Acessibilidade / Reportar erro

Psicologia, Saberes e Epistemologias Plurais: Breve Histórico dos Posicionamentos do Conselho Federal de Psicologia

Psychology, Knowledge, and Plural Epistemologies: a Brief History of the Positions of the Federal Council of Psychology

Psicología, Saberes y Epistemologías Plurales: Breve Historia de las Posiciones del Consejo Federal de Psicología

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar os movimentos do Conselho Federal de Psicologia (CFP) frente às consideradas práticas alternativas, emergentes e de saberes tradicionais – oriundas de novas epistemologias que caracterizam algumas fronteiras da psicologia. Sendo questão de extrema amplitude, faremos um recorte por meio de três dispositivos do sistema, a saber: os eventos realizados pelo CF P que abordaram a temática, caracterizando-se como dispositivos de diálogos e comunicação com a sociedade como um todo, mas de modo especial com a categoria psi; os Cadernos Deliberativos dos Congressos Nacionais de Psicologia (CNPs), considerados espaços deliberativos maiores do sistema conselhos de psicologia; e por fim, os chamados Atos Oficiais (resoluções, instruções normativas e portarias), dispositivos normativos do sistema. Além disso, lançaremos mão das notas técnicas produzidas e de dados oriundos do Censo da Psicologia Brasileira, lançado em 2022. No entrecruzamento entre esses três dispositivos – deliberativo, comunicativo e normativo –, tentaremos apresentar os movimentos pendulares do sistema conselhos sobre as relações entre psicologia e práticas fronteiriças, que pendem para posicionamentos liberais, ora para posicionamentos normativos. Em muitos momentos, tais movimentos coexistem simultaneamente. Destacam-se nesses o surgimento dos diálogos sobre psicologia e direitos humanos e a construção de políticas oriundas do campo da saúde (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares [PNPICs], Política Nacional de Humanização [PNH] e Política Nacional de Educação Popular em Saúde [PNEPS]), todas oriundas do Sistema Único de Saúde (SUS). A partir de uma ética dialógica, de encontro com o diferente e com a nossa própria alteridade, o sistema conselhos construiu um dispositivo para avançar nos diálogos entre a psicologia e suas fronteiras, principalmente com práticas e saberes tradicionais, que é o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP).

Palavras-chave:
Psicologia; Epistemologia; Práticas

Abstract:

This study aims to describe the movements of the Federal Council of Psychology regarding what are considered alternative practices, emerging practices, and traditional knowledge stemming from new epistemologies that characterize some frontiers of psychology. Due to its broad scope, it will focus on three components of the system, namely, the events the Federal Council of Psychology organized on the topic, serving as a platform for dialogue and communication with society as a whole, but particularly with the psychology profession; the Deliberative Notebooks of the National Congresses of Psychology, larger deliberative spaces within the psychology council system; and finally, its Official Acts (resolutions, normative instructions, and ordinances), normative components of the system. Additionally, we will use technical notes produced and data from the Brazilian Psychology Census, launched in 2022. By intersecting these three components – deliberative, communicative, and normative –, we will attempt to show the pendulum movements of the council system regarding the relation between psychology and frontier practices. These movements oscillate between liberal and normative positions that often coexist. Notable in these movements are the emergence of dialogues on Psychology and Human Rights and the development of policies originating from the health field (the National Policy for Integrative and Complementary Practices, the National Humanization Policy, and the National Policy for Popular Education in Health), all stemming from the Brazilian Unified Health System. By a dialogical ethic in encounter with the different and our own otherhood, the council system has constructed a mechanism to advance dialogues between psychology and its frontiers, especially with traditional practices and knowledge, which constitute the Aluízio Lopes de Brito Psychological Practices Evaluation System.

Keywords:
Psychology; Epistemology; Practices

Resumen:

El objetivo de este artículo es presentar los movimientos del Consejo Federal de Psicología (CFP) frente a lo que se consideran prácticas alternativas, emergentes y saberes tradicionales, provenientes de nuevas epistemologías que caracterizan algunas fronteras de la psicología. Dado que es un tema muy amplio, se hizo un recorte en tres dispositivos del sistema: Los eventos realizados por el CFP que abordaron la temática, caracterizando el dispositivo de diálogo y comunicación con la sociedad en su conjunto, especialmente con la categoría psi; los Cuadernos Deliberativos de los Congresos Nacionales de Psicología (CNP), considerados espacios deliberativos más amplios del sistema de consejos de psicología; y, por último, los llamados Actos Oficiales (resoluciones, instrucciones normativas y ordenanzas), dispositivos normativos del sistema. Además, se utilizan las notas técnicas producidas y los datos provenientes del Censo de la Psicología Brasileña, lanzado en 2022. En el cruce entre estos tres dispositivos –deliberativo, comunicativo y normativo– se intenta presentar los movimientos pendulares del sistema de consejos sobre las relaciones entre la psicología y las prácticas fronterizas, que a veces tienden a posturas liberales, a veces a posturas normativas. En muchas ocasiones, estos movimientos coexisten simultáneamente. Se destacan en ellos el surgimiento de diálogos sobre psicología y derechos humanos y la construcción de políticas provenientes del campo de la salud (Política Nacional de Prácticas Integradoras y Complementarias –PNPIC–, Política Nacional de Humanización –PNH– y Política Nacional de Educación Popular en Salud –PNEPS), todas provenientes del Sistema Único de Salud (SUS). A partir de una ética dialógica, de encuentro con lo diferente y nuestra propia alteridad, el sistema de consejos construyó un dispositivo para avanzar en los diálogos entre la psicología y sus fronteras, principalmente con prácticas y saberes tradicionales, que es el Sistema de Evaluación de Prácticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP).

Palabras clave:
Psicología; Epistemología; Prácticas

Introdução

As relações da ciência psicológica com saberes e fazeres tipificados como não oficiais, fronteiriços e às margens de saberes oficiais, geralmente denominados como emergentes, alternativos, integrativos, complementares, populares, tradicionais, de povos e comunidades tradicionais, originárias e indígenas, é comumente conflituosa. Neste artigo, as denominaremos de novas epistemologias, também reconhecidas como: epistemologias não hegemônicas ou epistemologias étnicas (Berni, 2011); epistemologias do sul (Reis, 2019 Reis, V. (2019, 2 de outubro). O conhecimento científico num mosaico de novas epistemologias. Abrasco. https://abrasco.org.br/a-producao-do-conhecimento-cientifico-num-mosaico-de-novas-epistemologias/
https://abrasco.org.br/a-producao-do-con...
); epistemologias afrodiaspóricas (Silva; Carvalhaes & Lima, 2021 Silva, R. B.; Carvalhaes, F. F. de & Lima, A. B. (2021). Psicologia social e Epistemologias Afrodiaspóricas. ECOS – Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 11(1), 37-50. https://periodicoshumanas.uff.br/ecos/article/view/3068/1711
https://periodicoshumanas.uff.br/ecos/ar...
); epistemologias indígenas (Kokama, 2024 Kokama, A. (2024, 19 de abril). Pelo reconhecimento das epistemologias indígenas na academia. UnBNOTÍCIAS. https://noticias.unb.br/artigos-main/7275-pelo-reconhecimento-das-epistemologias-indigenas-na-academia .
https://noticias.unb.br/artigos-main/727...
); e epistemologias contracoloniais (Santos, 2015Santos, A. B. dos. (2015). Colonização, Quilombos: Modos e significações. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa. ; Dorneles, 2021 Dorneles, D. R. (2021). Palavras germinantes – entrevista com Nego Bispo. Identidade!, , 26(1-2), 14-26. http://revistas.est.edu.br/index.php/Identidade/article/view/1186/1010 .
http://revistas.est.edu.br/index.php/Ide...
) 1 1 Não iremos discutir as origens de cada uma das formas de tipificar as diversas epistemologias citadas. Partimos do princípio que reconhecemos elas e sua diversidade, em contraposição às epistemologias consolidadas no campo científico. . São elas das margens, das periferias, não eurocentradas. Entre esses saberes, há momentos de aproximações e há momentos de maior distanciamento com a ciência psicológica, caracterizando movimentos pendulares a depender de tempos, contextos, interlocutores/as, instituições, interesses mercantis e relações de poder.

Na perspectiva de De la Torre e Pires ( 2018 De la Torre, A., & Pires, J. (2018). Epistemologias plurais: Pensando as ciências da comunicação desde a América Latina. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, 25(3), ID30108. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2018.3.30108
https://doi.org/10.15448/1980-3729.2018....
), para que haja compreensão acerca da produção do conhecimento, faz-se necessário considerar a articulação entre o tempo e onde ele é produzido, considerando os lugares de fala e os postulados acadêmicos, econômicos, políticos, religiosos e culturais. Para os autores, a inocência conduz à perspectiva de um conhecimento absoluto, sendo esse o primeiro passo para o estabelecimento de dogmas universais (De la Torre & Pires, 2018 De la Torre, A., & Pires, J. (2018). Epistemologias plurais: Pensando as ciências da comunicação desde a América Latina. Revista Famecos: mídia, cultura e tecnologia, 25(3), ID30108. https://doi.org/10.15448/1980-3729.2018.3.30108
https://doi.org/10.15448/1980-3729.2018....
).

Ao longo do tempo, a filosofia estabeleceu fronteiras rígidas que delimitaram o que pode (e o que não pode) ser considerado conhecimento válido, beneficiando sobremaneira a epistemologia cartesiana e o modelo positivista como operadores da ciência (Cassirer, 1993Cassirer, E. (1993). Ensaio sobre o homem: introdução a uma filosofia da cultura humana. Martins Fontes. ). Na atualidade, o desafio que se coloca é como superar a hierarquia estabelecida nessa hegemonia do fazer ciência, que despreza tudo o que não é eurocentrado e silencia a denominada ciência aterrada, que traz no seu bojo questões inerentes à diversidade étnico-racial constituinte, por exemplo, dos países latinoamericanos (Santos, 2020Santos, A. (Org.). (2020). Saberes plurais e epistemologias aterradas: Caminhos de pesquisa na psicologia e ciências humanas. Eduff. ).

As denominadas epistemologias fronteiriças não conseguem espaços para transformar a vida, objetivo maior da ciência. Os campos da saúde, por meio da saúde coletiva e da educação popular, nos apontam caminhos que produzem uma forma de fazer ciência “fora da mercantilização da ciência, promovendo as superações das hierarquias e por isso mantendo a ciência que promove a democracia e a emancipação das pessoas e não entregue ao mercado” (Reis, 2019 Reis, V. (2019, 2 de outubro). O conhecimento científico num mosaico de novas epistemologias. Abrasco. https://abrasco.org.br/a-producao-do-conhecimento-cientifico-num-mosaico-de-novas-epistemologias/
https://abrasco.org.br/a-producao-do-con...
).

É necessário a constituição de modelos do fazer ciência mais populares que promovam éticas e metodologias de relações de encontro com o(a) outro(a), além de reconhecimento e valorização de outras formas de vida, culturas, identidades e de direitos dos povos subalternizados etc.

Para Reis ( 2019 Reis, V. (2019, 2 de outubro). O conhecimento científico num mosaico de novas epistemologias. Abrasco. https://abrasco.org.br/a-producao-do-conhecimento-cientifico-num-mosaico-de-novas-epistemologias/
https://abrasco.org.br/a-producao-do-con...
), esse é um debate que se trava na epistemologia contemporânea através do reconhecimento da indissociabilidade entre ela e o projeto de ciência que se quer. Para ele, ao se propor uma epistemologia do sul, na qual não se abra mão das práticas modernas estabelecidas, principalmente no campo da biomedicina, reivindica-se o reconhecimento da diversidade de saberes e práticas de cura e de cuidado que existem no mundo. Para o autor, trata-se de uma questão intercultural, que deve ser produzida a partir de práticas colaborativas e não-extrativistas, novas experiências e ecologias do cuidado e por meio de “encontros entre diferentes idiomas do sofrimento e saberes e práticas da terapia, da cura e do cuidar” (Reis, 2019 Reis, V. (2019, 2 de outubro). O conhecimento científico num mosaico de novas epistemologias. Abrasco. https://abrasco.org.br/a-producao-do-conhecimento-cientifico-num-mosaico-de-novas-epistemologias/
https://abrasco.org.br/a-producao-do-con...
). Trata-se de uma crise que prega um “não” ao monismo metodológico cartesiano e à monocultura da biomedicina ocidental, e um “sim” a outras cosmologias, epistemologias, ciências, medicinas, terapias e formas de cura.

No bojo desse debate, o presente artigo objetiva contribuir com o diálogo sobre as relações entre a ciência psicológica e os saberes/fazeres fronteiriços, localizados às margens dos saberes oficiais regulamentados pelo Estado. Mais especificamente, busca-se apresentar como o Conselho Federal de Psicologia (CFP), uma autarquia pública responsável pela regulamentação, orientação e fiscalização do exercício profissional em psicologia, tem sido partícipe e fomentador desse trajeto movediço e pendular, que ora afasta, ora aproxima a psicologia dessas epistemologias e saberes/fazeres plurais.

Salienta-se que não há a assunção ingênua de dirimir os muitos conflitos vivenciados por profissionais, instituições em psicologia e afins, mas sim de explicitar elementos que capturam os muitos discursos e, consequentemente, aprisionam os diversos posicionamentos no interior de lógicas maniqueístas e simplistas. Não faz sentido tipificar os conhecimentos acadêmicos com rótulos cientificistas, que classificam alguns como bons e outros, distantes dos cânones academicistas, como ruins ou mesmo como formas equivocadas de construção de conhecimento.

No âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia, diversos(as) autores(as) já afirmaram os distintos posicionamentos do CFP em relação aos saberes/fazeres marginais, por exemplo, Tavares ( 2003 Tavares, F. R. G. (2003). Legitimidade terapêutica no Brasil Contemporâneo: As terapias alternativas no âmbito do saber psicológico. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 13(2), 83-104. https://doi.org/10.1590/S0103-73312003000200006
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200300...
), Del Gobo ( 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
; 2016Del Gobo, J. (2016). As práticas não hegemônicas no campo da psicologia brasileira. O que elas ensinam sobre nossa jovem ciência?. In B. J. Mader (Org.), Paradigmas científicos e perspectivas não hegemônicas na psicologia (pp. 51-62). CRP-PR. ), Nóbrega, Bernardes, Pires, Silva e Moura ( 2023 Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. de S., Pires, I. A. H., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2023). Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, e278861. https://doi.org/10.1590/1982-3703003278861
https://doi.org/10.1590/1982-37030032788...
), e Coelho ( 1993Coelho, A. R. (1993). Jornal do Psicólogo, (45), 9. ). A análise global dessas produções permite o vislumbre de movimentos diversos, intensos, contraditórios, conflituosos, com delimitação alargadas ou enrijecidas das fronteiras. Coelho ( 1993Coelho, A. R. (1993). Jornal do Psicólogo, (45), 9. ), por exemplo, afirma que o CFP produziu três posições distintas em relação às terapias alternativas: ortodoxa (em que a validação das práticas se dava exclusivamente a partir das epistemologias racionais); holística (foco maior na ética em detrimento da epistemologia); e problematizadora (em que as fronteiras são utilizadas para problematizar os próprios saberes/fazeres da psicologia).

Tavares ( 2003 Tavares, F. R. G. (2003). Legitimidade terapêutica no Brasil Contemporâneo: As terapias alternativas no âmbito do saber psicológico. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 13(2), 83-104. https://doi.org/10.1590/S0103-73312003000200006
https://doi.org/10.1590/S0103-7331200300...
) afirma que é tempo de negociações e arranjos parciais e temporários relativos a essas fronteiras. Para a autora, a história confirma que as políticas denunciativas e proibicionistas não fazem mais efeito e é fundamental orientarmos o debate para os resultados das práticas no exercício profissional da psicologia. Para Nóbrega et al ( 2023 Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. de S., Pires, I. A. H., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2023). Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, e278861. https://doi.org/10.1590/1982-3703003278861
https://doi.org/10.1590/1982-37030032788...
, p. 3), “torna-se um desafio e uma urgência fazer justiça a estas práticas marginalizadas, assumindo a defesa de uma psicologia científica e democrática, baseada na coerência do nexo entre ontologia, epistemologia, ética e prática”.

Porém, para avançarmos no debate, recortes são necessários no que diz respeito às margens que queremos abordar, visto que a própria psicologia em si, historicamente, é marginal e dali se constitui, produzindo outras tantas. A figura que melhor exemplifica essa relação entre psicologia e suas margens é, sem dúvida, tridimensional, amórfica, incerta, errante, nebulosa, flexível e dinâmica, destacando que o tempo provoca mudanças nessa geometria a todo o momento.

Não abordaremos as práticas e os saberes consolidados no campo interno da psicologia, destacando que esse é inerentemente conflituoso, ainda que possua algumas regras tácitas de tolerância em função de total ausência de uma unidade epistemológica, o que permite que um psicanalista conviva minimamente com um psicólogo cognitivista e este com um reichiano, como diria Figueiredo e Santi ( 1997Figueiredo, L. C. M., & Santi, P. L. R. (1997). Psicologia: Uma (nova) introdução. Educ. ). Isso caracteriza o que Del Gobo ( 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
), ao citar Berni, chama de “acordo intersubjetivo” do campo psi.

Também não abordaremos as intersecções com outros saberes oficiais igualmente conflituosos, tais como o campo da saúde (medicina, biologia, enfermagem, serviço social, fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional etc) ou mesmo os chamados paradigmas das tomadas de decisões e do trabalho (administração, estatística, direito etc) e o campo da educação (pedagogia, psicopedagogia). Entretanto, vale salientar que a psicologia se constitui enquanto ciência e profissão na interface com esses saberes, sendo os conflitos entre eles mais por sustentação de lógicas mercantis e corporativas que por dimensões epistêmicas.

Por fim, também não abordaremos as margens das relações entre psicologia e religião. Esse ponto merece uma discussão à parte, tamanha a complexidade inerente ao tópico, embora o que norteie tal questão seja o caráter laico da psicologia, já apresentado em vários documentos, congressos e eventos em geral.

O recorte se dá a partir de práticas historicamente marginais que delimitam o que antes denominávamos práticas alternativas (ao modelo hegemônico de ciência), emergentes, integradas e complementares, além de saberes de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas. Trata-se do que Spink ( 2003Spink, M. J. (2003). Psicologia da Saúde: A estruturação de um novo campo de saber. In M. J. Spink, Psicologia Social e Saúde: Práticas, saberes e sentidos (pp. 29-39). Vozes. ) denomina saberes populares em relação aos saberes oficiais. São as epistemologias não hegemônicas ou afrodiaspóricas, afropindorâmicas (Santos, 2020Santos, A. (Org.). (2020). Saberes plurais e epistemologias aterradas: Caminhos de pesquisa na psicologia e ciências humanas. Eduff. ) 2 2 Outros autores, Berni (2011) por exemplo, preferem o conceito de epistemologias étnicas, visto que, para conhecer bem a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), é necessário conhecer a cultura chinesa e, aproximando-se do contexto brasileiro, os saberes e ciência dos Kaingangs, Guaranis, Kaiowá, Kadwéu, Tuxá, dos povos de terreiros de matrizes africanas, dos povos quilombolas e tantos outros recortes étnicos possíveis. .

A Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta para a importância de aproximações entre saberes científicos e saberes tradicionais através do que chama de medicinas tradicionais, complementares e integrativas (MTCI). Elas constituem em um conjunto de práticas de atenção à saúde baseado em teorias e experiências de diferentes culturas, sendo utilizadas para promoção da, prevenção e recuperação da saúde e levando em consideração o ser integral em todas as suas dimensões. Em muitos países, as MTCI são a principal oferta de serviços à população, em outros, são ofertadas de maneira complementar ao sistema convencional (OPAS, 2024 Organização Panamericana de Saúde (OPAS). (2024). Medicinas tradicionais, complementares e integrativas. OPAS. https://www.paho.org/pt/topicos/medicinas-tradicionais-complementares-e-integrativas .
https://www.paho.org/pt/topicos/medicina...
).

No Brasil, essa aproximação é fortalecida pela Portaria do Ministério da Saúde (MS) n. 971/2006 (Portaria nº 971, 2006 Portaria nº 971, de 3 de maio de 2006. (2006, 3 de maio). Aprova a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC) no Sistema Único de Saúde. Ministério da Saúde. https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2006/prt0971_03_05_2006.html
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegi...
), que aprovou a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no Sistema Único de Saúde (SUS). Sem dúvida, não é uma aproximação que se encerra das Práticas Integrativas e Complementares (PICs), ao contrário, vai além, abarcando saberes e fazeres de povos indígenas e comunidades tradicionais.

Em relação à dimensão prática da vida cotidiana, vale apresentar as informações do último Censo da Psicologia Brasileira (CFP, 2022a Conselho Federal de Psicologia. (2022). Caderno de deliberações do 11º Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/cfp-publica-caderno-de-deliberacoes-do-11o-congresso-nacional-da-psicologia/ .
https://site.cfp.org.br/cfp-publica-cade...
). Em capítulo escrito por Barreto, Sá e Vianey ( 2022 Barreto, A. F., Sá, A. C., & Vianey, T.-K. L. (2022). A psicologia e as práticas integrativas e complementares. In A. V. B. Bastos (org.), Quem faz a psicologia brasileira? Condições de trabalho, fazeres profissionais e engajamento social (Vol. 2, pp. 76-88). Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/12/Censo_psicologia_Vol2-1.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
), identificaram que cerca de 15% das(os) profissionais em psicologia utilizam, em seus cotidianos de trabalho, práticas associadas às chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs), reconhecidas pelo SUS. Ou seja, cerca de 60 mil profissionais em psicologia declararam fazer uso de práticas que, em grande parte, não são legitimadas pelo campo. (Nóbrega et al, 2023 Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. de S., Pires, I. A. H., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2023). Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, e278861. https://doi.org/10.1590/1982-3703003278861
https://doi.org/10.1590/1982-37030032788...
). Não é um fenômeno que possamos ignorar. A abertura de um campo de diálogo com essas epistemologias é urgente e necessária. Há uma hipótese de que essas informações estejam subnotificadas. Além disso, não entram nesse cômputo práticas oriundas de outras epistemologias que não as associadas às PICs.

Dessa forma, queremos dialogar sobre os muitos movimentos (às vezes contraditórios) do CFP frente às novas epistemologias. Muitas vezes (e em muitos documentos) a solicitação da categoria para dialogarmos sobre as fronteiras do saber psicológico se colocou como premente para avançarmos frente a práticas que levem em consideração a diversidade epistêmica nas muitas práticas existentes na vida cotidiana.

Como aponta Spink ( 2000Spink, M. J. (2000). A ética na pesquisa social: Da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico, 31(1), 7-22. ), a ideia é caminharmos orientados por uma ética dialógica, do encontro das alteridades. Nessa mesma direção, Del Gobo ( 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
) apresenta uma ética das alteridades que implica necessariamente o diálogo, não excluindo ou ignorando as diferenças, mas permitindo um reconhecimento de si e do outro nelas.

Breve histórico dos movimentos do CFP na intersecção com saberes plurais

Utilizaremos três fontes documentais para compreender os movimentos do CFP no diálogo com as novas epistemologias, que são práticas fronteiriças oriundas, grande parte das vezes, de saberes/fazeres de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas, assim como do campo da saúde por meio das práticas integrativas e complementares (PICs).

A primeira fonte é apresentada por meio dos eventos relativos a esse debate realizados pelo CFP, caracterizando-se como dispositivo de diálogo e comunicação com a sociedade como um todo, mas, de modo especial, com a categoria psi; a segunda fonte é dada por meio dos Cadernos Deliberativos dos Congressos Nacionais de Psicologia (CNPs); por fim, a terceira fonte aparece por meio dos chamados Atos Oficiais (resoluções, portarias e instruções normativas), dispositivos normativos do sistema. No entrecruzamento entre esses três dispositivos – comunicação, deliberação e normatização – tentaremos apresentar os movimentos pendulares do CFP sobre as relações entre psicologia e práticas derivadas de novas epistemologias. Além disso, utilizaremos notas técnicas identificadas sobre o assunto e alguns dados do Censo da Psicologia Brasileira realizado pelo CFP no ano de 2022 (CFP, 2022b Conselho Federal de Psicologia. (2022). Censo da Psicologia Brasileira. Quem faz a psicologia brasileira? Volume 2: Condições de trabalho, fazeres profissionais e engajamento social. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/12/Censo_psicologia_Vol2-1.pdf .
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
).

Eventos

Vários eventos foram fundamentais para o debate entre psicologia e novas epistemologias. Realizamos um recorte dos relativos ao sistema conselhos e priorizamos aqueles que falavam diretamente dessa temática e que foram realizados/organizados pelo CFP. Não entram aqui os muitos encontros realizados pelos Conselhos Regionais de Psicologia, nem aqueles que o CFP foi convidado a participar. Foram muitos e realizar tal levantamento demandaria um tempo não disponível pelas(os) autoras(es). 3 3 Esta questão vale para outros documentos, publicações eventos etc do sistema conselhos como um todo. Muitas ações foram realizadas pelos conselhos regionais e que são fundamentais para o debate. Por exemplo, a excelente coleção publicada pelo Conselho Regional de São Paulo em 2016 intitulada Psicologia, Laicidade e as Relações com a Religião e a Espiritualidade, com seus três volumes: (a) Laicidade, Religião, Direitos Humanos e Políticas Públicas; (b) Na Fronteira da Psicologia com os Saberes Tradicionais: Práticas e Técnicas; (c) Psicologia, Espiritualidade e Epistemologias Não-Hegemônicas (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2016 ). Ou mesmo o site www.crpsp.org.br/diverpsi, que apresenta discussões sobre essa temática.

O primeiro Fórum de Práticas Alternativas realizado pelo CFP ocorreu entre os dias 27 a 29 de junho de 1997, em Brasília (DF). Ele foi fundamental para a produção das Resoluções nº 10/ 1997 Resolução nº 10, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo, associados à práticas que não estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo da psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-de-fiscalizacao-e-orientacao-n-10-1997-estabelece-criterios-para-divulgacao-a-publicidade-e-o-exercicio-profissional-do-psicologo-associados-a-praticas-que-nao-estejam-de-acordo-como-os-criterios-cientificos-estabelecidos-no-campo-da-psicologia?origin=instituicao&q=10/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
e 11/ 1997 Resolução nº 11, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-11-1997-dispoe-sobre-a-realizacao-de-pesquisas-com-metodos-e-tecnicas-nao-reconhecidas-pela-psicologia?origin=instituicao&q=11/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
ao definirem que o(a) profissional deve seguir práticas consolidadas no campo da psicologia. Casos excepcionais devem se pautar em atividades de pesquisa.

Um longo tempo se passou entre o fórum e o próximo evento realizado pelo CFP. Somente em 2011 encontramos outro momento de diálogo com práticas advindas de novas epistemologias, no Seminário online intitulado “Práticas Integrativas e Complementares e Racionalidades Profissionais” (CFP, 2011 Conselho Federal de Psicologia. (2011). Práticas Integrativas e Complementares e Racionalidades Profissionais [Vídeo]. Youtube. https://www.youtube.com/watch?v=iUrfAPvV5zw&t=3s
https://www.youtube.com/watch?v=iUrfAPvV...
), ocorrido em São Paulo. O objetivo foi o de ampliar o debate com a categoria, a academia e a sociedade sobre a realidade, os desafios e os caminhos futuros das práticas integrativas e complementares. Esse evento surgiu em função da deliberação do VII Congresso Nacional de Psicologia (VII CNP), ocorrido em Brasília em 2010, no qual foi aprovada proposta de organização de eventos com o debate sobre o que é considerado prática conhecida, reconhecida, emergente e alternativa.

A conferência de abertura do Seminário foi da professora Madel Therezinha Luz, (Universidade Estadual do Rio de Janeiro [UERJ]) intitulada “A psicologia e as Racionalidades das Práticas Integrativas”. Além da conferência de abertura, três mesas redondas constituíram o Seminário: (a) “A epistemologia e a racionalidade das práticas integrativas”, com Daniel Luz, coordenador da equipe de medicina tradicional chinesa da UERJ; (b) “Psicologia e as práticas integrativas e complementares” com Luiz Eduardo Valiengo Berni (Universidade de São Paulo [USP]), Delvo Ferraz, presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia e Acupuntura (Sobrapa) e Conceição Souza (Hospital do Câncer do Ceará); (c) “As práticas integrativas e complementares no SUS: Relação entre educação popular em saúde e as profissões regulamentadas”, com Osvaldo Peralta Bonetti, da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, e José Marmo da Silva, odontólogo, coordenador do projeto Ato Iré e membro da Rede Nacional de Religiões Afrobrasileiras e Saúde.

Berni (2011), por exemplo, apresentou para o debate a enorme carga de preconceitos inerente aos diálogos com as práticas integrativas, complementares e alternativas. Para ele, dialogar sobre não quer dizer concordar com elas, mas o que impera nessa relação são os preconceitos e o medo de ser confundido com as tais e de desaparecimento dos cânones científicos. Para o autor, é necessário rigor, tolerância e abertura, sem preconceitos, estereótipos e discriminação para as práticas das novas epistemologias.

Em julho de 2018, ocorreu o Encontro Nacional das Comissões de Orientação, Ética e Fiscalização. Nele surgiram muitas questões relacionadas às PICs e ao exercício profissional da psicologia. Uma das deliberações foi a realização de um seminário interno, que ocorreu logo em seguida, no mês de setembro desse mesmo ano.

Nesse seminário interno ao sistema conselhos, Amado (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) afirmou que é objetivo do MS incorporar, por meio das práticas integrativas no âmbito do SUS, os denominados conhecimentos tradicionais, a fim de ampliar o acesso aos serviços de saúde por parte da população. Ricardo, outro palestrante, falou da importância do contraponto ao modelo biomédico/cartesiano, que opera como promotor da cultura de medicalização. Nesse sentido, as práticas integrativas, potencialmente, dialogam com o paradigma ético da psicologia.

Um dos destaques em relação às PICs foi apresentado por Amado (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) quando afirmou que as PICs são um modelo de cuidado não centrado no âmbito clínico ou mesmo do consultório, mas que implica em leituras da estruturação social como determinante da saúde das pessoas. Há uma mudança no paradigma do cuidado, e o autor apresenta, como exemplo desse pensamento, o fato da atenção básica registrar que há mais de 3.024 municípios ofertando as PICs no Brasil. Ainda segundo Amado, as principais práticas ofertadas se concentram no âmbito da medicina tradicional chinesa e, em particular, na acupuntura.

Nesse mesmo Seminário, Nóbrega (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) afirmou que a questão das PICs já era pauta de Assembleias das Políticas da Administração e das Finanças (APAFs) anteriores, o que fala da necessidade de que haja um maior aprofundamento em relação à temática, principalmente sobre as denominadas novas práticas e em particular as de interface com a PICs, a exemplo da Constelação Familiar. Nessa mesma direção, Brito (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) alertou que as PICs são tema instigante para a psicologia e também preocupante, a ponto de necessitarmos mais debates e aprofundamentos sobre o tema.

Bicalho (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) externou suas indagações, convidando à reflexão: as PICs devem ser avaliadas em uma perspectiva homogênea? Todas as práticas deveriam estar no âmbito das PICs? Ou algumas não são interessantes à psicologia? Lacerda (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) contribuiu com as reflexões, lançando outras questões: Como se pode avaliar quem está habilitado a utilizar as PICS? De que forma se dá a formação? Como tem se dado o uso das práticas?

Além da preocupação com determinadas práticas em conflito com o código de ética profissional da psicologia, levantou-se a preocupação com uma formação mínima para o exercício das PICs. O entendimento final do seminário no que diz respeito às PICs é que tais práticas não sejam deliberadamente proibidas, o que também não significa que devam ser autorizadas sem nenhum critério.

Diante de tantas indagações, nos parece que Brito (Santos, 2018Santos, L. R. H. B. O. (2018). Relatório – Seminário Psicologia e Práticas Integrativas e Complementares – 29 e 30/09/18. CFP. ) aceitou o convite e lançou as bases do Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas (SAPP). Para ele, é importante compreender o histórico das PICs e o modo como elas foram incluídas no âmbito do SUS, sendo necessária a obtenção de mais elementos para a avaliação das respectivas práticas, incluindo aspectos epistemológicos e científicos.

Tanto o X ( 2019 Conselho Federal de Psicologia. (2019). Caderno de deliberações do 10º Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-do-10o-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
) quanto o XI Congresso Nacional da Psicologia ( 2022a Conselho Federal de Psicologia. (2022). Caderno de deliberações do 11º Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/cfp-publica-caderno-de-deliberacoes-do-11o-congresso-nacional-da-psicologia/ .
https://site.cfp.org.br/cfp-publica-cade...
) aprovaram propostas de ampliação dos debates com os saberes tradicionais e as PICs. Também solicitaram mais pesquisas e orientações em torno da questão.

Mais recentemente, em 2024, ocorreram dois eventos na sede do CFP em Brasília. O primeiro, uma Roda de Conversa durante um dia inteiro sobre novas epistemologias, com a participação de membros do SAPP e Secretaria de Orientação e Ética (SOE) do CFP, povos de terreiros, povos indígenas, povos quilombolas, Rede PICs, ObervaPICs da FioCruz e Ministério da Saúde. Foi um dia de debates intensos, marcado principalmente pela impossibilidade de lidar com os distintos saberes de forma pasteurizada e homogênea. Cada representante dos povos tradicionais e povos indígenas afirmou categoricamente que não faz sentido suas ciências fazerem parte das PICs, pois não eram nem integrais (na contraposição aos paradigmas cartesianos), nem complementares, menos ainda alternativas. Reafirmaram seus saberes como ciência própria, oriunda de tradições históricas, sem paralelismos com a racionalidade médica ocidental.

O segundo evento de 2024 foi o Encontro de Comissões de Ética (COEs) e Comissões de Orientação e Fiscalização (COFs) do Sistema Conselhos. Ali, além das muitas questões dialogadas sobre o que fazer com a associação de práticas oriundas de novas epistemologias com a psicologia, apresentou-se o SAPP como uma das possibilidades de avançarmos nos diálogos.

Nos eventos, fica marcado o posicionamento do diálogo e da necessidade de não proibir a qualquer custo, mas também de não liberar sem antes definir critérios que passem pelo campo da cientificidade, da ética e da formação profissional.

Congresso Nacional de Psicologia – CNP

O Congresso Nacional de Psicologia (CNP) é o dispositivo democrático mais participativo do sistema conselhos de psicologia como um todo. É estruturado com eventos preparatórios, os congressos regionais de psicologia (atualmente COREPSI), em que são eleitos delegados para participarem da etapa nacional em Brasília (DF). Em todo o processo, são constituídas diretrizes e propostas a serem operacionalizadas pelos regionais e federal ao longo dos próximos três anos da iniciante gestão. Sua dinâmica foi se ampliando e se aprimorando ao longo dos tempos.

O primeiro CNP ocorreu em 1994, em Campos do Jordão (SP). Com periodicidade de três anos, o segundo ocorreu em Belo Horizonte (MG) e o terceiro em Florianópolis (SC). A partir do quarto CNP, em 2001, passa a ocorrer, por razões econômicas, em Brasília. Foram realizados até o momento onze CNPs. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) prepara o décimo segundo para 2025, em Brasília (DF).

Após leitura atenta de todos os Cadernos de Deliberações dos CNPs, analisando e explorando as relações das diretrizes e propostas sobre práticas alternativas, emergentes, integrativas e complementares e saberes tradicionais, principalmente com o exercício profissional, apontamos algumas questões para auxiliar na compreensão dos movimentos do sistema conselhos de psicologia.

Nos três primeiros CNPs ( 1994 Conselho Federal de Psicologia. (1994). Caderno de deliberações do I Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-i-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
, 1996 Conselho Federal de Psicologia. (1996). Caderno de deliberações do II Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-ii-cnp/
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
e 1998 Conselho Federal de Psicologia. (1998). Caderno de deliberações do III Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-do-iii-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
), o posicionamento do sistema conselhos de psicologia nessa temática era centrado nas chamadas práticas ou terapias alternativas. Três posicionamentos eram explícitos: (a) “Não cabe ao conselho legislar sobre terapias alternativas” (essa frase está presente nos dois primeiros cadernos de deliberações; (b) Psicólogo deve comunicar ao cliente que não há cientificidade nessa prática que ele exercita; (c) Propõem que os centros de pesquisas realizem investigações.

Nesses três cadernos, não há uma postura normativo-policialesca em relação às práticas ditas alternativas. Ao contrário. Nos parece mais uma postura eminentemente liberal, desdenhosa até. No máximo uma alusão bastante vaga à não associação da psicologia às “práticas baseadas em pressupostos irracionais, místicos, religiosos e imediatistas ou de senso comum”.

Em outra direção, Del Gobo ( 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
; 2016Del Gobo, J. (2016). As práticas não hegemônicas no campo da psicologia brasileira. O que elas ensinam sobre nossa jovem ciência?. In B. J. Mader (Org.), Paradigmas científicos e perspectivas não hegemônicas na psicologia (pp. 51-62). CRP-PR. ) afirma que havia contradições no campo da psicologia na relação com as novas ou antigas práticas, e isso era evidente nos primeiros CNPs. Segundo ele, durante a década de 1990, o CFP apresentou três diferentes reações frente a esse tema: primeiramente, uma postura denunciativa, indicando as práticas alternativas como uma ameaça externa a ser combatida. Em segundo momento, com a publicação da Resolução CFP n. 16/1994 ( Resolução n. 16 , 1994 Conselho Federal de Psicologia. (1994). Caderno de deliberações do I Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-i-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
), passou a uma postura proibitiva, delimitando um rol de práticas que estariam excluídas do exercício profissional da psicologia. Em terceiro, certa abertura do campo para o diálogo e a qualificação das discussões sobre as práticas alternativas. (Del Gobo, 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
)

Em 1998, o III CNP o Caderno de Deliberações não apresenta qualquer discussão sobre práticas ou terapias alternativas, ou equivalentes.

Os movimentos do sistema conselhos com as práticas alternativas se orientam, inicialmente, com certa condescendência e descompromisso com esse debate. Como veremos mais adiante, a primeira resolução que trata do tema é a Resolução CFP n. 4/1979 ( Resolução n. 4, 1979 Resolução nº 04, de 20 de fevereiro de 1979. (1979, 20 de fevereiro). Dispõe sobre a divulgação e emprego profissionais da psicodança, da musicoterapia, da expressão corporal, equivalentes, enquanto métodos e técnicas psicológicas. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-4-1979-dispoe-sobre-divulgacao-e-emprego-profissionais-da-psicodanca-da-musicoterapia-da-expressao-corporal-equivalentes-enquanto-metodos-e-tecnicas-psicologicas?origin=instituicao&q=04/1979 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que “dispõe sobre divulgação e emprego profissionais da Psicodança, da Musicoterapia, da Expressão Corporal e equivalentes enquanto métodos e técnicas psicológicas”.

A partir do IV CNP, em 2001 Conselho Federal de Psicologia. (2001). Caderno de deliberações do IV Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-do-iv-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
, há um deslocamento importante de posicionamento: a responsabilidade do profissional avisar ao cliente que a prática utilizada não possui respaldo científico passa para o conselho regional. E, pela primeira vez, é introduzido os Direitos Humanos no debate.

A entrada dos Direitos Humanos indicava, inicialmente, uma implicação relacionada à troca de saberes na diversidade presente nas diferentes epistemologias e práticas, embora ainda de forma difusa. Nesse IV CNP, o conceito de práticas alternativas é substituído por práticas emergentes, principalmente orientadas às relações entre a psicologia e a informática, distanciando-se dessa forma do debate original.

Os dois próximos CNPs mantiveram esse posicionamento, vinculado às práticas emergentes (psicologia e informática) por um lado e pelos Direitos Humanos do outro. Aparece certa preocupação em mapear as práticas de saúde, principalmente na atenção básica, pois é o lócus privilegiado para o desenvolvimento de práticas diferentes das consolidadas na psicologia.

Após a implantação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em 2006, a questão aparece com força em 2010 no Caderno de Deliberações do VII CNP. Nota-se várias novidades: é a primeira vez que surge o conceito de Práticas Integrativas e Complementares, a acupuntura aparece como tema, o sistema conselhos reconhece a acupuntura como prática complementar à psicologia, e surgem muitas propostas para divulgação da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) e Acupuntura. Há uma forte diretriz para o fortalecimento da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Nesse contexto, o debate é orientado para responder o que é uma prática conhecida, reconhecida, emergente e alternativa.

Em 2013, no VIII CNP, o debate sobre práticas alternativas ganhou ares filosóficos e se dá no campo das novas epistemologias ou epistemologias não hegemônicas. Impulsionadas, principalmente, pelo campo da saúde, articulam-se três políticas no debate: Política Nacional de Humanização (PNH) (Brasil, 2005Brasil. Ministério da Saúde. (2005). A Humanização como política transversal na rede de atenção e gestão em saúde: novo momento da Política Nacional de Humanização. Projeto – PNH/2005- 2006. Ministério da Saúde. ), Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS) (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. (2005). A Humanização como política transversal na rede de atenção e gestão em saúde: novo momento da Política Nacional de Humanização. Projeto – PNH/2005- 2006. Ministério da Saúde. ) e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPICs) (Brasil, 2006Brasil. Ministério da Saúde. (2005). A Humanização como política transversal na rede de atenção e gestão em saúde: novo momento da Política Nacional de Humanização. Projeto – PNH/2005- 2006. Ministério da Saúde. ), inclusive sendo aprovada uma moção conclamando as entidades de formação em psicologia a incluírem esse debate nos currículos dos cursos. Nessa esteira, as PICs são tipificadas como nova área da psicologia, e se afirma o caráter e a importância de debater a diversidade das novas epistemologias.

As epistemologias não hegemônicas são associadas imediatamente aos saberes e fazeres tradicionais, principalmente dos povos e comunidades tradicionais e povos indígenas do país. Durante o CNP, o debate se deu em um duplo âmbito: no das políticas públicas, o interesse foi ampliar o debate sobre a diversidade epistemológica, saberes tradicionais e práticas integrativas; no das práticas psicoterápicas, o interesse foi o de ampliar o debate para a diversidade epistemológica e as PICs. Esse movimento continua nos próximos CNPs, com propostas de ampliar o arco de atuação da psicologia nas PICs e, também, junto aos povos indígenas.

Entretanto, no X CNP há uma preocupação explícita de debater as interações e os limites entre psicologia e PICs. Provavelmente impulsionadas pelos debates de algumas práticas integrativas extrapolarem os limites éticos e dos direitos humanos, como apresentado na Nota Técnica do CFP sobre a Constelação Familiar (Nota Técnica CFP n . 1/2023 , 2023), em que se recomenda a não associação do exercício profissional em psicologia com essa prática. Aparece também, de forma explícita a preocupação em regulamentar as práticas associadas à psicologia como um todo. Há propostas de criação do “Observatório de Novas Práticas”, orientado para o debate com as PICs e as práticas emergentes oriundas de áreas pouco consolidadas.

Por outro lado, foi aprovada uma moção nesse CNP que reitera a importância do diálogo com saberes e povos tradicionais, além de, na própria “apresentação” no Caderno de Deliberações, pela primeira vez surgiram questões vinculadas a posicionamentos colonialistas na psicologia, vinculado aos Direitos Humanos:

Nestes tempos, precisamos falar, debater e propor diretrizes técnicas e ético-políticas de resistência, considerando a história da psicologia em nosso País, trazendo ao nosso cotidiano as questões e desafios que atravessam a interdependência entre psicologia e democracia, tais como o pensamento colonialista e os processos de estagnação que este condiciona.

(CFP, 2019 Conselho Federal de Psicologia. (2019). Caderno de deliberações do 10º Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-do-10o-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
, grifo nosso)

No último CNP, em 2022, as preocupações com as PICs se acirram, com justificativas orientadas para a ameaça a direitos já consolidados e propondo mais debates e pesquisas, com a construção de referências e resoluções sobre tais práticas. Por outro lado, há proposições para fomentar a legitimidade das PICs e mais debates e pesquisas sobre decolonialidade e novas epistemologias.

Atos oficiais

Os Atos Oficiais foram a terceira fonte investigada para nosso debate. Eles são os dispositivos que regulamentam o exercício profissional em psicologia, emitidos pelo CFP. São atos necessários à execução da legislação reguladora do exercício da profissão. Englobam resoluções, portarias e instruções normativas. Além desses documentos, inserimos aqui as Notas Técnicas. Sete resoluções, uma instrução normativa e uma nota técnica que versam sobre o tema foram identificadas no CFP.

As Resoluções são instrumentos normativos por meio dos quais o CFP busca elucidar aspectos da legislação, abordando temas da prática profissional, orientações administrativas para o funcionamento interno do CFP e dos CRPs. As Instruções Normativas são atos administrativos que visam disciplinar a execução de determinada atividade a ser desempenhada. Já as Notas Técnicas são propostas quando se identifica a necessidade de fundamentação formal ou informação específica sobre uma determinada matéria, com o objetivo de se ofertar subsídios para a tomada de decisão.

Os posicionamentos que constituem os Atos Oficiais são produtos e produtores dos diálogos de eventos e propostas aprovadas nos CNPs. Anteriormente, o primeiro documento é a Resolução CFP n. 04/1979 ( Resolução n. 04, 1979 Resolução nº 04, de 20 de fevereiro de 1979. (1979, 20 de fevereiro). Dispõe sobre a divulgação e emprego profissionais da psicodança, da musicoterapia, da expressão corporal, equivalentes, enquanto métodos e técnicas psicológicas. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-4-1979-dispoe-sobre-divulgacao-e-emprego-profissionais-da-psicodanca-da-musicoterapia-da-expressao-corporal-equivalentes-enquanto-metodos-e-tecnicas-psicologicas?origin=instituicao&q=04/1979 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), e “dispõe sobre a divulgação e emprego profissionais da Psicodança, da Musicoterapia, da Expressão Corporal, e equivalentes, enquanto método e técnicas psicológicas”.

A identificação dessa resolução e o fato de estar em vigor nos surpreendeu. Em primeiro, pela sua simplicidade: as considerações e motivações são mais aprofundadas e ampliadas que a própria resolução, que versam sobre as funções do CFP (orientar, fiscalizar e disciplinar o exercício profissional em psicologia). Elas falam dos interesses da comunidade brasileira e em nome da classe de psicólogos no Brasil, do compromisso ético do CFP, da boa e adequada qualificação profissional e das bases legais para tal ato. A resolução define em seu artigo 1º que “É da competência privativa do Psicólogo, em todo o território nacional, a utilização de métodos e técnicas psicológicas que caracterizam a Psicodança, a Musicoterapia, a Expressão Corporal, e equivalentes, com os objetivos estabelecidos por lei” (grifos nossos). Além disso, o treinamento para tais práticas só pode ser destinado a psicólogos(as) e estudantes de psicologia.

Trata-se de um documento com proposta arrojada para a época (inclusive atualmente) e com forte teor corporativo, mercantil e liberal, pois delimita uma série de práticas como “competência privativa do psicólogo”. Vale lembrar que essa resolução está em vigor nos dias de hoje, ou seja, o CFP reconhece a Psicodança, a Musicoterapia, a Expressão Corporal e equivalentes como práticas psicológicas há 45 anos.

Esse posicionamento, de certa maneira, dialoga com deliberações aprovadas no I CNP em 1994. O primeiro é de que não cabe ao CFP legislar sobre terapias e práticas alternativas. Aliado a esse posicionamento, se acaso o(a) profissional a exercite, deve informar ao cliente que se trata de uma prática não reconhecida. Além disso, propõe à comunidade científica a realização de pesquisas sobre tais práticas.

Vale lembrar que, logo após o I CNP, a Resolução CFP n. 16/1994 ( Resolução n. 16 , 1994 Conselho Federal de Psicologia. (1994). Caderno de deliberações do I Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-i-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
) foi aprovada. Ela dispõe sobre a publicidade profissional associada às práticas alternativas. Em seu artigo 1º, deixa bastante evidenciada uma guinada no curso das relações com as práticas alternativas de forma geral:

Art. 1º: Fica vedado ao Psicólogo na publicidade através de jornais, rádio, televisão ou outro veículo de comunicação, vincular ou associar ao título de Psicólogo e/ou ao exercício profissional rótulos expressões práticas ou técnicas tais como: Tarologia, Astrologia, Numerologia, Cristaloterapia, Terapia Energética, Psicoterapia Xamânica, Psicologia Esotérica, Terapia de Transmutação Energética, Quiromancia Cromoterapia, Florais, Fotografia Kirlian, Terapia Regressiva de Vidas Passadas, Psicologia Espiritual, Terapia dos Chacras, Terapia dos Mantras Terapia de Meditação, Psicoterapia do Corpo Astral, Trabalho Respiratório Mohânico, Projeciologia, Programação Neurolinguística, Iridologia

( Resolução n. 16 , 1994 Conselho Federal de Psicologia. (1994). Caderno de deliberações do I Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/caderno-de-deliberacoes-i-cnp/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/cader...
).

Essa resolução foi revogada pela Resolução CFP n. 29/1995 ( Resolução n. 29, 1995 Resolução nº 29, de 16 de dezembro de 1995. (1995, 16 de dezembro). Altera a Resolução CFP nº 16/94 que dispõe sobre a publicidade associada à práticas alternativas. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-29-1995-altera-a-resolucao-cfp-no-16-94-que-dispoe-sobre-a-publicidade-associada-a-praticas-alternativas?origin=instituicao&q=29/1995 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
). A única diferença entre as duas resoluções é que na segunda versão foi retirada da lista de impedimentos (especificadas como exemplos) a Programação Neurolinguística. Posteriormente, ambas foram revogadas.

Logo após o Fórum Práticas Alternativas, que ocorreu em Brasília (DF) em junho de 1997, foram aprovadas duas resoluções: Resolução CFP n. 10/1997 ( Resolução n. 10 , 1997 Resolução nº 10, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo, associados à práticas que não estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo da psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-de-fiscalizacao-e-orientacao-n-10-1997-estabelece-criterios-para-divulgacao-a-publicidade-e-o-exercicio-profissional-do-psicologo-associados-a-praticas-que-nao-estejam-de-acordo-como-os-criterios-cientificos-estabelecidos-no-campo-da-psicologia?origin=instituicao&q=10/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que revoga a resolução n. 29/1995 ( Resolução n. 29 , 1995 Resolução nº 29, de 16 de dezembro de 1995. (1995, 16 de dezembro). Altera a Resolução CFP nº 16/94 que dispõe sobre a publicidade associada à práticas alternativas. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-29-1995-altera-a-resolucao-cfp-no-16-94-que-dispoe-sobre-a-publicidade-associada-a-praticas-alternativas?origin=instituicao&q=29/1995 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
); e Resolução CFP n. 11/1997 ( Resolução n. 11 , 1997 Resolução nº 11, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-11-1997-dispoe-sobre-a-realizacao-de-pesquisas-com-metodos-e-tecnicas-nao-reconhecidas-pela-psicologia?origin=instituicao&q=11/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
). A primeira estabelece critérios para a divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo na associação às práticas em desacordo com a ciência psicológica. Já a segunda dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia. Há ainda, na consolidação dessas duas, a Instrução Normativa (IN) CFP n. 01/1997 ( Instrução Normativa n. 01, 1997 Resolução nº 11, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-11-1997-dispoe-sobre-a-realizacao-de-pesquisas-com-metodos-e-tecnicas-nao-reconhecidas-pela-psicologia?origin=instituicao&q=11/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que regulamenta as resoluções anteriores e “dispõe sobre as pesquisas e os critérios para a divulgação, publicidade e o exercício profissional associado a técnicas não consagradas pelos critérios científicos da Psicologia”. Essas duas resoluções e a IN estão em vigor ainda hoje.

A Resolução CFP n. 10/1997 é explícita em seu primeiro artigo: “É permitido ao psicólogo, no exercício profissional, na divulgação e publicidade, através dos meios de comunicação, vincular ou associar o título de psicólogo e/ou ao exercício profissional, somente técnicas ou práticas psicológicas já reconhecidas como próprias do profissional psicólogo e que estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo da Psicologia” ( Resolução nº 10 , 1997 Resolução nº 10, de 20 de outubro de 1997. (1997, 20 de outubro). Estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo, associados à práticas que não estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo da psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-de-fiscalizacao-e-orientacao-n-10-1997-estabelece-criterios-para-divulgacao-a-publicidade-e-o-exercicio-profissional-do-psicologo-associados-a-praticas-que-nao-estejam-de-acordo-como-os-criterios-cientificos-estabelecidos-no-campo-da-psicologia?origin=instituicao&q=10/1997 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
).

No segundo artigo, a resolução avança para as condicionantes em caso de uso como recurso complementar de técnicas não reconhecidas pela psicologia. Podem ser utilizadas nos seguintes casos: pesquisas, conforme Resolução n. 196/1996 (Resolução nº 196, 1996Resolução nº 196, de 10 de outubro de 1996. (1996, 10 de outubro). Dispõe sobre diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Conselho Nacional de Saúde. ) do Conselho Nacional de Saúde (CNS); se respeitarem os princípios éticos do Código de Ética Profissional de Psicologia; se o profissional comprovar, junto ao CRP, que possui habilitação adequada para o manejo da técnica; e desde que haja declaração expressa do cliente reconhecendo o caráter experimental da técnica ou prática utilizada.

Sem dúvida, há a consolidação de uma movimentação outra que não a proibição de determinadas práticas. Segundo Del Gobo, “nessas resoluções não há menção alguma a qualquer prática, seja ela reconhecida ou não, pois já havia consenso de que não são os Conselhos que legitimam qualquer prática, mas a comunidade científica e a própria sociedade” (Del Gobo, 2014 Del Gobo, J. (2014). O Sistemas Conselhos na Relação da Psicologia com as Práticas Emergentes. Revista Contato, 95, 28-33, 2014. https://crppr.org.br/revista-contato/revista-contato-95/
https://crppr.org.br/revista-contato/rev...
, p. 58)

A próxima é a Resolução CFP n. 13/2000 ( Resolução nº 13, 2000 Resolução nº 13, de 20 de dezembro de 2000. (2000, 20 de dezembro). Aprova e regulamenta o uso da Hipnose como recurso auxiliar de trabalho do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-13-2000-aprova-e-regulamenta-o-uso-da-hipnose-como-recurso-auxiliar-de-trabalho-do-psicologo?origin=instituicao&q=13/2000 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que aprova e regulamenta o uso da hipnose como recurso auxiliar de trabalho do(a) psicólogo(a). Trata-se de um documento simples, com poucos artigos, que apresenta em seu artigo 1º que a hipnose é “recurso auxiliar de trabalho do psicólogo”.

Logo em seguida, publica-se a Resolução CFP n. 05/2002 ( Resolução nº 05, 2002 Resolução nº 05, de 24 de maio de 2002. (2002, 24 de maio). Dispõe sobre a prática da acupuntura pelo psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-5-2002-dispoe-sobre-a-pratica-da-acupuntura-pelo-psicologo?origin=instituicao&q=05/2002 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que dispõe sobre a prática da acupuntura pelo psicólogo. Em seu artigo primeiro, reconhece o uso da técnica como recurso complementar no trabalho do(a) psicólogo(a). Em seu artigo segundo afirma que, para exercê-la, o(a) profissional de psicologia deve comprovar formação e capacitação específica para tal fim.

Entretanto, tal resolução foi alvo de disputas jurídicas com o Colégio Médico de Acupuntura, que abriu processo judicial exigindo sua anulação. Após tramitado e julgado, a resolução foi considerada nula, com a justificativa de “que não estão os profissionais da Psicologia habilitados para a prática do diagnóstico clínico e prescrição de tratamento, por ter tratado de matéria não prevista na Lei que regulamenta a profissão de Psicólogo, é ilegal e deve ser anulada”. Ou seja, de acordo com essa decisão, os(as) profissionais da Psicologia não podem usar a acupuntura como método ou técnica complementar, uma vez que a prática não está prevista na lei que regulamenta a profissão.

Em 2013 Conselho Federal de Psicologia. (2013). Caderno de deliberações do VIII Congresso Nacional de Psicologia. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/publicacao/viii-cnp-psicologia-etica-e-cidadania-praticas-profissionais-a-servico-da-garantia-de-direitos/ .
https://site.cfp.org.br/publicacao/viii-...
, o CFP lança uma “Nota sobre o exercício da acupuntura pelas(os) psicólogas(os)”, pontuando que:

como não está dentro das atribuições do CFP estabelecer se as (os) psicólogas (os) podem realizar a acupuntura, pois o entendimento do STF é de que a União, por meio de uma Lei deva definir essa atribuição, esclarecemos à categoria que o CFP em parceria com as outras categorias profissionais da saúde fará gestão junto aos parlamentares para que seja formulada uma legislação que inclua a Psicologia no rol dos profissionais capacitados para exercer a prática.

(Nota sobre o exercício da acupuntura pelas(os) psicólogas(os), 2013 Nota sobre o exercício da acupuntura pelas (os) psicólogas (os). (2013, 20 de junho). Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/nota-sobre-o-exercicio-da-acupuntura-pelas-os-psicologas-os/ .
https://site.cfp.org.br/nota-sobre-o-exe...
)

As atenções dos atos normativos, eventos e CNPs se voltam ora para as políticas públicas, principalmente no campo da saúde, e ora para as delimitações das atividades terapêuticas, ganhando destaque os limites com a própria psicoterapia. Nessa discussão, surge a Resolução CFP nº 13/2022 ( Resolução nº 13 , 2022 Resolução nº 13, de 15 de junho de 2022. (2022, 15 de junho). Dispõe sobre diretrizes e deveres para o exercício da psicoterapia por psicóloga e por psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-13-2022-dispoe-sobre-diretrizes-e-deveres-para-o-exercicio-da-psicoterapia-por-psicologa-e-por-psicologo?origin=instituicao&q=13/2022 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que dispõe sobre diretrizes e deveres para o exercício da psicoterapia por profissionais de psicologia. Nela, há dispositivos que mencionam critérios relativos ao uso de abordagens psicoterapêuticas, esbarrando em fronteiras com novas epistemologias, por exemplo, no artigo 3º, inciso V – “utilizar abordagens psicoterapêuticas admitidas cientificamente, conforme o art. 14 desta Resolução”. O artigo 14 estabelece os critérios, dentre outros: II – fundamentação ético-científico-epistemológica; III – fundamentação científica sobre o desenvolvimento humano e psicológico; V – comprovação, por meio da literatura científica, que evidencie benefícios à saúde.

Na esteira do âmbito terapêutico, foi lançada a Nota Técnica CFP n. 1/2023 (Nota Técnica CFP N. 1/2023, 2023 Nota Técnica CFP N. 1/2023, de 3 de março de 2023. (2023, 3 de março). Visa a orientar psicólogas e psicólogos sobre a prática da Constelação Familiar, também denominada Constelações Familiares Sistêmicas. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/documentos/nota-tecnica-1-2023-visa-a-orientar-psicologas-e-psicologos-sobre-a-pratica-da-constelacao-familiar-tambem-denominada-constelacoes-familiares-sistemicas/
https://site.cfp.org.br/documentos/nota-...
) com objetivo de orientar profissionais de psicologia sobre a prática da Constelação Familiar Sistêmica. Segundo a nota, representantes de CRPs e do CFP, com o intuito de responder às demandas recebidas pelos CRPs, levantaram a hipótese dela não se configurar como método ou técnica psicológica e apresentar incompatibilidades éticas com o exercício profissional da psicologia. Dessa forma, orientam profissionais de psicologia a não utilizar a prática.

Os movimentos atuais do CFP, baseado em diálogos nas diversas instâncias, eventos, CNPs, APAFs etc, culminou em uma tentativa de avançar nesse diálogo com as novas epistemologias por meio do SAPP. Para isso, duas resoluções entram em cena. A primeira delas é a Resolução CFP n. 18/2022 ( Resolução nº 18 , 2022 Resolução nº 18 de 11 de agosto de 2022. (2022, 11 de agosto). Cria o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito e estabelece diretrizes para o seu funcionamento. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-administrativa-financeira-n-18-2022-cria-o-sistema-de-avaliacao-de-praticas-psicologicas-aluizio-lopes-de-brito-e-estabelece-diretrizes-para-o-seu-funcionamento?origin=instituicao&q=18/2022 .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que cria o SAPP e estabelece diretrizes para o seu funcionamento. Essa Resolução estabelecia um ano para que o sistema fosse lançado, o que ocorreu em agosto do ano seguinte por meio da Resolução CFP n. 15/2023 ( Resolução nº 15 , 2023 Resolução nº 15 de 17 de agosto de 2023. (2023, 17 de agosto). Estabelece diretrizes para o funcionamento do Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) e revoga a Resolução CFP nº 18/2022 e a nº 03/2023. Conselho Federal de Psicologia. https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-administrativa-financeira-n-15-2023-estabelece-diretrizes-para-o-funcionamento-do-sistema-de-avaliacao-de-praticas-psicologicas-aluizio-lopes-de-brito-sapp-e-revoga-a-resolucao-cfp-n%C2%BA-182022-e-a-n%C2%BA-03-2023?origin=instituicao .
https://atosoficiais.com.br/cfp/resoluca...
), que estabelece diretrizes para o funcionamento do SAPP e revoga a anterior.

Conforme Nóbrega et al ( 2023 Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. de S., Pires, I. A. H., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2023). Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado. Psicologia: Ciência e Profissão, 43, e278861. https://doi.org/10.1590/1982-3703003278861
https://doi.org/10.1590/1982-37030032788...
), o SAPP é um dispositivo de cuidados, que possui os objetivos de qualificar, orientar e se fazer conhecer práticas (psicológicas ou não) que estejam nas fronteiras. A ideia é lançar informações no sistema, disponíveis a todas as pessoas, sobre as práticas avaliadas. O SAPP buscará auxílio nas diversas epistemologias que fazem parte da psicologia ou a orbitam, mas também nas questões éticas e vinculadas aos Direitos Humanos.

Abaixo, apresentamos um quadro com a linha do tempo do entrecruzamento dessas três fontes com informações básicas sobre cada item. Dessa forma, torna-se mais visibilizado o jogo e os muitos movimentos institucionais do CFP no debate com as novas epistemologias.

Quadro 1
Linha do Tempo de Documentos do CFP

Algumas considerações…

Algumas questões surgem nas leituras desses três dispositivos apresentados em relação aos posicionamentos do C F P sobre as relações entre o exercício profissional em psicologia e as práticas oriundas de novas epistemologias. Percebe-se, nitidamente, diferentes movimentos do CFP ao longo das fontes investigadas. Nos eventos, o domínio é o do diálogo, dos encontros, alguns deles com conflitos abertos, outros com conflitos mais velados. Igual é o posicionamento nos Congressos Nacionais de Psicologia (CNPs). Talvez mais cautelosos, reivindicando pesquisas e estudos mais aprofundados, assim como certa regulação. Por outro lado, os CNPs também apresentaram, a partir da década de 2010, a importância dos diálogos com as PI Cs, com saberes de povos e comunidades tradicionais e povos indígenas articulados aos Direitos Humanos. Torna-se visível a importância das políticas públicas no campo da saúde e dos debates sobre direitos humanos para o diálogo entre a psicologia e as novas epistemologias.

Os atos oficiais vão, em alguns momentos, em direções opostas. Por um lado, inicialmente eminentemente liberais, com orientações mais próximas de uma postura liberal e mercantil por meio de reserva de mercado; por outro lado, em momentos mais restritivos no exercício profissional e mais cautelosos no campo da pesquisa, permitindo o exercício profissional de práticas de novas epistemologias, mas com condicionantes. Definitivamente, os atos oficiais espelham os momentos existentes nos eventos e CNPs e, dialeticamente, produzem novas imagens e configurações com o passar do tempo.

Os avanços nos diálogos, encontros e pesquisas são fundamentais. O desafio maior é como produzir conhecimentos que dialoguem com as epistemologias da psicologia como um todo e que também dialoguem com a ética profissional e com os direitos humanos.

O caminho desenhado nos últimos anos parece ser promissor, e dois movimentos são importantes. Primeiro, aproximações com as PICs do SUS, embora as leituras e as avaliações das aproximações (ou distanciamentos) do exercício profissional em psicologia com as PICs não ocorram de forma homogênea. Cada PIC é uma prática a ser considerada em sua história, seus princípios, sua epistemologia, suas técnicas, sua ética e suas relações com os Direitos Humanos. Um segundo movimento se dá com as aproximações (ou afastamentos) dos saberes dos povos e comunidades tradicionais e povos indígenas, que não se confundem nem se reduzem às PICs.

Nesse contexto é importante destacar a potência que as PICs, enquanto política pública, oferecem em termos de crítica ao modelo de cuidado hegemônico referenciado na dicotomia saúde-doença, abrindo espaço para epistemologias afrodiaspóricas, indígenas e contracolonias como possibilidades de sustentação epistêmica de movimentos coletivos de resistência em prol de um cuidado ampliado, que articula a vida humana a outras formas de vida e ao contexto ambiental. Fala-se em potência porque, mesmo entre as PICs, há embates alimentados pela lógica de mercado, seja na forma como são oferecidos alguns serviços, nos processos de formação, ou na hierarquização das práticas, o que tem levado à disseminação com maior força de algumas em detrimento de outras.

Talvez os desafios mais interessantes a se avançar estejam no campo da ética e dos Direitos Humanos. Para a ética, a proposta de Spink ( 2000Spink, M. J. (2000). A ética na pesquisa social: Da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico, 31(1), 7-22. ) parece ser um bom caminho, afinal, novas epistemologias apresentam novos desafios. As afrodiaspóricas e indígenas ensinam que o diálogo, a percepção do outro e a escuta cuidadosa permitem que modos singulares de cuidado e cura, situados em contextos sociocultuais pindorâmicos, possam ser empreendidos (Schweickardt & Barreto, 2023Schweickardt, J. C., & Barreto, J. P. L. (2023). Desatando e tecendo os nós para decolonizar a Medicina Indígena na Amazônia. In J. C. Schweickardt, & J. P. L. Barreto (Orgs.), Trançar, destrançar e tecer na dança e no canto: Práticas da medicina indígena na Amazônia. Rede Unida. ). Tornar possível o encontro e a escuta refletem essa proposta da autora..

Mais do que seguir uma ética prescritiva, Spink ( 2000Spink, M. J. (2000). A ética na pesquisa social: Da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico, 31(1), 7-22. ) nos convida a exercitarmos uma ética dialógica, pautada na competência ética e na responsabilidade. Essa ética procura não se distanciar do(a) outro(a), mas se aproximar. Três grandes dispositivos de afastamentos são comumente utilizados pela ciência hegemônica: o distanciamento físico, o distanciamento burocrático e o distanciamento pelo saber competente, que acabam transformando o(a) outro(a) em objeto. Segundo Spink ( 2000Spink, M. J. (2000). A ética na pesquisa social: Da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico, 31(1), 7-22. ), esses três distanciamentos minam o exercício da ética dialógica e deixam o controle restrito à esfera da ética prescrita dos códigos morais. Para ela, vivemos hoje uma erosão da intersubjetividade, o que provoca o afastamento entre as pessoas e o não reconhecimento de suas dimensões subjetivas (histórias, alegrias, dores, sofrimentos, conhecimentos etc). A recente abertura a cosmologias não-eurocêntricas, notadamente epistemologias de matriz ou atravessamento indígenas e afrodiaspóricos, pode apontar caminhos para uma ética dialógica e intercultural.

Seguramente, este é um convite interessante para aprofundarmos.

Referências

  • 1
    Não iremos discutir as origens de cada uma das formas de tipificar as diversas epistemologias citadas. Partimos do princípio que reconhecemos elas e sua diversidade, em contraposição às epistemologias consolidadas no campo científico.
  • 2
    Outros autores, Berni (2011) por exemplo, preferem o conceito de epistemologias étnicas, visto que, para conhecer bem a Medicina Tradicional Chinesa (MTC), é necessário conhecer a cultura chinesa e, aproximando-se do contexto brasileiro, os saberes e ciência dos Kaingangs, Guaranis, Kaiowá, Kadwéu, Tuxá, dos povos de terreiros de matrizes africanas, dos povos quilombolas e tantos outros recortes étnicos possíveis.
  • 3
    Esta questão vale para outros documentos, publicações eventos etc do sistema conselhos como um todo. Muitas ações foram realizadas pelos conselhos regionais e que são fundamentais para o debate. Por exemplo, a excelente coleção publicada pelo Conselho Regional de São Paulo em 2016 intitulada Psicologia, Laicidade e as Relações com a Religião e a Espiritualidade, com seus três volumes: (a) Laicidade, Religião, Direitos Humanos e Políticas Públicas; (b) Na Fronteira da Psicologia com os Saberes Tradicionais: Práticas e Técnicas; (c) Psicologia, Espiritualidade e Epistemologias Não-Hegemônicas (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2016Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. (2016). Psicologia, Espiritualidade e Epistemologias Não-Hegemônicas (Vol. 3). Conselho Regional de Psicologia SP. ). Ou mesmo o site www.crpsp.org.br/diverpsi, que apresenta discussões sobre essa temática.
  • Como citar:

    Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. S., Hazin, I., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2024). Psicologia, Saberes e Epistemologias Plurais – Breve Histórico dos Posicionamentos do Conselho Federal de Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão, 44 (n.spe) , -187. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287478
  • How to cite:

    Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. S., Hazin, I., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2024). Psychology, Knowledge and Plural Epistemologies: A Brief History of the Positions of the Federal Council of Psychology. Psicologia: Ciência e Profissão, 44 (n.spe) , -187. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287478
  • Cómo citar:

    Nóbrega, A. S. F. A., Bernardes, J. S., Hazin, I., Silva, I. R., & Moura, M. J. (2024). Psicología, Saberes y Epistemologías plurales: Breve Historia de las Posiciones del Consejo Federal de Psicología. Psicologia: Ciência e Profissão, 44 (n.spe) , -187. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287478

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2024
  • Aceito
    13 Jun 2024
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br