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Redes Sociais Significativas Maternas: Significados e Movimentos Diante do Autismo

Maternal Significant Social Networks: Meanings and Movements in the Face of Autism

Resumo:

O diagnóstico de uma condição crônica na família tende a movimentar as relações intra e extrafamiliares. No caso do Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), essa movimentação tende a ocorrer de forma significativa com os vínculos maternos, visto que as mães costumam ser as principais cuidadoras dos filhos com esse diagnóstico. Assim, o presente estudo objetivou investigar os impactos do diagnóstico de TEA nas redes sociais significativas maternas e como as mães lhes atribuíram sentido. Participaram 12 mães de filhos diagnosticados com TEA na infância, com as quais foram realizadas entrevistas reflexivas e construídos dois mapas de redes sociais significativas, um anterior e outro posterior ao TEA. A análise dos dados foi feita através da Grounded Theory . No momento inicial da entrevista, foi possível perceber que a maioria das participantes se referiu ao sentimento de não ter apoio, expressando desamparo. Todavia, ao longo do processo de construção dos mapas, percebeu-se relevante mudança no discurso das mães, que reconheceram e se surpreenderam com a presença de vínculos importantes nas suas redes sociais, embora, da sua perspectiva, eles não lhes proporcionem o apoio necessário. Portanto, destaca-se a importância da ativação das redes sociais significativas das mães, bem como a instrumentalização dessas redes para que possam estar presentes de maneira efetiva e fornecer apoio, salientando-se o importante papel de profissionais da saúde e da educação nesse cenário. Por fim, aponta-se o mapa de redes enquanto potente instrumento clínico e de pesquisa.

Palavras-chave:
Autismo; Distúrbios Globais do Desenvolvimento; Redes Sociais; Maternidade

Abstract:

The diagnosis of a chronic condition in the family tends to move intra- and extra-family relationships. In the Autistic Spectrum Disorder (ASD) case, this movement tends to occur significantly with maternal bonds, since mothers are often referred as the main caregivers of children with this diagnosis. Thus, this study aimed to investigate the impacts of the ASD diagnosis on significant maternal social networks and how mothers signify these implications. Twelve mothers of children diagnosed with ASD in childhood participated, with whom reflective interviews were carried out and two maps of significant social networks, one before and one after the ASD, were constructed. Data analysis was performed by using Grounded Theory. At the beginning of the interview, it was possible to observe that most participants reported the feeling of having no support, expressing helplessness. However, throughout the mapping process, a relevant change was noticed in the mothers’ discourse, who recognized and were surprised by the presence of important members in their social networks, although, in their perspective, they do not provide them the necessary support. Therefore, the importance of activating the mothers’ significant social networks is highlighted, as well as the instrumentalization of these networks so that they can be effectively present and provide support, emphasizing the important role of health and education professionals in this scenario. Finally, the network map is pointed out as a powerful clinical and research tool.

Key-words:
Autism; Global Developmental Disorders; Social Networks; Motherhood

Resumen:

El diagnóstico de una enfermedad crónica en la familia tiende a trasformar las relaciones intra y extrafamiliares. En el caso del trastorno del espectro del autismo (TEA), este movimiento tiende a ocurrir de manera significativa con los vínculos maternos, ya que las madres son referidas como las principales cuidadoras de los niños con este diagnóstico. Este estudio tuvo por objetivo investigar el impacto del diagnóstico de TEA en las redes sociales maternas significativas y cómo las madres dieron sentido a estas implicaciones. Participaron en este estudio doce madres de niños diagnosticados con TEA en la infancia, y se utilizaron entrevistas reflexivas y mapas de redes sociales significativas, uno para antes y otro para después del TEA. El análisis de datos se basó en la teoría fundamentada. Al inicio de la entrevista, la mayoría de las participantes refirieron sentir que no tenían apoyo. Sin embargo, en el proceso de construcción de los mapas se vio un cambio en el discurso de las madres, quienes comenzaron a reconocer y sorprenderse por la presencia de vínculos importantes en sus redes sociales, aunque estos no les brindaran el apoyo necesario. Se resalta la importancia de activar las redes sociales significativas de las madres, así como la instrumentalización de estas redes para que puedan estar efectivamente presentes y brindar apoyo, enfatizando el papel de los profesionales de la salud y la educación. Además, se señala el mapa de la red como una poderosa herramienta clínica e investigativa.

Palabras clave:
autismo; trastornos del desarrollo global; redes sociales; maternidad

Introdução

O conceito de rede social significativa é definido por Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ) como o conjunto de todos os vínculos que um sujeito considera como importantes em seu universo relacional, abrangendo todas as suas relações interpessoais, sejam elas familiares, de amizade, comunitárias ou de trabalho. Por isso, a rede social significativa corresponde a um valioso recurso do qual o indivíduo pode dispor, tendo em vista seus efeitos diretos na autoestima, identidade e competência (Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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; Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ).

Além disso, as redes sociais significativas são fundamentais em momentos de crise, já que influem diretamente na capacidade dos indivíduos no enfrentamento de situações difíceis, sejam estas crônicas ou temporárias. A possibilidade de sentir-se reconhecido pelo outro, através da compreensão, aceitação e respeito às próprias emoções, opiniões, ações, sentimentos e comportamentos, bem como por meio de ajuda material ou de conselhos, evidencia a importância do papel desempenhado pelas redes na vida dos sujeitos. Por isso, existe uma estreita relação entre a qualidade das redes sociais de um indivíduo e a qualidade do seu próprio desenvolvimento pessoal (Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
https://www.revistanps.com.br/nps/articl...
; Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ). Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ) afirma que:

Existem provas fidedignas de que uma rede pessoal estável, sensível, ativa e confiante protege as pessoas das enfermidades, atua como um agente de ajuda e derivação, afeta a pertinência e a rapidez da utilização dos serviços de saúde, acelera os processos de cura e aumenta a sobrevida

( p. 67Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ).

Ainda, destaca-se o fenômeno inverso, ou seja, o efeito que a saúde ou doença do indivíduo pode ter na sua rede. Para Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ), as condições crônicas, em especial, podem produzir um grande impacto nas relações interpessoais de um sujeito, que pode passar a ser isolado pelos outros ou a se isolar voluntariamente. Portanto, podem ser desencadeados os círculos viciosos, como denominados pelo autor, em que a doença do sujeito afeta negativamente sua rede, e a rede insuficiente afeta negativamente sua saúde (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ).

Como exemplo de uma situação de crise que demanda ajuda da rede, ao mesmo tempo que tem efeitos sobre esta, considera-se o diagnóstico de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) em um filho. O TEA consiste em um transtorno do neurodesenvolvimento que tem início na infância, embora possa ser diagnosticado após esse período, e se caracteriza por: a) déficits na comunicação, interação e reciprocidade social; e b) padrões restritos e repetitivos de comportamentos, interesses e atividades (American Psychiatric Association [APA], 2013 American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders: DSM-5 (5a ed.). American Psychiatric Publishing, Inc. https://doi.org/10.1176/appi.books.9780890425596
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).

O diagnóstico de TEA atinge todos os membros da família, sendo identificado como um estressor significativo para esta (Fairthorne, de Klerk, & Leonard, 2015 Fairthorne, J., de Klerk, N., & Leonard, H. (2015). Health of mothers of children with intellectual disability or autism spectrum disorder: A review of the literature. Medical Research Archives, (3), 1-21. https://doi.org/10.18103/mra.v0i3.204
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; Karst, & van Hecke, 2012 Karst, J. S., & van Hecke, A. V. (2012). Parent and family impact of autism spectrum disorders: A review and proposed model for intervention evaluation. Clinical Child and Family Psychology Review, 15, 247-277. https://doi.org/10.1007/s10567-012-0119-6
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; Russa, Matthew, & Owen-De Schryver, 2015 Russa, M. B., Matthew, A. L., & Owen-DeSchryver, J. S. (2015). Expanding supports to improve the lives of families of children with autism spectrum disorder. Journal of Positive Behavior Interventions, 17(2), 95-104. https://doi.org/10.1177/1098300714532134
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). O cotidiano familiar passa a ser inteiramente voltado para o membro com TEA, fenômeno que tem efeitos diretos na rotina, horários e atividades diárias de todos os envolvidos (Constantinidis, Silva, & Ribeiro, 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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; Klinger et al., 2020 Klinger, E. F., Lopes, H. B., Oliveira, D. P., Meneses, I. C., & Suzuki, J. S. (2020). Dinâmica familiar e redes de apoio no Transtorno do Espectro Autista. Revista Amazônia: Science & Health, 8(1), 123-137. http://ojs.unirg.edu.br/index.php/2/article/view/3112
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; McAuliffe et al., 2018 McAuliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers’ health and wellbeing. Australian Occupational Therapy Journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524
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). Essa perspectiva vai ao encontro das elaborações de Rolland ( 2016Rolland, J. S. (2016). Enfrentando os desafios familiares em doenças graves e incapacidade. In F. Walsh. Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (S. M. M. Rosa, Trad., 4a ed., pp. 522-555). Artmed. ) sobre os efeitos do diagnóstico de uma condição crônica na dinâmica familiar, tendo em vista que o autor aponta para uma tendência de fechamento da família em torno de si própria, num movimento centrípeto que estreita os laços familiares e os afasta do convívio social mais amplo.

Em conformidade a isso, Minatel e Matsukura ( 2014 Minatel, M. M., & Matsukura, T. S. (2014). Famílias de crianças e adolescentes com autismo: Cotidiano e realidade de cuidados em diferentes etapas do desenvolvimento. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 126-134. https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v25i2p126-134
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), que estudaram o cotidiano de famílias com filhos diagnosticados com TEA em diferentes etapas do desenvolvimento, observaram a tendência de reorganização familiar em torno deste membro, no que tange às rotinas tanto interna e domiciliar quanto externa e social. Quanto a esta, discute-se a dificuldade de adequação do filho com TEA às normas e espaços sociais, o que tem efeitos no convívio e inserção social da família como um todo (Minatel, & Matsukura, 2014 Minatel, M. M., & Matsukura, T. S. (2014). Famílias de crianças e adolescentes com autismo: Cotidiano e realidade de cuidados em diferentes etapas do desenvolvimento. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 25(2), 126-134. https://doi.org/10.11606/issn.2238-6149.v25i2p126-134
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), podendo ter efeitos mais significativos nas redes sociais significativas maternas.

Esses aspectos podem ser vivenciados de forma mais intensa pelas mães, pois elas são mencionadas pela literatura como as principais cuidadoras de filhos com TEA (McAuliffe et al., 2018 McAuliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers’ health and wellbeing. Australian Occupational Therapy Journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524
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; Smeha & Cezar, 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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; Zanatta et al., 2014 Zanatta, E. A., Menegazzo, E., Guimarães, A. N., Ferraz, L., & Motta, M. G. C. (2014). Cotidiano de famílias que convivem com o autismo infantil. Revista Baiana de Enfermagem, 28(3), 271-282. https://doi.org/10.18471/rbe.v28i3.10451
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), o que parece se refletir em altos níveis de estresse e sintomatologia depressiva (Müller, 2014 Müller, C. P. P. R. (2014). Perturbações do espectro do autismo na criança: Percepção materna do stress parental e do impacto do problema na família [Dissertação de mestrado, Universidade de Lisboa]. Repositório da ULisboa. https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/15412/1/ulfpie046656_tm.pdf
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; Wadden, 1994 Wadden, N. K. (1994). Severe developmental disorders: Social support and maternal adaptation [Dissertação de mestrado, Dalhousie University]. Repositório da Dalhousie University. https://dalspace.library.dal.ca/handle/10222/55430
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). Compreende-se que essas mulheres passam por um longo e intenso processo de elaboração psíquica e adaptação instrumental a partir do diagnóstico dos filhos, desafiando-as em seu próprio processo desenvolvimental (Smeha & Cezar, 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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).

No estudo de Constantinidis et al. ( 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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), do qual participaram seis mães de crianças com TEA, elas relataram não ter tempo nem disposição para cuidar de si mesmas ou de seus interesses, tendo passado a viver a história dos filhos e deixando sua própria identidade e desejos em segundo plano. Portanto, mães de filhos com TEA podem se encontrar sobrecarregadas e vulneráveis, tendo em vista a intensa dedicação aos cuidados gerais do filho, somada ao desempenho das tarefas domésticas e à atenção destinada aos demais membros da família (Constantidinis, Silva, & Ribeiro, 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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; McAuliffe et al. 2018 McAuliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers’ health and wellbeing. Australian Occupational Therapy Journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524
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; Dias, 2017 Dias, C. C. V. (2017). Mães de crianças autistas: Sobrecarga do cuidador e representações sociais sobre o autismo [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Paraíba]. Repositório institucional da UFPB. https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9081
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).

Nesse cenário, enfatiza-se ainda mais a importância das redes sociais significativas maternas, sendo fundamental a presença de vínculos que prestem um apoio efetivo, considerando-se a influência que podem ter nos níveis de estresse e sobrecarga apontados por mães de filhos com TEA (Faro et al., 2019 Faro, K. C. A., Santos, R. B., Bosa, C. A., Wagner, A., & Silva, S. S. C. (2019). Autismo e mães com e sem estresse: Análise da sobrecarga materna e do suporte familiar. Psico, 50(2), e30080. https://revistaseletronicas.pucrs.br/index.php/revistapsico/article/view/30080
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; Kuhn, Ford, & Dawalt, 2018 Kuhn, J., Ford, K., & Dawalt, L. S. (2018). Brief report: Mapping systems of support and psychological well-being of mothers of adolescents with autism spectrum disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, 48(3), 940-946. https://doi.org/10.1007/s10803-017-3381-0
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; Ekas, Lickenbrock, & Whitman, 2010 Ekas, N. V., Lickenbrock, D. M., & Whitman, T. L. (2010). Optimism, social support, and well-being in mothers of children with autism spectrum disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, 40(10), 1274-1284. https://doi.org/10.1007/s10803-010-0986-y
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). Isso corrobora a já referida perspectiva de Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ), quando afirma que redes estáveis, ativas e confiáveis operam como fatores de proteção para os sujeitos. Nessa linha, Meimes, Saldanha e Bosa ( 2015 Meimes, M. A., Saldanha, H. C., & Bosa, C. A. (2015). Adaptação materna ao transtorno do espectro autismo: Relações entre crenças, sentimentos e fatores psicossociais. Psico, 46(4), 412-422. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.4.18480
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) defendem que o impacto do TEA na vivência materna pode ser contornado e melhor experienciado quando mediado por uma rede de apoio de qualidade. Do mesmo modo, o estudo de Schmidt e Bosa ( 2007 Schmidt, C., & Bosa, C. (2007). Estresse e auto-eficácia em mães de pessoas com autismo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 59(2), 179-191. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/arbp/v59n2/v59n2a08.pdf
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) aponta que, quando percebido como satisfatório, o apoio recebido caracteriza-se como de extrema relevância, podendo funcionar como atenuante do estresse materno, impedindo-o de avançar para fases mais agudas.

Contudo, quando as pessoas que poderiam se apresentar enquanto apoiadoras passam a solicitar apoio excessivo da mãe, ocorre o estabelecimento de círculos viciosos (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ), o que pode potencializar a sobrecarga materna no cuidado com o filho com TEA. O estudo de Smith, Greenberg e Seltzer ( 2012 Smith, L. E., Greenberg, J. S., & Seltzer, M. M. (2012). Social support and well-being at mid-life among mothers of adolescents and adults with autism spectrum disorders. Journal of autism and developmental disorders, 42(9), 1818-1826. https://doi.org/10.1007/s10803-011-1420-9
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), realizado com mães de adolescentes e adultos com TEA, concluiu que a presença de vínculos na rede de apoio que demandam muito das mães foi correlacionada estatisticamente com maiores níveis de mal-estar e sintomas depressivos maternos.

Em vista do exposto, considerando-se a importância dos efeitos recíprocos entre o diagnóstico de uma condição crônica na rede social significativa de um indivíduo e a qualidade do apoio prestado pela rede no enfrentamento do diagnóstico, destaca-se a importância de se compreender como esses fenômenos se articulam no cenário da maternidade frente ao TEA. Diante disso, este estudo teve como objetivo investigar os impactos do diagnóstico de TEA nas redes sociais significativas maternas e como as mães lhes atribuíram sentido.

Método

Esta investigação caracteriza-se como de caráter qualitativo, exploratório e transversal. Como referencial epistemológico, partiu-se da Teoria do Pensamento Complexo de Morin ( 2011Morin, E. (2011). Introdução ao pensamento complexo (E. Lisboa, Trad., 4a ed.). Sulina. ), a qual considera a realidade como multifacetada, incerta, imprevisível e complexa. Adotou-se uma perspectiva construtivista que perpassou todas as etapas da pesquisa, a partir da consideração de que o conhecimento construído é produto da interação entre pesquisador e pesquisado.

Participaram 12 mães de filhos diagnosticados com TEA na infância. Embora oito deles se encontrassem na fase da infância, dois na adolescência e dois na fase adulta no momento da realização da pesquisa, todos receberam o diagnóstico ainda na infância. Desse modo, o marco da análise dos dados se deu através da comparação da perspectiva materna acerca do período anterior e posterior ao diagnóstico de TEA.

As participantes foram contatadas a partir de uma associação de apoiadores e familiares de pessoas com TEA, localizada em uma cidade no interior do Rio Grande do Sul. A idade das mães variou de 25 a 61 anos, com média de 38 anos, enquanto a idade dos filhos com TEA variou de 3 a 30 anos, com média de 10 anos. A renda familiar mensal média era de R$ 3.550,00, enquanto o grau de escolaridade variou entre Ensino Médio Completo e Ensino Superior Completo. Quanto ao estado civil e coabitação, 10 eram casadas, sendo que oito delas coabitavam com o marido e filho(s), e duas coabitavam com marido, filho(s) e membros da família extensa, como irmãos e mãe. Ainda, duas das participantes eram divorciadas, mas tinham companheiro que coabitava com elas e seus filhos. Quanto à ocupação, no momento da realização da pesquisa, todas as participantes caracterizaram-se como “do lar”.

A coleta de dados se deu por meio de dois instrumentos: a) entrevista reflexiva; e b) mapa de redes sociais significativas. Quanto à primeira, sua aplicação se deu em duas etapas: a inicial, em que se realiza uma entrevista com eixos norteadores sobre a temática estudada; e a final, em que se “reflete” a fala do entrevistado, expressando a ele a compreensão do pesquisador, como uma forma de aprimorar a fidedignidade dos dados coletados e valorizar o seu dinamismo. Desse modo, o conhecimento é construído em conjunto por pesquisador e pesquisado (Yunes, & Szymanski, 2005 Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2005). Entrevista reflexiva & grounded theory: Estratégias metodológicas para compreensão de resiliência em famílias. Revista Interamericana de Psicologia, 39(3). https://www.researchgate.net/publication/26610593_Entrevista_reflexiva_grounded-theory_estrategias_metodologicas_para_compreensao_da_resiliencia_em_familias
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).

Já o mapa de redes, proposto por Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ), caracteriza-se como um instrumento clínico adaptado à pesquisa, que possibilita a investigação do grau de compromisso das redes sociais significativas constituídas em torno de contextos específicos, permitindo a análise qualitativa do seu impacto nos processos vitais de desenvolvimento. A construção do mapa consiste no registro gráfico dos membros da rede pessoal significativa do sujeito de pesquisa, sistematizada por um diagrama formado por três círculos concêntricos (interno, intermediário e externo), divididos em quatro quadrantes básicos: a) família; b) amizades; c) relações de trabalho; e d) relações comunitárias. O círculo interno representa as relações mais íntimas, o intermediário as relações com menos grau de compromisso e o externo as relações ocasionais. O indivíduo pode acrescentar quantos membros quiser, distribuindo-os nos diferentes quadrantes e círculos. Conforme sugerido por Moré e Crepaldi ( 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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), é interessante que a realização de uma entrevista preceda a construção do mapa de redes, como forma de complementá-lo e servir como ponto de partida para sua construção. É importante destacar, ainda, que o registro do mapa é estático e relativo ao momento de sua construção, podendo ser modificado ao longo do tempo (Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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; Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ).

Neste estudo, os instrumentos foram aplicados em dois encontros, realizados com cada participante individualmente, sendo cada um deles dividido em dois momentos. No primeiro momento do Encontro 1 (“Encontro 1, Momento 1”), realizou-se a primeira etapa da entrevista reflexiva, na qual as participantes foram convidadas a falar sobre questões abertas previamente formuladas e organizadas nos eixos norteadores: a) história da mãe e do filho; b) relações interpessoais da mãe; e c) cotidiano da mãe. Ainda, foram incluídas perguntas específicas sobre as redes sociais significativas, propostas por Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ) para o momento que antecede a construção do mapa de redes, como “quem são as pessoas mais importantes da sua vida?”, “com quem você conversou, ou encontrou, na semana passada?”, “quando você está com vontade de visitar alguém, para quem você liga?”. Finalizado o Momento 1, passou-se para um segundo momento (“Encontro 1, Momento 2”), em que as participantes construíram um mapa de redes sociais significativas referente à constituição da sua rede pessoal no momento em que foi realizada a pesquisa (“Mapa 1”).

No primeiro momento do Encontro 2 (“Encontro 2, Momento 1”), ocorreu a segunda etapa da entrevista reflexiva, em que a entrevista do “Encontro 1, Momento 1” foi retomada, a fim de que as participantes pudessem concordar, discordar ou acrescentar informações às interpretações da pesquisadora. Posteriormente, passou-se para um segundo momento (“Encontro 2, Momento 2”), no qual foi construído um segundo mapa de redes sociais significativas, dessa vez referente à constituição de suas redes pessoais antes do diagnóstico de TEA do filho (“Mapa 2”).

Por fim, os dois mapas de redes foram comparados, a fim de que as participantes pudessem observar as modificações ocorridas. A Tabela 1 mostra a comparação numérica de ambos os momentos, a partir de uma soma dos dados de todas as participantes referentes aos Mapas 1 (141 vínculos) e 2 (168 vínculos):

Tabela 1
Dados numéricos gerais do mapa de redes sociais significativas.

A aplicação dos instrumentos se deu de forma remota, através de videochamadas no aplicativo Google Meet . O esqueleto do mapa de redes (quadrantes e círculos) era aberto no aplicativo Paint e projetado na tela, de modo que a participante pudesse visualizá-lo e indicar à pesquisadora onde e como acrescentar os membros da sua rede.

Para o tratamento dos dados, utilizou-se a Teoria Fundamentada nos Dados (TFD), ou Grounded Theory , em sua perspectiva construtivista proposta por Charmaz ( 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed. ). Destaca-se que esta é indicada por Moré e Crepaldi ( 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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) como referência na análise de mapas de rede. Ainda, a TFD é indicada por Yunes e Szymanski ( 2005 Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2005). Entrevista reflexiva & grounded theory: Estratégias metodológicas para compreensão de resiliência em famílias. Revista Interamericana de Psicologia, 39(3). https://www.researchgate.net/publication/26610593_Entrevista_reflexiva_grounded-theory_estrategias_metodologicas_para_compreensao_da_resiliencia_em_familias
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) em casos de utilização de entrevista reflexiva. Assim, o processo de análise se deu nas seguintes etapas: a) codificação inicial, realizada a partir de leituras detalhadas do material, através das quais se capturam palavras ou frases que expressem a essência do discurso dos participantes, linha a linha, formando códigos iniciais; b) codificação focalizada, em que os códigos mais significativos ou frequentes são utilizados para classificar, sintetizar, integrar e organizar os dados; c) codificação axial, na qual as categorias são interconectadas e relacionadas a subcategorias para gerar explicações mais precisas e completas sobre os fenômenos; e d) codificação teórica, fase em que emergem os conceitos teóricos, refinando e integrando as categorias, e relacionando subcategorias e elementos de análise em busca de fenômenos centrais (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed. ; Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
https://www.revistanps.com.br/nps/articl...
; Yunes, & Szymanski, 2005 Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2005). Entrevista reflexiva & grounded theory: Estratégias metodológicas para compreensão de resiliência em famílias. Revista Interamericana de Psicologia, 39(3). https://www.researchgate.net/publication/26610593_Entrevista_reflexiva_grounded-theory_estrategias_metodologicas_para_compreensao_da_resiliencia_em_familias
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).

Com o intuito de contemplar os padrões científicos e éticos em pesquisa com seres humanos, o presente estudo seguiu os princípios da Resolução n o 510, de 07 de abril de 2016, do Conselho Nacional de Saúde, a qual guia a ética nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Resolução n o 510, 2016 Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016. (2016, 7 de abril). Ministério da Saúde. http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pd
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). Atendendo às exigências da resolução, foram respeitados os princípios da autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e equidade, assegurando os direitos e deveres dos participantes da pesquisa, da comunidade científica e do Estado.

Por meio dos procedimentos adotados, os resultados foram organizados em três categorias, conforme o momento da pesquisa em que emergiram: a) momento inicial de entrevista (referente ao “Encontro 1, Momento 1”, cujas informações foram validadas pelas participantes no “Encontro 2, Momento 1”); b) construindo o mapa relativo ao período de realização da pesquisa (referente ao “Encontro 1, Momento 2”); e c) construindo o mapa do relativo ao período anterior ao diagnóstico do filho com TEA (referente ao “Encontro 2, Momento 2”). Optou-se por essa divisão tendo em vista que a percepção das participantes foi se modificando ao longo da realização da pesquisa. Logo, os resultados não foram “encontrados”, mas “construídos” (Charmaz, 2009Charmaz, K. (2009). A construção da teoria fundamentada: guia prático para análise qualitativa. Artmed. ; Morin, 2011Morin, E. (2011). Introdução ao pensamento complexo (E. Lisboa, Trad., 4a ed.). Sulina. ; Yunes, & Szymanski, 2005 Yunes, M. A. M., & Szymanski, H. (2005). Entrevista reflexiva & grounded theory: Estratégias metodológicas para compreensão de resiliência em famílias. Revista Interamericana de Psicologia, 39(3). https://www.researchgate.net/publication/26610593_Entrevista_reflexiva_grounded-theory_estrategias_metodologicas_para_compreensao_da_resiliencia_em_familias
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). As participantes foram nomeadas pela letra “M”, de “mãe”, somada ao número correspondente à ordem de realização das entrevistas. Da mesma forma, os filhos com TEA foram nomeados pela letra “F” somada ao número correspondente ao da respectiva mãe.

Resultados e Discussão

Apesar das diferentes faixas etárias dos filhos das participantes no momento das entrevistas, os relatos maternos apresentaram os mesmos temas, assuntos e problemáticas, não sendo diferentes qualitativamente. Ainda, não foram identificadas disparidades nos dados referentes às mães de filhos crianças, adolescentes e adultos no que tange às características das redes sociais significativas investigadas na presente pesquisa. Assim, os dados das participantes serão apresentados em conjunto na discussão das categorias.

Momento inicial de entrevista

Na entrevista anterior à construção do “Mapa 1” (“Encontro 1, Momento 1”), entre as 12 participantes da pesquisa, 11 afirmaram que se sentiam sozinhas, cansadas e desamparadas em diferentes níveis, conforme ilustra a seguinte fala: “ Primeira coisa é essa: ‘que rede de apoio?’. Eu não tenho rede de apoio. É bem difícil ” (M11).

Já M12 afirma:

Eu sinto um desamparo total das mães com filho autista. Parece, assim, que o filho autista é teu, tu botou no mundo, te vira. Entendeu? Parece que a responsabilidade é só minha, e eu que tenho que dar um jeito de fazer ele se encaixar no que é normal, sabe? Porque, se não, ele tá incomodando as outras pessoas .

Em contraponto à experiência da maior parte das participantes, M1 declarou ter o apoio de que precisava: “Eu não tenho do que reclamar, sempre tive apoio de tudo que é lado” (M1). Nesse caso específico, destaca-se a importância que a família adquire para a participante, representada principalmente pela figura do marido, que compartilhava os cuidados com o filho, além de fornecer apoio emocional. Considerando-se a tendência de haver um fechamento intrafamiliar a partir do diagnóstico, como pontua Rolland ( 2016Rolland, J. S. (2016). Enfrentando os desafios familiares em doenças graves e incapacidade. In F. Walsh. Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (S. M. M. Rosa, Trad., 4a ed., pp. 522-555). Artmed. ), discute-se que tal fenômeno pode trazer mais ou menos benefícios para as mães, dependendo do apoio que lhes é prestado. No caso de M1, a união de esforços dos membros familiares fez uma diferença significativa, favorecendo a saúde mental materna e refletindo inclusive nas relações extrafamiliares da mãe, o que não ocorreu com as demais participantes.

Apesar do contraponto trazido por M1, o depoimento de grande parte das mães vai ao encontro do que é retratado por Constantinidis et al. ( 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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), Meimes, Saldanha e Bosa ( 2015 Meimes, M. A., Saldanha, H. C., & Bosa, C. A. (2015). Adaptação materna ao transtorno do espectro autismo: Relações entre crenças, sentimentos e fatores psicossociais. Psico, 46(4), 412-422. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.4.18480
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), e Smeha e Cezar ( 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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), cujos estudos indicam o quanto mães de crianças com TEA sentem-se isoladas. Nesse viés, observa-se que as participantes compreendem essa ausência de apoio como diretamente relacionada ao diagnóstico de TEA, momento a partir do qual sentiram um significativo movimento de afastamento das pessoas com as quais contavam no cotidiano: “ Eu tinha um círculo de amizade muito grande, e eu posso dizer que só restou uma pessoa desse círculo de amizade grande que eu tinha ” (M5); “ Eu penso que [a minha rede de apoio] diminuiu bastante, foi diminuindo, se tu for ver, ficou só os terapeutas ” (M7); “ Depois do autismo parece que a defasagem foi maior ainda. Tu virar mãe, tu já perde uma rede de apoio, e uma mãe de autista ainda perde muito mais ” (M2).

Os relatos evidenciam a discrepância no que se refere ao apoio percebido antes e depois do diagnóstico de TEA. Ainda, cabe ressaltar o destaque feito por M7 no sentido de que ficaram “só os terapeutas”, o que sugere uma aproximação de pessoas a partir do TEA no universo relacional das participantes. Contudo, o uso do advérbio “só” indica a insatisfação das mães com a presença única dos profissionais em sua rede social significativa, o que aponta para uma contrariedade quanto ao afastamento dos demais membros da rede, os quais as participantes gostariam que continuassem presentes.

Ainda, metade das mães (M3, M4, M5, M6, M7 e M12) relataram explicitamente um movimento voluntário de isolamento, declarando que não gostam de fazer amizades ou interagir socialmente, conforme coloca M4:

Eu sou muito reservada, sou muito na minha, eu trato bem as pessoas, converso, mas eu, questão de confiança, eu gosto de falar com quem eu tenho confiança, com quem eu sinto segurança. Amigos é uma coisa assim que eu gosto de amigos ali, tipo assim, eu tô ali no brechó ali da associação, ali, nós tamo ali brincando, passando um momento ali bom, mas a amizade ficou ali, pronto. Eu não levo assim pra mim, pra sempre (M4).

A associação citada por M4 corresponde a uma entidade voltada para familiares, amigos e apoiadores de pessoas com TEA, com a qual ela possui uma relação limitada: frequenta os eventos promovidos pela organização e estabelece relações recreativas, sem maior aprofundamento, de forma que, inclusive, não foram incluídas no seu mapa de redes posteriormente.

Esse fechamento parece estar relacionado com sua característica pessoal de reserva e inibição, mas pode ter se intensificado em função do TEA: “ Eu gosto de estar sempre na retaguarda, porque a convivência também me ensinou a ser assim, pelo fato de ter uma criança diferente, né? ” (M4). Em vista disso, pode-se inferir que o isolamento pelo qual as mães de crianças com TEA costumam passar ao se depararem com o preconceito – conforme referido acima – pode operar de forma com que elas próprias passem a buscar um afastamento social de maneira ativa, não mais atribuindo confiança aos vínculos estabelecidos (Zanatta et al. 2014 Zanatta, E. A., Menegazzo, E., Guimarães, A. N., Ferraz, L., & Motta, M. G. C. (2014). Cotidiano de famílias que convivem com o autismo infantil. Revista Baiana de Enfermagem, 28(3), 271-282. https://doi.org/10.18471/rbe.v28i3.10451
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).

Desse modo, anteriormente à construção do mapa de redes, destacaram-se as percepções de afastamento de vínculos e ausência de apoio efetivo da rede social significativa, fenômenos entendidos pelas mães principalmente como consequência do diagnóstico do filho com TEA. Isso parece também ter servido de base para movimentos de isolamento social, por não sentirem segurança no estabelecimento de novos vínculos após o afastamento dos anteriores.

Construindo o mapa de redes do período posterior ao diagnóstico do filho com TEA

Tendo sido finalizada a entrevista prévia e iniciada a construção do “Mapa 1” (“Encontro 1, Momento 2”), foi possível perceber algumas alterações no discurso das participantes. Nesse sentido, os relatos passaram a oscilar da posição anterior, em que salientavam os afastamentos dos vínculos após o diagnóstico de TEA, para um ponto de vista que passou a considerar de forma concomitante as aproximações decorrentes deste, não mais de forma insuficiente ou insatisfatória, como anteriormente referido:

. . . teve muita gente que se afastou, mas chegou muita gente também (M10).

Enquanto os outros tão fugindo, eu notei que elas [mãe e irmã] se aproximaram, enquanto outros se afastavam por não saber lidar, eu notei que elas se aproximavam pra ver como que tava, dizer que posso contar, enfim (M2).

A partir desses relatos, percebe-se uma modificação nas percepções maternas, que passam a considerar também as aproximações ocorridas após o diagnóstico, não mencionadas no momento anterior de entrevista, no qual foram destacados apenas os afastamentos. Além disso, M2 pontua especificamente a aproximação de figuras femininas – a mãe e a irmã –, apontadas pelo estudo de Lopes, Prochnow e Piccinini ( 2010 Lopes, R. C. S., Prochnow, L. P., & Piccinini, C. A. (2010). A relação da mãe com suas figuras de apoio femininas e os sentimentos em relação à maternidade. Psicologia em Estudo, 15(2), 295-304. http://www.scielo.br/pdf/pe/v15n2/a08v15n2
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) como fundamentais frente à vivência da maternidade, tendo em vista o suporte que oferecem e a identificação que possibilitam à mulher-mãe.

Ressalta-se, ainda, no depoimento de M2, uma tentativa de atribuir sentido às modificações ocorridas na rede, quando se refere a “outros se afastavam por não saber lidar”. Observou-se que, após o início da construção do mapa de redes, foi possível a criação de um significado para esses movimentos de afastamento:

Eu também não julgo porque eu não sei se eu não taria provavelmente... em algum papel de outra pessoa, eu também ia tá transitando aí, sabe? Então... porque a gente não sabe lidar né, melhor às vezes até se afastar mesmo do que tá ali e falar bobagem ou causar uma tristeza, alguma coisa assim. . . .às vezes por ter medo de não saber como responder, aí nem pra perguntar como tá sabe, aí se afastam. (M2)

Eu não sei se as pessoas me deixam sozinha ou eu que me afasto das pessoas, porque eu também sou muito… eu sempre me achei sozinha, né, mas aí a gente olha [para o afastamento das pessoas], assim, dá um pouquinho de pavor, né? (M12).

Nesse contexto, os depoimentos apontam para duas compreensões possíveis para o afastamento de vínculos, possibilitando uma modificação da visão inicial mais pejorativa do fenômeno, frequentemente entendido como um abandono (Constantinidis et al., 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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; Meimes, Saldanha, & Bosa, 2015 Meimes, M. A., Saldanha, H. C., & Bosa, C. A. (2015). Adaptação materna ao transtorno do espectro autismo: Relações entre crenças, sentimentos e fatores psicossociais. Psico, 46(4), 412-422. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.4.18480
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; Smeha & Cezar, 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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). A primeira consideração corresponde ao entendimento de que os afastamentos estariam mais ligados a um sentimento protetivo, de as pessoas não quererem trazer prejuízos à mãe – “falando alguma bobagem ou causando alguma tristeza”, por não compreenderem o TEA – do que a uma aversão ao diagnóstico do seu filho ou despreocupação com o seu bem-estar. Nesse sentido, M2 considera possível que ela própria desenvolvesse essa mesma postura diante de uma situação semelhante à sua.

Já a segunda significação atribuída indica uma tomada de consciência materna de que ela mesma pode se afastar ativamente das pessoas, algo que não tinha sido percebido de forma explícita no momento da entrevista, conforme visto no depoimento de M4. Compreende-se a importância dessas duas formas de atribuição de sentido ao afastamento dos vínculos, de modo a possibilitar um entendimento das mães sobre o ocorrido, oportunizando inclusive o planejamento de ações que conduzam a uma reaproximação:

Com essas pessoas que se afastaram, a gente não vai se afastar delas né . . . o dia que gente se ver, que vai acontecer né, que vai algum lugar, eu vou tratar bem, vou tratar normal, dependendo, posso até comentar, né, que se afastaram da gente depois que a gente descobriu que o F9 é autista, mas tudo bem, eu entendo o motivo das pessoas que pode ser qualquer preconceito, medo, alguma coisa, né? (M9).

Ao finalizarem o “Mapa 1”, as mães desconstruíram a ideia inicial, trazida por elas na entrevista, de que as pessoas ao seu redor se afastaram e as deixaram sem apoio. Ao observarem o mapa pronto, reconheceram que, embora não contem com a rede da forma como gostariam, ainda assim ela se encontra presente e tem uma função muito importante:

Olha, eu achei que eu não tinha ninguém hein [risos], mas, se tu for parar pra pensar, eu tenho bastante gente. Eles acabam ajudando, às vezes parece que é pouco, mas dá uma força. Eu não esperava, eu passo dizendo “eu sou sozinha! Eu não posso contar com ninguém! Quando eu preciso eu não tenho ninguém!” Não pra se fazer de vítima, mas é o que eu penso. Mas, se tu for parar pra pensar, cada um, em algum momento me ajuda, em alguma coisa, pode ser pouca coisa, mas já é uma ajuda. . . . Eu tenho as pessoas comigo, mas não tanto quanto eu gostaria, entendeu? Mas eu tenho umas pessoas ótimas comigo. . . . Obrigada por me deixar participar e permitir ver esse mapa, que às vezes eu me acho uma solitária. Bem legal, adorei, brigada pela experiência. A minha sensação é que eu tô vendo o que eu penso num mapa, tu entendeu? O que eu sinto, eu tô vendo num mapa (M11).

O relato demonstra a mudança na percepção das mães posteriormente à construção do mapa de redes relativo ao período posterior ao diagnóstico do filho com TEA. Destaca-se, já nesta primeira aplicação, a sensibilidade e pertinência do instrumento mapa de redes sociais significativas (Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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), apontado nos depoimentos como uma oportunidade de ressignificação, elaboração e materialização das percepções das participantes acerca dos movimentos das suas redes a partir do diagnóstico de TEA.

Essa movimentação se explicita no caso de M11, que, inicialmente, apontou “que rede? Eu não tenho rede!”, e, após a construção do mapa, afirmou que “eu achei que não tinha ninguém, mas eu tenho bastante gente”. Todavia, ela ainda permanece insatisfeita, pois reconheceu que “tem as pessoas” consigo, mas ainda assim “não é como [ela] gostaria”. Portanto, percebe-se que, apesar da presença da rede, seu apoio é insuficiente, o que aponta para a diferença importante que pode existir entre as características objetivas da rede social e do apoio social percebido subjetivamente (Hough et al., 2005 Hough, E. S., Magnan, M. A., Templin, T., & Gadelrab, H. (2005). Social network structure and social support in HIV-positive inner city mothers. Journal of the Association of Nurses in AIDS Care, 16(4),14-24. https://doi.org/10.1016/j.jana.2005.05.002
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), como fica evidente no seguimento do relato de M11:

Eu não tenho ninguém pra contar agora, pra me dar um apoio. Uma coisa que eu percebi muito é que as pessoas não têm o psicológico pra aguentar. Eles até tão ali, mas eles não conseguem pegar junto. . . . Como que eu vou contar com alguém que diz pra mim “eu não entendo o que ele fala, eu não sei o que eu faço quando ele tá com crise”. É aquele comprometimento até ali, mesmo tu pagando, as pessoas meio que usam uma desculpa também, né? Pra um banho, pra reparar no banho, serve a comida dele enquanto eu tô servindo a [irmã de F11], isso sim. Mas, assim, pra contar pra fechar ali comigo, pra pegar ali comigo no momento que não tá fácil pra ele, ou pra mim, ou pra me ajudar com as atividades dele, é só eu (M11).

Através do que foi exposto por M11, faz-se a suposição de que apenas ela, enquanto mãe, teria “o psicológico para aguentar”, seria capaz de se adaptar às necessidades do seu filho com TEA, já que os demais familiares ou pessoas pagas para exercer o cuidado não o compreendem como ela. Em vista disso, foi-lhe perguntado se, a partir do seu entendimento, ela sente que consegue dar conta das demandas do filho:

Consigo, e, mesmo que eu não conseguisse, eu ia ter que saber lidar com isso. Eu sou o apoio de todos. Eu percebo que as pessoas se sentem mais seguras comigo porque sabem que eu vou saber como agir com ele num momento de crise, ou quando ele faz alguma coisa que eles não compreendem, eles sabem que eu vou tá ali pra dizer o que ele quer, o que ele não quer, que eu vou aguentar e que eu vou saber lidar. Então a gente acaba... eu acabo muito sobrecarregada (M11).

Articulando os elementos trazidos pela participante, compreende-se que, diante da dificuldade de adaptação frente às demandas do filho com TEA, ela foi a única integrante da família que assumiu seu cuidado de forma integral, o que corrobora a tendência de as mães serem apontadas como as principais cuidadoras de filhos com TEA (Constantinidis et al., 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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; Cruz, 2019 Cruz, I. I. C. (2019). Processos de adaptação parental face a diferentes diagnósticos de deficiência [Dissertação de mestrado, Universidade de Évora]. Repositório institucional da Universidade de Évora. http://hdl.handle.net/10174/25540
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; Dias, 2017 Dias, C. C. V. (2017). Mães de crianças autistas: Sobrecarga do cuidador e representações sociais sobre o autismo [Dissertação de mestrado, Universidade Federal da Paraíba]. Repositório institucional da UFPB. https://repositorio.ufpb.br/jspui/handle/tede/9081
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; McAuliffe et al., 2018 McAuliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers’ health and wellbeing. Australian Occupational Therapy Journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524
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; Meimes, Saldanha, & Bosa, 2015 Meimes, M. A., Saldanha, H. C., & Bosa, C. A. (2015). Adaptação materna ao transtorno do espectro autismo: Relações entre crenças, sentimentos e fatores psicossociais. Psico, 46(4), 412-422. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.4.18480
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; Smeha & Cezar, 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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). Frente à fragilização familiar que caracteriza o momento de descobrimento do diagnóstico, observa-se que, seguindo as elaborações de Rolland ( 2016Rolland, J. S. (2016). Enfrentando os desafios familiares em doenças graves e incapacidade. In F. Walsh. Processos normativos da família: Diversidade e complexidade (S. M. M. Rosa, Trad., 4a ed., pp. 522-555). Artmed. ), houve de fato um movimento centrípeto na família de M11. Contudo, os diferentes membros organizaram-se de forma a centralizar o apoio na participante, tida como sustentáculo de toda a família. Desse modo, ela sente a presença dos vínculos incluídos em seu mapa não como fontes de amparo, mas como pessoas que também demandam sua ajuda, o que a sobrecarrega.

Nessa perspectiva, retoma-se o estudo de Smith, Greenberg e Seltzer ( 2012 Smith, L. E., Greenberg, J. S., & Seltzer, M. M. (2012). Social support and well-being at mid-life among mothers of adolescents and adults with autism spectrum disorders. Journal of autism and developmental disorders, 42(9), 1818-1826. https://doi.org/10.1007/s10803-011-1420-9
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), que demonstra o quanto pode ser prejudicial às mães ter por perto pessoas que, em vez de lhes prestarem ajuda, acabam por lhes demandar apoio de forma excessiva. Portanto, essa leitura da situação pode caracterizar-se como um possível entendimento dos motivos pelos quais as participantes do presente estudo não sentem suas redes sociais significativas como prestadoras de apoio efetivo.

Ainda, considera-se a atribuição do cuidado às mulheres como legitimada pelo imaginário social, que supõe que elas tenham um “instinto natural” superior ao dos homens, o que as predisporia a um exercício do cuidado com maior qualidade. Essa ideia, difundida pela sociedade, advém da concepção de que a relação mãe-filho seria única e especial pelo fato de que é a mulher que carrega o bebê e dá à luz, considerando que a experiência biológica faz o laço ser mais próximo e mais importante do que o do pai ou de outros membros da família (hooks, 2019hooks, b. (2019). Teoria feminista: Da margem ao centro (R. Patriota, Trad.). Perspectiva. ). Como foi possível perceber no relato de M11, o cuidado ficou circunscrito à figura materna em específico, vista como capaz de atender às demandas do filho com a excelência que só as mães desenvolvem. Logo, a sociedade, os familiares e as próprias participantes entendem o cuidado do filho com desenvolvimento atípico como responsabilidade materna, o que pode causar grande sofrimento à mulher que assume este papel:

Eu não gosto dessa romantização, que é uma mãe forte, batalhadora, porque a gente cansa. Tem momentos que eu queria só ficar deitada de tão cansada que eu tô, eu não sou forte como as pessoas acham, né? Eu não queria ser mulher guerreira (M2).

Eles botam aquilo pra ti: “tu foi escolhida, tu é guerreira, tu é forte”. Aí, quando tu quer chorar, que tu tá cansada, as pessoas te olham “mas por que que tu tá assim? Se tu foi escolhida, se ele é teu filho”, eles não veem além. . . . Eu não gosto e já falo, uma coisa que eu mudei bastante é que eu falo “eu não gosto que me chamem de guerreira, eu não sou guerreira, eu sou uma mãe sobrecarregada, eu sou uma pessoa normal igual vocês, eu tenho carne e osso, eu sofro, eu choro, mesmo que vocês não vejam”, mas eles dizem pra mim “ai, desculpa, é que eu acho que tu é forte, tu é determinada, tu não se encolhe, tu vai lá, tu enfrenta” (M11).

É possível perceber o quanto é difícil para M11 assumir o cuidado do filho de forma exclusiva, sob o pretexto de ser a única com as características necessárias ao desempenho deste papel. Contudo, ela relata que, inicialmente, logo após a descoberta do diagnóstico de TEA, também tinha essa percepção sobre si, o que contribuiu para que assumisse os cuidados de forma integral:

Eu não gostava que ninguém mexesse com ele, entendeu? Porque eu via que as pessoas não tinham paciência. E eles falavam “ai tu é metida”, aí a minha mãe dizia assim pra mim: “eu não me meto mais, porque tu não deixa”. E eu achava que eu tinha que fazer tudo por ele. . . . Mas eu mudei. Agora eu sou polêmica, eu escrevo textão, eu faço publicação, mas não é indireta, é uma forma de eu esclarecer as pessoas, entendeu? Igual eu te disse aquilo de falar que eu não sou mãe guerreira, um monte de gente já parou de me chamar e “ah, é verdade, eu não tinha pensado por esse lado”, tu entendeu? (M11).

Fica explícito no fragmento que a autopercepção de M11 enquanto única pessoa capaz de desempenhar os cuidados do filho de forma eficiente culminou no afastamento de sua mãe, que deixou de ajudá-la. Contudo, a partir da tomada de consciência de que não se identifica com o termo “mãe guerreira”, foi possível para a participante desconstruir a visão que tinha de si mesma enquanto única responsável pelos cuidados do filho. A partir disso, passou a aceitar e até mesmo a demandar o compartilhamento das responsabilidades com outras pessoas próximas, exigindo o reconhecimento do seu sofrimento e da sobrecarga pelos seus pares, movimento considerado de suma importância, tendo em vista que possibilitou reflexões acerca “deste lado que não havia sido pensado”, como ela refere. Destaca-se, portanto, a importância de que mães de filhos com autismo possam se descolar do papel de cuidadoras exclusivas e reconhecer o próprio sofrimento e as próprias demandas, bem como se autorizar a compartilhar os cuidados do filho, de modo a não negligenciar seu autocuidado:

Eu vejo que as mães... a ssim, porque eu faço parte de uma associação, e eu vejo que as mães tão adoecendo por isso. Porque elas têm vergonha de dizer que precisam de ajuda, que tão cansadas, que elas não são guerreiras, que essa maternidade... o meu filho é tudo pra mim, mas me machuca, dói certas coisas, passa do limite ali humano que eu posso suportar. Não só ele, mas algumas coisas que a gente passa, que a sociedade faz pra nós, então a gente já fica sempre retraída, sempre pronta pra esperar o pior, sabe? E a gente não fala. Às vezes eu também não queria ser mãe e eu tinha vergonha de dizer, porque toda mãe sente isso, só que elas têm vergonha e não falam né? (M11).

Os significados atribuídos às redes sociais significativas posteriormente à construção do mapa de redes do período posterior ao diagnóstico do filho com TEA (“Mapa 1”) encontram-se resumidos neste último fragmento do depoimento de M11. Constatou-se que, anteriormente à aplicação do mapa, as mães sentiam que sua rede social era esvaziada, denunciando um afastamento das pessoas após o diagnóstico do filho com TEA. Ainda, relataram um isolamento social, entendido como oriundo de suas características pessoais. Após a construção do mapa, elas observaram com surpresa que, na realidade, contavam com diversos vínculos próximos, os quais foram incluídos como significativos. Também passaram a atribuir sentido aos afastamentos ocorridos e questionar o seu papel ativo no isolamento social referido. Contudo, continuaram com a percepção de que a presença das pessoas nomeadas em suas redes não era suficiente por si só, já que as redes não lhes prestavam o apoio do qual necessitavam. Assim, como explicação para esse fenômeno, considerou-se a não autorização do compartilhamento do cuidado do filho com TEA, tanto por parte da sociedade, dos familiares e dos amigos, como por parte das próprias mães. Todos consideravam que estas últimas eram as únicas responsáveis e capazes de exercer os cuidados do filho de forma satisfatória. Somado a isso, percebeu-se um não reconhecimento do sofrimento e sobrecarga maternos, camuflados pelos termos “mãe forte” e “mãe guerreira”. Presas a isso, as mães ficam impossibilitadas de se descolar desses papéis e pedir ajuda, entendendo que isso poderia significar um mau exercício da maternidade.

Construindo o mapa de redes do período anterior ao diagnóstico do filho com TEA

Conforme referido, após o momento inicial de entrevista (“Encontro 1, Momento 1”) e a aplicação do “Mapa 1” – relativo ao período posterior ao diagnóstico do filho com TEA – (“Encontro 1, Momento 2”), foi realizada a segunda etapa da entrevista reflexiva (“Encontro 2, Momento 1”) e construído o “Mapa 2” – relativo ao período anterior ao diagnóstico do filho com TEA – (“Encontro 2, Momento 2”), a fim de que as mães pudessem aprofundar as reflexões já iniciadas a respeito das suas redes sociais significativas, colocando-as em perspectiva. Ao observarem os dois mapas prontos, puderam revelar suas impressões acerca das transformações ocorridas nas redes após o diagnóstico do filho com TEA:

Eu penso que eu tenho umas pessoas ali, eu tenho em determinados momentos, em último caso, eu tenho. Mas é bastante a mudança assim (M11).

Infelizmente, a gente está cercado e, ao mesmo tempo, não, né? (M8).

Olhando assim, eu esperava ter mais pontinhos [maneira como se refere aos vínculos que incluiu no “Mapa 1”] . Eu tô feliz por ter esses pontos, sabe, mas eu esperava ter mais . . . Por mais que eu tenha aí esse pessoal, eu ainda sinto que preciso ter um espaço, falar, sabe, compartilhar . . . Mas tem que pensar nas pessoas que tão ali te ajudando agora... é um pouco, tipo, desconfortável, mas também é bom saber que tu tá contando com essas pessoas. Mas, também, tu ver que muita gente saiu é um pouco triste, mas também ao mesmo tempo eu vejo que teve gente nova entrando, sabe? É um mix de sentimentos, é bom, ruim . . . Não é da maneira como eu gostaria, queria que tivesse mais, mais perto, sabe, mas eu também sou aquela pessoa que dá valor só por tá as pessoas ali, sabe? Vou aproveitar, já que não tem tantos, entende? (M2).

A partir disso, foi possível perceber que a construção do “Mapa 2”, referente ao período anterior ao diagnóstico do filho com TEA, reforçou os significados atribuídos às redes sociais significativas já durante a construção dos mapas do período posterior (“Mapa 1”). Através dos depoimentos, observou-se que, embora tenha havido um reconhecimento progressivo da presença da rede, propiciado pelo contato com os mapas de rede, o afastamento de vínculos, somado ao sentimento de ausência de apoio, marcou as participantes de forma mais intensa do que as aproximações, tendo aquelas ausências sido os fenômenos mais destacados nos relatos, assim como se deu em outros estudos (Constantinidis et al., 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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; Cruz, 2019 Cruz, I. I. C. (2019). Processos de adaptação parental face a diferentes diagnósticos de deficiência [Dissertação de mestrado, Universidade de Évora]. Repositório institucional da Universidade de Évora. http://hdl.handle.net/10174/25540
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; Dias, 2017; McAuliffe et al., 2018 McAuliffe, T., Thomas, Y., Vaz, S., Falkmer, T., & Cordier, R. (2018). The experiences of mothers of children with autism spectrum disorder: Managing family routines and mothers’ health and wellbeing. Australian Occupational Therapy Journal, 66(1), 68-76. https://doi.org/10.1111/1440-1630.12524
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; Meimes, Saldanha, & Bosa, 2015 Meimes, M. A., Saldanha, H. C., & Bosa, C. A. (2015). Adaptação materna ao transtorno do espectro autismo: Relações entre crenças, sentimentos e fatores psicossociais. Psico, 46(4), 412-422. http://dx.doi.org/10.15448/1980-8623.2015.4.18480
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; Smeha & Cezar, 2011 Smeha, L. N., & Cezar, P. K. (2011). A vivência da maternidade de mães de crianças com autismo. Psicologia em Estudo, 16(1), 43-50. https://doi.org/10.1590/S1413-73722011000100006
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). Desse modo, levanta-se a hipótese de que a presença dos membros que constituem as redes (os que permaneceram e os que entraram) poderia não ter sido percebida ou nomeada caso as participantes não tivessem tido contato com o instrumento do mapa, já que, durante a entrevista inicial, somente os afastamentos foram apontados.

A comparação dos Mapas 1 e 2 permitiu observar que o tamanho das redes, em termos numéricos, permaneceu elevado (passou de 168 para 141 vínculos, em média), muito em função da entrada de novos membros relacionados ao TEA, como outras mães de filhos com esse diagnóstico e profissionais da saúde e da educação, indicados por Constantinidis et al. ( 2018 Constantinidis, T. C., Silva, L. C., & Ribeiro, M. C. C. (2018). “Todo mundo quer ter um filho perfeito”: Vivências de mães de crianças com autismo. Psico-USF, 23(1), 47-58. https://www.scielo.br/j/pusf/a/M8DXRCRGP6Rc6k7ZdCPMjQv/?format=pdf
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) e Cruz et al. ( 2021 Cruz, A. C. B., Minetto, M. F. J., Weber, L. N. D., Oliveira, L. F., & Peron, C. F. F. (2021). “É tão difícil alguém vestir nossos chinelinhos”: Relatos de mães de crianças com TEA. International Journal of Developmental and Educational Psychology, 1(1), 85-96. http://dx.doi.org/10.17060/ijodaep.2021.n1.v1.2045
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) como vínculos de grande importância para as mães de filhos com TEA. Diante dessas movimentações, compreende-se que os personagens mudaram, como prevê Sluzki ( 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ), frente à incidência de uma condição crônica, mas as redes permaneceram com um número de vínculos aproximado.

Observou-se que 61 vínculos se mantiveram, 107 membros saíram e 80 novos vínculos entraram. Essas movimentações, ocorridas a partir do diagnóstico do filho, indicam que, na experiência da maioria das participantes, houve uma diminuição no número de vínculos, embora, no caso de quatro mães (M3, M6, M9 e M10), tenha ocorrido um aumento de membros na rede. Ainda assim, as participantes percebiam suas redes como insuficientes, demonstrando que quantidade de membros não equivale à qualidade da rede. Embora um número considerável de pessoas tenha entrado na rede como um todo, os membros que saíram foram os mais percebidos pelas mães. A saída expressiva de vínculos, na maior parte dos casos, parece ter influenciado para que elas tenham se autodescrito como sozinhas e desamparadas no momento inicial de entrevista. Nesse sentido, cabe refletir sobre o que esse fenômeno representa para as mães, tendo em vista que esse fluxo de saída da rede ocorreu especialmente no âmbito do trabalho, da comunidade e das amizades. É possível inferir que as implicações disso se colocam não apenas para os vínculos propriamente ditos, mas para tudo que envolve essas áreas das vidas das participantes. Nesse viés, observou-se que nenhum vínculo foi mantido no quadrante do trabalho nem da comunidade, embora novos vínculos tenham entrado neste último, o que não ocorreu com o primeiro. Assim, percebe-se o amplo impacto desses afastamentos para as redes sociais maternas.

Por fim, ressalta-se que, além de ter reafirmado os significados atribuídos às redes sociais significativas durante a construção do Mapa 1, o Mapa 2 também possibilitou a criação de novos sentidos que permitiram um fechamento das reflexões acerca dos movimentos das redes:

Acho que tudo... a vida é meio um ciclo, assim, deu bem pra ver com esse mapa . . . é viver um dia após o outro, né? E saber que, tipo, querendo ou não, tem essas pessoas pra contar (M2).

Eu penso que esse mapa aqui do passado, eu vou resumir, ele é um... ele é um ciclo na vida. Acho que é algo que... que tem que fazer parte da nossa vida pra complementar a nossa maturidade; e o mapa atual, eu acho, é um mapa bem maduro. É um mapa, assim, de virtude sabe? Um mapa... um mapa de maturidade mesmo sabe? Que eu vivi e aprendi e sou essa pessoa aqui (M4).

Portanto, foi possível, para as participantes, significar seus mapas atuais como resultado das suas experiências de vida, considerando o TEA como parte delas. Observou-se que, ao longo da execução da pesquisa, houve uma modificação da percepção negativa inicial de ausência de redes sociais significativas para as mães. A partir das reflexões, propiciadas especialmente pela construção dos mapas, surgiu o sentimento de valorização dos vínculos e das redes atuais. Nessa linha, as mães puderam identificar as potencialidades das suas redes sociais significativas, antes não percebidas, passando a conceber que elas estão presentes e talvez possam ser mais bem operacionalizadas, a fim de prestarem um apoio mais satisfatório.

Desse modo, as mães, conhecedoras da sua rede e conscientes da importância do compartilhamento do cuidado, sentindo-se autorizadas e empoderadas para acionar seus vínculos próximos, podem lhes direcionar demandas que anteriormente tentavam suprir sozinhas. Esse movimento de ativação da rede também pode ser guiado pelos profissionais que trabalham com a família, facilitando o contato com a rede de modo que outros sujeitos, para além das mães, também possam se responsabilizar pelo indivíduo com TEA e pelo apoio a essas mulheres, evitando ou atenuando a sobrecarga materna.

Por fim, para além da capacidade descritiva, enfatizam-se as propriedades terapêuticas, explicativas e de ativação de redes inerentes ao instrumento do mapa, salientando-se a visibilidade da rede proporcionada tanto ao pesquisador quanto aos pesquisados, entendidos como coconstrutores de conhecimento acerca das histórias relacionais das participantes (Sluzki, 1997Sluzki, C. E. (1997). A rede social na prática sistêmica: Alternativas terapêuticas (C. Berliner, Trad.). Casa do Psicólogo. ). No caso da presente pesquisa, foi possível perceber que a construção do mapa de redes foi possibilitando uma transformação na forma como as participantes estavam significando as suas redes (Moré, & Crepaldi, 2012 Moré, C. L. O. O., & Crepaldi, M. A. (2012). O mapa de rede social significativa como instrumento de investigação no contexto da pesquisa qualitativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 21(43), 84-98. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/265
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).

Considerações finais

Este estudo teve como objetivo investigar os impactos do diagnóstico de TEA nas redes sociais significativas maternas e como as mães lhes atribuíram sentido. Percebeu-se uma modificação no posicionamento das participantes ao longo da execução da pesquisa. Inicialmente, consideravam não contar com uma rede de apoio social, para depois perceberem que existem pessoas ao seu redor que compõem redes, mas não prestam a ajuda necessária, não proporcionando um suporte satisfatório.

Destacou-se a centralização do cuidado na figura materna, que encontra dificuldades em compartilhá-lo com outras pessoas, as quais também não se sentem preparadas para assumir tais responsabilidades. As participantes referiram-se ao sentimento de sobrecarga e desamparo, tendo em vista que os membros da sua rede, muitas vezes, ao invés de prestar apoio às participantes, demandam um suporte por parte delas.

As percepções maternas acerca de suas redes sociais significativas estão relacionadas com os movimentos das redes que ocorreram a partir do diagnóstico dos filhos, marcados principalmente pelo afastamento de vínculos relacionados com atividades de trabalho e de lazer, o que acentua a sensação de isolamento social. Apesar da entrada de novos membros, especialmente relacionados com o próprio TEA, como profissionais de saúde e outras mães de filhos com TEA, as redes permaneceram com vazios importantes, especialmente nas áreas do trabalho, das amizades e da comunidade. Com isso, visualiza-se uma movimentação das redes no sentido da centralidade do cuidado ao filho com TEA, mas ainda insuficiente para dar conta das demandas das mães como mulheres e como cidadãs.

Ressalta-se a importância desta pesquisa para subsidiar estratégias de intervenção que possam ser embasadas em uma perspectiva de rede, de modo que os profissionais que trabalham com o TEA possam operar como agentes ativadores das redes sociais significativas das famílias, evitando a centralização do cuidado em um único membro familiar, como ocorre com as mães. Para além da ativação, destaca-se a importância de uma instrumentalização dos membros das redes, a fim de que possam conhecer o TEA, desmistificá-lo e se familiarizar com suas características e possibilidades de manejo. Dessa forma, cada rede poderia criar um significado para o TEA que faça sentido para a sua realidade particular, operacionalizando sua organização e adaptação em termos de divisão de tarefas, responsabilidades e cuidados necessários aos sujeitos com TEA.

Enfatiza-se a utilização do mapa de redes sociais significativas como instrumento potente para esses fins, tendo em vista que permite a visualização e incita reflexões sobre as redes, proporcionando um aprofundamento do entendimento sobre elas. Ainda, salienta-se a riqueza de dados proporcionada pelo uso conjunto e complementar do mapa com a entrevista reflexiva. Nessa linha, destaca-se a potencialidade da presente pesquisa, a qual possibilitou que as mães pudessem pensar sobre as suas redes, movimento inédito para muitas delas, considerando que a sobrecarga cotidiana com que se deparam pode dificultar essa reflexão. Salienta-se ainda a originalidade do trabalho, o qual, a partir do mapa, pôde mobilizar um olhar mais amplo, profundo e complexo acerca da dinâmica das redes, o que muitas vezes não ocorre em outros estudos, que utilizam como instrumento apenas entrevistas semiestruturadas, por exemplo.

Ainda, esta pesquisa permitiu um direcionamento do olhar para as redes, tanto antes como depois do diagnóstico, mesmo que numa perspectiva transversal. Nesse sentido, aponta-se esse aspecto como uma possível limitação, indicando-se o desenvolvimento de estudos longitudinais, que possam acompanhar as famílias de indivíduos com TEA e suas redes ao longo do tempo, tendo em vista a característica de dinamicidade das redes sociais significativas. Ademais, sugere-se a realização de novas pesquisas que possam utilizar o mapa com outros sujeitos diretamente relacionados ao contexto do TEA, acessando-se outros membros da rede, o que pode ser uma forma de ampliar a discussão e também de levá-los a perceber sua responsabilidade nesse contexto.

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  • Como citar

    Colomé, C. S., Dantas, C. P., Izolan, L. C., & Zappe, J. G. (2024). Redes Sociais Significativas Maternas: Significados e Movimentos Diante do Autismo. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-370300261546
  • How to cite

    Colomé, C. S., Dantas, C. P., Izolan, L. C., & Zappe, J. G. (2024). Maternal Significant Social Networks: Meanings and Movements in the Face of Autism. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-370300261546
  • Cómo citar

    Colomé, C. S., Dantas, C. P., Izolan, L. C., & Zappe, J. G. (2024). Redes Sociales Significativas Maternas: Significados y Movimientos Frente al Autismo. Psicologia: Ciência e Profissão, 44, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-370300261546

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2022
  • Aceito
    05 Out 2022
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