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Redução da Jornada de Trabalho como Instrumento Político, de Gestão e de Controle

Resumo

A redução da jornada de trabalho é um tema amplamente abordado em estudos organizacionais, em especial quanto aos seus benefícios. Contudo, a literatura dá menor ênfase às dinâmicas de poder e controle que podem estar presentes em sua implementação pelas organizações. Este artigo procura avançar sobre essa lacuna ao explorar as diferentes concepções que a jornada reduzida assumiu no contexto de uma instituição federal de ensino brasileira que adotou jornada de trinta horas semanais para seus servidores técnico-administrativos. Para isso, foi efetivado um estudo de caso por meio de observação, análise documental e dezoito entrevistas semiestruturadas, que incluíram tanto trabalhadores que cumpriam jornada reduzida quanto gestores que atuavam em jornada convencional de quarenta horas semanais. Os resultados indicaram que, apesar dos seus benefícios – notadamente no equilíbrio entre a vida laboral e pessoal –, a jornada reduzida apresenta três finalidades inter-relacionadas: a de um instrumento político, de gestão, e de controle sobre os trabalhadores. Partindo de reflexões sobre a racionalização da vida e de sua dimensão temporal, a pesquisa possibilitou, como contribuição aos estudos organizacionais, desvelar como instrumentos de gestão e controle podem ser incorporados em uma política de redução de jornada de trabalho, evidenciando a complexidade e a controvérsia presentes nas relações de poder.

jornada de trabalho; tempo de trabalho; relações de poder; controle no trabalho; serviço público

Abstract

Reduced working time is a topic widely discussed in organization studies, mainly its benefits. However, the literature does not deeply emphasize the power and control dynamics oftentimes observed in its implementation by organizations. The aim of the current article is to help fulfilling this gap by exploring different concepts about reduced working time in place in Brazilian federal educational institutions that have adopted the thirty-hour workweek as standard for their technical-administrative employees. A case study was carried out through observation, documental analysis and eighteen semi-structured interviews conducted with both workers subjected to shorter working hours and managers working under the conventional forty-hour week standard. Based on the results, despite its notable benefits for the work/life balance, the reduced working time has three interrelated purposes, namely: political, management, and control instrument. This research made it possible to reveal how management and control instruments can be incorporated to a policy focused on reduced working time, to highlight the complexity and controversy of power relation, as well as contributed to organization studies, based on rationalization about life and its temporal dimensions.

work day; working time; power relation; control at work; public service

Introdução

Poder e controle são conceitos caros em estudos organizacionais. Como forma de afirmar as relações de poder e atingir seus objetivos, todas as organizações exercem, em alguma medida, controle sobre os processos, estratégias, estruturas e, notoriamente, sobre os trabalhadores ( Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., Spicer, A. (2014) Power in management and organization science. The Academy of Management Annals, 8(1), 237-298. doi:10.1080/19416520.2014.875671 ). Nesse contexto, o tempo de trabalho torna-se central na análise organizacional, visto que é determinante nas relações entre a sociedade, o trabalho e o sujeito trabalhador ( Dal Rosso, 2017Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. ; Tonelli, 2008)Tonelli, M. J. (2008). Sentidos do tempo e do tempo de trabalho na vida cotidiana. Organizações & Sociedade, 15(45), 207-217. Recuperado de https://bit.ly/3PXVP5r
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, simbolizando, inclusive, um elemento de racionalização da vida ( Weber, 2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. ; Gorz, 2003)Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. . Mesmo arranjos teoricamente mais amigáveis aos trabalhadores, como a jornada de trabalho reduzida, não escapam às dinâmicas de poder estabelecidas nas organizações; pelo contrário, podem abrigar formas mais sutis, ocultas e sedutoras de controle organizacional (Faria, 2004a).

A redução da jornada de trabalho pode ser concebida como uma reivindicação histórica da classe trabalhadora ( Veal, 2020Veal, A. J. (2020). Is there enough leisure time? Leisure studies, work-life balance, the realm of necessity and the realm of freedom. World Leisure Journal, 62(2), 89-113. doi:10.1080/16078055.2019.1667423 ). O tema tem fundamentado estudos nacionais e internacionais em diferentes áreas e perspectivas teórico-metodológicas, que abrangem desde seus efeitos econômicos ( Husson, 2015Husson, M. (2015). Unemployment, working time and financialisation: The French case. Cambridge Journal of Economics, 39(3), 887-905. doi:10.1093/cje/bet051 ) e socioambientais ( Gunderson, 2019Gunderson, R. (2019). Work time reduction and economic democracy as climate change mitigation strategies: Or why the climate needs a renewed labor movement. Journal of Environmental Studies and Sciences, 9(1), 35-44. doi:10.1007/s13412-018-0507-4 ), até suas implicações para as organizações ( Burdin & Pérotin, 2019Burdin, G., Pérotin, V. (2019). Employee representation and flexible working time. Labour Economics, 61, 101755. doi:10.1016/j.labeco.2019.101755 ) e para os próprios trabalhadores ( Lepinteur, 2019)Lepinteur, A. (2019). The shorter workweek and worker wellbeing: evidence from Portugal and France. Labour Economics, 58, 204-220. doi:10.1016/j.labeco.2018.05.010 . Quanto aos dois últimos, os estudos organizacionais têm privilegiado os benefícios dessa medida, com ênfase na possibilidade de trabalhos que proporcionem melhor equilíbrio entre a vida laboral e extralaboral ( Veal, 2020)Veal, A. J. (2020). Is there enough leisure time? Leisure studies, work-life balance, the realm of necessity and the realm of freedom. World Leisure Journal, 62(2), 89-113. doi:10.1080/16078055.2019.1667423 , além de maior bem-estar e qualidade de vida ( Lepinteur, 2019)Lepinteur, A. (2019). The shorter workweek and worker wellbeing: evidence from Portugal and France. Labour Economics, 58, 204-220. doi:10.1016/j.labeco.2018.05.010 .

Entretanto, menor atenção tem sido despendida às formas como uma política de redução da jornada de trabalho pode ser concebida e implementada no cotidiano das organizações, inclusive quanto às dinâmicas de poder e controle a ela vinculadas. Alguns estudos nessa direção indicam, por exemplo, que a jornada reduzida pode ser associada à intensificação do trabalho ( Kelliher & Anderson, 2010Kelliher, C., Anderson, D. (2010). Doing more with less? Flexible working practices and the intensification of work. Human Relations, 63(1), 83-106. doi:10.1177/0018726709349199
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), ao aumento do controle sobre os trabalhadores sob o disfarce de maior flexibilidade (Nascimento, Damasceno, & Neves, 2016) e à redução de benefícios pecuniários e de segurança no emprego ( Lepinteur, 2019)Lepinteur, A. (2019). The shorter workweek and worker wellbeing: evidence from Portugal and France. Labour Economics, 58, 204-220. doi:10.1016/j.labeco.2018.05.010 . Estudos também indicam que ela pode ser utilizada como uma medida puramente paliativa de más condições organizacionais e desvinculada de uma política de gestão de pessoas que realmente vise à melhora da qualidade de vida no trabalho ( Cardoso, 2013Cardoso, A. C. M. (2013). Organização e intensificação do tempo de trabalho. Sociedade e Estado, 28(2), 351-374. doi:10.1590/s0102-69922013000200009
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; Carneiro & Ferreira, 2007Carneiro, T. L., Ferreira, M. C. (2007). Redução de jornada melhora a qualidade de vida no trabalho? A experiência de uma organização pública brasileira. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 7(1), 131-158. Recuperado de https://bit.ly/3OWErN9
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; Mocelin, 2011)Mocelin, D. G. (2011). Redução da jornada de trabalho e qualidade dos empregos: entre o discurso, a teoria e a realidade. Revista de Sociologia e Política, 19(38), 101-119. doi:10.1590/s0104-44782011000100007 .

Nesse sentido, o objetivo deste artigo é explorar as diferentes concepções que a redução da jornada de trabalho pode assumir no contexto organizacional. Para isso, foi realizado um estudo de caso em uma instituição federal de ensino brasileira (IFE) que implementou, em 2013, jornada de trinta horas semanais para seus servidores técnico-administrativos em educação (TAEs). A medida lhes permitiu trabalhar seis horas diárias, em vez das oito horas habituais no serviço público, sem nenhuma redução salarial. Em linhas gerais, trata-se de uma concessão discricionária da instituição, pois, embora legalmente prevista, configura-se essencialmente em uma política de gestão, e não em um direito dos servidores.

A discussão ganha relevância ante as omissões da literatura. No Brasil, as pesquisas sobre o tema têm enfatizado o âmbito da iniciativa privada e de categorias profissionais que, há muito tempo, apresentam jornada diferenciada em função da própria caracterização e peculiaridades de suas funções, como bancários ( Nascimento et al., 2016Nascimento, R. P., Damasceno, L. C. M., Neves, D. R. (2016). Between reward and suffering: The bank workers’ view of the flexibility discourse. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 17(4), 15-38. doi:10.1590/1678-69712016/administracao.v17n4p13-37 ), profissionais de saúde ( Felli, 2012Felli, V. E. A. (2012). Condições de trabalho de enfermagem e adoecimento: motivos para a redução da jornada de trabalho para 30 horas. Enfermagem em Foco, 3(4), 178-181. doi:10.21675/2357-707X.2012.v3.n4.379
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) e executivos (Kim, Tonelli, & Silva, 2017).

Especificamente no âmbito das IFEs, a literatura sobre a atividade de trabalho dos TAEs mostra-se reduzida em comparação aos docentes e pulverizada entre os mais variados temas, como motivação ( Silva & Barros, 2018Silva, A. V., Barros, F. C. (2018). Motivação no trabalho dos servidores técnicos administrativos em educação. Revista Eletrônica Gestão e Serviços, 9(2), 2473-2495. doi:10.15603/2177-7284/regs.v9n2p2473-2495 ), qualidade de vida ( Garcia, 2017)Garcia, Y. M. (2017). Qualidade de vida no trabalho segundo a percepção dos técnicos administrativos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Organizações em Contexto, 13(26), 195-214. doi:10.15603/1982-8756/roc.v13n26p195-214 , saúde e estresse (Coutinho, Diogo, & Joaquim, 2011), entre outros. Quanto à redução da jornada de trabalho desses servidores, os estudos são escassos e se restringem a uma visão quase monotemática sobre as implicações da medida na qualidade de vida ( Daehn, 2020Daehn, C. M. (2020). Qualidade de vida na jornada de trabalho flexibilizada de uma universidade pública federal. Caderno de Administração, 28(2), 38-54. doi:10.4025/cadadm.v28i2.53486 ; Colnago, 2012Colnago, A. T. A. (2012). Flexibilização da jornada de trabalho em uma instituição federal de ensino superior: análise da percepção de diferentes atores envolvidos no processo (Dissertação de mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF. ; Sousa, 2018)Sousa, S. A. (2018). A flexibilização da jornada e seu impacto nas atividades de técnicos administrativos da UFRN (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN. ou em particularidades, como a gestão do conhecimento (Klein, Cogo, & Pereira, 2020). Concomitantemente, as IFEs constituem espaços profícuos para disputas de poder complexas e contraditórias que configuram, especialmente, as relações interpessoais entre TAEs e docentes ( Tessarini & Saltorato, 2021)Tessarini, G., Jr., & Saltorato, P. (2021). Organização do trabalho dos servidores técnico-administrativos em uma instituição federal de ensino: uma abordagem sobre carreira, tarefas e relações interpessoais. Cadernos EBAPE.BR, 19, 811-823. doi:10.1590/1679-395120200236 . Tais disputas estão historicamente enraizadas na cultura burocrática dessas instituições, em que os docentes assumem os cargos mais elevados e, portanto, o controle do poder decisório (Nunes, Santos, & Tolfo, 2018), restando aos TAEs a percepção de invisibilidade (Loureiro, Mendes, & Silva, 2018) e de mero apêndice na estrutura organizacional ( Ribeiro, 2012)Ribeiro, C. V. S. (2012). O trabalho do técnico-administrativo em instituições federais de ensino superior: análise do cotidiano e implicações na saúde. Revista de Políticas Públicas, 16, 423-432. Recuperado de https://bit.ly/3OZj8uk
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.

Dessa forma, este artigo contribui ao apresentar uma discussão crítica sobre as contradições, os conflitos e os aspectos ocultos e manifestos que permeiam o contexto de trabalho dos servidores na instituição pesquisada, sob influência da política de redução da jornada de trabalho. Essa discussão efetiva-se por meio de aproximações e articulações teóricas de autores de distintas perspectivas epistêmicas, como os estudos sobre tempo de trabalho de Dal Rosso (2017)Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. e sobre racionalização de Weber (2004)Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. , o materialismo histórico-dialético presente na teoria da economia política do poder de Faria (2004a, 2004b) e a concepção foucaultiana de poder (Foucault, 2013). Entende-se que os estudos organizacionais devem se debruçar sobre as dinâmicas de poder e controle, especialmente quando incorporadas em políticas e práticas de gestão consideradas, à primeira vista, positivas e almejadas pelos trabalhadores. Ademais, ao delinear a discussão no âmbito do serviço público e das IFEs, o artigo avança em um campo empírico ainda pouco considerado quanto às suas relações de poder.

Tempo de trabalho e racionalização da vida

Em uma análise histórica da evolução e das mudanças ocorridas nos sentidos atribuídos ao tempo e ao tempo de trabalho, Tonelli (2008)Tonelli, M. J. (2008). Sentidos do tempo e do tempo de trabalho na vida cotidiana. Organizações & Sociedade, 15(45), 207-217. Recuperado de https://bit.ly/3PXVP5r
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enfatiza como o imperativo tecnológico influenciou os sucessivos paradigmas voltados à reorganização do trabalho. A autora destaca a invenção do relógio mecânico, que, com o desenvolvimento das sociedades industriais a partir do século XIX, possibilitou que o controle disciplinar do trabalho fosse exercido por meio do tempo linear do relógio. Nesse contexto, a jornada de trabalho foi historicamente concebida para buscar a institucionalização de medidas temporais lineares e padronizadas ( Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 ). A sua finalidade imediata é a racionalização do tempo de trabalho ( Tonelli, 2008)Tonelli, M. J. (2008). Sentidos do tempo e do tempo de trabalho na vida cotidiana. Organizações & Sociedade, 15(45), 207-217. Recuperado de https://bit.ly/3PXVP5r
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. Contudo, em perspectiva mais ampla, trata-se da própria organização da vida cotidiana, que é dividida em dois momentos: o tempo de trabalho e o tempo de não trabalho ( Dal Rosso, 2017)Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. .

O tempo de trabalho pode ser entendido como o tempo em que os trabalhadores estão dedicados ou à disposição do trabalho, correspondendo tanto à jornada formal quanto ao seu excedente. Inclui, ainda, o tempo em que os indivíduos estão em busca de informações relacionadas ao trabalho, no deslocamento, no home office , entre outros. Via de regra, o tempo à disposição do empregador extrapola o tempo de trabalho necessário, ou seja, aquele em que os trabalhadores produzem o equivalente ao seu próprio valor. Historicamente, é da apropriação do tempo de trabalho excedente que o modo de produção capitalista se reproduz ( Dal Rosso, 2017Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. ; Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 ; Tonelli, 2008)Tonelli, M. J. (2008). Sentidos do tempo e do tempo de trabalho na vida cotidiana. Organizações & Sociedade, 15(45), 207-217. Recuperado de https://bit.ly/3PXVP5r
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. Nesse sentido, autores de diferentes orientações epistêmicas defendem a redução da jornada de trabalho por ela se constituir em uma contraposição à extração de mais-valia pelo capital ( Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Gorz, 2003)Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. .

Segundo Dal Rosso (2017)Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. , o tempo de trabalho é composto por três dimensões: (a) duração: tempo efetivo de trabalho em número de horas diárias, semanais, anuais etc.; (b) distribuição: relacionada aos momentos em que o trabalho é executado em determinado período e seu grau de flexibilidade; e (c) intensidade: esforço físico, intelectual ou emocional para a execução do trabalho. Sob essa perspectiva, Cardoso (2013)Cardoso, A. C. M. (2013). Organização e intensificação do tempo de trabalho. Sociedade e Estado, 28(2), 351-374. doi:10.1590/s0102-69922013000200009
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destaca que a intensidade emerge como a dimensão mais complexa de análise, pois, diferentemente das demais, não há legislação ou uma medida única que determine o nível de esforço que os trabalhadores devem realizar durante seu tempo de trabalho.

Já o tempo de não trabalho corresponde àquele efetivamente livre que os trabalhadores dedicam para si, para socialização, lazer, educação, repouso, entre outros ( Dal Rosso, 2017Dal Rosso, S. (2017). O ardil da flexibilidade: os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo, SP: Boitempo. ; Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 ; Tonelli, 2008)Tonelli, M. J. (2008). Sentidos do tempo e do tempo de trabalho na vida cotidiana. Organizações & Sociedade, 15(45), 207-217. Recuperado de https://bit.ly/3PXVP5r
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A dualidade tempo de trabalho versus tempo de não trabalho se expressa como um princípio normativo da sociedade capitalista e, mais do que isso, como um elemento de racionalização da vida. Conforme Decca (1982)Decca, E. S. (1982). O nascimento das fábricas. São Paulo, SP: Brasiliense. , tal racionalização torna-se onipresente em pregações que relacionam tempo e dinheiro, cristalizando normas sociais, valores e a noção do tempo como moeda no mercado de trabalho. Esse contexto ecoa na expressão “tempo é dinheiro”, de Benjamin Franklin (1706-1790), referência para Weber (2004)Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. em sua reflexão sobre a racionalização/burocratização da vida em meio ao desenvolvimento capitalista. Weber buscava apreender tal desenvolvimento enquanto cultura moderna, conduta de vida ou espírito, e não exclusivamente enquanto um sistema econômico ou modo de produção. Para o autor, a dimensão temporal se constitui em um elemento central no então espírito capitalista organizado e racional, que o autor vincula à ética protestante.

No curso de sua reflexão, Weber (2004)Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. percebeu que a profissão, a dedicação ao trabalho e o uso racional do tempo passaram a ser vistos como fins em si mesmos, em oposição à visão tradicionalista que os concebia enquanto meios para sobrevivência. A valorização exacerbada do trabalho e da disciplina moral como formas de assegurar a salvação, segundo o autor, contribuiu para o fenômeno do desencantamento do mundo ou desmagicalização da vida, em cujo cerne figurava a perda da centralidade da religião na vida moderna. Weber considerou essas dinâmicas como propulsoras do encarceramento humano em sua “jaula de aço” (Weber, 2004, p. 165), consequência de um amplo processo de racionalização ocidental moderno.

Convergindo com Weber, Gorz (2003)Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. , ao explorar esse mesmo processo, destaca que até 1830, na Grã-Bretanha, e fim do século XIX, no restante da Europa, a produção material não era regida pela racionalidade econômica. Segundo o autor, a tecelagem era para os tecelões mais que um “ganha-pão, era um modo de vida” ( Gorz, 2003Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. , p. 24), guiado por tradições, costumes e valores que, embora percebidos pelos capitalistas como irracionais do ponto de vista econômico, eram por eles respeitados. Entre esses, os comerciantes, ao buscarem conciliar os interesses dos envolvidos naquela dinâmica, sequer cogitavam racionalizar o trabalho dos tecelões, introduzindo a concorrência entre eles ou buscando racional e sistematicamente maiores lucros.

Subitamente, porém, essa organização social se desestruturou, antes mesmo de o sistema mecânico ou de fábrica entrar em operação, rompendo a lógica tradicional vigente e legitimando um modo de vida racional em que a máxima dedicação ao trabalho profissional se tornou um dos elementos mais característicos da cultura capitalista ( Weber, 2004Weber, M. (2004). A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo, SP: Companhia das Letras. ). Segundo Gorz (2003)Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. , no entanto, a recusa dos trabalhadores em dedicar extensas horas de seus dias ao trabalho nas fábricas foi um dos motivos da falência dessas primeiras experiências. Frente a isso, os patrões diminuíam cada vez mais os salários pagos, obrigando os trabalhadores a cumprirem longas jornadas para garantir suas subsistências. O autor argumenta que diminuir o valor do salário não visava apenas reduzir o custo de produção, mas principalmente aumentar o controle sobre o trabalho e a dependência do trabalhador por meio de mais horas trabalhadas. Weber explora uma disposição pré-capitalista, culturalmente enraizada nos trabalhadores, na qual “trabalhar menos” seria mais atraente do que “ganhar mais”, o que se reflete na ponderação “quanto preciso trabalhar por dia para ganhar o suficiente para cobrir minhas necessidades?” em contraste ao questionamento “quanto posso ganhar por dia, se trabalhar o máximo possível?”.

A racionalidade econômica representou, assim, uma subversão no modo de vida, nos valores, nos costumes, nas relações sociais e na relação com o tempo e a natureza, deslocando o espaço devotado à atividade produtiva enquanto “um aspecto da vida” para o “meio para ganhar a vida”. A “racionalização econômica do trabalho venceu, portanto, a resistência das antigas ideias de liberdade e autonomia existenciais” ( Gorz, 2003Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. , p. 31). Nesse sentido, “o tempo de trabalho e o tempo de viver foram desconectados um do outro; o trabalho, suas ferramentas, seus produtos adquiriram uma realidade separada do trabalhador e diziam agora respeito a decisões estranhas a ele” ( Gorz, 2003Gorz, A. (2003). Metamorfoses do trabalho: crítica da razão econômica. São Paulo, SP: Annablume. , p. 30).

Tempo de trabalho, poder e controle

Michel Foucault, filósofo, professor e psicólogo francês, também explorou os processos racionalizadores presentes nas sociedades modernas ocidentais. O autor caracterizou a racionalidade enquanto instância que regula a conduta humana, de onde depreende-se sua estreita relação com a noção de poder ( Freire, 2019Freire, A. T. F. (2019). Michel Foucault e o problema da racionalidade. Revista Inter-Legere, 2(24), 193-216. doi:10.21680/1982-1662.2019v2n24ID16214 ). A abordagem foucaultiana concebe o poder como um conjunto de práticas sociais historicamente construído. Para Foucault (2013), essas práticas operam/atuam dissolvidas em uma teia/estrutura de relações sociais. Nelas, dispositivos de controle são capilarmente distribuídos e exercem poder de forma difusa e assimétrica, ora mais explícita, ora mais sutilmente, buscando o que o autor chamou de docilização dos corpos.

Segundo Foucault (2013)Foucault, M. (2013). Microfísica do poder. São Paulo, SP: Graal. , as relações de poder engendram formas de governo de si e dos outros. Os mecanismos de dominação subjacentes a tais relações exercem controle por meio do que o autor conceitua como discursos de verdade, como oratórias profissionais, enunciados científicos, ideologias dominantes, normas, regras, crenças e/ou costumes compartilhados, entre outras pregações consideradas legítimas ( Foucault, 2010Foucault, M. (2010). A ordem do discurso. São Paulo, SP: Loyola. ). Esses discursos operam modificando posturas, adequando comportamentos, reproduzindo certas condutas, influenciando ideias ou, como o autor aponta, assujeitando/docilizando os corpos a sofisticados mecanismos de controle.

No âmbito dos estudos organizacionais, a noção de controle é vista majoritariamente sob uma perspectiva funcionalista, com o objetivo de garantir e aperfeiçoar o sistema organizacional ( Martins, 2006Martins, F. R. (2006). Controle: perspectivas de análise na teoria das organizações. Cadernos EBAPE.BR, 4(1), 1-14. doi:10.1590/S1679-39512006000100008 ). Igualmente, o poder costuma ser abordado sob o viés weberiano da racionalidade instrumental, atrelado à capacidade dos indivíduos de atingirem determinados objetivos externos ( Fleming & Spicer, 2014Fleming, P., Spicer, A. (2014) Power in management and organization science. The Academy of Management Annals, 8(1), 237-298. doi:10.1080/19416520.2014.875671 ). Todavia, ambas as concepções são insuficientes para explicar a complexidade das organizações e das relações nelas estabelecidas (Faria, 2004a).

Reconhecendo a pertinência de outras abordagens, neste artigo emprega-se a concepção presente na economia política do poder (EPP) (Faria, 2004a, 2004b). Para a EPP, o poder é uma práxis que se fundamenta (a) na interação entre sujeitos coletivos e suas complexas e controversas relações, e (b) na capacidade de mobilização e realização de interesses objetivos e subjetivos. O poder é sempre relacional porque não é um atributo dos indivíduos, mas sim uma manifestação presente nas relações entre eles e que, portanto, só pode ser exercido em uma coletividade (Faria, 2004a). Sob a ótica da EPP, o controle é a base máxima de dominação nas organizações, buscando legitimar e perpetuar as relações de poder em três níveis interdependentes: (a) econômico, relativo às relações e aos processos de trabalho e de produção; (b) político-ideológico, relacionado a ideias, normas e institucionalização das relações de produção que conferem legitimidade às ações; e (c) psicossocial, que diz respeito às relações entre os sujeitos, de forma individual ou coletiva. Este último é dividido em sete categorias: físico, normativo, finalístico, compartilhado ou participativo, simbólico-imaginário, por vínculos e por sedução monopolista (Faria, 2004b).

As concepções e contradições inerentes ao tempo de trabalho e de não trabalho estão no centro das relações de poder. Elas representam exemplos emblemáticos de adoção de mecanismos sutis e sedutores de controle nas organizações, afinal “o controle do tempo de trabalho é também o controle do trabalho” ( Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 , p. 56). Nesse sentido, o controle do tempo, como um elemento da racionalidade econômica, constitui um ordenamento social presente nas relações de poder que busca disciplinar o corpo e a mente dos trabalhadores ( Harvey, 1992)Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna. São Paulo, SP: Edições Loyola. .

Sob essa perspectiva, Decca (1982)Decca, E. S. (1982). O nascimento das fábricas. São Paulo, SP: Brasiliense. , ao considerar a fábrica uma esfera disciplinadora do trabalho, destaca a “introjeção de um relógio moral no coração de cada trabalhador” (p. 10), já a partir do século XVII, antes que quaisquer inovações tecnológicas estivessem disseminadas. Segundo o autor, esse relógio moral anunciava a ascensão do controle social ancorado na autodisciplina e na crítica à ociosidade. Investigando a história do controle social do corpo, Foucault (2002)Foucault, M. (2002). Conferência V. In M. Foucault, A verdade e as formas jurídicas (pp. 103-126). Rio de Janeiro, RJ: Nau. afirma que se até o século XVIII o corpo dos indivíduos é marcado essencialmente como superfície de suplícios e castigos, a partir do século XIX, ele se submete a reformulações, convertendo-se em um receptáculo de novas aptidões que o qualifiquem como corpo apto a trabalhar. É nesse contexto que os discursos produzidos acerca da positividade do trabalho se tornam uma das formas primordiais para o exercício do poder.

Avançando um pouco mais, o binômio taylorismo-fordismo reconfigurou a organização do trabalho industrial ao impor um novo disciplinamento temporal e espacial por meio do controle e padronização de tempos e movimentos ( Harvey, 1992Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna. São Paulo, SP: Edições Loyola. ). Contudo, se no limiar da sociedade industrial o controle se exercia predominantemente a partir do domínio físico do corpo, do espaço e do ato de trabalhar, a partir da era da acumulação flexível, a perspectiva de controle extrapolou essa dimensão e se difundiu por meio de elementos mais sofisticados e simbólicos, de forma que os trabalhadores muitas vezes sequer percebam sua existência ( Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 ; Harvey, 1992)Harvey, D. (1992). Condição pós-moderna. São Paulo, SP: Edições Loyola. . Emerge, com isso, o chamado poder gerencialista, no qual os trabalhadores são cooptados e envolvidos pela ideologia manipulatória do management e suas pregações: produtividade, cultura de desempenho, e responsabilização/gestão de si mesmo como o único meio para obtenção do sucesso, sob o discurso falacioso de maior liberdade e autonomia no trabalho ( Gaulejac, 2007)Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo, SP: Ideias e Letras. .

O poder gerencialista preocupa-se menos com o controle dos corpos e mais com a mobilização psíquica investida nas relações de poder. Busca-se engajar os trabalhadores a empregarem o máximo de tempo e esforços a serviço dos objetivos da empresa. A “repressão é substituída pela sedução, a imposição pela adesão e a obediência pelo reconhecimento" ( Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo, SP: Ideias e Letras. , p. 109). Molda-se, assim, a construção da subjetividade dos indivíduos, de forma que quanto menos perceptível tal dinâmica operar, mais indelével será a sujeição a esses sofisticados dispositivos de controle ( Foucault, 2013)Foucault, M. (2013). Microfísica do poder. São Paulo, SP: Graal. . Compreender a difusão desses elementos é a primeira finalidade da EPP (Faria, 2004b), visando esclarecer como as instâncias “ocultas (que se operam nos bastidores organizacionais, nas relações subjetivas e no inconsciente individual) e as manifestas (inclusive e especialmente as referentes ao regramento e às estruturas)” configuram as formas de controle organizacional ( Faria, 2014, pFaria, J. H. (2014). Economia política do poder em estudos organizacionais. Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 65-112. doi:10.25113/farol.v1i1.2581
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, p. 82).

Ainda que notadamente escassos, estudos críticos têm demonstrado como o tempo de trabalho, inclusive a jornada reduzida, instrumentaliza mecanismos de poder e controle nas organizações. Kelliher e Anderson (2010)Kelliher, C., Anderson, D. (2010). Doing more with less? Flexible working practices and the intensification of work. Human Relations, 63(1), 83-106. doi:10.1177/0018726709349199
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, por exemplo, em pesquisa com trabalhadores do setor privado britânico, identificaram três fatores que podem levar à intensificação do trabalho em um contexto de jornada reduzida. O primeiro ocorre quando não há redução da demanda de trabalho juntamente à redução da jornada. No segundo, o fato de trabalhar menos horas diárias/semanais pode levar os trabalhadores a se sentirem menos cansados e estressados e, indiretamente, reverter essa energia e disposição adicional em prol do aumento da intensidade do trabalho. O último aspecto diz respeito à reciprocidade dos trabalhadores, que podem aumentar seus esforços laborais como forma de agradecimento ao empregador pela possibilidade de atuação em jornada reduzida. De modo semelhante, Nascimento et al. (2016)Nascimento, R. P., Damasceno, L. C. M., Neves, D. R. (2016). Between reward and suffering: The bank workers’ view of the flexibility discourse. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 17(4), 15-38. doi:10.1590/1678-69712016/administracao.v17n4p13-37 analisaram como o discurso e as práticas de flexibilização podem ser utilizados como forma de controle sobre trabalhadores bancários, levando-os à intensificação do trabalho e à submissão às pressões organizacionais.

Para os propósitos desta pesquisa, entende-se, conforme apontado por Faria (2014b), que os estudos organizacionais devem se dedicar às questões pertinentes ao poder e ao controle como forma de compreender a própria existência e as finalidades das organizações. Neste artigo, procura-se discutir e oferecer novas contribuições teórico-empíricas ao articular os campos temáticos críticos do tempo de trabalho e das relações de poder a um campo empírico complexo e controverso. A ênfase recai sobre os significados que os indivíduos atribuem à forma peculiar de implementação da jornada reduzida em seu cotidiano. Assim, questiona-se: como uma política de redução de jornada de trabalho pode ser concebida e interpretada no contexto organizacional?

Procedimentos metodológicos

Esta pesquisa apresenta um estudo de caso único, de abordagem qualitativa, descritiva, exploratória e construtivista ( Stake, 1998Stake, R. E. (1998). Case studies. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), Strategies of qualitative inquiry (pp. 445-454). Thousand Oaks: Sage Publications Inc. ). A escolha por essa abordagem justifica-se, primeiramente, pelas características do fenômeno (a jornada reduzida de trinta horas semanais) no contexto investigado (IFE), que assume a caracterização de uma concessão administrativa, e não de um direito conquistado pelos trabalhadores. Em segundo lugar, justifica-se pelo interesse de compreender essa realidade em particular e, a partir dela, construir conhecimento. Entende-se que esse contexto empírico exige a adoção de uma postura hermenêutica-compreensiva e de um posicionamento crítico-reflexivo que busca, a partir do entendimento dos múltiplos significados atribuídos pelos participantes, questionar e desvelar as contradições, os sentidos e as implicações de um fenômeno que, embora seja historicamente concebido como objeto de luta da classe trabalhadora, pode engendrar outras manifestações no contexto organizacional.

Caracterização do caso: a instituição e a jornada reduzida

O estudo de caso foi realizado em uma unidade (câmpus) de uma IFE brasileira. Assim como nas demais IFEs, na instituição há duas categorias principais de servidores públicos: professores e TAEs. No momento da coleta dos dados, trabalhavam no câmpus 36 TAEs e 65 professores efetivos. Os TAEs são servidores responsáveis por um conjunto variado de tarefas e obrigações que, a depender do cargo ocupado, abrangem desde atividades rotineiras de suporte administrativo e educacional, até funções de gestão e atividades especializadas que exigem formação em nível superior, como psicólogo, pedagogo, contador, entre outros.

Quanto à jornada de trabalho de trinta horas semanais, embora se trate de uma medida legalmente prevista desde 1995 por meio do Decreto nº 1.590 (1995), sua implementação na instituição ocorreu somente em 2013. Conforme pesquisa documental, no momento da coleta dos dados, suas principais características e regras eram: (a) os servidores poderiam trabalhar seis horas diárias, revezando-se em turnos; (b) ausência de redução salarial; (c) os setores em que esses servidores trabalham deveriam permanecer abertos para atendimento ao público por, no mínimo, doze horas ininterruptas; (d) todos os TAEs poderiam aderir à redução, exceto os ocupantes de cargos de gestão; e (e) sua concessão era discricionária, mediante autorização do reitor e dos diretores-gerais de cada campus .

Coleta e análise dos dados

Conforme a abordagem proposta por Stake (1998)Stake, R. E. (1998). Case studies. In N. K. Denzin & Y. S. Lincoln (Eds.), Strategies of qualitative inquiry (pp. 445-454). Thousand Oaks: Sage Publications Inc. , três fontes de evidências foram utilizadas para coleta dos dados: observação, entrevistas e pesquisa documental.

A observação participante foi realizada em três etapas por meio da participação ativa em campo de um dos pesquisadores. A primeira (fevereiro a março de 2019) configurou-se em uma aproximação inicial com a finalidade de identificar aspectos gerais presentes no contexto empírico, como condições e modos de organização do trabalho. Posteriormente, entre maio e agosto de 2019, a observação compreendeu aspectos diretamente relacionados à problemática investigada, como cumprimento das normas estabelecidas pelo regulamento da jornada reduzida, demandas de trabalho, divisões de tarefas, além de interações formais e informais entre os trabalhadores. Por fim, simultaneamente à realização das entrevistas, foi efetivada uma última etapa de observação, visando obter indícios e exemplos adicionais e corroborar os resultados alcançados.

A pesquisa documental foi desenvolvida a partir de documentos públicos, como leis e decretos sancionados pelo Governo Federal, além de documentos internos emitidos pela instituição pesquisada, como portarias, resoluções, atas de reuniões, memorandos, ofícios e publicações em seu site oficial. Esses documentos também subsidiaram a realização das entrevistas e, posteriormente, a análise dos dados, especialmente na compreensão das características e regras da jornada reduzida e de seu processo histórico de implementação.

As entrevistas, realizadas entre agosto e início de outubro de 2019, foram o principal método de coleta de dados primários. Foram entrevistados, individualmente, 18 servidores pertencentes a dois grupos: (a) onze TAEs que atuavam em jornada reduzida de trinta horas semanais; e (b) sete gestores que atuavam em jornada convencional de quarenta horas, conforme Tabela 1 . Ressalta-se que os participantes foram escolhidos com base em alguns critérios objetivos de representatividade, como gênero, tempo de serviço na instituição (incluindo tanto servidores novatos quanto veteranos), diferentes setores de atuação e diferentes formações acadêmicas. A intenção foi incluir trabalhadores que abrangessem toda a diversidade institucional e que pudessem contribuir com múltiplas visões sobre o tema.

Tabela 1
Caracterização dos participantes

Para condução das entrevistas, foi elaborado um roteiro semiestruturado por meio de uma abordagem indutiva, a partir das observações feitas em campo. Tal roteiro contemplou questões relacionadas ao (a) contexto de trabalho: incluindo a demanda de tarefas, modos de organização e divisão do trabalho e relações socioprofissionais; e à (b) redução da jornada de trabalho: compreendendo suas características, sua implementação, suas implicações para a instituição e para os servidores (tanto pessoal quanto profissional) e especialmente os significados atribuídos pelos entrevistados, tendo em vista seu contexto de trabalho.

Os participantes foram informados sobre os propósitos da pesquisa e foi solicitado, formalmente, seu consentimento. Como forma de registro, todas as entrevistas foram gravadas, totalizando, aproximadamente, doze horas de gravação. O quantitativo de entrevistas não foi fixado previamente, mas sim definido ao longo da coleta de dados, por meio do critério de “saturação teórica”. Em termos práticos, quando o conteúdo das falas dos participantes começou a se repetir demasiadamente, acrescentando poucos elementos novos/discrepantes e que justificassem, teoricamente, a efetivação de outras entrevistas, optou-se pela finalização da coleta.

Os dados coletados foram interpretados por meio do modelo indutivo proposto por Gioia, Corley e Hamilton (2013). Trata-se de abordagem adaptada de grounded theory , com o objetivo de constituir um processo sucessivo e integrativo de construção de categorias analíticas indutivas.

Inicialmente, foi realizada a transcrição integral de todas as entrevistas e sua exploração por meio da leitura exaustiva e repetitiva de cada uma das falas, amparada em repetidas escutas dos áudios, no referencial teórico, nos documentos e nos registros efetuados ao longo das entrevistas e das observações. As falas dos entrevistados foram codificadas a partir de nomenclaturas atribuídas diretamente pelos pesquisadores. Em uma nova rodada de análise, esses códigos foram refinados e reanalisados, perfazendo um total de 25, agrupados em um conjunto de “temas de primeira ordem”, representando evidências primárias que caracterizam o conteúdo das falas dos entrevistados e dos documentos consultados. Posteriormente, tais temas foram agrupados em sete “temas de segunda ordem”, que reúnem grupos de elementos com características comuns e que possibilitam uma melhor descrição, abstração e explicação do fenômeno investigado. Por fim, esses temas foram reunidos em três dimensões agregadas em função de sua proximidade empírica e sua contraposição à teoria consultada. Todas as etapas analíticas foram realizadas manualmente pelos pesquisadores, como forma de proporcionar maior aproximação aos dados. Todavia, contou-se com o apoio da ferramenta Excel para facilitar o processo de codificação inicial.

Resultados

A partir da análise dos dados, foram construídas três categorias que representam as configurações distintas, porém inter-relacionadas, que a jornada reduzida assumiu no contexto organizacional: (a) instrumento político; (b) instrumento de gestão; e (c) instrumento de controle, conforme apresentado na Figura 1 .

Figura 1
Visão geral dos resultados

A jornada reduzida como instrumento político

A primeira concepção da jornada reduzida se consolidou a partir dos motivos identificados junto aos participantes sobre a decisão da concessão da jornada de trinta horas pela IFE após tantos anos. O principal aspecto mencionado foi que a medida visaria atender a um interesse político:

Foi uma promessa de campanha do reitor, estava lá no folder dele as trinta horas. Ele deixou muito claro que iria cumprir . . . E tinha que cumprir, porque todo mundo que votou nele, de técnico, era por conta disso, porque era a única proposta para os técnicos. (GES 04)

O receio [de perder a jornada reduzida] vem já nesse contexto: quando terminar o mandato [do reitor da ocasião] vai vir um outro, e o outro vai dar continuidade? Já que isso não é um direito, então, é esse o receio, por ter sido algo político, né? (TAE 01)

Na verdade, eles concedem [a redução ] por conta dos jogos políticos, visando uma eleição: “toma aí umas migalhinhas e aí vocês ficam felizes e param [de reclamar] ”. (TAE 07)

Esse aspecto político associado à jornada reduzida pode ser compreendido a partir de sua característica principal: a redução para trinta horas semanais somente ocorre a critério do dirigente máximo do órgão (Decreto nº 1.590, 1995). Nesse sentido, é possível traçar um panorama histórico de sua implementação. A partir de 2010, conforme relatos dos entrevistados, iniciou-se na instituição um grande movimento dos servidores TAEs em prol da implementação da medida, com o argumento de que proporcionaria maior qualidade de vida aos trabalhadores e melhores serviços prestados pela instituição. Além disso, representaria uma forma de isonomia entre as IFEs, uma vez que a jornada reduzida já existia em outras instituições. Esse movimento culminou, em 2012, durante o processo eleitoral para escolha dos dirigentes da instituição, no fato de quase todos os candidatos terem proposto em suas campanhas a implementação da jornada de trinta horas. No ano seguinte, o candidato eleito autorizou que os TAEs passassem a usufruir de tal benefício.

Ano após ano, e posteriormente em novas eleições, a manutenção da jornada reduzida se tornou promessa cativa entre todos os candidatos/dirigentes, embora os servidores tivessem a percepção de que, na verdade, a alta gestão da instituição não era favorável a ela:

Qualquer candidato a reitor ou diretor que se declare abertamente contrário às trinta horas não ganha [a eleição] por parte dos técnicos. (GES 03)

Eles dizem que são favoráveis pra ganhar voto, mas na verdade não gostam. (GES 04)

Tem gestores que são contra, que entendem a redução como um aumento salarial, né? Porque o seu salário não mudou, mas você trabalha menos horas. É como se você tivesse recebido um aumento salarial, então isso é usado como uma moeda de troca. (GES 02)

Embora seja um processo legítimo e democrático de escolha dos dirigentes, nota-se como uma reivindicação dos servidores foi apropriada para atender a “fins eleitoreiros” (GES 06).

A jornada reduzida como instrumento de gestão

Como instrumento de gestão, a jornada reduzida assumiu duas condições inter-relacionadas: (a) proporcionar melhor equilíbrio entre trabalho e vida pessoal; e (b) aumentar a produtividade e o desempenho dos servidores. Dessa forma, foi possível caracterizá-la como uma política de gestão que, em teoria, proporcionaria benefícios mútuos à instituição e aos servidores.

Com relação à instituição, o benefício mais apontado foi justamente aquele que se configurou na justificativa formal para concessão da jornada de trinta horas: a ampliação do horário de atendimento ao público (sobretudo os alunos). A partir dela, havia servidores em atividade durante todos os períodos de funcionamento da IFE (manhã, tarde e noite), o que não acontecia anteriormente. Ainda nesse aspecto, verificou-se uma melhor organização dos horários de trabalho dos servidores, que se revezavam em turnos de seis horas diárias.

Outro benefício apontado, especialmente pelos gestores, foi a melhora no desempenho dos servidores, partindo da premissa de que eles se sentiam mais felizes e satisfeitos com a redução de sua carga horária e, assim, estavam mais engajados e produtivos no trabalho:

A gente nota que, até pela questão do horário menor, o servidor tem que dar uma resposta mais rápida . . . Ele não vai poder deixar [uma tarefa] esperando por muito mais tempo, por um período longo. Melhora a produtividade do servidor. (GES 06)

Quanto às implicações aos servidores, a mais apontada foi o aumento do tempo livre para seus afazeres pessoais. Foram feitas menções (a) aos cuidados com a saúde; (b) à possibilidade de estudar (tanto em cursos de educação formal, sobretudo pós-graduação, quanto na preparação para outros concursos públicos); (c) à prática de atividades físicas, culturais e de lazer; e (d) à possibilidade de dedicar mais tempo à família, conforme indicaram alguns relatos:

Pra mim, o mais importante das trinta horas na minha vida particular é eu poder estar com a minha filha de manhã, eu acordar e não ter que deixá-la na cama, ela acordar com uma pessoa estranha. (TAE 09)

Trabalhar menos te dá a oportunidade pra você fazer outras coisas, ter um momento de lazer, um momento pra você também se dedicar aos estudos, fazer uma academia, uma caminhada, praticar um esporte. (TAE 10)

A vida do servidor não pode se resumir apenas ao trabalho, né? Então ele, o servidor, adoece, o servidor tem filho, é por meio dessa redução que ele vai ter um pouquinho mais de qualidade de vida, no dia a dia mesmo. (TAE 07)

Finalmente, como destacado na Figura 1 , a possibilidade de maior tempo livre leva à percepção de que os trabalhadores estavam (a) mais motivados; (b) mais felizes com o trabalho; (c) menos estressados; (d) menos cansados; e (e) com maior qualidade de vida.

A jornada reduzida como instrumento de controle

Como última categoria analítica, a jornada reduzida assumiu a condição de um instrumento de controle organizacional. Essa caracterização ocorreu, inicialmente, porque sua implementação significou uma ampla mudança nos processos organizacionais e de trabalho. Isso levou a instituição a adotar/aperfeiçoar seus mecanismos de controle para verificar se os servidores estavam sendo assíduos e pontuais no cumprimento de sua jornada diária e garantir que a redução para trinta horas semanais não prejudicaria as atividades e os objetivos institucionais.

Entre esses mecanismos estavam: (a) impossibilidade de os setores interromperem seu atendimento, mesmo que para serviços internos; (b) obrigatoriedade do registro da frequência por meio de equipamentos eletrônicos; (c) exigência de avaliações periódicas da jornada reduzida, inclusive pelos alunos, docentes e comunidade externa à instituição, com possibilidade de cancelamento da redução em caso de baixa avaliação; e (d) exigência de criação de comissões de acompanhamento/fiscalização da jornada (a nomenclatura varia conforme o posicionamento crítico do entrevistado). Embora não se trate de mecanismos atípicos de controle do trabalho, os participantes apontaram que sua utilização na instituição surgiu como novidade e resultou, em alguns casos, em conflitos com os demais servidores (chefias e/ou docentes), que permaneciam sujeitos a regras mais simples de controle de seu tempo de trabalho:

O coordenador do setor pode até trabalhar quarenta horas, mas tem mais flexibilidade, porque quem trabalha trinta horas tem que bater o ponto na entrada e saída [do expediente] . O coordenador, não, pode chegar a hora que quiser e ir embora a hora que quiser, pode fazer o horário de almoço que quiser, pois só bate o ponto uma vez. (TAE 11)

A docente foi reclamar de mim pra minha chefia imediata [porque não estava no setor] : “onde eu estava que eu não estava na sala?”. Eu tinha deixado um aviso: “estou em tal lugar”. Mas pelo fato de não ter servidor naquele momento, ela foi reclamar de mim e aí minha chefia veio me dar uma chamada por conta disso. (TAE 07)

Os discursos dos entrevistados revelaram, ainda, que a redução da jornada cumpria uma finalidade menos objetiva e manifesta: a adaptação dos comportamentos individuais aos comportamentos do grupo e aos comportamentos culturalmente desejados/impostos pela instituição. A maior parte dos entrevistados (incluindo gestores) demonstrou preocupação e temor quanto à possibilidade de perda da jornada reduzida, principalmente devido às influências negativas no tempo de não trabalho (notadamente no tempo livre). Isso os levava à adoção de posturas e comportamentos de autocontrole e controle dos pares, aspectos que já pareciam naturalizados no cotidiano organizacional, conforme discursos:

Perder a redução iria atrapalhar muito, ia ser meio que limitado o meu estudo, o meu tempo. Tanto minha vida particular quanto meu desempenho no trabalho. Vai sobrar pouco tempo pra pesquisa, pra ficar em casa com a família. (TAE 03)

[A jornada reduzida] na verdade é uma forma de controle, te deram, é algo cedido, mas tem muitas regras. Por isso todo mundo tem que fazer a sua parte para que a gente não perca essa concessão, então tem esse “complô”, um vigiar o outro, cumprir o trabalho e os horários . . . E por ser uma concessão, a gente fica com esse receio, por isso que tem que aproveitar bem, porque a qualquer momento pode ser cortada, e dá medo. (TAE 01)

Ao procurar compreender as causas desse temor, os entrevistados revelaram que mais do que algo natural (um desejo de não perder algo que entendiam ter conquistado), tratava-se de um medo fomentado mediante demonstrações de poder e de ameaças constantes (termo utilizado repetidamente pelos participantes). Essa condição foi aqui denominada de “gestão pelo medo”, conforme apresentado na Figura 1 . Por meio dessas ameaças, buscava-se garantir o cumprimento das tarefas, o atendimento às demandas institucionais, o cumprimento de horários, o trabalho além da jornada formal, entre outros aspectos, conforme relatos:

Eu acho que tem sempre aquela conotação de um favor que está sendo concedido e temporário, né? Eu acho que não tem nada pior pra um ser humano de que ameaça, falar “olha, uma hora ou outra isso vai cair”. Então, a todo tempo a gente vem sendo lembrado de que a gente faz trinta horas, mas não é direito nosso. (TAE 04)

Virou meio que uma barganha: “olha, se vocês não fizerem tal coisa, a gente [alta gestão] vai tirar as trinta horas”. (TAE 08)

Eu já vi acontecer ameaças do tipo: “o fulano não tá cumprindo as regras das trinta horas, vamos tirar de todo mundo”. Indiretamente, é uma maneira de pressionar para que todos os servidores cobrem o que não está fazendo, ou vai tirar de todo mundo. Infelizmente isso acontece. (GES 07)

Essa dinâmica também se expressava nas conflituosas relações entre TAEs e docentes, complexificando ainda mais a operacionalização das relações de poder no contexto organizacional. Constatou-se que as relações entre esses dois atores são conturbadas, especialmente na percepção dos entrevistados, pela dominância exercida pelos docentes, que se funda no status proporcionado por suas insígnias acadêmicas (mestrado e doutorado). A redução da jornada para trinta horas, nesse sentido, era vista como o único benefício que os TAEs conquistaram em comparação a eles. Na percepção dos entrevistados, esse fato potencializava os conflitos e as dinâmicas de vigilância e controle exercidas pelos docentes:

Enquanto os professores são seres muito mais desejantes, nós, técnicos, a única coisa que temos são as trinta horas . . . E aí vem essa violência psicológica, um benefício que pode tirar a qualquer momento, já tendo aquela visão que a gente é sempre subordinado a qualquer tipo de poder, do poder do professorado, da gestão. (TAE 07)

Os docentes detestam a jornada reduzida. Até as avaliações que tem, que a comissão apresenta pra gente, é de que é negativo o posicionamento deles. Falam que os setores não atendiam suficientemente, isso é obviamente uma crítica às trinta horas. (GES 04)

Considerando esse contexto, em que a jornada reduzida se tornou uma “conquista” exclusiva dos TAEs, difundiu-se entre os servidores um sentimento de gratidão à instituição e aos seus gestores. Direta e/ou indiretamente, essa gratidão acarretava aumento de seus esforços laborais e extensão da jornada diária para o tempo fora do trabalho, como forma de demonstrar à instituição que a redução da jornada era positiva e, portanto, deveria ser mantida:

[As trinta horas] me fazem mais produtivo porque é uma concessão, e por isso eu me sinto mais motivado a realizar tudo aquilo que eu faria em quarenta horas em trinta. (TAE 08)

O que me atraiu para a instituição foi exatamente a jornada reduzida. É um atrativo, um motivador, que não tem em todo lugar. (TAE 01)

Eu sou favorável [à jornada reduzida] porque eu vejo resultado, porque quem faz as trinta horas eu vejo força de vontade, eu vejo sempre disposto a ajudar, coisa que quem faz quarenta horas eu vejo alguns não tão motivados quanto quem faz trinta. (GES 04)

Corroborando tais aspectos, os entrevistados relataram que a redução da jornada não foi acompanhada de qualquer redução da carga de trabalho. Na realidade, houve um gradativo aumento das demandas, fruto, principalmente: (a) do crescimento da instituição nos últimos anos; (b) da descentralização de tarefas da reitoria da instituição para cada uma de suas unidades; e (c) da falta de servidores TAEs. Esse último aspecto ainda é agravado por uma alta rotatividade de pessoal, pois é comum que os servidores deixem o cargo após aprovação em outro concurso público ou mesmo para atuação na iniciativa privada.

Discussão

Inicialmente, destaca-se que a jornada reduzida acarretou inúmeros benefícios, tanto para a instituição quanto para os trabalhadores, em especial na obtenção de mais tempo livre para dedicação a atividades pessoais. Esses benefícios foram os principais responsáveis pela ampla aceitação e defesa da jornada de trinta horas, mesmo entre aqueles que exerciam cargo de gestão e não podiam usufruí-la. Esse aspecto vai ao encontro de estudos que indicam que a redução da jornada e outras formas mais flexíveis de organização do tempo de trabalho promovem melhor equilíbrio entre a vida laboral e a pessoal ( Bayazit & Bayazit, 2019Bayazit, Z. E., Bayazit, M. (2019). How do flexible work arrangements alleviate work-family-conflict? The roles of flexibility i-deals and family-supportive cultures. The International Journal of Human Resource Management, 30(3), 405-435. doi:10.1080/09585192.2017.1278615 ; Brauner, Wöhrmann, Frank, & Michel, 2019).

Tais resultados também são semelhantes ao de estudos que analisaram a relação entre redução da jornada de trabalho e qualidade de vida dos trabalhadores, inclusive naqueles que contemplaram os servidores TAEs. No trabalho de Colnago (2012)Colnago, A. T. A. (2012). Flexibilização da jornada de trabalho em uma instituição federal de ensino superior: análise da percepção de diferentes atores envolvidos no processo (Dissertação de mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF. , com os TAEs da Universidade de Brasília (UnB), a melhora da qualidade de vida foi o fator mais apontado pelos entrevistados como resultado positivo da jornada reduzida. Evidências semelhantes foram obtidas por Sousa (2018)Sousa, S. A. (2018). A flexibilização da jornada e seu impacto nas atividades de técnicos administrativos da UFRN (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN. , na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Contudo, é necessário apontar uma crítica, não aos resultados de tais pesquisas, mas sim à tendência de inferir que a redução da jornada de trabalho acarreta automaticamente maior qualidade de vida, deixando à margem dois aspectos essenciais. O primeiro é que uma melhora na qualidade de vida fora do trabalho não significa necessariamente uma melhora na qualidade de vida no trabalho (na qual se inserem, entre outros, as condições, as características e os sentidos do trabalho). O segundo é que a luta por melhores trabalhos deve ser paralela à luta pela jornada reduzida, visando à conquista de uma atividade emancipadora e que possibilite aos indivíduos se desenvolverem profissional, psicológica, financeira e emocionalmente ( Antunes, 2018Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo. ; Carneiro & Ferreira, 2007Carneiro, T. L., Ferreira, M. C. (2007). Redução de jornada melhora a qualidade de vida no trabalho? A experiência de uma organização pública brasileira. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 7(1), 131-158. Recuperado de https://bit.ly/3OWErN9
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; Faria & Ramos, 2014Faria, J. H., Ramos, C. L. (2014). Tempo dedicado ao trabalho e tempo livre: os processos sócio-históricos de construção do tempo de trabalho. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 15(4), 47-74. doi:10.1590/1678-69712014/administracao.v15n4p47-74 ; Mocelin, 2011)Mocelin, D. G. (2011). Redução da jornada de trabalho e qualidade dos empregos: entre o discurso, a teoria e a realidade. Revista de Sociologia e Política, 19(38), 101-119. doi:10.1590/s0104-44782011000100007 .

Nesse sentido, consoante a uma postura crítico-reflexiva, compreender a operacionalização da jornada reduzida no contexto organizacional requer compreender aquilo que está além de sua aparência fenomênica. Dessa forma, baseado nos pressupostos da EPP (Faria, 2004a, 2004b), é possível afirmar que a jornada reduzida faz parte de um complexo jogo de interesses, disputas simbólicas e contradições: um jogo de poder. A Figura 2 oferece uma síntese analítica desse contexto.

Figura 2
Síntese analítica das concepções da jornada reduzida

O que se denomina jogo de poder diz respeito a um emaranhado de instrumentos e operações de gestão e controle incorporados em uma política de redução de jornada de trabalho, tanto de forma sutil quanto explícita. Esses instrumentos constituem um alicerce eficaz para exercício de poder na instituição, inclusive para a própria adesão dos trabalhadores a esse jogo. Em primeiro lugar, nota-se que a jornada reduzida, inicialmente uma reivindicação dos trabalhadores, sofreu um processo de apropriação para atender a uma finalidade político-eleitoral. Em segundo, sua implementação se deu, essencialmente, como um instrumento de gestão que, como apontado, foi eficiente em proporcionar benefícios mútuos aos servidores e à instituição.

Contudo, assim como esta pesquisa, outros estudos têm evidenciado como o trabalho dos servidores TAEs é marcado por altas demandas e condições estruturais, organizacionais e culturais não ideais, tornando-o intensificado e exigindo a adoção de mecanismos de defesa para resistir às pressões cotidianas ( Loureiro et al., 2018Loureiro, T., Mendes, G. H. S., Silva, E. P. (2018). Estigma, invisibilidade e intensificação do trabalho: estratégias de enfrentamento do sofrimento pelos assistentes em administração. Trabalho, Educação e Saúde, 16(2), 703-728. doi:10.1590/1981-7746-sol00111 ; Bedin, Fontes, & Braatz, 2020; Tessarini & Saltorato, 2021)Tessarini, G., Jr., & Saltorato, P. (2021). Organização do trabalho dos servidores técnico-administrativos em uma instituição federal de ensino: uma abordagem sobre carreira, tarefas e relações interpessoais. Cadernos EBAPE.BR, 19, 811-823. doi:10.1590/1679-395120200236 . Esses aspectos geram prejuízos à saúde dos servidores e à própria qualidade do serviço prestado pela IFE ( Coutinho et al., 2011Coutinho, M. C., Diogo, M. F., Joaquim, E. P. (2011). Cotidiano e saúde de servidores vinculados ao setor de manutenção em uma universidade pública. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 36(124), 227-237. doi:10.1590/s0303-76572011000200006 ; Garcia, 2017)Garcia, Y. M. (2017). Qualidade de vida no trabalho segundo a percepção dos técnicos administrativos do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE). Organizações em Contexto, 13(26), 195-214. doi:10.15603/1982-8756/roc.v13n26p195-214 .

Pode-se apontar, inclusive, que o trabalho não deixou de ser cansativo ou estressante, pelo contrário, foi mais intensificado, visto que enquanto se diminuiu a jornada formal, aumentaram-se as tarefas e as cobranças por melhores resultados. Logo, é possível compreender como a jornada reduzida emergiu enquanto medida paliativa que, embora não cumpra a função de solucionar todas as dificuldades presentes na vida cotidiana, busca tornar mais agradável a relação dos trabalhadores com o seu próprio trabalho ( Carneiro & Ferreira, 2007Carneiro, T. L., Ferreira, M. C. (2007). Redução de jornada melhora a qualidade de vida no trabalho? A experiência de uma organização pública brasileira. Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 7(1), 131-158. Recuperado de https://bit.ly/3OWErN9
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). Não por acaso, os servidores mantinham um forte temor quanto à possibilidade de perda da concessão e é justamente nesse ponto que esta pesquisa oferece sua principal contribuição.

Os achados aqui discutidos permitem compreender como se constituíam as relações de poder na instituição e como a jornada reduzida mobilizava diferentes instâncias e atores: os próprios TAEs, os docentes e a gestão. Tais relações estavam ancoradas, de diferentes formas, nas três concepções que a jornada reduzida assumiu no contexto organizacional. Essa caracterização instrumentaliza traços de uma concepção foucaultiana do poder por meio da estruturação social que envolve esses agentes. Para Foucault (2010), os indivíduos são produtos de complexas relações de poder e dinâmicas de objetivação que ocorrem em redes que os capturam, dividem e classificam.

Por um lado, os TAEs percebiam-se reféns de uma rotina em que mecanismos de vigilância assumiam desde as formas mais sutis até as mais violentas, simbolicamente falando ( Bourdieu, 1989Bourdieu, P. (1989). Social space and symbolic power. Sociological Theory, 7(1), 14-25. doi:10.2307/202060 ). Por outro, os gestores passaram, visando aos seus interesses, a incorporar a implementação e manutenção da medida em seus discursos e ações. Assim, ao analisar os benefícios apontados nas falas dos entrevistados, verifica-se que essas percepções estão ancoradas a um sistema de racionalizações incorporado por cada grupo ( Foucault, 2013Foucault, M. (2013). Microfísica do poder. São Paulo, SP: Graal. ). Tais racionalizações manifestam-se diferenciando os grupos entre si e fixando-os a determinadas posições e papéis dentro da hierarquia organizacional, às quais se associam modos de conduta possíveis e esperados. A partir dessa cisão, as relações de poder são contínua e circularmente exercidas, legitimadas, mantidas estáveis ou potencializadas.

Os discursos dos entrevistados revelaram que a jornada reduzida se transformou em um instrumento de controle, institucionalizado por uma espécie de política de “gestão pelo medo”. A alta direção da IFE, ao ter o poder de conceder e cancelar a jornada de trinta horas, direta e/ou indiretamente apropriou-se do medo de cada trabalhador para, assim como apontado por Kelliher e Anderson (2010)Kelliher, C., Anderson, D. (2010). Doing more with less? Flexible working practices and the intensification of work. Human Relations, 63(1), 83-106. doi:10.1177/0018726709349199
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, instigá-lo a trabalhar de forma mais atenta e comprometida, aumentar a intensidade de seu trabalho, permanecer disponível fora da instituição e controlar a si e aos colegas. Seja na forma de uma “comissão de fiscalização” ou mesmo na “vigilância informal” que os trabalhadores exerciam uns sobre os outros para que as regras da jornada reduzida fossem cumpridas, o que ocorria, na prática, é o que Faria (2004b) denomina de controle compartilhado ou participativo: uma busca por envolver os sujeitos no processo decisório ou no próprio sistema de comando para que se integrem totalmente à organização e aos seus imperativos. Como aponta Gaulejac (2007)Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo, SP: Ideias e Letras. , nas organizações contemporâneas, o controle e a vigilância incidem “de preferência sobre os resultados do trabalho do que sobre suas modalidades. Se a liberdade aumenta em relação às tarefas a cumprir, ela encontra a contrapartida em uma exigência drástica sobre os resultados” (p. 110). Analogamente, essa foi a situação encontrada na instituição. Os trabalhadores ganharam a “liberdade” do tempo livre, mas com ela uma maior exigência quanto ao cumprimento das tarefas e ao desempenho do trabalho.

A concepção da jornada reduzida como instrumento de controle também se dava, conforme definido por Faria (2004b), por meio de mecanismos simbólico-imaginários e por vínculos afetivos. Não se evidenciou uma real intenção de a instituição cancelar a jornada reduzida; tal ação não seria necessária e nem interessante (considerando seu caráter político). Na prática, bastava demonstrar que essa possibilidade existia para que os servidores trabalhassem mais e aderissem ao “jogo”. As constantes ameaças relatadas pelos entrevistados são um exemplo emblemático desse aspecto e constituem um aparato de coerção que representa a base máxima de poder. Embora, nesse caso, o poder seja exercido de forma explícita, sua eficácia é permeada por um processo de adesão imaginária e, ao mesmo tempo, pela “instauração de aparelhos de intervenção que funcionam pela ameaça do uso da força e por demonstrações de domínio dos aparatos coercitivos sem necessidade de utilizá-los” (Faria, 2004b, p. 130).

Paralelamente, está o sentimento de gratidão reverberado pelos TAEs – também relacionado à questão política. Essa gratidão se expressava de duas principais formas: (a) a cada quatro anos, no momento de votar e escolher os dirigentes; e (b) diariamente, trabalhando mais, seja dentro da instituição (durante as seis horas diárias), seja fora dela (informalmente). É um paradoxo: agradecer com mais trabalho pela oportunidade de trabalhar menos. Esses achados dialogam com pesquisas efetivadas em diferentes contextos organizacionais. Kelliher e Anderson (2010)Kelliher, C., Anderson, D. (2010). Doing more with less? Flexible working practices and the intensification of work. Human Relations, 63(1), 83-106. doi:10.1177/0018726709349199
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destacaram a reciprocidade dos trabalhadores como uma forma de elevar seus esforços de trabalho em agradecimento ao empregador pela possibilidade de atuar em jornada reduzida. Já Nascimento et al. (2016)Nascimento, R. P., Damasceno, L. C. M., Neves, D. R. (2016). Between reward and suffering: The bank workers’ view of the flexibility discourse. RAM – Revista de Administração Mackenzie, 17(4), 15-38. doi:10.1590/1678-69712016/administracao.v17n4p13-37 apontaram como trabalhadores sob arranjos mais flexíveis de trabalho podem se submeter mais facilmente às pressões e aos imperativos organizacionais. Essas evidências demonstram, como apontado por Fracalanza (2001)Fracalanza, P. S. (2001). Desafios à gestão em um quadro de redução da jornada de trabalho. RAUSP Management Journal, 36(4), 33-43. Recuperado de https://bit.ly/3OY9dp5
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, que os trabalhadores podem estar mais dispostos a aceitar mudanças em suas rotinas de trabalho em um contexto de jornada reduzida.

Ainda considerando a concepção da jornada reduzida como um instrumento de controle, ganham relevância as distinções entre os grupos de servidores docentes e TAEs. As relações entre as duas categorias engendram uma dinâmica de poder própria, manifestada na forma de conflitos ( Tessarini & Saltorato, 2021Tessarini, G., Jr., & Saltorato, P. (2021). Organização do trabalho dos servidores técnico-administrativos em uma instituição federal de ensino: uma abordagem sobre carreira, tarefas e relações interpessoais. Cadernos EBAPE.BR, 19, 811-823. doi:10.1590/1679-395120200236 ), invisibilidade ( Loureiro et al., 2018)Loureiro, T., Mendes, G. H. S., Silva, E. P. (2018). Estigma, invisibilidade e intensificação do trabalho: estratégias de enfrentamento do sofrimento pelos assistentes em administração. Trabalho, Educação e Saúde, 16(2), 703-728. doi:10.1590/1981-7746-sol00111 e pela crença de inferioridade dos últimos em relação aos primeiros ( Nunes et al., 2018)Nunes, T. S., Santos, L. S., Tolfo, S. R. (2018). Percepção dos servidores públicos sobre as crenças presentes no cotidiano da Universidade Federal de Santa Catarina: práticas, comportamentos e cultura na instituição. Gestão e Sociedade, 12(33), 2480-2507. doi:10.21171/ges.v12i33.2367 . Essa já intrincada dinâmica ganhou novos contornos com a jornada reduzida, quando denúncias e reclamações se legitimaram como mecanismos de controle, inclusive entre os próprios TAEs, instaurando uma cultura de vigilância de todos sobre todos. Enquanto a vigilância entre os TAEs visava à manutenção da jornada reduzida, coibindo situações que pudessem macular o mérito dessa conquista, o uso desse expediente por docentes, gestores e usuários externos (ainda que raro) poderia atuar em direção oposta.

Ao conceber a circularidade e a transitoriedade dos mecanismos de poder, Foucault reconhece uma constante disputa e rearranjo (a) das subjetividades, enquanto produto das relações de poder e dominação; (b) dos discursos de verdade e; (c) das estratégias de resistência ( Braghin, 2017Braghin, S. (2017). O poder em relação: revisitando o conceito de poder em Michel Foucault, Norbert Elias e Pierre Bourdieu. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais, 10(1), 155-167. doi:10.18468/pracs.2017v10n1.p155-167 ). Dessa forma, por um lado, enquanto instrumento de gestão, o sistema de classificações vigente opera diferenciando os TAEs dos docentes em termos salariais, culturais, direitos, atribuições, cargas horárias e funções. Por outro lado, diante da concepção da jornada reduzida como instrumento político, os TAEs encontram-se em uma posição na qual é possível empregar seus interesses e suas relações sociais (e de poder) diante dos rumos políticos da IFE. Da mesma forma que vigorava a ameaça do cancelamento da jornada reduzida por parte da gestão, aos TAEs cabia reordenar suas estratégias de resistência e enfrentamento em sentido contrário.

Considerando o conjunto dessas evidências, a caracterização da jornada reduzida como um instrumento político, de gestão e de controle amplia as discussões sobre relações de poder nas organizações, especialmente sob a dimensão do tempo de trabalho. A apropriação e transformação de um objeto de luta da classe trabalhadora em um instrumento de gestão e poder representa uma espécie de “submissão livremente consentida” ( Gaulejac, 2007Gaulejac, V. (2007). Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. São Paulo, SP: Ideias e Letras. , p. 122). Isso porque se os trabalhadores têm uma de suas principais reivindicações atendidas, como não manifestar gratidão? Como enfrentar ou mesmo questionar os imperativos organizacionais? Como não aderir a um jogo em que, aparentemente, todos ganham? Ainda que reconheçam as dificuldades presentes na organização do trabalho e embora as finalidades política e de controle estejam presentes na jornada reduzida, parece natural que os trabalhadores minimizem tais aspectos na obtenção do que julgam ser o único benefício conquistado. Eis aqui a racionalização: um processo mental de cálculo meio-fim que leva em consideração os benefícios da jornada reduzida no tempo fora do trabalho em contraposição às adversidades presentes no tempo de trabalho. Nesse contexto, a fala de uma das entrevistadas, ao sintetizar a sua avaliação sobre a jornada reduzida, define a tônica do cotidiano vivenciado: “ está ruim com ela, mas é muito pior sem ela” (TAE 07).

Evidencia-se, segundo a perspectiva foucaultiana, que o poder resulta de uma relação de forças, não podendo ser explicado exclusivamente por meio de sua vertente repressiva. A submissão em uma relação de poder não é somente uma sujeição repressiva, mas também envolve o desejo de agir conforme os desígnios do poder que opera sobre si (Foucault, 2002). Nesse sentido, busca-se, por meio de um aparato de mobilização psíquica, a adesão voluntária dos trabalhadores a um poder paradoxal. De um lado, por meio do exercício desse poder, institui-se um processo de canalização da gratidão, engajamento, comprometimento, aspirações, medos e angústias dos servidores em prol dos objetivos organizacionais e políticos. De outro lado, e ao mesmo tempo, os detentores de tal poder concedem uma benesse tão almejada pelos trabalhadores que os leva, cada vez mais, a legitimarem e intensificarem esse mesmo processo. Novamente sob a ótica da EPP, os instrumentos de poder e controle incorporados em tal benesse asseguram, mais do que o controle sobre horários e tarefas, que o “jogo” continue em funcionamento, que os servidores permaneçam gratos, que continuem se dedicando à instituição “de corpo e alma” e acreditando em uma realidade ilusória de que a jornada reduzida é um prêmio que lhes foi concedido como símbolo de afeto pelos seus bons serviços (Faria, 2004b, p. 121).

Esta pesquisa não se trata de uma condenação à instituição. É esperado e desejado que as políticas de gestão de pessoas fomentem motivação, comprometimento e produtividade. Entretanto, tal aspecto deve ser acompanhado de uma consciência coletiva e organizacional sobre as finalidades dessas políticas. A bandeira da luta pela redução da jornada de trabalho não deve ser reduzida à luta pela diminuição das horas trabalhadas. É necessária e inadiável uma luta pela reconfiguração de toda a atividade (re)produtiva, isto é: pela melhora das condições laborais; por um trabalho estruturante, emancipado e autônomo; por um tempo de trabalho e de não trabalho verdadeiramente livre; e pela consolidação de uma atividade que permita ao indivíduo se desenvolver em suas múltiplas dimensões (sociais, psicológicas, emocionais etc.) por meio (mas não somente) do trabalho. Do contrário, assim como alguns entrevistados se referiram à jornada de trinta horas, as políticas e práticas de gestão correm o risco de se tornarem “moeda de troca, barganha ou migalhinhas” .

Conclusão

Este artigo explorou as diferentes concepções que uma política de redução de jornada de trabalho assumiu em um determinado contexto organizacional. Partindo de reflexões weberianas sobre a racionalização da vida e de sua dimensão temporal e do encadeamento de diferentes concepções sobre poder nas organizações, em particular a abordagem foucaultiana e da economia política do poder, buscou-se compreender como se operacionaliza a dominação exercida pelos mecanismos de controle do tempo de trabalho, bem como a constante sofisticação desses mecanismos e o corolário da sujeição dos trabalhadores a eles.

Como contribuição teórica, a pesquisa amplia as percepções e discussões sobre o fenômeno da jornada de trabalho reduzida ao inserir elementos de análise, até então, pouco considerados, como a possibilidade de sua apropriação em um instrumento político e de posterior transformação em um instrumento de gestão e de controle sobre os trabalhadores. Essa concepção, ainda que advinda de um estudo de caso único, contribui para novas reflexões sobre a temática, especialmente sob uma abordagem crítico-interpretativa. Ao desvelar instrumentos de gestão e controle incorporados em uma política de redução de jornada de trabalho, a pesquisa vai além da aparência imediata do fenômeno para fazer emergir sua essência e suas contradições, levando à compreensão das dinâmicas de poder.

É evidente que a redução da jornada de trabalho apresenta implicações positivas para a instituição e para os trabalhadores e pode contribuir para o equilíbrio entre as demandas da vida pessoal e profissional; aspectos já amplamente apontados na literatura. Contudo, é necessário que os estudos sobre o tema incorporem em seus objetos de investigação que, dependendo da forma como é concebida e implementada, uma política de jornada reduzida pode até mesmo agravar más condições de trabalho e servir como uma estratégia de poder que atende a interesses não tão óbvios e que contradizem os belos discursos que intencionam a promoção de qualidade de vida.

Quanto às limitações deste estudo, não foi possível efetuar uma comparação entre o cotidiano de trabalho antes e após a implementação da jornada reduzida, o que permitiria melhor compreensão das mudanças e impactos da medida. Além disso, a coleta foi realizada em somente uma das unidades da instituição e, portanto, pode ter sofrido influências de particularidades dessa unidade que podem não estar presentes no restante da IFE. Complementarmente, os achados se limitam ao período analisado, logo, não incorporam mudanças vivenciadas no cotidiano organizacional após o término da coleta de dados.

A partir desta pesquisa é possível sugerir alguns estudos futuros, como a análise comparativa de características e impactos da redução da jornada de trabalho em outras instituições públicas e/ou privadas. Elementos adicionais podem ser considerados, como produtividade, bem-estar, engajamento, gênero e outros, por meio de uma perspectiva crítica e transdisciplinar. Por fim, o trabalho dos servidores técnico-administrativos, embora de extrema relevância para as IFEs, ainda não é objeto de estudo em proporção semelhante aos dos docentes. Novas pesquisas, considerando as múltiplas características dessa atividade, tanto em termos de políticas de gestão quanto ao nível das tarefas e dos sentidos e significados do trabalho, podem contribuir para oferecer uma visão mais ampla sobre o cotidiano vivenciado por esses profissionais.

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Editora Associada: Claudia Antonello

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2021
  • Aceito
    07 Maio 2022
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