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Estimulação e desenvolvimento da criatividade

Estimulação e desenvolvimento da criatividade

Argentina Rosas

Psicóloga e professora da UFPE

Cada vez que me detenho neste assunto(11) Conferência pronunciada no Seminário sobre Superdotados e Talentosos: Sensibilizarão e Treinamento. Projeto piloto da Comissão Permanente para descobrir superdotados e talentosos e para o desenvolvimento de potencialidades criativas: SENAI, SESI. CODESC-CNI. Recife. 5-9 de agosto de 1991.), mais claro se torna para mim a contradição: de um lado, uma desesperada necessidade de comportamentos criativos, para a sociedade enfrentar com êxito os desafios que lhe são impostos e para assegurar sua sobrevivência(22) TAYLOR, C. Criatividade: Progresso e Potencial. São Paulo. IBRASA. 1971. ); por outro lado, a mesma sociedade não favorece o desenvolvimento criativo dos seus membros em geral e, de modo particular, dos superdotados. No mínimo, deixa-os entregues à própria sorte. E, por vezes, penaliza-os... por serem talentosos. De fato, a sociedade é mais bloqueadora da criatividade do que uma de suas fontes de estimulação.

No bojo desta contradição, a sociedade ao tempo em que inibe o desenvolvimento do potencial dos seus membros, solicita e até mesmo cobra deles, nos momentos de crise, um desempenho criativo.

Família, Escola, Trabalho

Família, escola e trabalho são, sem sombra de dúvida, os fatores básicos da socialização. Que papel exercem a família, a escola e o trabalho no que tange à estimulação e ao desenvolvimento da criatividade?

Parece que eles têm algo mais sério a fazer, como diria Exupéry, do que preocupar-se com criação, do que formar homens autônomos, inventivos, criativos. E isto é válido também para os superdotados. Seus talentos não importam. Os agentes de socialização devem formar homens para se garantir a continuidade e a estabilidade sociais, mesmo que isto bloqueie a criação, custe o preço de desperdiçar talentos.

Assim, na sua tarefa socilizadora, transmitem às gerações futuras as normas e técnicas existentes, ensinam a ciência feita e os valores já experimentados, preparam robôs para a produção automática. São antes fatores de conservadorismo que de inovação.

Fala-se de criatividade. Falar de criatividade tomou-se modismo. O termo vem assumindo uma dimensão mágica, principalmente nos meios de comunicação de massa. Contudo, não nos iludamos. Ainda estamos longe de observar aqueles meios de socialização - família, escola, trabalho - cultivando a criatividade, a fecundidade imaginativa, a reflexão crítica, a intuição.

Família

A criança, ao nascer, dispõe de "aptidões" para adquirir habilidades. Habilidades de pensar, comportar-se socialmente, resolver problemas, criar. No entanto, necessita de um clima propício para tomar possível a atualização daquele potencial. Clima propício para adquirir as habilidades de pensar, comportar-se socialmente, resolver problemas, criar.

De início, cabe à família proporcionar à criança o clima favorável à eclosão de suas primeiras experiências criativas.

A criatividade solicitada e cultivada pela experiência vivida tenderia a se concretizar em atos criativos. O inusitado, o original, o engenhoso seriam características comuns observadas no comportamento das crianças.

O que acontece é bem diferente. Como escrevem Gloton e Clero(33) GLOTON, R. e CLERO. C. A Atividade Criadora na Criança. São Paulo. Editorial Estampa, 1971. ), "mesmo animados das melhores intenções e com a mais tranqüila das consciências, é muito fácil destruir as forças que a criança traz consigo".

Para muitas famílias a criança é um ser que nada sabe e tudo o que tem a aprender deve receber pronto da experiência dos adultos. O papel dos pais seria então produzir crianças "bem educada": passivas, obedientes, impecavelmente limpas...

A família terminou por impor às crianças aprenderem a se adaptar a uma estimulação cruel - a estimulação do não. Diferente daquele não da criança que luta por sua afirmação, é o não dos adultos: pais, familiares, babás. E os "nãos" se multiplicam e se estendem: não pode, não mexa, não suba, não quero que faça isso, não deixo, não, não, não...

Como um capacete de chumbo, esta força começa a pesar sobre a criança. Cedo ela aprende a desconfiar de sua espontaneidade, de sua curiosidade, de tudo o que se afasta das normas impostas. Experiência tanto mais difícil para a criança quanto muitas daquelas normas, além de contrariarem suas necessidades, não cabem dentro de sua lógica.

A família impõe a criança o rito da iniciação cognitiva". É preciso aprender a pensar "pelos outros", os adultos. A não fazer aquilo que lhe é proibido, mesmo quando a proibição fira sua lógica e sentimentos. A esperar que lhe seja dada autorização para tentar fazer o que há muito tempo ela já estava preparada para realizar. O "carreto" é inibir suà iniciativa, conter sua curiosidade, desconfiar do inusitado, para "não errar", não ser diferente do padrão estabelecido pelos adultos.

E o que a família faz com a imaginação, a fantasia da criança? Parece-me que o medo de suas próprias fantasias, que o adulto introjetou ao longo de sua vida, agora ele projeta na criança. Neste processo de condicionamento, a família utiliza desde o riso humilhante até as ameaças, sem deixar de passar pelo ridículo puro e simples. Ou transfere para a criança seus medos e preconceitos.

Todos conhecemos casos que podem ilustrar essas considerações. De minha parte, lembro que em certa ocasião fui procurada por um jovem pai. Engajado em programa de educação popular, onde realiza um trabalho baseado numa pedagogia que valoriza a criatividade e a autonomia dos educandos, sua primogênita completara três anos. Soltava sua fantasia, imaginação, brincando de "faz-de-conta". De início, o pai estava seguro. Sua filha desenvolvia-se normalmente. Aquelas brincadeiras faziam parte do processo. Mas, agora, começava a se inquietar. Outros familiares, experientes, preocupados com as conseqüências futuras das fantasias confundidas com a realidade, o advertiam: "É assim que a criança aprende a mentir. Não vê que essa menina está nos enganando a todos nós?"

Não cabe discutir o verdadeiro interesse dos familiares pelo desenvolvimento harmonioso da criança. No entanto, é também assim que se poda a imaginação, a espontaneidade da criança e se inicia sua absorção dos valores, tabus e preconceitos dos adultos. A "camisade-força" no processo do desenvolvimento criativo começa cedo.

Escola

E a escola? É a nossa escola fonte de estimulação e desenvolvimento da criatividade das crianças, adolescentes, jovens, adultos? Infelizmente, todos sabemos, não.

Se durante seus primeiros anos a criança não tiver tido a sorte de encontrar na família um clima propício ao desenvolvimento de seu potencial criativo, não podemos confiar que a escola venha a proporcionar-lhe o que a família não soube fazer.

Aqueles tabus e preconceitos, correntes nas famílias, estão também presentes na escola.

O círculo vicioso começa na formação dos educadores. Certa feita, numa reunião de professores universitários, discutia-se acerca dos processos cognitivos. Referi-me à criatividade. A reação deixou-me perplexa. Primeiro, senti-me submetida a uma verdadeira sabatina, para testar se a criatividade seria mesmo uma área de conhecimento passível de ser tratada cientificamente. Depois, um posicionamento emocional: "Recuso-me a aceitar a validade dessa área!"

Perplexidade fecunda. Reforçou meu interesse por continuar seu estudo e, particularmente, o de suas relações com a prática educativa. Venho realizando uma pesquisa, com a finalidade de estudar as idéias errôneas sobre criatividade - tema já explorado por Eunice Alencar(44) ALENCAR, MES. Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986. ) - e a valorização que professores e alunos universitários atribuem à criatividade.

Observa-se, na maioria das instituições de ensino reconhecidas por sua qualidade, considerável esforço para transmitir conhecimentos estabecidos, ainda que por vezes defasados, de modo a instrumentar intelectualmente seus alunos. No entanto, exploram, quando muito, o potencial mnemônico ou lógico do aprendiz.

A criatividade, a imaginação, a curiosidade, a intuição, a originalidade, o pensamento divergente são comportamentos raramente estimulados.

Salve em poucas exceções, não é incluído o estudo da criatividade na formação do educador e do psicólogo. Coerentemente, a bibliografia disponível parece despertar reduzido interesse entre os profissionais.

A título de ilustração, permito-me mencionar um fato, recentemente ocorrido em um dos centros mais avançados do país. Patrícia, seis anos de idade, está completamente alfabetizada. Tem "gosto" por leitura. Os pais a estimulam Proporcionam-lhe um clima favorável ao interesse nascente. Presenteiam-na com livros. Alfabetizada "fora de faixa", Patrícia ultrapassou o conteúdo padrão do que lhe foi ensinado e avança rapidamente na formação do hábito de ler. Patrícia incomoda a escola. Chamada pela professora, a mãe de Patrícia recebe a recomendação: "não lhe dê mais livros. Isto atrapalha a criança e a escola".

A mãe percebeu a limitação da professora e da escola. Transferiu a filha, por sinal para uma escola pública, a qual reagiucom sensibilidade ao problema de Patrícia. Patrícia está bem adaptada à nova escola. Continua lendo muito e ganhando presentes de livros. A escola onde estava não soube se haver com a precocidade de Patrícia. Não soube trabalhar a curiosidade da criança. Patrícia foi "salva" da escola graças à decisão de sua mãe.

Quantas Patrícias continuarão a ter sua inteligência e sua curiosidade tolhidas por uma camisa-de-força imposta pela escola?

Se a criança é assim limitada pela escola, o adolescente continua a sê-lo e de um modo ainda mais contundente. Uma falsa dicotomia entre a criação artística e a aprendizagem da ciência e da tecnologia estabelecidas sugere o fortalecimento dos preconceitos relativos à valorização da objetividade do saber científico, em detrimento do saber construído a partir de intuições, da imaginação, da criatividade.

Está na hora de acabar com fantasias. Adolescente: gente grande, trabalho sério. É preciso "memorizar" fórmulas para se conseguir êxito no vestibular. É assim que os adolescentes se preparam para a Universidade. A Universidade dará continuidade ao processo(55) ROSAS, A. Universidade e Criatividade. In: Tecnologia Educacional, 17(82), 24-29, Rio de Janeiro, Mai-Jun/1988. ).

Assim, nas nossas escolas se aprende adesenhar flor vermelha de caule verde e pratos fundos e redondos. Assim a professora aprendeu. Assim a professora quis, ensinou, mandou. Não há margem para a criança e menos ainda para o adolescente imagiar e desenhar uma flor azul, um caule amarelo, um prato quadrado,como queria o "Menininho" da crônica de Helene Buckley.

Há exceções na família. Também na escola alguns estão superando sua própria formação. Elos desta corrente de bloqueamento da criatividade, através da escola convencional, estão sendo quebrados. Nossa luta é para reverter o quadro da "escola contra a criatividade"(66) GLOTON, R. e CLERO, C. Ob. Cit).

Trabalho

Em tese, no caso brasileiro, a sociedade exige do trabalhador oito ou mais horas por dia de atividade. Isto deverá perdurar por 30 ou 35 anos.

Paremos. Reflitamos. Quanto tempo dispensamos ao trabalho no curso de nossas vidas? Não computando o período destinado às férias anuais, às possíveis horas extras e o trabalho aos sábados - e, de outra parte, ignorando para simplificação do cálculo, os feriados -isto significa 52.800 horas, quando a aposentadoria ocorrer aos 30 anos, e 61.600, quando se der aos 35. Tempo geralmente vivido dentro das organizações. Tempo em que estamos expostos às pressões dos objetivos e das práticas das organizações.

É no trabalho profissional que devemos, pois, encontrar os melhores meios de produtividade, tanto intrínseca, quanto extrínseca. E a nossa produção criativa? A socialização pelo trabalho facilita o desenvolvimento de comportamentos criativos?

Quais os processos que as organizações, via de regra, utilizam para obter de seus servidores idéias novas, originais? A uma, o mural, prêmios. Representam essas medidas um clima verdadeiramente estimulador do pensamento criativo?

Parece-me que nas nossas organizações há um divisor de águas bem definido. Confia-se na alta cúpula técnica e administrativa. Por vezes se lhe oferecem condições para pensar e até mesmo para produzir idéias novas. Às chefias intermediárias e à grande massa dos trabalhadores cabe o papel de executores mecânicos. Haja vista a caricaturização genial feita por Charles Chaplin em Tempos Modernos, tão atual ainda hoje.

Família, escola, trabalho.

A história se repete. Quais os valores e comportamentos são estimulados nas organizações? Obediência, assiduidade, pontualidade, produção.

Na era do computador, do robô, continua a grande massa trabalhadora executando as rotinas criadas, planejadas pelos poucos que têm o privilégio de pensar e, às vezes, até mesmo criar, ver suas idéias postas em prática.

As pessoas pontencialmente mais criativas, bem dotadas e talentosas se encontram em condições esquizofrenizantes de trabalho. O trabalho não permite pensar mas sim, executar.

Se alguém conseguir, apesar de tudo, fazer valer uma idéia original, por ser captada como um potencial de lucro, a situação poderá apresentar algumas mudanças. Mudanças interpretadas por um operário crítico: "Já não basta à organização apropriar-se do nosso corpo, da nossa força de trabalho. Quer apropriar-se também da nossa cabeça. Em troca, receberemos talvez uma irrisória premiação, um discurso, uma carta com elogios".

Propostas

Estamos no SENAI - instituição que reúne dois dos fatores de socialização aqui referidos: a escola e o trabalho. Participamos de um evento com a finalidade de pensar sobre a educação dos bem dotados e talentosos.

Todos nós, participantes deste Seminário, de uma ou de outra forma, somos educadores. Por conseguinte, todos temos nossas amarras, mesmo nos casos daqueles que vêm estudando regularmente a questão. Temos nossas amarras e - quem sabe? - de vez em quando algemamos nossos alunos. Começamos a mudar nosso discurso. É preciso mudar radicalmente nossas práticas.

Faço dessas reflexões ponto de partida para apresentação de algumas propostas, talvez moções a serem discutidas e, uma vez aprovadas, comporem o conjunto das conclusões deste Seminário.

Em primeiro lugar, o que julgo fundamental, é que se criem meios, que viabilizem a mais ampla divulgação dos conhecimentos já produzidos sobre criatividade no Brasil.

Segundo, que se incremente o desenvolvimento de programas de treinamento de comportamentos criativos: o que já se faz entre nós, mas ainda em pequena escala.

Terceiro, que se amplie a promoção de eventos como este, destinados a grupos de pais, estudantes, docentes, políticos, executivos, empresários, trabalhadores em geral.

Notas

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  • (2) TAYLOR, C. Criatividade: Progresso e Potencial. São Paulo. IBRASA. 1971.
  • (3) GLOTON, R. e CLERO. C. A Atividade Criadora na Criança. São Paulo. Editorial Estampa, 1971.
  • (4) ALENCAR, MES. Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.
  • (5) ROSAS, A. Universidade e Criatividade. In: Tecnologia Educacional, 17(82), 24-29, Rio de Janeiro, Mai-Jun/1988.
  • 1
    ) Conferência pronunciada no
    Seminário sobre Superdotados e Talentosos: Sensibilizarão e Treinamento. Projeto piloto da Comissão Permanente para descobrir superdotados e talentosos e para o desenvolvimento de potencialidades criativas: SENAI, SESI. CODESC-CNI. Recife. 5-9 de agosto de 1991.
  • 2
    ) TAYLOR, C.
    Criatividade: Progresso e
    Potencial. São Paulo. IBRASA. 1971.
  • 3
    ) GLOTON, R. e CLERO. C.
    A Atividade Criadora na Criança. São Paulo. Editorial Estampa, 1971.
  • 4
    ) ALENCAR, MES.
    Psicologia da Criatividade. Porto Alegre, Artes Médicas, 1986.
  • 5
    ) ROSAS, A. Universidade e Criatividade. In:
    Tecnologia Educacional, 17(82), 24-29, Rio de Janeiro, Mai-Jun/1988.
  • 6
    ) GLOTON, R. e CLERO, C. Ob. Cit
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Set 2012
    • Data do Fascículo
      1992
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