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CONJUNTO MÍNIMO DE DADOS DA ATENÇÃO À SAÚDE (CMD): FUNDAMENTOS, DESENVOLVIMENTO E IMPLEMENTAÇÃO

BRAZILIAN MINIMUN BASIC DATA SET (CMD): FUNDAMENTALS, DEVELOPMENT AND IMPLEMENTATION

RESUMO

O artigo discute a criação do Conjunto Mínimo de Dados da Atenção à Saúde (CMD) no Brasil, um sistema inspirado nos Minimum Basic Data Set (MBDS) internacionais. O objetivo é apresentar uma alternativa para superar as limitações dos sistemas de informação da atenção à saúde existentes no país. A metodologia empregada foi o relato de caso, com o intuito de detalhar os fundamentos e a construção e do CMD. A primeira etapa metodológica consistiu em uma revisão bibliográfica abrangente para entender o contexto teórico e prático dos MBDS. Em seguida, foi realizada uma revisão documental para relatar a construção, instituição e desenvolvimento do CMD. Instituído como um documento público, o CMD coleta dados de todos os estabelecimentos de saúde do país em cada contato assistencial, abrangendo tanto a rede pública quanto a privada. O CMD é parte da Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), permitindo o compartilhamento de registros assistenciais entre diferentes pontos de atenção à saúde. O artigo conclui que o CMD tem o potencial de transformar a prestação de cuidados de saúde no Brasil, fornecendo uma base sólida para a tomada de decisões informada para a população, profissionais de saúde e formuladores de políticas.

Palavras-chave:
Sistemas de Informação em Saúde; Registros Digitais de Saúde; Atenção à Saúde; Registros Públicos de Dados de Cuidados de Saúde; Sistema Único de Saúde (SUS)

ABSTRACT

The article discusses the creation of the Brazilian Minimum Data Set for Health Care (CMD), a system inspired by the international Minimum Basic Data Set (MBDS). The aim is to present an alternative to overcome the limitations of the existing health care information systems in the country. Case report was the employed methodology with the intention of detailing the CMD foundations and construction. The first methodological step consisted of a comprehensive bibliographic review to understand the theoretical and practical context of the MBDS. Subsequently, a documentary review was carried out to report the construction, institution, and development of the CMD. Instituted as a public document, the CMD collects data from all health establishments in the country at each care contact, covering both the public and private networks. The CMD is part of the National Health Data Network (RNDS), allowing care records sharing among different points of health care. The article concludes that the CMD has the potential to transform health care delivery in Brazil, providing a solid basis for informed decision-making for the population, health professionals, and policy makers.

Keywords:
Health Information Systems; Digital Health Records; Healthcare Delivery; Public Reporting of Healthcare Data; Brazilian Unified Health System

1 INTRODUÇÃO

Os Sistemas de Informação em Saúde (SIS) são ferramentas essenciais para o planejamento e gestão dos sistemas de saúde, permitindo a coleta, o processamento, a análise e a disseminação de informações relevantes sobre aspectos relacionados à saúde das populações, como os padrões de morbidade e mortalidade, a estrutura dos serviços sanitários, o perfil da atividade assistencial, e os custos associados aos serviços de saúde prestados. Suas informações são fundamentais para a tomada de decisões baseadas em evidências e são usadas para monitorar a saúde da população, identificar riscos à saúde, guiar intervenções de saúde pública e informar as políticas de saúde. Além disso, eles são fundamentais para a pesquisa em saúde, fornecendo dados para estudos epidemiológicos, clínicos e de saúde pública.

No Brasil, o insumo informacional utilizado para subsidiar os processos de gestão da assistência hospitalar e ambulatorial do Sistema Único de Saúde (SUS) - passando pelo planejamento, controle, avaliação, auditoria e repasses de recursos nos três níveis de gestão do sistema - está baseado majoritariamente em dois grandes SIS de base nacional: o Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA) e o Sistema de Informações Hospitalares (SIH). Apesar terem sido instituídos em 1990 visando o registro da atividade assistencial realizada e financiada no âmbito do SUS, ambos possuem raízes históricas anteriores e mantém ainda hoje muitas características dos SIS antecessores construídos pelo Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS) na década de 1970 para operacionalizar um modelo de reembolso por pagamento de serviços (fee-for-services) no contexto da saúde previdenciária: o Boletim de Serviços Produzido (BSP) e o Sistema de Assistência Médico-Hospitalar da Previdência Social (SAMHPS) (Levcovitz; Pereira, 1993LEVCOVITZ, Eduardo; PEREIRA, Telma Ruth C. SIH/SUS (Sistema AIH): uma análise do sistema público de remuneração de internações hospitalares no Brasil 1983-1991. Rio de Janeiro: UERJ: IMS, 1993. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/registro/SIH__SUS__Sistema_AIH___uma_analise_do_sistema_publico_de_remuneracao_de_internacoes_hospitalares_no_Brasil_1983_1991/367. Acesso em: 31 out. 2022.
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; Panitz, 2014PANITZ, Leandro Manassi. Registro eletrônico de saúde e produção de informações da atenção à saúde no SUS. 2014. Dissertação (Mestrado) - Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/23778. Acesso em: 31 out. 2022.
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).

A existência de diversos problemas e limitações desses sistemas, que passam por aspectos de natureza computacional, como a defasagem de suas plataformas de desenvolvimento e fragilidades de segurança em suas bases de dados, e outros ainda mais importantes de natureza negocial, como o seu foco financeiro-administrativo e a cobertura incompleta dos atendimentos realizados no país, resultam no contexto do SUS, em informações que não são representativas da realidade assistencial brasileira e com um potencial reduzido para subsidiar de forma completa e coerente os novos processos de gestão necessários da área de atenção à saúde.

Neste contexto, o presente estudo tem por objetivo relatar os esforços do Ministério da Saúde para superar este cenário por meio da construção de uma proposta de Conjunto Mínimo de Dados da Atenção à Saúde (CMD) fundamentada em experiencias internacionais de implantação dos Minimum Basic Data Set (MBDS).

Mesmo que os esforços para a sua construção remontem quase uma década, os estudos científicos existentes sobre o CMD atualmente ainda são muito escassos e insuficientes para uma compreensão geral de seu funcionamento e do seu papel na integração das informações da atenção à saúde. Estes estudos em sua maioria abordam assuntos diversos sobre sistemas de informação e arquiteturas de software para a área da saúde, não tendo o CMD como objeto de estudo, e se limitam a mencionar a sua instituição e os seus objetivos de acordo com a legislação vigente sobre o sistema (Barbosa et al., 2020BARBOSA, Vinícius N. et al. SmartRES: uma plataforma IoT para Monitoramento Inteligente em Saúde e sua Aplicação no Contexto da COVID-19. Simpósio Brasileiro de Computação Aplicada à Saúde (SBCAS), 20., 2020, Porto Alegre. Anais… Porto Alegre, 2020, p. 297-307. DOI https://doi.org/10.5753/sbcas.2020.11522.
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; Caldas et al., 2023CALDAS, Anna Cláudia Sales Gomes et al. Validação de indicadores de qualidade do cuidado cirúrgico no Sistema Único de Saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 57, n. 1, p. 1-27, 2023. DOI https://doi.org/10.11606/s1518-8787.2023057004723.
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; Sa, 2018SA, Thabata Queiroz Vivas de. Proposta para o compartilhamento de informações sobre o cuidado obstétrico entre a rede de atenção básica e a maternidade. 2018. Dissertação (Mestrado em medicina) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-B44KCS. Acesso em: 9 fev. 2024.
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; Silva; Moreira; Abreu, 2020SILVA, Maria Verônica Sales da; MOREIRA, Francisco Jadson Franco; ABREU, Leidy Dayane Paiva de. Sistema de Informação em Saúde em tempos de COVID-19. Cadernos ESP, Fortaleza, v. 14, n. 1, p. 86-90, 2020. Disponível em: https://cadernos.esp.ce.gov.br/index.php/cadernos/article/view/419. Acesso em: 9 fev. 2024.
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; Siqueira, 2017SIQUEIRA, Otávio Manoel Pereira. Aiki ecosystem architecture : uma proposta de arquitetura de ecossistema de software de referência para a área de saúde. 2017. 160 f. Dissertação (Mestrado em Ciência da Computação) - Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2017. Disponível em: https://ri.ufs.br/jspui/handle/riufs/10779. Acesso em: 12 fev. 2024.
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). Já os trabalhos de Brizolara e Marin (2022BRIZOLARA, Regina Vianna; MARIN, Heimar de Fátima. Conjunto mínimo de dados e o vírus da imunodeficiência humana. Journal of Health Informatics, São Paulo, v. 14, n. 1, 2022. Disponível em: https://jhi.sbis.org.br/index.php/jhi-sbis/article/view/908. Acesso em: 8 fev. 2024.
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) e Miyoshi (2018MIYOSHI, Newton Shydeo Brandão. Arquitetura e métodos de integração de dados e interoperabilidade aplicados na saúde mental. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2018. DOI 10.11606/T.17.2018.TDE-20072018-100724.
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) abordam o CMD com mais profundidade.

Brizolara e Marin (2022BRIZOLARA, Regina Vianna; MARIN, Heimar de Fátima. Conjunto mínimo de dados e o vírus da imunodeficiência humana. Journal of Health Informatics, São Paulo, v. 14, n. 1, 2022. Disponível em: https://jhi.sbis.org.br/index.php/jhi-sbis/article/view/908. Acesso em: 8 fev. 2024.
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) investigam os dados dos SIS do Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e a sua relação com o CMD, trazendo mais elementos sobre a importância da regulamentação do CMD no Brasil e realizando uma análise detalhada de suas variáveis administrativas, clínico-administrativas e clínicas em comparação aos formulários de registro dos sistemas Sistema de Controle Logístico de Medicamentos (SICLOM), Sistema de Controle de Exames Laboratoriais (SISCEL) e Sistema de Informação para Rede de Genotipagem (SISGENO), e concluindo que o CMD poderá coletar dados sobre as consultas e exames laboratoriais de seguimento realizados nos contatos assistenciais para o tratamento do HIV. Já o trabalho de Miyoshi (2018MIYOSHI, Newton Shydeo Brandão. Arquitetura e métodos de integração de dados e interoperabilidade aplicados na saúde mental. 2018. Tese (Doutorado em Ciências Médicas) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2018. DOI 10.11606/T.17.2018.TDE-20072018-100724.
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) discute a arquitetura e métodos de integração de dados em saúde e interoperabilidade aplicada à área de saúde mental, descrevendo a incorporação do modelo de informação do CMD ao projeto eHealth-Interop e um estudo de mapeamento das informações geradas na atenção primária à saúde, por meio do sistema de Prontuário Eletrônico do Cidadão (eSUS-AB PEC) e Coleta de Dados Simplificada (CDS), para o CMD.

Desde modo verifica-se a existência de uma lacuna de conhecimento importante sobre este sistema que contextualize as motivações e bases empíricas que fundamentaram a construção da solução, o seu papel no contexto atual dos SIS do SUS, bem como o estado atual de sua implementação. Sendo assim, este artigo se propõem a explorar os fundamentos para o desenvolvimento da proposta, e relata o processo de construção tripartite do CMD que culminou em sua instituição em 2016 como componente de informações essenciais sobre questões epidemiológicas, ações e prestação de serviços de saúde (Brasil, 2017a), e posteriormente na sua implementação na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS) para viabilizar o registro dos contatos assistenciais pelas instituições em saúde da rede pública e privada visando o compartilhamento dessas informações entre os diferentes estabelecimentos de saúde, promovendo assim a referência e a contrarreferência e garantindo a integralidade da atenção à saúde (Brasil, 2020b).

Para isso o artigo irá abordar primeiramente as origens da noção de MBDS no contexto internacional no início da década de 1970, os primeiros conjuntos de dados assistenciais de abrangência nacional adotados nos Estados Unidos da América (EUA) e a difusão dos MBDS pelo continente europeu e para além dele. Logo após, a segunda abordagem será sobre os elementos utilizados para a concepção da proposta brasileira de MBDS e o caminho percorrido para a construção, difusão e pactuação do projeto CMD junto aos gestores do SUS e outros atores interessados. Em seguida a instituição do CMD é detalhada, abordando a sua base legal, as finalidades do sistema, as variáveis e categorias do seu modelo de informação e as regras gerais de implantação e integração com outros sistemas. Por último são apresentados os passos de sua implementação, passando pelo desenvolvimento de sua base conceitual, disponibilização das documentações, desenvolvimento de serviços para testes de integração, até a sua incorporação ao escopo da RNDS, alinhamento às diretrizes arquiteturais do projeto, desenvolvimento computacional de seu modelo de informação e sua implantação para o registro dos contatos assistenciais pelas instituições em saúde. Uma síntese é realizada ao final do artigo, discutindo a importância do CMD como alternativa para reorganização das informações da atenção à saúde, as limitações do presente estudo e proposições para trabalhos futuros.

2 METODOLOGIA

A metodologia empregada neste artigo científico é o relato de caso, com o objetivo de detalhar os fundamentos, a construção e implementação do CMD. Esta abordagem é particularmente adequada para este estudo, pois permite uma análise detalhada, abrangente e que ao mesmo tempo que facilita a exploração de aspectos singulares do sistema.

Conforme elucidado por (Stake, 2016STAKE, Robert E. A arte da investigação com estudo de caso. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.) o objetivo do estudo de caso é desvendar profundamente a essência e as nuances de um caso particular, proporcionando uma compreensão detalhada e abrangente. O autor enfatiza também a importância de explorar a particularidade e a complexidade do caso, focando na interpretação intensiva dos dados e na experiência vivida dentro do caso estudado. (Yin, 2015YIN, Robert. Estudo de caso: planejameno e metodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.), por outro lado, destaca a sistemática do relato de caso como uma ferramenta poderosa para a pesquisa empírica que permite uma análise detalhada e multifacetada de um fenômeno, utilizando uma variedade de fontes de dados para abordar questões de "como" e "por que" o fenômeno ocorre.

Portanto, a seleção do CMD como objeto de estudo baseou-se em critérios de relevância, representatividade para o campo da saúde, e a disponibilidade de informações suficientes para permitir uma análise detalhada e abrangente, aspectos que são amplamente ressonantes as perspectivas teóricas propostas por (Stake, 2016STAKE, Robert E. A arte da investigação com estudo de caso. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2016.) e (Yin, 2015YIN, Robert. Estudo de caso: planejameno e metodos. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2015.), que defendem a análise aspectual aprofundada de fenômenos, situações ou problemas específicos.

Neste estudo, a primeira etapa metodológica consistiu em uma revisão bibliográfica abrangente para entender o contexto teórico e prático do CMD. Esta revisão foi realizada nas bases de dados PubMed, Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) e Google Scholar, sem restrição temporal utilizando as palavras-chave minimum data set health care, minimum basic data set, health administrative data set, essential health data set e administrative health record. A revisão focou na análise da literatura científica e técnica relevante para os fundamentos do CMD, incluindo sete (7) artigos científicos e três (3) documentos governamentais.

Em seguida, foi conduzida uma criteriosa revisão documental a fim de relatar a construção da proposta, a instituição e o desenvolvimento do CMD. Esta revisão implicou no estudo documentos oficiais, normas, diretrizes, relatórios e atas de reunião públicas relacionadas ao sistema. Foram incluídos neste estudo trinta e um (31) documentos técnicos e governamentais.

Esta metodologia permitiu uma análise detalhada e contextualizada do CMD, elucidando os fundamentos e processos envolvidos na sua construção e implementação. O relato de caso resultante proporciona um entendimento rico e contextualizado, que pode contribuir para a teoria e prática na área de SIS.

3 RESULTADOS

3.1 Fundamentos sobre conjuntos mínimos de dados assistenciais

A primeira formulação do conceito de MBDS ocorreu em uma conferência sobre sistemas de informação organizada pela Johns Hopkins University, pelo National Center for Health Services Research and Development, e pelo National Center for Health Statistics nos EUA em 1969 (Trevino, 1988TREVINO, F. M. Uniform minimum data sets: in search of demographic comparability. American journal of public health, [s.l.], v. 78, n. 2, p. 126-127, 1988. DOI 10.2105/AJPH.78.2.126.
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). Seu conceito remete a obtenção de conjunto mínimo de itens de informação, com definições e categorias uniformes, referentes a uma dimensão específica da prática em saúde (como internações hospitalares ou atendimentos ambulatoriais) que atenda às necessidades de informação de múltiplos usuários no sistema de saúde (Foster; Conrick, 1998FOSTER, J.; CONRICK, M. Nursing Minimum Data Sets: historical perspective and australian development. In: SABA, Virginia K.; POCKLINGTON, Dorothy B.; MILLER, Kenneth P (ed.). Nursing and computers: an anthology, 1987-1996. [s.l.]: Springer, p. 437-443, 1998. DOI 10.1007/978-1-4612-2182-1_56.
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).

A ênfase dos MBDS na noção de “mínimo” referia-se ao menor número de itens de dados que pudessem atender o maior número de usuários possíveis. Complementarmente também apontava que estas recomendações não pretendiam limitar a quantidade de informações suplementares que poderiam ser coletadas ou processadas pelos sistemas de dados individualmente, que poderiam coletar o “máximo” de dados adicionais que desejassem (Trevino, 1988TREVINO, F. M. Uniform minimum data sets: in search of demographic comparability. American journal of public health, [s.l.], v. 78, n. 2, p. 126-127, 1988. DOI 10.2105/AJPH.78.2.126.
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). De acordo com Cuenca et al. (2018), em 1969 a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou por meio de grupo de trabalho especifico a adoção pelos países membros de um conjunto básico de dados com finalidade estatística.

Neste contexto, os primeiros conjuntos mínimos de dados assistenciais de abrangência nacional foram adotados na década de 1970 pelo sistema de saúde dos EUA (Salvador Oliván, 1997SALVADOR OLIVÁN, José Antonio. Sistemas de información hospitalarios: el C.M.B.D. Scire: representación y organización del conocimiento. [s.l.], v. 3, n. 2, 1997. DOI https://doi.org/10.54886/scire.v3i2.1081.
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). O primeiro deles foi o Uniform Hospital Discharge Data Set (UHDDS) em 1972, que era um conjunto conciso de dados de alta hospitalar estabelecido pelo National Committe on Vital and Health Statistics (NCVHS), contendo 14 variáveis de natureza administrativa e clínica que deviam ser geradas a partir dos dados dos prontuários os pacientes, ao final de cada hospitalização. A iniciativa visou a implantação de um formulário de requerimento padrão para ser adotado por todas as operadoras de planos de saúde do país para fornecer informações aos órgãos governamentais de planejamento de saúde e para os serviços de saúde e serviços de investigação epidemiológica. Entre outros objetivos, suas informações eram utilizadas para a revisão periódica dos padrões de gestão dos pacientes, para aferir a eficiência econômica da gestão hospitalar e para relacionar os custos das internações aos diagnósticos dos pacientes (NCVHS, 1972).

Apenas dois anos depois, em 1974, o NCVHS estabelece também o Ambulatory Medical Care Records: Uniform Minimum Basic Data Set (UMBDS) um conjunto de dados para o ambiente ambulatorial contendo oito variáveis (Jackson; Krueger; Densen, 1975JACKSON, Carmault B.; KRUEGER, Dean E.; DENSEN, Paul M. Ambulatory Care Medical Records: Uniform Minimum Basic Data Set. JAMA, [s. l.], v. 234, n. 12, p. 1245-1247, 1975. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/342712. Acesso em: 31 out. 2022.
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). O objetivo do UMBDS era fornecer informações para: auxiliar o médico no cuidado de seus pacientes; obter melhor compreensão sobre a história natural dos problemas de saúde, queixas e doenças; auxiliar na alocação de pessoal sanitário e outros recursos nos serviços de saúde; apoiar as agências governamentais na formulação de planos e políticas para melhorar os serviços de saúde; auxiliar operadoras de planos de saúde e seguridade social no faturamento dos serviços e pagamentos de programas federais; e fornecer informações para epidemiologistas e outros serviços de investigação sanitária (NCVHS, 1974).

Francis Roger France desempenhou um papel fundamental para a criação e instituição de um conjunto mínimo de dados análogo nos países europeus. Tendo acompanhado a criação do UHDDS e do UMBDS nos EUA, em 1976, ele propôs para o Biomedical Information Working Group (BMWG) do Committee for Information and Documentation in Science and Technology (CIDST) da Comissão Europeia a criação de um MBDS análogo para ser adotado pelo conjunto de países membros (France, 2014).

Entre 1976 e 1980, o BMWG aplicou um questionário em quinze países europeus para avaliar a proposta de MBDS e as variáveis que seriam necessárias, trabalho que foi concluído em 1981 com a publicação do relatório da Comissão Europeia “The minimum basic data set for hospital statistics in the EEC: Review of availability and comparability” que serviu de documento de base para a implantação do MBDS em diversos países europeus dos anos seguintes (Commission…, 1981).

O MBDS europeu foi definido como um conjunto mínimo de informações sobre a internação considerando as variáveis disponíveis mais comuns e com a maior quantidade de utilizações possíveis, destacando-se: o relacionamento dos diagnósticos e procedimentos às informações financeiras; o planejamento da gestão local e alocação de recursos; a avaliação do atendimento médico; o planejamento supra institucional; estudos epidemiológicos; e a pesquisa clínica (France, 2014FRANCE, Francis H. Roger. About the Beginnings of Medical Informatics in Europe. Acta Informatica Medica, [s.l.], v. 22, n. 1, p. 11, Feb. 2014. DOI https://doi.org/10.5455%2Faim.2014.22.11-15.
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).

A adoção do MBDS nos países europeus se inicia nos anos seguintes: Portugal adota para possibilitar a implantação do Diagnosis Related Groups (DRG) para reembolso hospitalar no país; a Bélgica adota para alterar o sistema de financiamento hospitalar; a Itália e a Espanha adotam gradualmente o modelo mas com variações regionais; o Reino Unido, a França, a Irlanda, a Dinamarca, a Suécia e a Holanda modificam suas estatísticas hospitalares para aderir ao modelo; já Luxemburgo e Alemanha adotam o MBDS com um relativo atraso, bem com a Grécia que reluta nos primeiros anos para adoção do modelo (France, 2014FRANCE, Francis H. Roger. About the Beginnings of Medical Informatics in Europe. Acta Informatica Medica, [s.l.], v. 22, n. 1, p. 11, Feb. 2014. DOI https://doi.org/10.5455%2Faim.2014.22.11-15.
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). Em 1991, o percentual de cobertura do MBDS em alguns países era: Bélgica: 90%, Dinamarca: 100%, França: aproximadamente 30%, Irlanda: entre 90% e 100%, Itália: 20%, Luxemburgo: não iniciado, Holanda: 100%, Espanha: 25% e Reino Unido: 90%, com 100% de implantação nos hospitais públicos (France, 1993).

Nos próximos anos, a adoção do MBDS se incrementou na Comunidade Europeia e passou a se difundir para outros continentes. Além disto, com a necessidade de se ter mais detalhes sobre as internações, principalmente aquelas relacionadas aos cuidados intensivos e gravidade dos casos clínicos, o modelo passou a incorporar novas variáveis e extensões. Segundo France (1993FRANCE, Francis H. Roger. Hospital Information Systems in Europe: Trends Towards Uniformity in Patient Record Summaries. In: CASAS, Mercè, WILEY, Miriam M. (ed.). Diagnosis Related Groups in Europe. Berlin: Springer Berlin Heidelberg, 1993. p. 3-16. DOI 10.1007/978-3-642-78472-9_1.
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) esses modelos não devem ser estáticos, mas a maioria dos países são muito cuidadosos ao incorporar novas variáveis, pois temem que as extensões excessivas possam reduzir significativamente a precisão dos dados, adicionarem custos na sua produção e gerarem confusão sobre o conceito de MBDS.

Apesar da diversidade de denominações que os MBDS ganharam em diferentes países, além das extensões do modelo realizados para incluir as especificidades e necessidades de cada contexto, é possível constatar com facilidade a sua difusão. Além de exitosa, a estratégia dos MBDS vigora até os dias atuais tanto na área hospitalar quanto na ambulatorial, subsidiando um conjunto de processos de gestão clínica e administrativa muito semelhantes à época de sua concepção. Ao longo do estudo, alguns destes modelos são abordados com mais detalhes. A Figura 1 ilustra uma síntese dos marcos históricos do MBDS no mundo.

Figura 1
Linha do Tempo: Marcos históricos do MBDS no mundo

3.2 Construção da proposta do Conjunto Mínimo de Dados

Os estudos sobre os MBDS iniciaram no Brasil em 2013 em atividades de cooperação internacional com o governo espanhol por meio do Consórcio Hospitalar da Catalunha (CHC) no contexto de projeto voltada à qualificação dos processos de gestão do SUS (Brasil, 2011b). Um dos temas abordados nestas atividades foi a utilização do Conjunto Mínimo Básico de Datos (CMBD) no país para subsidiar um financiamento prospectivo baseado nos DRG.

Desde então, uma equipe do Ministério da Saúde foi designada para aprofundar estudos sobre este tema no contexto do projeto do Sistema de Regulação, Controle e Avaliação (SISRCA) que estava em desenvolvimento na época, e tinha como objeto a reformulação do SIH, SIA e Comunicação de Informações Hospitalares e Ambulatoriais (CIHA) (Brasil, 2013).

Os estudos se iniciaram pela análise do modelo de informação do CMBD espanhol, derivado do MBDS europeu, e adotado como obrigatório no país para a área hospitalar em 1992. O CMBD-H, exclusivo para a área hospitalar, sofreu diversas atualizações ao longo dos anos, e no ano de 2004 foi instituído adicionalmente o CMBD-AAE para registro da atenção ambulatorial especializada. Outras extensões foram criadas nos anos posteriores, até que em 2015 todas as extensões do CMBD existentes convergem para um modelo de informação único para o registro de todas as atividades ambulatoriais e hospitalares: o Registro de Actividad de Atención Especializada (RAE-CMBD) (Marco Cuenca; Salvador Oliván, 2018SA, Thabata Queiroz Vivas de. Proposta para o compartilhamento de informações sobre o cuidado obstétrico entre a rede de atenção básica e a maternidade. 2018. Dissertação (Mestrado em medicina) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-B44KCS. Acesso em: 9 fev. 2024.
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).

Logo em seguida, os estudos foram expandidos para outros modelos de informação análogos em utilização por outros países. Alguns conjuntos de dados internacionais estudados foram:

  • Alemanha - §301 Sozialgesetzbuch (SGB V): é a denominação do conjunto de dados padronizado que todos os hospitais são obrigados a enviar às operadoras de planos de saúde, que posteriormente reportam as informações, meio da Institut für das Entgeltsystem im Krankenhaus (InEK GmbH), ao Instituto para o Sistema de Remuneração em Hospitais, que também é responsável pela gestão e aplicação de um sistema de classificação de pacientes voltado ao faturamento de serviços hospitalares denominado aG-DRG (InEK, 2021).

  • Austrália - Health National Minimum Data Sets (NMDSs): São ao todo treze conjuntos de dados para registro da atividade assistencial em diferentes modalidades. O Admitted patient care é destinado coletar informações sobre o atendimento prestado a pacientes internados em hospitais australianos (Australia, 2005), enquanto o Non-admitted patient emergency department care é destinado aos pacientes registrados para atendimento em departamentos de emergência em hospitais públicos (Australia, 2006). Na mesma plataforma que hospeda estes conjuntos de dados, há ainda outros específicos para atendimentos da saúde mental, odontologia, radioterapia, cirurgias eletivas e outros.

  • Dinamarca - Landspatientregisteret (LPR): Base de dados que reúne todas as informações sobre exames e tratamentos nos hospitais dinamarqueses. Sempre que uma pessoa utiliza o sistema hospitalar, os hospitais comunicam uma série de informações, como os diagnósticos do paciente, exames, tratamentos e operações realizadas. É utilizado para monitorar doenças e tratamentos, acompanhar a atividade nos hospitais, calcular o consumo hospitalar e agrupamento dos atendimentos por meio do DRG (Sundhedsdatastyrelsen, 2021).

  • Espanha - CMBD - RAE - CMBD: Inclui dados de altas hospitalares, procedimentos ambulatoriais de alta complexidade e urgências. Além de ser base para as estatísticas nacionais é utilizado para apoiar o sistema de financiamento baseado no DRG (España, 2021).

  • França - Résumé d’unité médicale (RUM): conjunto de dados que é produzido ao final da permanência de cada paciente em uma unidade médica que oferece atendimento médico, cirúrgico, obstétrico e odontológico. Contém informações administrativas e médicas, codificadas de acordo com nomenclaturas e classificações padronizadas. É utilizado como base de dados dos Groupes Homogènes de Malades (GHM) que um é sistema de classificação médico-econômico de internações utilizado para financiamento dos estabelecimentos de saúde (ATIH, 2021).

  • Nova Zelândia - A plataforma de coleções de dados em saúde mantém quinze diferentes conjuntos de dados sobre diversos assuntos. O National Minimum Dataset (hospital events) fornece informações estatísticas, relatórios e análises sobre as tendências na prestação de serviços de saúde para pacientes internados e ambulatoriais, tanto nacionalmente quanto por provedor e é utilizado também para fins de financiamento. Já o National Non-Admitted Patient fornece dados nacionais sobre a atividade de pacientes não internados (ambulatório e departamento de emergência) (New Zealand, 2019).

  • Portugal - Base de Dados de Morbilidade Hospitalar (BD GDH): Contém o histórico nacional da atividade do internamento hospitalar classificada de acordo com a Classificação Internacional de Doenças (CID) e agrupada por Grupos de Diagnósticos Homogêneos (GDH). O GDH exige a recolha de um CMD pelos hospitais, que é carregada neste repositório, parte integrante do Sistema de Classificação de Doentes de apoio à Gestão e Financiamento (SCDGF) (Portugal, 2021).

  • Reino Unido - Commissioning Data Sets (CDS): Conjuntos de dados que formam a base dos dados das atividades assistenciais realizadas pelas organizações de saúde e que são reportadas para o governo para fins de monitoramento e pagamento. São utilizados para cálculo de pagamento a fundos fiduciários e monitoramento de outras iniciativas por meio do Healthcare Resource Group (HRG)(NHS, 2021).

Por meio deste estudo foi constatado que os conjuntos de dados se especializaram de forma muito variável em cada país, focados em algum processo clínico específico ou modalidade de atenção. Há um grupo de países, como Portugal, Espanha e Dinamarca, onde há um modelo de informação mais conciso e com foco na geração de informações para a classificação de pacientes por meio de DRG. Em outro grupo de países, como Reino Unido, Austrália e Nova Zelândia há um rol maior e mais especializado de conjuntos de dados, que incluem diferentes tipos de internação e de especialidades médicas.

A realização destes estudos foi de fundamental importância para entender melhor a estrutura e o funcionamento dos MBDS no mundo, bem com as suas potencialidades e vantagens em relação aos modelos de informação dos sistemas em funcionamento no Brasil. Isto possibilitou a construção de uma proposta inicial para o modelo de informação do CMD, que se baseou, tanto no conjunto de variáveis básicas recorrentemente utilizadas nos MBDS estudados, quanto no conjunto de variáveis consideradas imprescindíveis e coletadas historicamente pelos sistemas SIH, SIA e CIHA, afim de evitar descontinuidades nas séries históricas estatísticas existentes e reduzir o impacto de implantação para serviços de saúde.

Além do modelo de informação, outro ponto crucial da proposta foi recomendar a unificação da unidade de registro do modelo, já que os sistemas atuais não possuem padronização neste sentido: a unidade de registro do SIH é a autorização de procedimentos principais podendo resultar em mais de um registro por internação; a unidade de registro do SIA varia a depender do instrumento de registro, podendo ser a autorização mensal de tratamentos, o registro individualizado de procedimentos realizados por profissional de saúde, ou mesmo o registro consolidado de procedimentos por prestador de serviços; já a unidade de registro do CIHA é o evento de internação.

Ao invés disto, foi recomentado para o CMD a adoção de uma unidade de registro baseada no conceito de contato assistencial, presente em outros modelos de MBDS ambulatoriais e hospitalares revisados. O contato assistencial ficou definido como o atendimento ininterrupto dispensado a um indivíduo em uma mesma modalidade assistencial e em um mesmo estabelecimento de saúde. Este conceito busca refletir os diferentes tipos de atendimentos em saúde, englobando desde uma internação hospitalar de longa permanência até uma consulta ambulatorial pontual, ou uma intervenção médica de emergência.

A concepção geral do CMD e a primeira versão do modelo de informação foram apresentadas em agosto de 2015 na Oficina de Regulação, Controle e Avaliação realizada pelo Departamento de Regulação, Avaliação e Controle (DRAC) em Brasília. Na oportunidade, estavam presentes técnicos das Secretarias Estaduais de Saúde (SES), representantes do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) e técnicos dos departamentos da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS/MS). O objetivo da pauta foi apresentar os estudos preliminares realizados para serem debatidos em um ambiente tripartite e verificar os pontos de concordância e discordância da proposta entre os entes.

Considerando a receptividade da proposta, em outubro de 2015 realizou-se o I Encontro Nacional sobre o CMD, no qual participaram representantes indicados pelo CONASS, CONASEMS, Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos (CMB), Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) além de representantes de diversos departamentos do Ministério da Saúde. O objetivo do encontro foi ampliar o debate sobre a proposta do CMD, discutir o modelo de informação com outras entidades, e apresentar algumas concepções iniciais de soluções tecnológicas que poderiam ser utilizadas para viabilizar o projeto (CGSI, 2018).

Logo após o I Encontro Nacional sobre o CMD, o Ministério da Saúde submeteu publicamente uma pesquisa de avaliação da proposta com ampla divulgação que ficou disponível para preenchimento pelos interessados por trinta dias, com o objetivo de confirmar a necessidade do projeto, verificar as expectativas dos usuários e receber novas sugestões a serem analisadas e incorporadas à proposta. Esta pesquisa contou ao todo com 71 participantes que responderam 37 questões sobre diferentes aspectos do projeto, resultando em um conjunto de contribuições valiosas que foram fundamentais para aprimorar a proposta final do projeto, submetida à Comissão Intergestores Tripartite (CIT) para discussão e pactuação.

3.3 Instituição do Conjunto Mínimo de Dados da Atenção à Saúde

Após pactuação tripartite e aprovação em plenária na 5ª Reunião Ordinária da Comissão Intergestores Tripartite de 2016 (Brasil, 2016b), o CMD foi instituído pela Resolução CIT nº 6 de 2016 (Brasil, 2016a). A normativa traz em seu conteúdo diversas informações e diretrizes sobre o CMD.

Em primeiro lugar, o CMD não é instituído como um sistema de informação, mas sim como um documento público que coleta os dados de todos os estabelecimentos de saúde do país em cada contato assistencial, com objetivo de obter informações integradas sobre a atividade assistencial desenvolvida não só pela rede pública, mas também pela rede suplementar e privada em território nacional. Desta forma, o CMD abrange tanto as informações que hoje são coletadas pelo SIA, SIH e CIHA, quanto os demais atendimentos assistenciais em saúde realizados pelas instituições no âmbito dos planos de saúde privados, planos de saúde públicos e aqueles pagos por particulares no mercado privado de saúde.

As finalidades do CMD, descritas no Art. 4º da resolução (Brasil, 2016a) demonstram uma preocupação com informações mais completas sobre a atividade assistencial desenvolvida no país para subsidiar os processos de gestão do sistema de saúde nos três níveis de gestão do SUS, tais como: planejamento, controle, monitoramento, avaliação das políticas de saúde, o desenvolvimento de estatísticas na área assistencial. Inclui igualmente o atual processo de faturamento por serviços prestados, entretanto amplia as possibilidades de sua utilização em novas métricas para a análise de desempenho, alocação de recursos e financiamento da saúde.

O modelo de informação do CMD é único tanto para a atenção ambulatorial quanto para a atenção hospitalar, hoje registradas por meio dos sistemas SIH, SIA e CIHA. Além disto, novas modalidades assistenciais passam a ser reconhecidas e discriminadas no modelo, como a atenção domiciliar, atenção psicossocial e a assistência farmacêutica.

As variáveis do CMD estão organizadas em quatro categorias de informação (Brasil, 2016a): identificação do indivíduo, informações do contato assistencial, problemas/diagnósticos avaliados e procedimentos realizados.

A categoria de identificação do indivíduo segue as diretrizes do Cadastro Nacional de Usuários do Sistema Único de Saúde (CADSUS), exigindo como obrigatória somente a informação do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou do Cartão Nacional de Saúde (CNS). As demais 10 variáveis desta sessão, como nome, idade, sexo e endereço, são obtidas por meio de requisição na base nacional do CADSUS.

A categoria dedicada ao contato assistencial possui um conjunto de variáveis que caracterizam o atendimento, como as datas de ocorrência, a identificação do estabelecimento de saúde, a modalidade assistencial, a procedência, o caráter de atendimento e o motivo do desfecho. São seis variáveis obrigatórias e uma variável de data de preenchimento condicionado ao motivo do desfecho.

Já a categoria problemas/diagnósticos está relacionada ao motivo que originou o atendimento, podendo ser uma lista de diagnósticos registrados mediante a CID ou de problemas mediante da Classificação Internacional da Atenção Primária (CIAP). Os diagnósticos são ainda classificados em principal e secundários além de permitir a informação de sua presença na admissão.

Por último, a categoria de procedimentos realizados exige obrigatoriamente o registro de três variáveis: procedimento, quantidade e data de realização. Existem ainda algumas variáveis condicionadas e opcionais, como a identificação dos profissionais de saúde, de equipes de saúde e participação de estabelecimentos de saúde terceiros no processo de atenção.

Uma síntese das quatro categorias e suas principais propriedades é apresentada no Quadro 1.

Quadro 1
Categorias de variáveis do modelo de informação do CMD

O modelo de informação do CMD é apresentado no Quadro 2 e utiliza como notação para representação da informação, as definições da norma International Organization for Standardization e International Electrotechnical Commission (ISO/IEC) 8824-1:2008, discriminando o seu nível, ocorrência, sua obrigatoriedade e tipos de dados (ISO, 2008).

Quadro 2
Modelo de Informação do CMD

O modelo de informação completo, com as suas definições e tabelas de domínio relacionadas, pode ser obtido na documentação oficial do CMD no endereço eletrônico https://wiki.saude.gov.br/cmd/ (CGSI, 2021).

Outro ponto importante que a Resolução CIT nº 6 de 2016 traz é a integração do CMD com outras bases de dados oficiais que já registram informações assistenciais previstas em seu escopo, evitando assim uma sobreposição de registros (Brasil, 2016a). As informações da atenção básica do SUS são provenientes do Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica (SISAB) e as informações dos atendimentos em saúde realizados no âmbito da saúde suplementar por planos de saúde são provenientes Padrão de Troca de Informações da Saúde Suplementar (Padrão TISS) gerenciado pela ANS.

Em 2017, é publicado ainda o Decreto de 29 de Novembro de 2017 que dispõem sobre a implantação e aspectos conceituais do CMD (Brasil, 2017a). Seu texto traz muitos elementos da Resolução CIT nº 6 de 2016, adicionando algumas definições importantes. A primeira é que o CMD passa a integrar o Sistema Nacional de Informações em Saúde (SNIS) como componente de informações essenciais sobre questões epidemiológicas, ações e prestação de serviços de saúde. A segunda é que o CMD será adotado em todo o sistema de saúde e abrangerá as pessoas físicas ou jurídicas que atuem na atenção à saúde nas esferas pública, suplementar e privada. A terceira é que o tratamento das informações pessoais obtidas por meio do CMD observará o disposto na Lei de Acesso à Informação (Brasil, 2011a), e em seu regulamento. Por último o Art. 6º define que compete ao Ministério da Saúde definir o conteúdo do CMD, bem como realizar a sua implementação e gestão (Brasil, 2017a).

3.4 Operacionalização técnica e negocial do CMD

Logo após a instituição do CMD, iniciou-se um conjunto de atividades no Ministério da Saúde relacionadas à estratégia de desenvolvimento e implantação do projeto, que envolveram principalmente o DRAC o Departamento de Informação e Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS) e o Departamento de Atenção Básica (DAB).

A primeira ação foi a construção de uma solução tecnológica para integrar as informações do SISAB à base de dados do CMD. Esta ação culminou na publicação da Portaria SAS/MS nº 2.148/2017 que estabeleceu o início do envio dos dados do SISAB para o CMD, encerrando o envio destas informações para o SIA (Brasil, 2017b).

Ainda em 2017, os conceitos e definições de todas as variáveis e tabelas de domínio do CMD são adicionados ao modelo de informação por meio da Resolução CIT nº 34, de dezembro (Brasil, 2018b). Adicionalmente, a Portaria SAES/MS 176 de 2020 inclui a modalidade assistencial “Assistência Farmacêutica” no modelo de informação do CMD para identificar as dispensações de medicamentos e insumos provenientes da Base Nacional de Dados de Ações e Serviços da Assistência Farmacêutica (BNAFAR) (Brasil, 2020c).

Já em 2018, o Ministério da Saúde institui e disponibiliza a documentação oficial do CMD no endereço eletrônico http://wiki.saude.gov.br/cmd por meio da Portaria SAS/MS Nº 1.701 de 2018SA, Thabata Queiroz Vivas de. Proposta para o compartilhamento de informações sobre o cuidado obstétrico entre a rede de atenção básica e a maternidade. 2018. Dissertação (Mestrado em medicina) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/BUOS-B44KCS. Acesso em: 9 fev. 2024.
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/...
(Brasil, 2018e). Os aspectos conceituais, de arquitetura informacional e computacional do sistema podem ser consultadas nesta documentação.

O desenvolvimento computacional do CMD enquanto um sistema de informação composto de um aplicativo de coleta de dados, um webservice para receber os dados na base nacional e um portal para realizar a consulta e gestão dos dados de acordo com a concepção negocial do projeto descrita em CGSI (2018) inicia ainda em 2017 e começa a apresentar os primeiros resultados no ano seguinte. Um dos resultados deste trabalho culminou na publicação da Portaria GM/MS nº 408/2018, que disponibiliza o webservice que permite o envio de contatos assistenciais para a base nacional do CMD para testes de integração pelos prestadores de serviço (Brasil, 2018c). Outro resultado de desenvolvimento culminou na publicação da Portaria GM/MS 1.363/2018, que disponibiliza o CMD Gestão, ambiente web que permite o acesso, acompanhamento, análise e gestão dos contatos assistenciais enviados por todos os estabelecimentos de saúde em território nacional (Brasil, 2018d).

Concomitantemente ao desenvolvimento do CMD, houve ainda a criação de outros dois modelos de informação de caráter clínico por meio da Resolução CIT nº 33 de março de 2018: o Sumário de Alta (SA) para a área hospitalar e o Registro de Atendimento Clínico (RAC) no âmbito da atenção básica, especializada ou domiciliar (Brasil, 2018a). Ambos os modelos partem do conjunto de variáveis do CMD, para então serem estendidos com novas variáveis de caráter clínico visando a troca de informações entre prontuários eletrônicos para subsidiar a continuidade do cuidado dos pacientes nos diferentes pontos da rede de atenção à saúde (Brasil, 2018a).

Com a criação da RNDS em 2019, o CMD foi incorporado ao escopo da nova plataforma nacional, que visa a integração e à interoperabilidade de informações em saúde entre estabelecimentos de saúde públicos e privados e órgãos de gestão em saúde dos entes federativos, para garantir o acesso à informação em saúde necessário à continuidade do cuidado do cidadão (Brasil, 2020a). No mesmo ano, inicia-se a migração da arquitetura computacional do CMD alinhada aos padrões da nova diretriz arquitetural de desenvolvimento de sistemas que estava sendo definida na época (Coordenação…, 2023).

No escopo da RNDS, o CMD torna-se uma das prioridades do ecossistema de inovação da RNDS para viabilizar que os registros de contatos assistenciais realizados por instituições da rede pública ou privada sejam compartilhados entre os diferentes estabelecimentos de saúde, promovendo assim a referência e a contrarreferência e garantindo a integralidade da atenção à saúde (Brasil, 2020b).

Neste sentido, o “Contato Assistencial” foi definido na RNDS como padrão de informação do registro de atendimento na assistência à saúde como parte do CMD (Brasil, 2020b). Computacionalmente, o CMD foi modelado no padrão de internacional para interoperabilidade de sistemas Fast Healthcare Interoperability Resources (FHIR) (Brasil, 2020b). Os modelos computacionais do CMD modelados em FHIR (Composition Conjunto Mínimo de Dados e Encounter Contato Assistencial) estão disponíveis publicamente com outros artefatos do projeto RNDS na plataforma SIMPLIFIER.NET (2023).

Atualmente, apesar da solução computacional que permite a coleta das informações do CMD diretamente pelos estabelecimentos de saúde ainda estar em desenvolvimento pelo Ministério da Saúde, diversas informações já foram integradas ao seu modelo de informação na RNDS, como as Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) e as Autorizações de Procedimentos Ambulatorial (APAC), que podem ser acessadas por meio do aplicativo “Conecte SUS Cidadão” na perspectiva de um prontuário pessoal do paciente com o seu histórico de saúde.

Por fim, outras informações ainda estão sendo integradas ao CMD, como as informações das guias TISS que contém as informações prestadas no âmbito das operadoras de planos de saúde e as informações do SISAB que contém todos os atendimentos da atenção primária em saúde no âmbito do SUS, conforme demonstram os encaminhamentos das atas recentes de reuniões do Comitê Gestor de Saúde Digital (CGSD, 2021a, 2021b, 2022a). Nesta mesma documentação, é possível perceber que o CMD é assunto recorrente nas reuniões do comitê com assuntos sobre carga de novos dados da RNDS (CGSD, 2022c) e outras de discussão sobre a estratégia e cronograma no sistema (CGSD, 2021c, 2022b). A Figura 2 ilustra uma síntese dos marcos históricos do CMD no Brasil.

Figura 2
Linha do Tempo: Marcos históricos do CMD no Brasil

4 CONCLUSÃO

Este artigo discutiu os fundamentos conceituais, a construção da proposta, a instituição da solução e a gradual implementação do CMD no escopo da RNDS.

É importante frisar que as limitações do presente estudo são as decorrentes da condução de um estudo de caso que utiliza dados secundários. Como os dados coletados não foram produzidos com a finalidade específica do estudo, pode levar a vieses e limitações na interpretação dos resultados. Além disso, a disponibilidade e a atualidade dos dados é um fator que pode afetar a precisão das conclusões. A dependência de fontes secundárias também pode restringir a capacidade de análise detalhada devido à possível falta de dados específicos necessários para investigações mais profundas. No entanto, considera-se que o conjunto de materiais disponíveis sobre os MBDS e sobre o CMD foram suficientes para uma compreensão detalhada e abrangente sobre os fundamentos, construção e implementação deste sistema.

A instituição do SUS passou a demandar uma série de novas necessidades informacionais para subsidiar a gestão do sistema e as políticas públicas de saúde desenvolvidas pelas três esferas de gestão do sistema de saúde. Neste contexto, o CMD traz à discussão elementos históricos sobre o processo de produção das informações assistenciais no país deixando evidente a necessidade de uma profunda reformulação no modelo vigente para atender às mudanças nas políticas e no modelo de financiamento da atenção à saúde. A implantação do CMD representa uma ruptura com a lógica histórica de produção de informações assistenciais baseadas exclusivamente no faturamento por produção de serviços realizada pelos sistemas SIA e SIH e seus antecessores operados no contexto da saúde previdenciária.

O CMD tem o potencial de transformar a prestação de cuidados de saúde no Brasil, fornecendo à população, aos profissionais de saúde e aos formuladores de políticas uma base sólida para a tomada de decisões informada. Ao ampliar o seu escopo para incluir informações não só dos atendimentos assistenciais de financiamento público, mas também aqueles financiados pela esfera privada, passa ser representativo da realidade assistencial brasileira contando com uma cobertura integral das atividades assistenciais.

Pesquisas futuras sobre o CMD serão fundamentais para uma compreensão mais aprofundada sobre a sua implementação no país. Uma abordagem a ser explorada inclui a complexidade tecnológica de sua implantação considerando a necessidade de integração com outras bases de dados e interoperabilidade com outros sistemas de informação da atenção à saúde conforme descrito em sua documentação. Outro ponto importante envolve as possíveis resistências a mudança pelos profissionais de saúde decorrente de alterações em processos de trabalho estabelecidos ao introduzir um novo sistema de informação, bem como as estratégias utilizadas para mitigar esses impactos. As questões relacionadas à privacidade e segurança desses dados também se tornam cruciais, já que a base de dados do CMD se propõe a agregar todas as informações da atenção à saúde que hoje se encontram pulverizadas em outros sistemas sem integração entre si. Por último, estudos sobre os custos de desenvolvimento e implementação do sistema aliada a avaliações de impacto a longo prazo são necessários para avaliar a dimensão de custo-benefício da solução que deve se traduzir em melhoria na qualidade desses registros de saúde, uma melhor compreensão da realidade assistencial brasileira e geração de valor público para a população.

Apesar de haver um logo caminho para a implantação completa do CMD que abranja totalidade do seu escopo, a sua inserção na RNDS para viabilizar o compartilhamento dos registros de contatos assistenciais realizados por instituições da rede pública ou privada na rede de atenção em saúde, parece ser um caminho eficiente e acertado. Além disto, a carga das informações de sistemas legados no modelo de informação do CMD, apesar de ser uma solução intermediária, já demonstra resultados práticos deste modelo com dados disponíveis no “Conecte SUS Cidadão”.

Em conclusão, considera-se que o CMD representa um passo importante na direção de uma prestação de cuidados de saúde mais eficaz e equitativa no Brasil. No entanto, a sua implementação bem-sucedida requer um compromisso contínuo com a melhoria da qualidade dos dados, a formação de profissionais de saúde e a adaptação às mudanças nas necessidades de saúde da população.

REFERÊNCIAS

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    07 Jun 2023
  • Aceito
    16 Abr 2024
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