Resumo
A pesquisa objetivou refletir sobre modelos de gestão universitária, na perspectiva de caracterizar a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) como um projeto inovador de educação superior e compreender a “novidade” atrelada ao discurso normativo no âmbito da sua missão institucional. Além disso, objetivou-se sugerir insights para a edificação de um modelo de gestão universitária que comporte as contradições entre as lógicas de mercado versus pertinência social. Para tanto, a pesquisa documental percorreu o discurso normativo com suporte em análise léxica e de conteúdo, com auxílio dos softwares Iramuteq e Atlas Ti. Com base na análise dos clusters concepção de formação, missão institucional e organização institucional derivou-se que a “novidade” atrelada ao discurso normativo do projeto está no sentido de sua perspectiva epistemológica, que considera a “decolonialidade” epistêmica na constituição de possibilidades acadêmico-formativas integradoras da diversidade cultural em respeito à pluralidade de saberes. Com isso, surgiram insights no sentido de uma concepção de gestão universitária a partir de uma leitura epistemológica alternativa e que compreenda a multidimensionalidade do ser humano e dos sistemas sociais (como crítica à instrumentalidade econômica), assim como a multidimensionalidade do fenômeno educativo.
Palavras-chave: Epistemologias do Sul; Decolonialidade; Diversidade Cultural; Multidimensionalidade do Fenômeno Educativo
Abstract
This paper analyzes university management models to characterize the University of International Integration of Lusophone-Afro-Brazilian (Unilab) as an innovative project of higher education and to understand the “novelty” linked to normative discourse within the scope of its institutional mission. In addition, it suggests insights for the construction of a university management model that includes the contradictions between market logic and social relevance. For such, our documentary research included normative discourse based on lexical and content analysis using Iramuteq and Atlas Ti. Based on the analysis of conceptual clusterings, institutional mission and institutional organization, we derived that the “novelty” associated with the normative discourse of the project was caused by its epistemological perspective that considers epistemic “decoloniality” in the constitution of academic-formative possibilities integrating cultural diversity with respect to the plurality of knowledge. This brings insights towards a conception of university management from an alternative epistemological interpretation that encompasses the multidimensionality of human beings and social systems (as a critique of economic instrumentality) as well as the multidimensionality of the educational phenomenon.
Keywords: Epistemologies of the South; Decoloniality; Cultural Diversity; Multidimensionality of Education
Introdução
Na defesa de que a gestão universitária representa um campo específico de estudo e intervenção da teoria organizacional (Sander, 2007a), argumenta-se sobre o fato de que as universidades possuem características típicas que as diferenciam de outras organizações sociais (Solino, 1996). Tal argumento se contrapõe à ideia de que o conceito de organização assume fórmulas generalizadas, disponíveis a qualquer configuração institucional (Garcia & Carlotto, 2013).
Em virtude de tal especificidade, Garcia e Carlotto (2013) defendem a gestão universitária como área de estudo no âmbito das Ciências Sociais, amparada por uma investigação interdisciplinar e que ocupa posição entre o terreno da Administração e o da Educação. Nesse caso, tanto assume concepções administrativo-organizacionais - apropriando-se de conhecimentos práticos sobre a organização, seu funcionamento e sua gestão - como adota a leitura da área educacional, que compreende a academia relacionada à sua implicação com a sociedade, por ser uma instituição social (Colossi, 2015).
Em referência a Baldridge, Curtis, Ecker e Riley (1978), Solino (1996) divisa características capazes de distinguir a organização universitária de outras instituições sociais, no caso: ambiguidade de objetivos; clientela diferenciada e diversa, que reivindica participação no processo decisório por meio de órgãos colegiados representativos; tecnologia complexa, em virtude da utilização de métodos, técnicas e instrumentos diferentes para atender a uma clientela difusa; em função do profissionalismo de seus membros para a realização das atividades, gera autonomia e dupla lealdade (à instituição e à associação profissional ao qual pertencem); e vulnerabilidade às pressões, haja vista que suas ações são influenciadas por mudanças externas e internas, o que reflete em sua gestão.
Solino (1996), ao considerar a existência de uma estrutura decisória fragmentada e descentralizada, diluída em órgãos colegiados, entende a gestão universitária como fazendo uso de critérios políticos para realizar suas atividades, o que influi na dificuldade de estabelecer parâmetros avaliativos. Com isso, a instituição fica vulnerável a sustentar-se em padrões de desempenho do âmbito competitivo-mercadológico, o que a faz aproximar-se do modelo empresarial, amparado pela óptica do lucro (Amarante, Crubellate, & Meyer, 2017) e distanciar-se de sua pertinência social voltada à lógica solidária (Spatti, Serafim, & Dias, 2016).
Do mais, alinhada à perspectiva da produção do sistema capitalista, tem-se uma gestão produzida em função de ranques internacionais, quando a excelência é obtida pela produtividade e atendimento de interesses econômicos (Meneghel & Amaral, 2016), associados à ideia de “serviços”, que acentua a mercantilização da educação superior (Sguissardi, 2015; Pérez & Solanas, 2015). Nesse caso, a capacidade de ensinar é secundária, haja vista a importância que a produtividade acadêmica assumiu nesse sistema (Rasmussem, 2015).
Assim, uma ideia de organização universitária distinta de outros modelos organizacionais impõe tensões, a exemplo do que Garcia e Carlotto (2013) identificaram na implantação da USP-Leste, um novo campus da Universidade de São Paulo (USP), demonstrando a complexidade de decisões sobre a estrutura e a dimensão pedagógica a serem adotadas na feitura da “organização” universitária. Ante a superação desse tensionamento, Garcia e Carlotto (2013) asseveram a necessidade de seu enfrentamento, por meio da consideração de estruturas e práticas acadêmicas que sejam, ao mesmo tempo, atentas às características particulares de suas atividades e sensíveis à identidade histórica da instituição.
Para tanto, aborda-se como objeto de investigação a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), por apresentar um projeto institucional com características inovadoras e ousadas, no sentido de uma proposta intercultural que vise à solidariedade baseada em diálogo de saberes (Bocchini, 2017; Carvalho Filho, Ipiranga, & Faria, 2017), sendo vocacionada ao estabelecimento de vínculos estreitos com a realidade local por meio do ensino, da pesquisa, da extensão e da internacionalização (Gomes & Vieira, 2013).
Considerando o crescente interesse das ciências humanas e sociais em relação aos países de língua portuguesa, Lanza, Rodrigues e Curto (2016) reforçam que a Unilab é reconhecida como um instrumento para fortalecer parcerias no âmbito da educação, bem como estreitar relações culturais e técnicas entre Brasil e África. Além disso, das 63 universidades públicas federais que constam no Cadastro e-MEC1 de instituições e cursos de educação superior (conforme consulta realizada no dia 27 de junho de 2017), apenas a Unilab e a Universidade de Integração Internacional Latino-Americana (Unila) possuem como objetivos institucionais a integração internacional.
Tem-se, portanto, um modelo institucional alternativo ao modelo tradicional (Bocchini, 2017; Carvalho Filho et al., 2017), reflexo de um contexto social de considerável reivindicação por mudanças, incluindo a superação do racismo (Heleno, 2014), que se alinha ao campo internacional numa perspectiva de contracorrente, haja vista direcionar-se oposta à tendência mundial (cooperação acadêmica com continentes e países do Sul) (Meneghel & Amaral, 2016), sendo esta sustentada por padronizações para o desempenho com base em indicadores desenvolvidos por agências internacionais de origem europeia e norte-americana (Norte) (Meneghel & Amaral, 2016). Assim, no horizonte de modelos de desenvolvimento, o equilíbrio entre a solidariedade e a pertinência social, em um contexto universitário que reflete o desenvolvimento econômico-social de base capitalista, é, talvez, o principal desafio dessa instituição (Meneghel, Nogueira, & Vieira, 2017).
Com base nesse contexto, há necessidade de superar vínculos tradicionalmente instituídos entre a academia e a sociedade (Meneghel et al., 2017) e, assim, permitir que o ensino superior em geral, e a Unilab em particular, assuma valores democráticos superadores da lógica corporativa (Garcia & Carlotto, 2013). Especificamente, a pesquisa objetiva caracterizar a Unilab como um projeto inovador de educação superior, compreender a “novidade” atrelada ao discurso normativo no âmbito da sua missão institucional e sugerir insights para edificação de um modelo de gestão universitária que comporte as contradições entre a lógica mercado versus pertinência social.
A historicidade, mudança e inovação da universidade: alguns apontamentos
Historicamente, a gestão universitária é reflexo de alguns modelos consolidados na Europa, quando surgiram as primeiras instituições na Itália e na França, no século XI, que difundiram a educação superior escolástica, próxima à igreja, cuja atuação se pautava na formação de uma elite pensante (Almeida Filho, 2007; Souza, Santos, Lobo, Melo, & Soares, 2013).
A universidade das artes-cultura, de cunho enciclopédico, surgiu por pressão da formação literária e artística da elite burguesa, inspirada pela onda iluminista. O modelo científico-tecnológico aflorou em razão do desenvolvimento tecnológico, quando a demanda se voltou para a formação de conhecimentos atentos ao regime produtivo que se propagou com a Revolução Industrial. Esse último aparecimento foi “fortemente apoiado e controlado por programas estratégicos governamentais, por meio de agências financiadoras estabelecidas durante a Segunda Grande Guerra” (Almeida Filho, 2007, p. 188). Esse modelo, adotado por Oxford e Cambridge e difundido para colônias nos Estados Unidos da América, assumiu a perspectiva liberal, baseado em um ideal de caráter e de personalidade a ser afirmado do processo educativo (Caraça, Conceição, & Heitor, 1996; Souza et al., 2013).
Os séculos XIX e XX marcam a trajetória do contexto político e econômico da Europa Central, no âmbito da edificação dos Estados em torno das ruínas dos antigos impérios (Laus, 2012). Além disso, em consequência da criação de institutos na Europa destinados a pesquisas na área, difundiu-se a exportação de modelos para países periféricos. São exemplos o Institute of International Education (IIE), nos Estados Unidos; a Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD), na Alemanha; o British Council, na Inglaterra; e o International Committee on Intellectual Co-Operation, pela Liga das Nações (Duarte, Castro, Cruz, & Miura, 2012).
No âmbito brasileiro, assim como nos demais países considerados periféricos, os modelos difundidos nas realidades europeia e ianque adentraram a constituição das universidades (Duarte et al., 2012), perpetuando a lógica de migração dos países do Norte às nações do Sul (Ghilherme & Santamaria, 2015). Essa exportação difunde concepções específicas desses modelos no modo de pensar o ensino superior nos países periféricos, o que se revela nas políticas adotadas (Sander, 2007a, 2007b). Além disso, reflete em contradições naturais à adesão a modelos importados, distantes da realidade contextual dos países receptores, o que também aprofunda um tipo de dependência: a acadêmica (Beigel, 2014a, 2014b, 2016). Alinhado a esse discurso, Santos (1989, 2010) debate sobre crises de legitimidade, institucionalidade e hegemonia, contextualizadas em virtude da lógica competitiva que sustenta os modelos corporativos, mercantis. A essas crises somam-se contestações sociais e políticas, refletindo na discussão da necessidade de novos modelos da gestão, alinhados à resistência, à superação da ideia liberal (Sander, 2007a).
Com a noção de crise-mudança, que “não se caracteriza pela relação causa-efeito, nessa ordem, pois assim como crises provocam mudanças; o inverso também é real, isto é, mudanças ou a necessidade delas desencadeiam crises” (Colossi, 2015, p. 73), situa-se o exame da gestão universitária sob a óptica de um modelo superador da lógica competitiva em atenção à pertinência social. Com isso, impõe-se desencadear processos de re-institucionalização, “referenciado[s] ao público e ao social, em vez de organização mercantil voltada ao interesse de lucro sem fim” (Dias Sobrinho, 2010, p. 1244). Sendo assim, a gestão universitária se exprime como “parte integrante de um processo mais amplo de crescimento e desenvolvimento organizacional, cuja direção busca encontrar ou reencontrar, continuamente, o seu ponto de estabilidade” (Colossi, 2015, p. 81). Portanto, depreende-se que discutir a lógica corporativa no âmbito da gestão universitária é o principal dilema a ser enfrentado pelo sistema universitário no século XXI (Almeida Filho, 2007).
Do lado da mudança, a gestão universitária, em adesão à sua pertinência social, tem como horizonte a ideia de renovação, expressada por Almeida Filho (2007) quando exprime que a academia precisa avançar além do desenvolvimento moral, cultural e econômico, para alcançar verdadeiro desenvolvimento social sustentável “por meio de propostas realistas e ações concretas firmemente comprometida com a paz, a equidade e a justiça social” (p. 192).
No escopo de novas propostas para o desenvolvimento de um modelo de universidade que se pode apoiar em concepções alternativas de epistemologia e de sociedade, reflete-se sobre quais perspectivas dessas propostas podem caracterizar inovações. Para tanto, Messina (2001) ilustra que esse conceito é, por vezes, conferido na conformação de novas roupagens a estruturas conservadoras, legitimando políticas e práticas sob um novo discurso (estratégias de ajustes de regulação social), o discurso do enfrentamento de problemas complexos que envolvem a seara educacional (demandas dos atores). Tal abordagem, para a autora, decorre do caráter aberto da concepção, podendo receber variadas significações, em geral, pela óptica da administração, sob a vertente de Schumpeter (1998), que situa concepção sobre inovação no escopo do desenvolvimento econômico, abrigando a ideia da mudança espontânea e descontínua, emergindo de dentro do sistema capitalista, por forças internas na busca de realização de novas combinações (novo bem, novo método de produção, novo mercado, nova fonte de oferta, nova organização).
Sob a concepção da ciência moderna e pela sua vertente instrumental do que tange à racionalidade que opera do sentido da organização social (Ramos, 1989), a leitura da inovação no campo educacional “segue a lógica entre o custo e o benefício . . . como seu correlato de descuido e destruição” (Messina, 2001, p. 227). É com essa concepção de ciência que a Administração difunde a ideia de inovação como subjacente à lógica desse desenvolvimento (Barney & Hesterly, 2004; Zawislak, 2004), na perspectiva de constituição teórica que dê suporte à compressão do desenvolvimento econômico, concedendo esteio às organizações na busca de vantagem competitiva e apreensão de lucro.
Com isso, Messina (2001) contrasta qual a ideia que se pode ter com inovação, à medida em que esta pode “tornar possível que os sujeitos e as instituições sejam mais donos de si, mas plenos e autônomos em sua maneira de ser, fazer, pensar ou, ao contrário, os submete a uma lógica única, aceita como natural” (p. 277). Parte dessa contraposição está na defesa de que o campo educacional não deve ser regulado pela lógica de mercado e que a gestão desse sistema deve se inspirar em outras leituras administrativas.
Partindo em defesa de uma inovação problematizada sob o ângulo de para quem é pensada, Messina (2001) avança em sua discussão quando interroga como se pode pensar “o novo em sistemas de relações que se distanciem da divisão centro e periferia” (p. 228). Nesse sentido, mesmo que a inovação se dê em sua conceituação no âmbito de uma racionalidade instrumental, há que se relativizar sua condução quando incorpora outra lógica de racionalidade, particularmente a que se debruça por pensar e agir no âmbito da ética e da diversidade cultural.
Com isso, a relação entre mudança que caracterize inovação pode-se ver florescida no âmbito da configuração de “espaços que promovem a possibilidade do pensar e do fazer reflexivos, em que as inovações teriam a oportunidade de apresentar-se, contradizer e transformar” (Messina, 2001, p. 232). É no contexto de espaços habilitadores de uma democracia do conhecimento que se pretende fazer convergir propostas inovadoras ante a manifestação de uma racionalidade atenta à constituição multidimensional e plural do homem, assentadas em interações humanas simbólicas e dialógicas. Nesse sentido, pode-se incorporar a ideia de inovação social como sendo aquela que emerge de “uma ‘ação coletiva’, na qual vários agentes públicos e privados participam, e enfatizam o papel dos atores da sociedade civil como protagonistas” (Andion, Ronconi, Moraes, Gonçalvez, & Serafin, 2017, p. 371) e, assim, “criam novos repertórios de argumentos e de práticas, e também de novos públicos” (p. 383).
Em contexto contra-hegemônico, a inovação social da universidade reclama que tal ação coletiva seja empreendida em consonância “à inclusão de novos públicos, territórios e saberes, outrora marginalizados da educação superior” (Tavares, 2017, p. 100), uma “universidade de raízes populares, voltada para a sociedade, com forte marca territorial” (Tavares & Romão, 2015, p. 203) e, ainda, fundamentada na “interlocução e integração continuada, efetiva e orgânica da universidade, não só com os movimentos sociais populares, mas com as dimensões de sociodiversidade, etnodiversidade e epistemodiversidade” (Almeida Filho, Benincá, & Coutinho, 2017, p. 54), na edificação de uma educação superior capacitada a “construir sujeitos críticos, ativos e transformadores; de promover a emancipação, a solidariedade, a equidade e o desenvolvimento humano, econômico, tecnológico e social” (p. 54). Com essa ideia, a inovação, como um produto social que articula a ação coletiva, emerge em um contexto público “ inscrita em trajetórias longas de configuração dos problemas públicos” (Andion et al., 2017, p. 380) e “em ‘campos de experiências’ sobre situações problemáticas” (p. 381).
Método
A importância da visão holística sobre a realidade, apreendendo a intensidade do fenômeno sob investigação (a Unilab) como forma de compreender a real proposta impulsora do seu projeto inovador institucional, define a abordagem qualitativa compreensiva da pesquisa (Minayo, 2004, 2014, 2017). Para a composição do corpus da pesquisa, os seguintes documentos institucionais foram selecionados: as diretrizes gerais da Unilab (2010), seu estatuto (versão aprovada pelo conselho superior, Resolução nº 4/2013), o Plano de Desenvolvimento Institucional (PDI) (Unilab, 2015) e o regimento geral (versão aprovada pelo conselho superior, Resolução nº 8/2017). Além desses, tomaram-se algumas entrevistas realizadas em jornais comerciais de grande circulação para ilustrar alguns argumentos tecidos na análise desses documentos.
A análise dos dados documentais, ou documentação (Bardin, 2011) seguiu dois procedimentos. No primeiro, os documentos foram explorados com apoio do software Iramuteq 0.7 alpha 2, que produz distintas classes de palavras por meio da identificação de padrões repetidos estatisticamente nas falas (Kronberger & Wagner, 2004). No segundo, recorreu-se à recomendação de Kronberger e Wagner (2004), no que diz respeito a dar “conteúdo semântico à informação puramente estrutural . . . apoiando-se em outros métodos de análise” (p. 435). Nesse caso, recorreu-se à análise de conteúdo (AC) para, assumindo as classes geradas pelo Iramuteq como categorias, para posteriormente identificar subcategorias e hierarquias com base numa leitura contextual dos segmentos de texto relacionados a cada classe e, assim, “integrar os diferentes resultados em uma interpretação compreensiva” (p. 439). Assim, o software Atlas/TI, versão 7.5.10, facilitou a formação das categorias para o exame, haja vista que os relatórios produzidos pelos softwares favorecem a análise circular dos dados, ensejando insights durante toda a pesquisa (Bandeira-de-Melo, 2006).
Locus da pesquisa: a Unilab
Anteriormente à criação da Unilab, em 20 de julho de 2010, pela lei nº 12.289, o planejamento de suas diretrizes se deu por uma comissão de implantação, constituída em outubro de 2008 pelo Ministério da Educação (MEC), dando seguimento aos esforços de reestruturação e expansão das universidades federais brasileiras (ReUni) pelo decreto nº 6.096/2007 (Unilab, 2010). Nesse caso, a instituição é reflexo de uma política pública federal que, de 2003 a 2015, criou dezoito instituições federais de ensino superior no Brasil (Unilab, 2015).
Anexa ao projeto de lei aprovado em 13 de abril de 2010 na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, a exposição de motivos (EM) interministerial nº 00165/2008/MP/MEC, de 22 de julho de 2008, em atenção ao Plano Nacional de Educação (PNE) (lei nº 10.172/2001), ressalta que a cooperação a ser realizada pela Unilab deve “ser pautada por princípios éticos-políticos que respeitem mutuamente a associação de parceiros iguais nas relações entre as regiões e os países envolvidos” (Projeto de lei 3.891/2008, p. 6, grifo nosso), com base na missão de “desenvolver uma integração solidária através do conhecimento, fundada no reconhecimento mútuo e na equidade” (p. 6, grifo nosso).
Sob a óptica da EM, a integração solidária se realiza nos planos acadêmico, ético e político. A dimensão cultural é ressaltada ante respeito mútuo, valorização e memória, particularmente dos Estados da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
O presidente da comissão e primeiro reitor da Unilab, professor Paulo Speller (2010-2013), em entrevista concedida à Associação Nacional dos Cursos de Graduação em Administração (Angrad, 2009), define que a Unilab parte de uma “concepção inovadora de cooperação internacional”, estabelecendo parceria com países da CPLP e, ao mesmo tempo, “representa um estratégia de desenvolvimento sustentado no Nordeste brasileiro”, na perspectiva de promover “potencial socioeconômico numa perspectiva sustentada e levando em conta o contexto cultural”. Ademais, exprime que a universidade “rompe radicalmente com experiências neo-coloniais de formação unilateral de jovens oriundos dos países de independência mais recente”, considerando a realidade da diáspora africana, bem como a necessária ênfase a ser dada à “realidade de seus países, para onde deveriam retornar e contribuir para a constituição de países”.
Pela entrevista, nota-se ênfase a dois aspectos que perpassam a proposta da Unilab, em interação com a solidariedade, o desenvolvimento sustentável e a interculturalidade - no caso, a interiorização e a internacionalidade. A primeira reflete a política brasileira no que é pertinente à expansão e democratização do ensino superior, reiteradas pelo PNE 2014-2024, (Unilab, 2015). Já a segunda, por sua vez, é contextualizada como experiência superadora de um histórico neocolonial, com base numa orientação da cooperação Sul-Sul, discussão que se expressa no horizonte das teorizações de Santos (2016).
Nas diretrizes gerais da Unilab, constituídas em documento no ano de 2010, é escrito que a atuação da instituição se pauta pela cooperação do tipo solidária, ao passo que “ela valorizará e apoiará o potencial de colaboração e aprendizagem entre países” (Unilab, 2010, p. 6), “em um ambiente de respeito às distintas identidades, ao pluriculturalismo e à cooperação solidária” (p. 10, grifo nosso). Nesse horizonte, exprime a ideia de “formação de cidadãos com sólido conhecimento técnico, científico e cultural e compromissados com a necessidade de superação das desigualdades sociais e a preservação do meio ambiente” (p. 12, grifo nosso), “com uma perspectiva intercultural, interdisciplinar e crítica” (Diretrizes, 2010, p. 13, grifo nosso), por meio de “uma visão epistemológica coerente com a complexidade dos saberes (formais e informais, científicos e tradicionais)” (p. 13, grifo nosso), adotando “princípios de gestão que assegurem organização e estrutura acadêmica democráticas e integradoras das diversas áreas do conhecimento” (p. 13).
Nas diretrizes, ainda, podem ser registradas passagens importantes, como a ideia de que a Unilab, por meio de cooperação internacional solidária, é “capaz de buscar e compartilhar soluções inovadoras para processos históricos similares” (Unilab, 2010, p. 17), com atenção a recomendações internacionais no que concerne à responsabilidade dos demais países para com a África, a exemplo do que se observa na Conferência Mundial de Educação (ocorrida em 1990); no Fórum Mundial de Dakar (2000); nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, da Organização das Nações Unidas (2000); no Plano de Ação da Segunda Década de Educação em África (2006-2015); na Declaração de Abuja, adotada na Primeira Cúpula América do Sul-África (2006); na Conferência Regional de Educação Superior (2008); na Conferência Africana sobre Educação Superior (2008); e na Conferência Mundial de Educação Superior (2009).
Entretanto, o professor Tomaz Aroldo, reitor pro tempore da Unilab de março de 2015 a outubro de 2016, além de ressaltar a complexidade de administrá-la, refletindo sobre a beleza do projeto, enfatizou dificuldades. Na entrevista, concedida à Assessoria de Comunicação da Unilab (Assecom, 2017) e disponibilizada no site da universidade, o professor Tomaz compreende que a instituição possui um volume de estudantes estrangeiros significativo, o que já a diferencia de outras instituições de ensino superior do Brasil. Além disso, relata como muito expressivas a diversidade cultural e a multiplicidade de abordagens, ressalvando que o desenvolvimento da Unilab deveria se dar em sintonia com a evolução das cidades que a abrigam. Definindo que o cargo de reitor é um cargo político, afirma que sua contribuição no âmbito da institucionalização da universidade, via documentos estruturantes, como PDI, estatuto e regimento, teve que se pautar no diálogo e na participação da comunidade.
A professora Nilma Lino Gomes, reitora pro tempore de 2013 a 2014, em entrevista concedida ao O Povo no dia 25 de maio de 2013, cita que a Unilab “nasce diferente das outras, já nasce com esse caráter de uma determinada forma de internacionalização, que está dentro da ideia da Cooperação Sul-Sul, a Cooperação Solidária Sul-Sul”, sendo, para ela, muito novo no Brasil (Ribeiro, 2013).
Assim, para melhor expressar essas peculiaridades, por meio de um tratamento exploratório dos documentos da instituição, amplia-se a compreensão de pontos argumentados nesse tópico. Distintas técnicas de apreciação desse material conferem ilustrações que facilitam a visão desta pesquisa, no que diz respeito à ideia de um projeto inovador e qual é a “novidade” atrelada ao seu discurso normativo.
Categorização dos documentos institucionais
Com os documentos selecionados para esta etapa da pesquisa (o corpus documental), processou-se análise léxica com cinco unicidades de contexto inicial (UCI), ou seja, cinco documentos. O corpus (as cinco UCI) foi dividido em 711 unidades de contexto elementar (UCE), que são segmentos de texto definidos em função do número de palavras e pontuação, com 25.198 ocorrências de palavras e 2.448 formas (palavras), das quais 1.909 eram ativas (adjetivo, advérbio, substantivo, verbos, formas não comuns) e 528 eram complementares.
A classificação hierárquica descendente (CHD), que realiza o cruzamento de matrizes de segmentos de textos e palavras, reteve 628 UCE, ou seja, 88,33% dos segmentos de texto (corpus). Além disso, identificou três classes (agrupamento constituído pela reunião de UCE que possuem homogeneidade), denominadas nesta pesquisa por clusters (Figura 1).
Pelo dendograma (Figura 1), é possível identificar as relações interclasses e a divisão do corpus pela CHD. Incialmente, a divisão do corpus ensejou dois subcorpus (primeira partição), quando separou os clusters 1 e 3 (Grupo 1) do cluster 2 (Grupo 2). Em seguida, separou os três clusters (segunda partição), quando o Grupo 1 gerou os clusters 1 e 3, e, por isso, considera-se que estes têm relações de proximidade. Ainda se observa, em função decrescente, que o cluster 2 explica 39,01% da variância total das UCE, o cluster 1 explica 35,03% e o cluster 3, 25,96 %.
As palavras mais significativas do cluster 1 reúnem características da internacionalização, ou seja, a prioridade em relação aos países africanos, bem como a representatividade da língua portuguesa. Do mesmo modo, além da internacionalização, estão a ideia do intercâmbio, da integração, do desenvolvimento, da sustentabilidade e da desigualdade. Em relação ao cluster 3, mais próximo do cluster 1, são significativas palavras que aludem à formação acadêmica, relacionadas à aprendizagem, à pesquisa, à extensão e à vivência da formação, ante concepções como trajetória, percurso, diálogo e apoio. O cluster 2, mais distante dos primeiros, contém palavras significativas voltadas para questões institucionais, em relação a documentos (estatuto, regimento), a aspectos normativos (norma, lei, atribuição e termo) e a grupos (colegiado e conselho universitário - Consuni) específicos do contexto deliberativo.
Por meio da análise fatorial de correspondência (AFC) (Figura 2), que realiza o cruzamento da frequência de incidência das palavras com as classes, apresenta-se no plano cartesiano, em quadrantes opostos, três campos semânticos: dois no eixo vertical, formado pelos cluster 1 (plano superior) e 3 (plano inferior), e o terceiro, que se distancia no eixo horizontal, onde o cluster 2 está situado, numa linha divisória em relação às duas primeiras aglomerações de palavras (no plano vertical está no meio dos quadrantes), o que sugere uma relação semântica mais distante e distribuída de maneira não polarizada.
Para melhor apreender os resultados do dendograma (Figura 1) e do plano fatorial (Figura 2), segue-se a recomendação de Nascimento e Menandro (2006), relativa a empreender a combinação da análise lexical com base em estatísticas processadas por softwares, como o Iramuteq, com AC. Assim, a configuração semântica de cada cluster foi associada ao processo de categorização baseado na formação de núcleos de sentido de cada agrupamento de palavras. Para esse processo, os segmentos de textos formaram o ambiente contextual das palavras, cuja leitura conduziu à elaboração de categorias, subcategorias e articulações entre estes com as demais categorias.
A combinação de CHD, AFC e AC reflete na definição dos três clusters em três categorias: missão institucional (cluster 1), organização institucional (cluster 2) e concepção de formação (cluster 3) (Figura 3).
Na delimitação de subcategorias e seus relacionamentos com as categorias, alguns segmentos de texto (referidos a cada palavra significativa de cada cluster) ilustram as principais ideias de cada núcleo de sentido identificado no interior de cada cluster, como pode ser observado no Quadro 1.
Por meio da análise de conteúdo, definiu-se a categoria “missão institucional”, relativa à apreciação dos segmentos de textos do cluster 1. Associada à categoria, considerou-se a formação de quatro subcategorias, à medida que expressaram núcleos de sentidos distintos entre si, mas que convergem com a ideia da categoria. Por um lado, internacionalização e a interiorização traduzem dimensões geográficas essenciais à atuação da Unilab, no caso, um tipo de internacionalização (cooperação Sul-Sul), associado à interiorização do ensino superior, como recomenda o ReUni. A equidade e a sustentabilidade surgem ante a perspectiva da preservação no meio ambiente, da inclusão social, da superação das desigualdades pautadas em políticas públicas. Assim, a universidade é mencionada como referência na promoção desses valores.
A interculturalidade, a cidadania e a democracia expressam elementos alusivos a concepções abrangentes, balizadoras da atuação institucional, como a formação da consciência cidadã, o respeito às questões culturais e a atitude crítica e ética, bem como a solidariedade. A democracia, nessa subcategoria, situa o processo participativo. As parcerias reúnem exemplos de instituições prioritárias às suas formações, bem como exprimem que a ajuda mútua e o estabelecimento de vínculos as circunscrevem.
Em relação ao cluster 3, denominado de concepção de formação, procedeu-se à formação de três subcategorias. Por um lado, tem-se a ideia de que a formação precisa alinhar-se a uma pertinência social, em atenção às demandas sociais, potencializando boas práticas para melhorar as condições de vida das pessoas. De outra maneira, o desenvolvimento de consciência crítica (ou concepção teleológica) indica que a formação precisa ensejar maturidade para o exercício político e a consciência indutora de transformação social. Por fim, o currículo multidimensional expressa conteúdos educacionais específicos, isto é, currículo flexível, trans e interdisciplinar, com transversalidade de enfoques, integração com a sociedade. Nessa subcategoria observa-se a atenção em concepções pedagógicas atreladas à posição crítica em relação à sociedade.
O cluster 2, por sua vez, abrange concepções estruturantes e normativas, necessárias ao seu funcionamento e ao processo de institucionalização. Ocorre, assim, com os documentos que regem as normas cotidianas (estatuto, regimento, plano de desenvolvimento institucional e resoluções) e as principais estruturas deliberativas (conselho superior; reitoria).
Discussão à luz dos documentos
Em relação aos documentos norteadores (as diretrizes, o projeto de lei e a própria lei), são diretivos relativamente à missão da Unilab, particularizada pela cooperação solidária e a interculturalidade, sendo que a questão crítica perpassa esses eixos em orientação de como estes podem ser traduzidos em novas leituras de sociedade.
Na descrição dos três clusters, pode-se observar a sintonia entre dois (1 e 3, pela CDH e AFC) e o distanciamento destes do cluster 2. Este último reúne concepções elementares ao funcionamento da Unilab, o que é para toda nova instituição federal de ensino superior brasileira, considerando que, para todas elas, é requerido um estatuto, um regimento, resoluções, a formação de conselhos deliberativos e planos de ação, a exemplo do PDI. Nesse ponto, a “novidade” está na necessidade de intenso trabalho constitutivo, tempo de dedicação à análise das outras estruturas e apoio de experiências de “universidade” de boa parte de seus membros, seja na condição de estudantes, seja no aporte de conhecimentos sobre gestão, adquiridos em outras instituições de ensino.
Essa “novidade”, embora implique importantes desafios à gestão, corresponde a um trabalho cujos horizontes são traçados por um campo conhecido (ou disponível) àqueles que vão conduzir a institucionalização. Como exemplo, pode-se mencionar o fato de que, em parte, os documentos (resoluções, portarias, ofícios, memorandos) que circundam a vida diária de uma universidade são estruturalmente semelhantes, seja na formalização do conteúdo, seja nos fluxos internos e externos, a fim de atender determinadas demandas. As concepções desse cluster, pois, não conferem distinção da Unilab em relação às demais instituições de ensino superior, embora a peculiarizem em relação a desafios cotidianos implicados no processo de traduzir conhecimentos e experiências em ações concretas.
Por outro lado, os clusters 1 e 3, embora separados pelo tratamento léxico, possuem proximidades semânticas identificadas por CDH e AFC. A análise de conteúdo, realizada com base nos segmentos de textos, confirma o fato de que essa proximidade é extensiva a núcleos de sentido derivados do contexto de cada cluster.
O cluster 1 situa concepções mais genéricas a respeito da missão e da vocação da Unilab. Por um lado, exprime a internacionalização, a cooperação Sul-Sul, especificamente com a CPLP, e a interiorização. Assim, há nos registros documentais duas atuações prioritárias: a interiorização, em virtude de preocupações do governo brasileiro expressas em decreto, o que também é prioridade para outras novas universidades brasileiras; e a internacionalização, sendo que esta, sob determinado ângulo, volta-se especificamente para um processo de cooperação Sul-Sul, representado pela cooperação com países da CPLP. Essa prioridade é específica da Unilab e envolve uma problemática importante - a distância entre os países parceiros e o Brasil, sede da Unilab -, o que torna mais complexa a estruturação da instituição. Além de voltar sua atenção para questões normativas/institucionais, é preciso considerar a distância entre os parceiros e como essa distância é (ou deveria ser) equacionada em relação a orçamento e ações conjuntas.
No âmbito da equidade e da sustentabilidade, há duas observações: a preservação do meio ambiente e a superação das desigualdades (equidade, justiça, inclusão social). Essas concepções evidenciam o fato de que, normativamente, a Unilab foi criada perante uma discussão político-ética específica: a de tornar a sociedade mais sustentável e igualitária, o que implica sua atuação como instituição que intervém na sociedade, transformando-a em um lugar melhor para se viver. Essa intervenção sucede ideias de interculturalidade, cidadania e democracia, elementos estruturantes para outra noção de sociedade. Essas duas subcategorias são representativas para uma ideação específica de academia, a que deve “se fundamentar em” e “fundamentar uma” nova concepção de sociedade (mais sustentável, mais justa), ao passo que a realiza por meio da capacidade crítica do ser humano (potencializando-a) e na sua atitude político-cidadã-ética em relação à sociedade e à diversidade. A formação de parcerias, normativamente, descreve que a instituição precisa se articular com outras variadas organizações (empresas, governo, sociedade civil), sendo as parcerias justificadas em razão da ajuda mútua.
O cluster 3 (concepção de formação) traduz as ideias mais específicas do cluster 1 para o campo formativo, situando-a em três distintas dimensões: no campo social, no âmbito da criticidade e no que se liga ao currículo. Em relação à primeira, a formação que se define nos documentos demonstra que a Unilab deve atentar para demandas/objetivos sociais em seus projetos pedagógicos. Nesse sentido, refletir sobre questões sociais e potencializar práticas alternativas2 capazes de melhorar as condições de vida das pessoas expressa novas possibilidades de atuação profissional, mais comprometidas com uma sociedade a ser transformada por agentes sociais reflexivos e ativos, e não uma sociedade em mudança, distante de possibilidades concretas de intervenção.
Essa reflexão vai ao encontro da criticidade (uma questão teleológica), sendo a ideia de formação documentada fomentadora de atitude proativa e, pelo exercício político, indutora de transformação social. Ante a ideia de que o ensino deve ser uma prática de liberdade e, ao mesmo tempo, que os formandos precisam tomar consciência dos direitos e deveres, tem-se a ideia de a universidade, por meio da formação que desenvolve, mobiliza o desenvolvimento de pessoas comprometidas com um projeto de sociedade a ser constituída. Para tanto, compreende-se, pelos documentos, que a conformação dessa formação requer mudanças em relação aos currículos, à metodologia empregada (com imersão no contexto social, cultural, econômico, político e cultural) e à vivência universitária; portanto, com intensa integração com a sociedade.
Considerações finais
No sentido de caracterizar a Unilab como um projeto inovador de educação superior, bem como compreender a “novidade” atrelada ao discurso normativo no âmbito da sua missão institucional, evidencia-se que documentos institucionais delineiam a caracterização da Unilab como um projeto inovador no sentido de sua perspectiva epistemológica. Assim, considera-se a emergência de debates teórico-políticos que evidenciam a necessidade de se considerar a “decolonialidade” epistêmica na constituição de possibilidades acadêmico-formativas integradoras da diversidade cultural em respeito à pluralidade de saberes. Em decorrência, essa concepção epistemológica se exprime na cooperação Sul-Sul, com suporte em diálogos internacionais com países de língua oficial portuguesa, os “países parceiros”, onde se buscam interações pautadas pelas relações de reciprocidade e solidariedade.
O conjunto normativo analisado, então, reúne elementos críticos na relação da Unilab com a sociedade (Quadro 2) e, por sua vez, ressalta que há peculiaridades da Unilab que a caracterizam como um projeto inovador quando a solidariedade e a interculturalidade parecem refletir a distinção dessa instituição no que concerne às demais academias brasileiras.
A cooperação solidária internacional, portanto, pacifica a ideia de que a novidade institucional está na sua dimensão epistemológica, que a faz desafiadora tanto no que diz respeito à amplitude da pluralidade de saberes envolvida, haja vista o escopo da diversidade cultural que se mostra pela integração de variados países, quanto no que tange à própria afirmação dessa epistemologia em contexto de colonialidade do saber.
É nesse horizonte que surgem insights para edificação de um modelo de gestão universitária que comporte as contradições entre a lógica mercado versus pertinência social. Para tanto, considera-se necessário partir para uma concepção de gestão universitária que situe concepção epistemológica alternativa e compreenda a multidimensionalidade do ser humano e dos sistemas sociais (como crítica à instrumentalidade econômica) e a multidimensionalidade do fenômeno educativo. Um modelo que busque dar respostas às seguintes indagações:
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Que modelo de sociedade pode ser pensada sob a lógica da cooperação internacional solidária?
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Que concepção de ciência pode resultar em diálogo intercultural?
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Qual aporte teórico-metodológico pode instrumentalizar gestores do projeto na superação de seus desafios (rever práticas e processos internos) e mediar a realização de sua missão?
Em adição, essas questões situam reflexões sobre quem são os beneficiários dessa instituição (pessoas ou sociedade?), para qual sociedade ela projeta suas ações (o que e quem se desenvolve no processo?) e para qual modelo de desenvolvimento (competitivo ou solidário?) (Meneghel & Amaral, 2016), caminhando para uma gestão que declare o compromisso com a relevância e a pertinência social marcadas pelo viés da cooperação solidária (Meneghel et al., 2017).
Assim, sob a óptica epistemológica, por sua vez, a Unilab deverá ser capaz de assumir modelos de racionalidade e de epistemologia diversificados, derivados no reconhecimento da riqueza das culturas com objetivo de sustentar o diálogo intercultural numa perspectiva educacional ampliada, integrada e cidadã.
Agradecimentos
À Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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1
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-
2
Podem ser mencionadas, por exemplo, experiências de economia solidária.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2020
Histórico
-
Recebido
05 Jul 2018 -
Aceito
07 Fev 2019