradicionais. Cria-se um entendimento social de que os artistas de rua são pessoas que não trabalham e não fazem arte, sendo, portanto, desviantes ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000)Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. .

O trabalho circense de semáforo como um circo de desviantes e estigmatizados

A designação desviante é dada aos grupos que não pertencem ou não se encaixam no grupo dos estabelecidos socialmente. São aqueles que detêm o menor poder, o grupo com “menor valor humano” ( Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ). O interesse em se manter de acordo com as normas não é suficiente para que um indivíduo seja considerado como normal (estabelecido) ou estigmatizado (desviante), sendo uma “questão da condição do indivíduo” ( Goffman, 2008, pGoffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. , p. 139). Os desviantes só existem porque há um grupo que os designa dessa forma. Todo grupo apresenta regras de conduta, formais ou informais, que estipulam as ações certas e erradas. O indivíduo que é visto como outsider (desviante) em determinado grupo pode, em realidade, estar inserido em um “comportamento correto” de outras regras sociais que não fazem parte do grupo dos estabelecidos (Barros, Cappelle, & Guerra, 2021).

Na relação estabelecidos e desviantes, o poder exercido pelos estabelecidos pode ser apresentado de diversas formas. Uma delas é a autoimagem que o grupo estabelecido apresenta e a estigmatização que impõe aos outsiders , classificando-os como anômicos, atribuindo características ruins, associando-os com desordem, sujeira e desconfiança para garantir a sua superioridade ( Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ). Contudo, não é apenas com atribuições de características de autoimagem que os estabelecidos exercem seu domínio. Por meio do estigma, os desviantes, além de rebaixados moralmente, podem sofrer sanções formais ou informais. Entretanto, de acordo com Elias e Scotson, “um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído” (p. 23). Determinados grupos (normalmente das elites) buscam estruturar/formalizar as regras ditas como certas a fim de que sejam impostas à sociedade ( Souza, 2019)Souza, J. (2019). A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Rio de Janeiro, RJ: Estação Brasil. . Há regras formais e estruturadas, legitimadas em formas de lei, que permitem que o Estado possa agir de forma coercitiva por intermédio de instituições que as compõem, como a polícia e o poder judiciário. Há também regras informais, acordos “recém-estabelecidos ou sedimentados com a sanção da idade e da tradição” que apresentam sanções informais ( Becker, 2008, pBecker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 13).

Vale ressaltar que os desviantes não podem ser considerados como uma categoria homogênea, visto que o desvio é criado pela própria sociedade ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ). O lugar ocupado na estrutura social é um ponto central na análise sociológica ( Goffman, 2008Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. ). O desvio passa a ser “uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções” ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , p. 16), ocorrendo a rotulação dos atos e das pessoas. Os desviantes não podem ser entendidos como uma classe uniforme até porque as rotulações podem ocorrer de forma equivocada. Um indivíduo pode realizar um ato desviante sem ser descoberto ou até ser rotulado de desviante sem ter cometido alguma infração. Os desvios, como parte da construção da identidade, são aspectos que os indivíduos considerados “normais” teriam vergonha de expressar, já que não estão associados ao papel que não devem performar socialmente ( Goffman, 2008Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. ).

Metodologia

Utilizou-se uma abordagem qualitativa para interpretar o trabalho dos artistas circenses no semáforo. Realizamos entrevistas semiestruturadas on-line , o que permitiu compreender a vivência dessas pessoas possibilitando adentrar no universo do qual eles(as) fazem parte ( Stake, 2010Stake, R. E. (2010). Qualitative research: Studying how things work. New York: Guilford. ).

Cabe ressaltar que a primeira autora já atuou como artista de rua (entre os anos de 2015 e 2019) o que ajudou na construção do roteiro de entrevistas assim como das análises. A partir da vivência e das leituras realizadas sobre o tema, percebemos que essa atividade estava carregada de preconceitos que extrapolam a própria realização do trabalho em si. Durante o período em que esteve realizando atividades circenses nos semáforos, a primeira autora sofreu diversos tipos de agressões (que também surgiram nas falas dos entrevistados). Essa vivência, juntamente às evidências propostas nos textos acadêmicos que revelam o pensamento recorrente na sociedade — de não considerar a atividade circense, quando performada no semáforo, como trabalho — despertou o interesse para a elaboração deste estudo. Nesse sentido, o foco em estigma e desvio foram definidos a priori em razão da experiência da primeira autora com o trabalho circense no semáforo.

Realizamos dezoito entrevistas com um roteiro baseado nas características desviantes apresentadas por Becker (2008)Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. e Elias e Scotson (2000)Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , assim como focando nos preconceitos e nas dificuldades vividas pelos entrevistados. O roteiro semiestruturado foi elaborado em tópicos que abordavam a trajetória de vida, a iniciação na profissão, a relação com a família e o tempo de experiência no trabalho e questionava os entrevistados sobre as violências vivenciadas ao performarem suas atividades nos semáforos. As entrevistas ocorreram entre os dias 24 de junho e 12 de julho de 2020. Elas tiveram duração média de uma hora, foram gravadas com autorização dos participantes e depois foram transcritas.

A primeira autora entrou em contato com as pessoas que ela já conhecia do período em que realizava malabares no semáforo. O contato inicial se deu via Instagram, WhatsApp ou Facebook , perguntando sobre a disponibilidade/vontade de conceder uma entrevista. Foi explicado aos entrevistados o tema geral do estudo e verificada a capacidade estrutural dos participantes de acesso a computador/celular e internet estável. Todos os indivíduos que concederam entrevista nasceram e residem/viajam em território sul-americano. Os nomes dos entrevistados citados ao longo do texto são fictícios para garantir o anonimato. Essa amplitude territorial só foi possível em razão da coleta de dados on-line que, por um lado, possibilitou maior diversidade de entrevistados, assim como flexibilidade de tempo para conversar com os artistas. Por outro, houve limitação pela impossibilidade de fazer as observações em campo (devido à pandemia de covid-19), que poderiam trazer outros elementos inacessíveis por meio de entrevistas.

Tabela 1
Perfil dos entrevistados

Após a realização e a transcrição das entrevistas, solicitamos aos entrevistados que conferissem as suas respectivas transcrições e verificassem se elas estavam adequadas às narrativas que queriam transmitir.

Fizemos a análise das falas buscando identificar como se constroem as noções de estigma e desvio sobre o trabalho dos artistas de rua. Portanto, as nossas análises se concentraram em identificar como são construídas regularidades e ordenamentos de estigma e desvio em relação ao trabalho dos artistas circenses que atuam no semáforo. A ideia era identificar um conjunto de elementos comuns que pudessem evidenciar e explicar como se formam as noções de desvio e estigma no trabalho dos artistas circenses que atuam no semáforo. Tal perspectiva se afasta de uma busca individualista do sentido do trabalho ( Colet & Mozzato, 2019Colet, D. S., Mozzato, A. R. (2019). Respeitável público, o sentido do trabalho para o artista circense vai começar! Pensamento & Realidade, 34(1), 111-127. doi:10.23925/2237-4418.2019v34i1p111-127
https://doi.org/10.23925/2237-4418.2019v...
; Silva et al., 2020Silva, K. A. T., Brito, M. J., Campos, R. C. (2020). “O lixo pode ser mais que lixo”: o sentido do trabalho para catadores de materiais recicláveis. Farol — Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 7(19), 622-658. doi:10.25113/farol.v7i19.4935 ; Werner et al., 2017)Werner, L., Girelli, S., & Dal Magro, M. L. P. (2017). Bem-vindos ao espetáculo: sentidos do trabalho para artistas circenses. Revista de Ciências Humanas, 51(2), 456-476. doi:10.5007/2178-4582.2017v51n2p456 e se aproxima da imaginação sociológica ( Mills, 1972)Mills, C. W. (1972). A imaginação sociológica. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. , que é a busca por tomada de consciência da estrutura social em que acontece o fenômeno investigado. Trata-se de articular situações da realidade e apresentá-las de modo coerente. O objetivo é entender que os fenômenos não se apresentam de determinadas maneiras por acaso, uma vez que sempre há interesses em jogo em qualquer realidade investigada.

Após a transcrição das entrevistas, foram verificadas quais vivências e violências eram comuns entre os entrevistados e quais dados se repetiam entre as diversas entrevistas. As transcrições foram segmentadas entre os tópicos frequentes nas falas dos entrevistados e os dados foram triangulados entre os autores deste artigo. Assim, a partir das próprias falas dos entrevistados, identificamos a persistência em classificar os artistas como vagabundos, originando a categoria “Vai trabalhar, vagabundo!”, que representa como boa parte da sociedade caracteriza os artistas circenses no semáforo, de acordo com as evidências apresentadas nos relatos. Os resultados foram organizados com a explicação inicial da noção de vagabundo e como isso se desdobra em outras dimensões do trabalho dos artistas circenses no semáforo — o circo marginal — e como esse contexto leva ao entendimento de que o que é feito pelos artistas não é trabalho. Dessa maneira, iniciamos o trabalho considerando as noções de desvio e estigma, mas as categorias apresentadas a seguir são resultado do que nós com as entrevistas realizadas. Portanto, apresentamos como ocorre o processo organizativo do trabalho circense no semáforo de dá a partir das experiências dos próprios trabalhadores.

Vai trabalhar, vagabundo!

“Vai trabalhar, vagabundo!” é uma frase muito escutada pelos artistas. Essa frase agressiva representa a forma como a sociedade, em geral, percebe os artistas circenses do semáforo e carrega uma série de significados. Ela evidencia a dificuldade de muitas pessoas em perceber a atividade desses artistas como um trabalho. O artista é então considerado um vagabundo, um sujeito que não gera riqueza para a sociedade. Esses artistas têm um estilo de vida próprio, que não é orientado pela razão neoliberal ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A brief history of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press. ; Paulani, 2006)Paulani, L. M. (2006). O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In J. C. F. Lima, L. M. W. Neves (Orgs.), Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo (pp. 67-107). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. , diferenciando-se dos considerados estabelecidos ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000)Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ou “normais” ( Goffman, 2008)Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. na sociedade, uma vez que são viajantes e fogem dos padrões de vida socialmente impostos.

Os entrevistados mencionaram as dificuldades de se adequarem ao processo organizativo em que o capitalismo neoliberal está convencionado ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ). Foi comum entre os participantes a desconstrução dos padrões estabelecidos socialmente, seja por um quesito social, estético ou relacionado ao trabalho. Ao ser questionada sobre a diferença entre os “indivíduos normais” ( Goffman, 2008)Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. e os artistas do semáforo, uma das artistas expõe:

A pessoa normal sempre vai seguindo como que na linha que põe a sociedade . . . como a sociedade pressiona as pessoas, né? Para que sigam uma ruta [rota] , os pais, como todo, assim . . . em câmbio na arte você é livre, né? Você é livre de pensar o que você quiser pensar, livre de fazer o que você quer fazer . . . você está fazendo isso como autogestão, você está vivendo o que você quer viver, né? Não tem uma pressão com nada . . . não vai seguindo um estereótipo da sociedade. (Eliana, 2020)

Eliana explica que os indivíduos que optam por esse estilo de vida não seguem o que é entendido como o certo pelo senso comum, trazendo justamente a perspectiva desviante ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ). Eles passam de um status normal para um status estigmatizado, atravessando um processo de autoconhecimento, uma nova forma de entendimento sobre si mesmo na construção de uma nova identidade. Podem, ainda, “desempenhar ambos os papéis do drama normal-desviante” ( Goffman, 2008, pGoffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. , p. 143). O que para esse grupo é o certo para o resto da sociedade pode ser considerado errado. Os artistas buscam, além de sustento financeiro, ser livres dos estereótipos sociais. Nas palavras de Eliana (2020), “ ser livre pra pensar o que quiser ”.

É possível associar a autonomia gerada pela arte no semáforo como uma crítica social às normas e regras do processo organizativo dominante impostas pelos “normais”. Identificamos que a ideia de não ter patrão é uma dessas críticas. Entretanto, não ter patrão não se confunde com a ideia de empreendedorismo da lógica neoliberal ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ). Jorge, no fragmento abaixo, evidencia essa concepção.

Então, a crítica social ela tá implícita, eu não vou trabalhar pra um patrão, . . . pra gastar catorze horas do meu dia, entendeu? Pra ganhar um salário que ele determina, o horário que ele determina, né? Eu posso ter folga no dia que ele determina, então se eu ficar doente, se eu precisar de alguma coisa, problema é meu, então se o problema é meu, eu tomo as rédeas da minha vida e trabalho de forma independente, né? (Jorge, 2020)

A fala de Jorge revela o pensamento frequente entre os artistas: não ter patrão. Jorge elenca uma série de itens que justificam sua atividade. Para ele, fazer malabares no semáforo representa independência e qualidade de vida. Tendo em vista a precariedade do mundo do trabalho, a atividade permite a liberdade e o conforto que outros trabalhos não proporcionam.

Os artistas treinaram e se qualificaram para serem capazes de exercer seu ofício, ainda que essa atividade não seja considerada como profissional a partir de uma perspectiva funcionalista do trabalho. Porém, é possível assumir a atividade do artista de semáforo como uma profissão se considerá-la a partir das perspectivas interpretativista e crítica das profissões ( Dubar, 2012Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 ), ou simplesmente entendendo que podem existir processos organizativos diversos para exercer um trabalho ou uma profissão. De acordo com Dubar, os artistas escolhem realizar atividades que “não se reduzem à troca econômica de gasto de energia por salário” (p. 354), apresentando uma nova identidade para a noção de profissão, que colide com a razão neoliberal vigente.

Por outro lado, a fala do Jorge deixa evidente como os artistas, mesmo buscando oferecer uma crítica social por meio do seu trabalho, não conseguem fugir plenamente da razão neoliberal quando, por exemplo, assumem os riscos totais de sua atividade laboral e de vida ( Dardot & Laval, 2016Dardot, P., Laval, C. (2016). A nova razão do mundo. São Paulo, SP: Boitempo. ; Harvey, 2005Harvey, D. (2005). A brief history of Neoliberalism. Oxford: Oxford University Press. ; Paulani, 2006)Paulani, L. M. (2006). O projeto neoliberal para a sociedade brasileira: sua dinâmica e seus impasses. In J. C. F. Lima, L. M. W. Neves (Orgs.), Fundamentos da educação escolar do Brasil contemporâneo (pp. 67-107). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. . Além dos riscos inerentes à própria prática circense ( Mandell, 2016Mandell, C. H. (2016). Circo: risco, performatividade e resistência. Sala Preta, 16(1), 71-81. doi:10.11606/issn.2238-3867.v16i1p71-81 ; Rens & Filho, 2021), há ainda os riscos associados ao local de trabalho. Sendo assim, os artistas, inseridos no contexto de precarização do trabalho (Benavides; Silva-Peñaherrera, & Vives, 2022) e da razão neoliberal, portam-se enquanto sujeitos-empresas, reconhecendo e se apropriando dos perigos característicos de seu trabalho. O neoliberalismo está tão intrínseco na forma de ver o mundo que se impõe até para aqueles que estão querendo fugir dessas amarras, evidenciando que não é possível se isolar completamente do ordenamento social imposto pela racionalidade neoliberal.

É possível perceber as imposições da racionalidade neoliberal entre os artistas de rua quando eles assumem riscos na hora de se apresentar. Há os riscos físicos da própria atividade, como cansaço ocular ( Rincón-Suarez & Jiménez-Barbosa, 2017Rincón-Suarez, K. N., Jiménez-Barbosa, I. A. (2017). Salud visual y percepción social de malabaristas de la ciudad de Bogotá, Colombia. Universidad y Salud, 19(3), 340-351. doi:10.22267/rus.171903.96 ), lesão muscular, violência e atropelamentos. Para os artistas, os espectadores também podem ser perigosos.

E o perigo maior é que algum doido no [não] goste do que você tá fazendo e decida bater em você ou pegar em balazo [dar um tiro] direto, né? Meter bala direto. Sei lá, tem muito doido na rua. (Gabriel, 2020)

Gabriel expõe que o perigo maior é que algum indivíduo que “ não goste do que você tá fazendo ” decida agredi-lo. Paradoxalmente, os que mais representam risco para os artistas são justamente aqueles que os temem e os classificam como marginais. Isso não quer dizer que não existam outras violências e conflitos na rua, como lidar com outros trabalhadores do semáforo e com pedintes.

As agressões verbais são frequentes e são associadas ao não reconhecimento das apresentações circenses nos semáforos como um trabalho. A violência ocorre pelo fato de os artistas estarem performando fora do espaço onde a apresentação pode ser reconhecida como atividade laboral.

Já chegaram a falar “vai trabalhar, vagabundo!”, essa acho que é a mais comum, né? (Iago, 2020)

. . . o semáforo abria e a pessoa gritava “vai trabalhar” não sei quê . . ., sabe? (Ágata, 2020)

. . . não gostam do que estão fazendo e mandam você “vai trabalhar, vagabundo”. (Gabriel, 2020)

Iago relata que é comum ouvir “vai trabalhar, vagabundo!”. Essa frase foi recorrente em várias entrevistas (Ágata, Gabriel, Eliana, Paola e Celso). Em outras falas, o termo não foi citado diretamente, mas estavam presentes outras expressões semelhantes que remetiam à ideia de que os artistas eram vagabundos (Rebeca, Celso, Cristian, Débora, Jorge e Valéria). Para as mulheres, a violência é ainda mais desafiadora, tendo em vista o machismo que enfrentam todos os dias por meio de assédios sexuais (Paola, Adriana, Ágata, Laura, Eliana, Beatriz) e a associação com a prostituição (Laura, Lilian, Beatriz). Lilian reportou que “ muita gente também acha que você, por estar trabalhando na rua, você é uma puta, né? ”.

No geral, as pessoas que trabalham com a arte circense na rua optam por serem pacíficas ou ignorarem as agressões para escaparem de momentos conflituosos devido a sua vulnerabilidade. Parte dessa vulnerabilidade vem da associação da atividade circense de rua com mendicância. Esse aspecto foi evidente e representa como boa parte da sociedade percebe os artistas como pedintes, desconsiderando o caráter laboral dessa atividade artística. Valéria, Débora e Celso narram que são confundidos com mendigos.

. . . eu não queria assim que me vissem como se fosse uma pedinte, né? Eu queria realmente passar que aquilo era uma arte, que eu tava me dedicando . . . (Valéria, 2020)

. . . eu acho que veem . . . como algo vulgar, como algo sujo, como que estamos mendigando também . . . (Débora, 2020)

Então, eu cheguei à conclusão que fazer malabares no semáforo é uma atividade marginalizada pela sociedade. . . . Não importa o quanto limpo ele esteja ou quão perfeita seja sua apresentação, é uma atividade de alguma forma marginalizada pelo fato de ser vista por muitas pessoas não como um trabalho, mas como uma mendigagem, né? As pessoas veem dessa forma. . . . acham que malabarista no semáforo é vagabundo, né? Acho que existe esse estigma. (Celso, 2020)

Celso esclarece a condição do artista de sinal como desviante: “ não importa o quanto limpo ” ou “ quão perfeita seja a apresentação ”, a sociedade continuará tratando os artistas como marginais, como desviantes, desconsiderando a atividade como um trabalho e tratando os artistas como delinquentes. Segundo Elias e Scotson (2000)Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. , quando há uma diferença muito grande de poder entre estabelecidos e desviantes, os últimos são “tidos como sujos e quase inumanos”, mesmo que essa primeira designação (sujos) pudesse ser entendida de forma literal “dada as condições mais precárias de muitos grupos outsiders ” (p. 29). Tal associação também remete ao que Mary Douglas (1966)Douglas, M. (1966). Pureza e perigo: ensaio sobre as noções de poluição e tabu. Lisboa: Edições 70. apresenta sobre a construção da noção de sujeira na sociedade. Segundo a autora, ela emerge dos estabelecidos quando estão diante de elementos ou fatos que causam desordem e representam impureza. O trabalho dos artistas de rua causa desordem no entendimento tradicional de trabalho, o que leva à rotulação dessa atividade como “impura” e associada à sujeira. Processos organizativos distintos dos dominantes costumam ser qualificados pejorativamente como forma de defender e reforçar o processo organizativo aceito como “normal” ou “melhor”.

A condição desviante também se reflete na questão familiar, assim como os desviantes músicos de casa noturna, conforme descrito na pesquisa de Becker (2008)Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. .

. . . minha família ela é barra pesada . . . nunca tive nenhum apoio, realmente me senti confortável, não . . . me perguntavam quando que eu ia arrumar um trabalho [risos] quando eu ia virar gente [risos] . . . (Jorge, 2020)

No começo foi muito impactante, a minha mãe não aceitava, assim. . ., ela falou que ia virar moradora de rua, que eu ia fumar pedra, que não era isso que ela queria pra minha vida, queria que eu estudasse, então foi muito difícil pra mim enfrentar a minha família . . . mas hoje a minha mãe se orgulha de mim. (Paola, 2020)

. . . eles como que nunca entendiam e não aceitavam que eu trabalhe no sinal, mas é tudo questão de tempo, não? Foi passando o tempo e agora já . . . minha mãe lo aceita, meu pai mais ou menos . . . [risos] . Mas de a pouco vão aceitando, lo vão entendendo. (Cristian, 2020)

No começo acho que eles não gostaram muito. Não pelo trabalho senão pelo estilo de vida de viajar e ficar longe deles, . . . depois quando eu consegui . . . mostrar pra eles o meu trabalho . . . aí eles mudaram . . . acharam massa que eu faço, que eu consiga me sustentar do que eu gosto de fazer e me apoiam. (Laura, 2020)

Assim como os desviantes músicos da casa noturna ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ), os artistas do semáforo não têm, em geral, apoio dos familiares e, por vezes, abdicam do convívio com a família para poderem continuar trabalhando. Tal situação não é exclusiva dos artistas de rua, as pessoas que trabalham com prostituição ( Oliveira et al., 2017Oliveira, T. Z., Guimarães, L. V., Ferreira, D. P. (2017). Mulher, prostituta e prostituição: da história ao jardim do Éden. Teoria e Prática em Administração, 7(1), 139-169. doi:10.21714/2238-104X2017v7i1-33214 ; Paiva, Pereira, Guimarães, Barbosa, & Sousa, 2020; Sanders, 2016Sanders, T. (2016). Inevitably violent? Dynamics of space, governance, and stigma in understanding violence against sex workers. Studies in Law, Politics and Society, 71, 93-114. doi:10.1108/s1059-433720160000071005 ; Silva & Cappelle, 2015)Silva, K. A. T., Cappelle, M. C. A. (2015). Sentidos do trabalho apreendidos por meio de fatos marcantes na trajetória de mulheres prostitutas. Revista de Administração Mackenzie, 16(6), 19-47. doi:10.1590/1678-69712015/administracao.v16n6p19-47 também relatam problema semelhante porque a família e boa parte da sociedade não reconhecem essas atividades como trabalho ou trabalho digno, representando uma forma de desorganização social.

Outro aspecto do conflito familiar está na condição nômade dos artistas de rua, como vemos na fala de Laura. O descontentamento de seus familiares se apresenta em relação ao distanciamento físico, argumentando que a real insatisfação dos familiares tinha origem na separação física dos artistas com o núcleo familiar, já que muitos artistas começaram a viajar.

O nomadismo circense foi interpretado por Bolognesi (2003)Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, SP: Unesp. como estratégia de sobrevivência. O autor relata que, para não serem repetitivos e em uma lógica concorrencial, os artistas aderem ao nomadismo para que sejam sempre novidade na cidade em que chegam. Seja apenas como um recurso de viagem, estratégia de sobrevivência ou pela liberdade, esse grupo representa um estilo de vida específico que simboliza um processo organizativo próprio e acaba divergindo, muitas vezes, do que é aceito no entendimento dos estabelecidos. Esse estilo de vida, que define um grupo bem delineado, separa os artistas de rua dos “sujeitos normais” ( Goffman, 2008Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. ).

O circo marginal

A arte de rua não é apenas uma manifestação artística, mas é também um ato de resistência diante de uma sociedade orientada pela racionalidade neoliberal e um conjunto de preconceitos. Nesse sentido, fazer arte no semáforo é uma forma de estabelecer uma parada obrigatória ( Façanha, 2007Façanha, J. M. S. (2007, agosto). Semáforo: parada obrigatória! um lugar praticado por personagens e histórias. Artigo apresentado na III Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís, MA. ). Quando questionada sobre o porquê de os artistas escolherem o semáforo em detrimento de outros espaços, Adriana responde:

Porque ele é um bug, né? Ele é um bug no sistema, ele é um espaço que já era utilizado . . . pra vender produtos . . . é tiro certo, porque você tá num lugar onde você sabe que as pessoas vão ter dinheiro . . . porque eles têm um carro . . . e é um espaço de tempo onde elas [as pessoas] não têm onde fugir . . . elas estão ali, o sinal parou, elas ficam ali, elas estão morgadas ali, elas vão ficar ali, você vai ter aquele tempo pra fazer o que você quiser e dentro desse espaço de tempo você ainda pode ganhar uma grana assim. (Adriana, 2020)

Adriana destaca que a escolha desse local de trabalho não é meramente acidental, mas planejada. O semáforo não é um espaço originariamente programado para performances artísticas ou para o comércio, mas para a manutenção do tráfego nas cidades. Adriana trata esse aspecto como um “ bug no sistema ”, já que não só os artistas, como outras personagens do semáforo ( Façanha, 2007Façanha, J. M. S. (2007, agosto). Semáforo: parada obrigatória! um lugar praticado por personagens e histórias. Artigo apresentado na III Jornada Internacional de Políticas Públicas, São Luís, MA. ), utilizam esse espaço para trocas comerciais. Um local pensado pelo planejamento urbano da cidade para gerir a mobilidade urbana que tem um público constante. Isso indica que a plateia “ não tem pra onde fugir ”. Os artistas escolheram um espaço que foi criado pelos mecanismos estatais para desenvolver sua arte, desconstroem a ideia original do semáforo de modo que

. . . a faixa de pedestre é o meu palco e meu público eram os carros e eu tinha que saber o tempo do semáforo e fazer uma rotina de movimentos de malabares dentro desse tempo e ainda parar, agradecer e cobrar o dinheiro . . . (Beatriz, 2020)

Como é evidenciado pela fala de Beatriz, o semáforo se transforma. Não só o espaço se transforma, mas até a própria pessoa. Na concepção do espaço como um local de apresentação, a pessoa se torna um artista à medida que constrói sua performance ( Goffman, 2002Goffman, E. (2002). Representação do eu na vida cotidiana (10a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes. , 2008Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. ). O artista e o palco se juntam na desconstrução de um espaço público, tornando-o local de trabalho. Esse espaço foi escolhido porque representa um ganho mais certeiro, uma “ certeza que terá plateia ” (Gabriel, 2020), possibilitando o trabalho em qualquer localidade.

Porque es [é] o mais rápido, . . . O semáforo é movimento constante e donde [onde] . . . tem um público constante. (Andres, 2020)

Rapaz. . . eu acho que é pelo fato de ser o mais rápido ali, o mais prático né? . . . por essa facilidade de você poder estar num lugar, trabalha num sinal e de repente você pode organizar suas coisas e já pode ir pra outro lugar, sem ter vínculo assim, né? Então, acho que por isso também. (Rebeca, 2020)

Andres e Rebeca relatam o porquê de escolherem o semáforo como espaço de trabalho. Andres justifica por ser a forma mais rápida para obtenção de recursos financeiros, além de garantir um público constante; Rebeca destaca o aspecto da autonomia no que se refere à locomoção, já que o artista pode “ organizar suas coisas ” e “ ir para outro lugar ”.

Essa classe, considerada vagabunda e suja aos olhos de boa parte da sociedade, é um grupo que apresenta um processo organizativo próprio. Eles vão ao encontro de muitas coisas que a sociedade impõe como correto, por exemplo, ter um endereço fixo, estudar formalmente, ou ter um emprego formal. Entretanto, o artista busca ser “ livre pra pensar o que quiser ” (Eliana, 2020). Os artistas buscam viver fora das regras sociais dos estabelecidos ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ). Eles desejam bugar o sistema, apresentando um processo organizativo diferente acerca do trabalho e do convívio em sociedade. Se apropriam de algo criado pelo próprio sistema para poderem garantir suas satisfações pessoais e seu sustento. Desconstroem o semáforo e o sentido tradicional do que é trabalho. Dessa forma, os artistas enfrentam o sistema tão engendrado nos nossos corpos, pensamentos e estilo de vida.

Desvio, logo, não trabalho

Os artistas circenses do semáforo, frente à sociedade, não se enquadram como malabaristas, artistas de circo ou mochileiros, por exemplo. O fato de eles exercerem essa atividade na rua os relaciona à categoria de desviantes ( Becker, 2008Becker, H. S. (2008). Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro, RJ: Zahar. ; Elias & Scotson, 2000Elias, N., Scotson, J. L. (2000). Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar. ) ou estigmatizados ( Goffman, 2008)Goffman, E. (2008). Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (4a ed.). Rio de Janeiro, RJ: LTC. . De acordo com Goffman, é um grupo que foge do que é considerado um estilo de vida “normal”, especialmente no seu modo de vida nômade, na forma de se vestir, de se comportar e trabalhar. Em outras palavras, para a sociedade, eles não têm um trabalho, uma profissão ( Dubar, 2012)Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 . Sem vínculos formais de trabalho, podendo exercer sua atividade onde quer que estejam, não necessitando de uma aprovação por parte dos “clientes”, os artistas se desvinculam dos padrões estéticos impostos socialmente. Usam “ figurinos improvisados ” com “ algum tipo de acessório que remeta à cultura circense ”, como coletes, meias listradas, suspensórios, isso porque “ a maioria se identifica com um estilo alternativo ” (Adriana, 2020), sendo identificados por alguns como uma “ identidade ” (Ágata, 2020). Ao serem questionados quanto à permanência na atividade e ao significado da rua e da arte circense, os artistas associavam tanto a rua e o semáforo quanto os malabares com a liberdade:

Cara, o que me fez continuar foi justamente e . . . a liberdade de expressão, né? Coisa que eu tinha falado que nos outros trampos eu não tinha, né? Então ter essa liberdade de poder chegar e me apresentar quem eu realmente sou . . . A rua significa liberdade de expressão. (Ian, 2020)

Liberdade, expansão, sabe? Dentro de si, de consciência, de convívio né, de aprendizado. (Ágata, 2020)

Estado de liberdade, estado de liberdade. (Maurício, 2020)

É uma mistura da liberdade sobre o circo ( Bolognesi, 2003Bolognesi, M. F. (2003). Palhaços. São Paulo, SP: Unesp. ; Carrieri et al., 2020Carrieri, A. P., Quaresma, E. A., Jr., Palhares, J. V., & Aguiar, A. R. C. (2020). Improvisação: nem jazz, nem teatro, mas metamorfose itinerária. Revista de Administração de Empresas, 60(4), 273-283. doi:10.1590/S0034-759020200404 ) com uma nova concepção de rua. Os artistas são parte de um grupo diferente de todos os outros que vivem a rua e o semáforo: grafiteiros, artesãos, vendedores (por exemplo, de frutas, de água, de cocada, de balinha), panfleteiros, limpadores de para-brisas, flanelinhas, mendigos, bêbados, pessoas vivendo em situação de rua, entre outros tantos personagens desses espaços. Eles compõem uma categoria que tem seu próprio modo de ver as coisas, orientada por uma ideia própria de autonomia e independência (não ter patrão), mesmo diante das dificuldades impostas pela razão neoliberal.

Assim, pensar o trabalho do artista circense de rua nos convida a olhar para o trabalho como enunciador de outras formas organizativas ( Ahrne & Brunsson, 2011Ahrne, G., Brunsson, N. (2011). Organization outside organizations: The significance of partial organization. Organization, 18(1), 83-104. doi:10.1177/1350508410376256 ). Ou seja, é possível identificar como o trabalho nos conta sobre formas de viver em sociedade que se refletem em processos organizativos diversos para compreender a família, a rua e a cidade. Soma-se a isso os entendimentos sobre como se organizam a pobreza e a violência em um contexto de trabalho distinto do socialmente dominante. Todas essas configurações de ordenamento social e organizativas estão em constantes disputas entre cosmovisões diversas. Dessa forma, a ideia dominante (dos estabelecidos) sobre como devem ser esses ordenamentos sociais e organizações faz com que seja possível identificar por meio do trabalho estigmas que são utilizados como justificativas para definir e determinar o que é ou não trabalho e quem tem uma profissão (carreira) ou “apenas” uma ocupação ( Dubar, 2012)Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 .

Conclusões

Este estudo propõe um olhar sociológico sobre o trabalho dos artistas circenses do semáforo. A partir das noções de desvio e estigma, presentes na racionalidade neoliberal, buscamos apresentar o ordenamento social dos artistas que realizam apresentações nos semáforos. Este trabalho pretende evidenciar os artistas circenses de semáforo como uma classe estigmatizada, oferecendo uma interpretação científica de como seus modos de viver e trabalhar representam processos organizativos que não se enquadram entre os estabelecidos sob a lógica neoliberal, dando origem a formas de preconceito e violência.

Especialmente no Brasil, onde há milhões de pessoas desempregadas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021) e outras que atuam na informalidade, buscar compreender o trabalho dos artistas de rua é uma forma de destacar os preconceitos existentes em relação a essa classe trabalhadora. Ao mesmo tempo, revela como diferentes formas de viver e trabalhar desafiam (com algum sucesso) a racionalidade neoliberal que se apropria do trabalho das pessoas, fazendo da maximização do lucro a própria racionalidade da vida ( Bispo, 2022Bispo, M. S. (2022). Responsible managing as educational practice. Organization Management Journal, 19(4), 155-166. doi:10.1108/OMJ-10-2021-1367
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). Isso ocorre quando os meios (precarização do trabalho, desemprego, concentração de riqueza e aumento da pobreza e desigualdade social) justificam os fins (o lucro maximizado).

O nosso trabalho contribui para o avanço do debate sobre o tema, considerando a literatura existente, quando busca evidenciar o trabalho dentro de um ordenamento social (uma estrutura), e não apenas como um elemento individual-subjetivo estudado por uma perspectiva psicológica ( Aguiar et al., 2016Aguiar, A. R. C., Carrieri, A. P., Souza, E. M. (2016). The wonderful, magnanimous, spectacular and possible world of traveling circuses in Brazil. BAR — Brazilian Administration Review, 13(3), 1-19. doi:10.1590/1807-7692bar2016160014 ; Colet & Mozzato, 2019Colet, D. S., Mozzato, A. R. (2019). Respeitável público, o sentido do trabalho para o artista circense vai começar! Pensamento & Realidade, 34(1), 111-127. doi:10.23925/2237-4418.2019v34i1p111-127
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; Natt et al., 2019Natt, E. D. M., Aguiar, A. R. C., Carrieri, A. P. (2019). Brazilian canvas circuses: A field in constant motion and symbolic transformation. Revista de Administração da Universidade Federal de Santa Maria, 12(2), 233-254. doi:10.5902/1983465918179 ; Silva & Cappelle, 2015Silva, K. A. T., Cappelle, M. C. A. (2015). Sentidos do trabalho apreendidos por meio de fatos marcantes na trajetória de mulheres prostitutas. Revista de Administração Mackenzie, 16(6), 19-47. doi:10.1590/1678-69712015/administracao.v16n6p19-47 ; Silva et al., 2020Silva, K. A. T., Brito, M. J., Campos, R. C. (2020). “O lixo pode ser mais que lixo”: o sentido do trabalho para catadores de materiais recicláveis. Farol — Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 7(19), 622-658. doi:10.25113/farol.v7i19.4935 ; Werner et al., 2017)Werner, L., Girelli, S., & Dal Magro, M. L. P. (2017). Bem-vindos ao espetáculo: sentidos do trabalho para artistas circenses. Revista de Ciências Humanas, 51(2), 456-476. doi:10.5007/2178-4582.2017v51n2p456 . Portanto, entendemos que mais do que enunciar como as pessoas se sentem ao realizar um trabalho, especialmente uma atividade que não seja considerada uma profissão ( Dubar, 2012)Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: a socialização profissional. Cadernos de Pesquisa, 42(146), 351-367. doi:10.1590/S0100-15742012000200003 , também é importante (re)conhecer que eventuais sentidos do trabalho dependem de uma ordem social e processos organizativos (práticas) com regras e normas, que agrupam e coagem as pessoas para serem reconhecidas como pertencentes (estabelecidos) a um grupo social ou não ( outsiders ). A coerção acontece por meio das noções de desvio e estigma.

Além disso, demos um passo na direção de mostrar que um olhar mais atento ao trabalho evidencia a necessidade de ampliar o debate ontológico para que seja possível perceber e entender as várias formas organizativas que o trabalho assume ( Graceffa & Heusch, 2017Graceffa, S., Heusch, S. (2017). Reinventing the world of work. Transfer: European Review of Labour and Research, 23(3), 359-365. doi:10.1177/1024 258917707870 ; Siqueira et al., 2019)Siqueira, M. V. S., Dias, C. A., Medeiros, B. N. (2019). Solidão e trabalho na contemporaneidade: as múltiplas perspectivas de análise. Revista de Administração Mackenzie, 20(2), 1-24. doi:10.1590/1678-6971/eRAMG190058 , assim como as implicações diretas nas organizações fora das organizações ( Ahrne & Brunsson, 2011)Ahrne, G., Brunsson, N. (2011). Organization outside organizations: The significance of partial organization. Organization, 18(1), 83-104. doi:10.1177/1350508410376256 . Entendemos que, por meio do trabalho do artista circense de rua contribuímos para os estudos organizacionais ao destacar a possibilidade efetiva de se compreender outras formas organizativas fora das organizações, que influenciam diretamente a maneira de convívio em sociedade em seus aspectos políticos, econômicos e sociais ( Delbridge & Sallaz, 2015)Delbridge, R., Sallaz, J. J. (2015). Work: Four worlds and ways of seeing. Organization Studies, 36(11), 1449-1462. doi:10.1177/0170840615612021 .

Esperamos que este trabalho possa dar um pouco de visibilidade para os artistas de rua e seja uma forma de contribuir com um olhar mais digno para essas pessoas. Quando um grupo não é inserido socialmente e é marginalizado, o discurso pode se tornar raivoso e gerar violência, como no caso do assassinato de Matías Galindez ( Bernardi & Fernandes, 2017Bernardi, M., Fernandes, P. (2017, 14 de abril). Morte de uruguaio assassinado a tiros em Ji-Paraná tem causado comoção e homenagens nas redes sociais. Portal G1. Recuperado de http://glo.bo/3QuB9St
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). Nesse sentido, é preciso transformar o “vai trabalhar, vagabundo!” em compreensão e respeito ao diferente e, por que não, à arte.

Só quando se entende o ordenamento social da arte de rua é que se torna possível promover mais respeito aos artistas. Os artistas enfrentam esse sistema de racionalidade neoliberal com amor, com arte e com sorriso. Afinal, sorrir é de graça!

Agradecimentos

Os autores agradecem ao editor associado e aos revisores pelas contribuições que possibilitaram a melhoria do artigo durante o processo de revisão por pares.

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Notas

  • 1
    . Em pesquisa no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), encontramos apenas nove artigos que tratam do tema, nenhum em periódico de administração. Como descritores de busca foram utilizados “ Buskers ”, “ Jugglers in traffic light ”, “Artistas circenses” e “Artistas de rua”; selecionando aqueles que tratam, em algum momento, dos artistas circenses que performam no semáforo.
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento: Esta pesquisa foi parcialmente financiada pela FAPESQ (termo 3007/2021), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Universidade Federal da Paraíba.
Editora Associada: Claudia Antonello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    26 Jul 2022
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