Condições estruturais |
E1 - Entre buracos e bichos:Na cela só tinha o colchão, a jega [espécie de cama de cimento], o boi [buraco no chão utilizado como vaso sanitário]. Banheiro lá, se não colocar uma garrafa dessas de refrigerante, a gente pega ela, amarra em cima, e amarra no cano que desce a água e enche ela de água, tampa. No Vale [presídio] tem vasos sanitários, mas no Urso [outro presídio] era só uma espécie de buraco, onde a gente fazia as necessidades, só na massa, bruta mesmo, não era nem queimado. Ali dava muita doença, a gente só tinha cortina de pano. Então, para a gente não ficar com aquele odor, aquele fedor dentro da cela, a gente colocava essa garrafa na boca do cano e encaixava ela, aí não vinha aquele cheiro. Mas se tirava a garrafa, não tinha quem aguentasse. . . . Fora o negócio dos tapuru, do corredor. É coisa de louco! Os caras colocavam comida para fora da cela, em umas canaletas, que não eram limpas, ficavam cheias de coisa e ia enchendo de água, ia apodrecendo aquela água e criando tapuru. Aí os bichos vinham pra dentro da cela, ficavam no corredor. É muita coisa ali, Dra. O cara estando preso... Acordava com os tapurus subindo pelos meus braços. Acho que aquele cheiro daqueles bichos jamais sairá do meu nariz, parece que estou sempre fedendo àquilo! (Saturno). |
Qualidade da alimentação |
E2 - Comida para prejudicar:A comida que vem é muito ruim. Ontem mesmo, o feijão estava azedo! Às vezes vem aberta, você não sabe o que tem lá dentro. Não sei por que, parece que querem prejudicar o preso! Estou há três dias sem conseguir comer (Mercúrio). |
Condições da água |
E3 - Água insalubre?Houve uma situação em que várias pessoas, inclusive eu, começamos a passar mal (fortes dores na barriga e diarreia). Percebi que isso começou quando passei a tomar a água que os presos tomavam. Conversando com alguns a respeito da situação, eles relataram que era comum passarem mal por isso, que a água, volta e meia, piorava e muitos passavam mal e que, na prisão, era ainda pior que na Acuda. Ao perguntar a respeito para os responsáveis, na Associação, eles mencionaram que, a princípio, não havia problemas com a água dali, mas que já haviam solicitado à Secretaria uma análise, que nunca foi realizada (Diário de Campo, 18 de setembro de 2017). |
Condições de vida pós-aprisionamento |
E4 - Emprego na base da cadeia alimentar:Quando sair, quem vai dar oportunidade de emprego para preso? Se há um que nunca foi preso e outro que foi, óbvio que vão escolher o que nunca foi preso. Na cadeia alimentar, o preso está na base de tudo (Mercúrio). |
E5 - Ciclo preconceito-retorno ao crime: a culpa é de quem?Eu entendo, professora, que estas pessoas também são vítimas. Não são coitadinhos, todos têm que pagar pelos seus próprios erros, mas será que a própria sociedade não tem culpa por também não dar oportunidade? É o que mais acontece, o cara sai da cadeia e amanhã está de volta. Lá fora o preconceito é muito grande (Mercúrio). |
Violência, acesso à saúde e medicação na prisão |
E6 - Encobrindo a costela quebrada:Passei mais de seis meses, um ano com a costela quebrada dentro da cadeia e não fui atendido. Porque a polícia, quando chega, não quer saber se tu és bandido, se tu estás certo. Para eles não tem diferença; já chegam batendo, já chegaram batendo muito. Eu cheguei muito machucado, precisando de atendimento médico e não tive. Depois, quando eu tive o atendimento médico, eles escondiam o meu Raio-X, acredito que querendo esconder o fato de ter sofrido violência (Mercúrio). |
E7 - Pânico do chaveiro:Mercúrio, logo após meditar, perguntou se poderia conversar comigo. Contou que sentia muito medo, mas que sentiu que poderia conversar comigo, porque eu era psicóloga e ele sabia a respeito do sigilo. Relatou não estar dormindo direito há um bom tempo, não conseguir relaxar ou descansar, tendo perda de peso e cabelo. Sentia-se vigiado o tempo todo por outros presos. Como era chaveiro antes de entrar na prisão, passou a ser disputado pelas facções, mas não queria e não ia entrar como membro em nenhuma, mesmo que isso significasse perder a sua vida. Por sofrer ameaças e não saber o que seria, tinha medo o tempo todo (Diário de Campo, 22 de agosto de 2017). |
E8 - Coração comido:Recebi, juntamente com a pedagoga da Associação e, também, por solicitação dela, um preso que estava ingressando na Acuda. A solicitação veio porque as pessoas não o entendiam direito e porque não sabia passar seus dados de identificação e outras informações. Estava bastante abatido e tinha uma cicatriz grande no pescoço que indicava, provavelmente, uma cirurgia. De toda forma, logo descobrimos os motivos de sua desorganização e falta de memória. O irmão dele também estava na Acuda e nos contou que, até bem pouco tempo, ele era um homem “normal e forte”, mas que “definhou” após saber que iria ser morto em uma rebelião. Ele foi transferido na noite anterior, mas acabou sabendo que, no seu lugar, um colega de cela havia sido morto e o outro obrigado a comer o coração dele (Diário de Campo, 9 de novembro de 2017). |
E9 - Apanhar para obedecer:Apolo relata ter apanhado muito ao ser preso e ter ficado com um “buraco” (sic) na cabeça: “Às vezes, ainda sinto muita dor de cabeça. Eles me bateram muito, foram muitos chutes na minha cabeça, fiquei todo roxo e com duas costelas quebradas. . . . No início da cadeia sentia muito medo de apanhar de novo, agora estou mais tranquilo, porque eu obedeço” (Apolo). |
E10 - Surras fora da lei:O sistema carcerário trata o preso como bicho. Prende, apanha! É isso que nós estamos vivendo! O sistema carcerário é desumano! Eu vi camaradas apanharem nas pernas de ficarem roxas. Roxa, roxa, mesmo assim! Apanharam dos policiais! Colocam todos de cueca, um do lado do outro e pau e pau! Choque, meu irmão?! Eles podem fazer isso? A lei diz que não, diz que tem que resguardar a integridade física do preso. Até hoje eu não entendo. Até onde eu sei, nós somos presos de justiça, somos responsabilidade do Estado. Muitas vezes o preso está batendo o pé dentro da prisão para poder ter um atendimento médico. Se ele diz: “Por favor, me tirem para a enfermaria, por favor!” Tu sabes o que ele vai receber? Vai lá para a frente e ó, peia! Aí o preso volta quietinho, fica uma, duas semanas, quietinho e doente. Pior do que estava (Mercúrio). |
E11 - O transporte no(do) inferno:Vi, de longe, Apolo com as mãos nas costas, mancando, com expressão de dor. Aproximei-me dele e perguntei o que havia acontecido. Ele disse que solicitou a escolta porque precisava ir ao banco e foi saltando desde que o camburão começou a andar. Contou que, para fazer o deslocamento, os presos são algemados com as mãos nas costas e colocados soltos lá dentro. Logo, toda vez que o camburão passava por redutores de velocidade ou fazia curvas, ele saltava e caía bruscamente. Disse que estava com muita dor na região no cóccix e que essa situação era comum: a de pedir escolta e voltar machucado. Depois disso, relatou ter ido até a enfermaria da casa prisional para pedir remédio para dor, mas o remédio que lhe foi dado estava com o prazo de validade vencido. Comentou que muitos presos acabam solicitando escolta somente quando não há alternativa, inclusive a escolta da saúde, que era a mesma para todas as situações. Ouvi relatos de muitos que acabavam desistindo de ir ao médico porque diziam voltar piores e machucados, mas que não conseguiam relatar estas situações por medo de represálias (Diário de Campo, 21 de agosto de 2017). |
E12 - Me dá um remédio aí:Fora as humilhações com os agentes. A gente chegava lá com dor e pedia um comprimido, daí eles me diziam: “Arruma um para mim aí também!”. Daí eu dizia: “Se eu tivesse não estaria te pedindo” (Saturno). |
E13 - Emergência pode esperar:Tudo aconteceu por volta das 11h, quando a Acuda solicitou à escolta e ao serviço de emergência. Enquanto esperavam, os colegas tentaram aplicar várias Pics, sem sucesso. Era um clima de bastante preocupação e angústia, já que não havia o que ser feito a não ser ficar tentando contato com os responsáveis. O serviço de emergência chegou para buscá-lo somente cinco horas após solicitado. Justificaram que só havia uma ambulância, mas um dos agentes da escolta deixou escapar, falando baixo e rindo, que estavam só esperando para buscar o corpo. O preso foi levado ao hospital e, depois de três dias internado, retornou para a casa prisional (Diário de campo, 23 de novembro de 2017). |