O Psicólogo nas organizações
Antônio Virgílio Bittencourt Bastos
Professor Adjunto do Depto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia
Desafios colocados pelo desenvolvimento da pesquisa organizacional
Como se caracteriza a atuação do psicólogo nas organizações? Que problemas e perspectivas a cercam? Essas questões reportam-se a uma realidade conhecida e sobre a qual não pretendemos nos ocupar neste momento. Em um novo estudo que acabamos de realizar sobre tendências de emprego na Psicologia para o Conselho Federal de Psicologia, os dados revelam que os psicólogos no geral, e o psicólogo organizacional em particular, independente do tipo de instituição em que se graduou, prestam à sociedade um tipo de serviço bastante homogêneo. Os psicólogos organizacionais continuam sendo, dentro da categoria, aquele grupo com condições de emprego mais favoráveis, que mais se aproximam do conceito de "assalariado" e largamente envolvidos com as atividades de recrutamento, seleção e treinamento.
Dois grandes problemas são, normalmente, vivenciados pelos psicólogos nas organizações: seu reduzido poder dedefinir estratégias organizacionais - embora as organizações sejam grupos humanos, as grandes decisões acerca de como lidar com o elemento humano são tomadas por administradores, economistas, sem aparticipação efetiva do psicólogo. O seu confinamento a áreas tradicionais de atuação os leva a ficarem restritos a uma atuação técnica fragmentada-selecionando, treinamento - sem uma visão integral do trabalhador e de sua vida no trabalho. Aquilo que em outras oportunidades tem sido denominado "modelo restrito de atuação profissional". Segundo, os desafios do trabalho técnico propriamente dito, com os constantes questionamentos da sua eficácia organizacional, a falta de avaliação criteriosa, a frequente interferência de "modismos" passageiros e assim por diante.
Como coloquei de início, não gostaria de me deter nestes problemas, todos por certo relevantes. As perspectivas de equacionamento destes problemas são tão complexas quanto os problemas em si. Envolve um profundo esforço do próprio profissional para qualificar-se, atualizar-se, ampliando o seu domínio de conhecimentos e tecnologias de forma a conquistar espaços mais significativos nas organizações. Requer, sem dúvidas, mudanças mais radicais nas estruturas das organizações de forma que o fator humano seja, efetivamente, uma prioridade dos sistemas administrativos. Isso, por sua vez, está condicionado a mudanças sociais, políticas e culturais mais abrangentes e que não descortinamos no nosso horizonte imediato. Tais mudanças dependem, ainda, do avanço do conhecimento sobre o comportamento organizacional tanto micro quanto macro de forma a termos disponível elementos para repensar nossas práticas, aperfeiçoá-las, prestando a verdadeira contribuição que nos cabe.
É nesse terceiro aspecto que pretendo trazer para reflexão dois desafios que têm preocupado pesquisadores e estudiosos e cujo desdobramento dos estudos têm implicações extremamente fortes para as ações dos psicólogos nas organizações.
1. A compreensão dos determinantes do comportamento humano nas organizações
Três grandes classes de comportamento são tomadas como requisitos para que qualquer organização atinja os seus objetivos(
Os modelos teóricos e as tecnologias geradas para lidar com esses comportamentos variaram, certamente, ao longo deste último século. Para tomarmos, apenas alguns marcos importantes, podemos comparar os princípios da "administração científica" propostos por Taylor (divisão do trabalho e sua fragmentação em unidades que permitissem um desempenho máximo suportável pelo equipamento biológico do homem), os enunciados da escola das relações humanas (privilegiando o desenvolvimento de grupos de trabalho homogêneos e coesos sob a liderança de um supervisor sensível às necessidades sociais dos indivíduos) ou ainda os princípios que caracterizam o movimento de "desenvolvimento organizacional", fortemente influenciado por teóricos comportamentalístas, que enfatizam o enriquecimento do trabalho (tarefas mais ricas, mais significativas), estilos de liderança contingenciais (apropriadas à natureza do grupo) e assim por diante. Todos esse modelos tiveram o seu momento de apogeu e, hoje, continuam, em menor ou maior escala, sendo utilizados em diferentes organizações, apesar dos sub-produtos gerados nem sempre terem sido os desejados. Só a título de exemplo, temos a alienação e os problemas de saúde psicológica gerados peia excessiva fragmentação do trabalho, pilar central do sistema taylorista.
Quando analisamos as diversas teorias organizacionais podemos observar, no entanto, que, progressivamente, modelos mais complexos foram sendo elaborados para tentar explicar essas três grandes classes do comportamento humano nas organizações(
Hoje, o desempenho humano no contexto de trabalho é visto como multidetermínado, produto de complexas e sutis interações entre aspectos do ambiente e da história do próprio indivíduo(3 3 . Ver, por exemplo, o trabalho: Naylor, J. C., Pritchard, R. D. e Ilgen, R. D. (1980). A Theory of behavior in organizations. New York: Academic Press. Numa perspectiva cognotivista, os autores apresentam uma teoria geral que unifica de maneira lógica e com grande potencial heurístico, diversas variáveis e processos que contribuem para o comportamento dos indivíduos nas organizações. ). Explicá-lo, por exemplo, recorrendo a modelos fechados como o de hierarquias de necessidades (bastante frequente entre os tecnológicos) é uma supersimplificação e por certo, explica parte do fracasso em se conseguir aqueles desempenhos desejados referidos acima.
Esta multi determinação do comportamento e a consciência da sua complexidade coloca questionamentos profundos ao conjunto de práticas organizacionais, todas concebidas como medidas gerais e abrangendo todos os trabalhadores, independente de suas características pessoais e contextos específícos de trabalho. O trabalho de Lawrence e Lorsch(
Esse princípio "contingencial" também deve ser estendido para os indivíduos e grupos humanos que integram a organização. Esse é um grande desafio para o qual não temos respostas prontas e para o qual o psicólogo deve dar as contribuições mais significativas.
2. A compreensão do que é organização e dos determinantes do comportamento organizacional
Independente das múltiplas perspectivas teóricas, os conceitos de organização repousam em um lastro comum são agrupamentos humanos, ou produtos da ação social de indivíduos e grupos. No entanto, tem largamente predominado entre os teóricos organizacionais e entre aqueles que geram as tecnologias usuais para lidar com os indivíduos que integram a organização, a abordagem que toma a organização como um todo, como um sistema racional, composto de unidades funcionalmente dependentes que buscam, em conjunto, atingir os objetivos organizacionais.Ou seja,numa perspectiva apolítica, as organizações são tratadas como sistemas normativamente integrados, ignorando-se os conflitos políticos e outras tensões. Por outro lado, ao tomarem a organização como uma entidade holística, desconsidera-se as sub-unidades como grupos de interesses e coalizões que são cruciais para o desenvolvimento de uma visão política das organizações. O trabalho de Bacharach e Lawler(
É interessante ressaltar que essa realidade "política" é vivenciada pelo psicólogo enquanto membro da organização sendo, por todos os seus integrantes, conhecida - quem detém o poder, quais as estratégias de controle utilizada? Todavia, a vivência desta realidade não implica em que sejam incorporados às suas técnicas de intervenção esse tipo de conhecimento. Ou seja, as tecnologias utilizadas pelos psicólogos desde aquelas mais comuns às menos frequentes foram concebidas dentro de um contexto teórico que toma a organização de forma unitária e que mascara a questão do poder e do conflito, fortes determinantes do comportamento do trabalhador. Não estaria na ausência desta consciência, ou melhor, no desconhecimento em como lidar com esta realidade, a raiz das frequentes críticas à atuação do psicólogo nas organizações que o tomam como "instrumento" do grupo no poder?
Vejamos alguns exemplos: os clássicos trabalhos com grupos, dentro da perspectiva de aperfeiçoar as relações interpessoais, gerar maior coesão, conseguir maior produtividade, partem do pressuposto ou almejam conseguir uma identidade comunhão de interesses entre indivíduos e organização, quase sempre inexistente e inatingível. As ações para ampliar a qualidade do trabalho, seja a redefinição dos postos de trabalho, ampliando as suas atribuições, seja o encaminhamento para cursos, treinamentos, muitas vezes desconsideram o contexto em que o trabalho é desenvolvido e as disputas/competição que caracterizam a luta por poder dentro das organizações. No geral, tais intervenções são medidas que se inserem em estratégias de socialização e controle nem sempre explícitas.
Certamente, as organizações, especialmente o grupo que detém o poder, não estão desatentas a tais questões. As mudanças sociais e políticas oriundas do processo de democratização trouxeram para a cena organizacional a presença dos trabalhadores organizados através dos seus sindicatos e a imposição da necessidade de negociação. As relações trabalhistas passaram a ser uma preocupação. Esta realidade, embora ainda restrita a uma "elite" de trabalhadores, tem repercussão no âmbito das organizações. São criados departamentos, setores organizacionais e pessoas ou equipes se responsabilizam por "negociar". Surge o especialista em "relações trabalhistas". Medidas como essa, certamente significam uma ampliação das competências do setor de ARH e um reconhecimento de que o conflito de interesses existe e deve ser trabalhado. Todavia, a ênfase tem sido quase que exclusivamente, no processo de negociações coletivas, nos momentos de dissídios coletivos. Ou seja, trata-se o conflito como sendo uma questão episódica na expectativa de tomá-lo confinado em uma "caixinha" do organograma da organização lida como esta questão, apenas os que trabalham naquela "caixinha". Equece-se, contudo, que o conflito reflete todo o contexto de trabalho e manifesta-se, mais ou menos intensamente, em todos os níveis, no dia a dia da organização. As relações com o trabalhador têm que ser vistas em sua totalidade e continuamente e não apenas, nos momentos de "crise". Isso não significa, necessariamente, amortecer, escamotear o conflito, prática ainda dominante. Esta postura se deve ao fato de não sabermos como lidar com esse fenômeno natural em todo agrupamento humano, em tomá-lo somente como um rompimento do ritmo normal, da homeostase da organização, mais um desejo, uma quimera do que realidade.
Assumir o conflito como algo inerente à organização, tomá-lo como um fato corriqueiro, comum na vida organizacional, implica em se repensar todo o instrumental técnico/gerencial disponível, no geral calcados no modelo burocrático autocrático que pauta as ações administrativas. Nesta perspectiva se insere toda a discussão sobre participação/democratização nas organizações, que vão exigir do profissional, inclusive do psicólogo, a incorporação de novas posturas para condução das velhas e novas tarefas demandadas por este novo contexto. Os estudos sobre poder e liderança deixam claras as dificuldades e barreiras envolvidas na distribuição do poder nas organizações e o desafio de se preparar lideranças capazes de lidar com esse fenômeno que afeta a quase totalidade das interações na vida organizacional(
Em síntese, gostaria de assinalar que vivemos em um mundo cujas transformações contínuas estão profundamente aceleradas. Estas mudanças afetam significativamente as organizações voltadas para o trabalho, quer no setor privado, quer no setor público. Tais transformações estão a exigir medidas corajosas que substituam os modelos arcaicos, ultrapassados de se lidar com os indivíduos dentro das organizações. Na realidade, a exigência é de construção de novos modelos já que eles não existem prontos. Os dois desafios colocados pelo avanço do conhecimento sobre o comportamento organizacional, para aqueles que têm a responsabilidade de gerenciar recursos humanos, certamente não esgotam todas as mudanças que se fazem necessárias. Eles, contudo, apontam numa direção -quer tratemos da organização, quer dos indivíduos, está completamente superada a fase de "pacotes prontos", de "modelos gerais" nos quais devemos enquadrar todas as realidades. Tratar organizações e indivíduos em suas singularidades, em síntese,nos parece ser o grande desafio para que tenhamos organizações mais fortes e indivíduos mais realizados através da sua atividade produtiva.
Notas
Trabalho apresentado na mesa-redonda "Perspectivas e problemas na atuação do Psicólogo" promovida pelo CRP-01 em 27/8/91.
- 1 Katz, D. e Kahn, R. (1973). Psicologia Social nas Organizações. São Paulo: Atlas.
- 2 Bastos, A. V. B. (1991). Aspectos comportamentais nas teorias organizacionais - o desafio de construir uma teoria do comportamento humano nas organizações. Anais do XV Encontro Nacional da ANPAD. Belo Horizonte.
- 4 Lawrence, P. e Lorsh, j. (1967). Organization and environment. Cambridge, Mass.: Harvard University Press.
- 5 Bacharach, S. B. e Lawler, E. J. (1981). Power and Politics in Organizations. San Francisco: Jossey-Bass Inc. Publishers.
- 6 Hollander, E. P. e Offerman, L. R. (1990). Power and leadership in organizations. American Psychologist. 45(2), 179-189.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Set 2012 -
Data do Fascículo
1992