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Psicologia Brasileira e Políticas de Saúde Mental: Memórias e Tempo Redescoberto

Brazilian Psychology and Mental Health Policies: Memories and Rediscovered Time

Psicología Brasileña y Políticas de Salud Mental: Memorias y Tiempo Redescubierto

Resumo:

O percurso da psicologia brasileira nas políticas de saúde mental é problematizado neste ensaio a partir de uma perspectiva cartográfica de avaliação de seus deslocamentos, colocando em análise quatro platôs de agenciamentos: a Psicologia Comunitária, o movimento sanitário, a luta antimanicomial e os novos pactos sociais. De um modo geral, observou-se uma tendência de expansão da Psicologia para novos cenários de atuação na saúde mental nas últimas cinco décadas, que foi acompanhada de uma atualização das referências conceituais e da intervenção no campo clínico, mas também de um percurso na zona fronteiriça e de vizinhança entre outros campos do conhecimento e diversas lutas sociais, a partir de algumas trilhas pouco usadas ou até mesmo desconhecidas. A análise dessa trajetória evidenciou um certo tensionamento entre multiplicidade e estratificação no modo de operar a Psicologia, na medida em que formas disruptivas coexistem com o sedentarismo profissional e preservam clichês, mesmo em novos espaços. Por outro lado, o campo se encontra tensionado por novas demandas, como no caso da interseccionalidade e da emergência climática, em que se fazem necessárias novas alianças e uma elaboração coletiva. Assim sendo, destaca-se que a referida expansão da Psicologia na saúde mental não se dará apenas por meio da consolidação do legislado, mas exige tornar pensável, audível e visível o múltiplo em efervescência no contexto atual. Mais uma vez, estamos em tempos de redescobrir a política e os movimentos insurgentes.

Palavras-chave:
Psicologia; Saúde Mental; Lutas Sociais

Abstract:

This essay problematizes the path of Brazilian Psychology in mental health policies based on a cartographic perspective of evaluating its displacements and analyzing four plateaus: Community Psychology, the health movement, the anti-asylum struggle, and new social pacts. In general, the last five decades have seen a tendency toward expanding Psychology into new scenarios of action in mental health, which has been accompanied by an update of conceptual references and intervention in the clinical field and by a journey in the frontier and neighborhood of other fields of knowledge and various social struggles based on scarcely used or even unknown trails. The analysis of this trajectory highlighted a certain tension between multiplicity and stratification in the way Psychology operates to the extent that disruptive forms coexist with professional sedentary lifestyle and preserve clichés, even in new spaces. On the other hand, the field finds itself under current tension from new demands, such as intersectionality and the climate emergency, which necessitate new alliances and collective elaborations. Therefore, it is noteworthy that the aforementioned expansion of Psychology in mental health will, rather occurring by the consolidation of legislation, require making the multiple in effervescence in the current context thinkable, audible, and visible. Once again, we live in times of rediscovering politics and insurgent movements.

Keywords:
Psychology; Mental Health; Social Movements

Resumen:

Este ensayo problematiza la trayectoria de la Psicología brasileña en las políticas de salud mental desde una perspectiva cartográfica de evaluación de sus desplazamientos, mediante el análisis de cuatro ejes: la Psicología Comunitaria, el movimiento de salud, la lucha contra el asilo y los nuevos pactos sociales. En general, hubo una tendencia a la expansión de la Psicología hacia nuevos escenarios de actuación en salud mental en las últimas cinco décadas, que ha ido acompañada de una actualización de los referentes conceptuales y de intervención en el ámbito clínico, pero también de un recorrido en zona fronteriza y vecinal entre otros campos del saber y diversas luchas sociales, a partir de algunos senderos poco transitados, incluso desconocidos. El análisis de esta trayectoria mostró una cierta tensión entre multiplicidad y estratificación en el modo de operar de la Psicología, en la medida que formas disruptivas conviven con el sedentarismo profesional y preservan clichés, incluso en espacios nuevos. Por otro lado, el campo se encuentra hoy tenso por nuevas demandas, como en el caso de la interseccionalidad y la emergencia climática, en las que son necesarias nuevas alianzas y elaboraciones colectivas. Por lo tanto, destaca que la mencionada expansión de la Psicología en salud mental no solo se dará mediante la consolidación de la legislación, sino que requiere hacer pensables, audibles y visibles los múltiples en efervescencia en el contexto actual. Una vez más, estamos en tiempos de redescubrimiento de la política y de los movimientos insurgentes.

Palabras clave:
Psicología; Salud Mental; Luchas Sociales

O tempo redescoberto e emaranhado

A demanda do Conselho Federal de Psicologia para a escrita deste depoimento nos levou a uma primeira problematização: a necessidade de ruptura com uma concepção arqueológica de busca de uma origem e restituição de algo, em favor de uma perspectiva que nos conduzisse a contar a história a partir de uma avaliação dos deslocamentos de um mapa a outro. Em vez do arquivo, a cartografia.

Além disso, tomamos o conceito de memória involuntária em Deleuze ( 2024Deleuze, G. (2024). Proust e os Signos. Editora 34. ) como um guia para nos conduzir em meio às reminiscências. Na análise sobre a obra de Proust Em busca do tempo perdido , ele refere que a alegria sentida pelo personagem literário com o reaparecimento de lembranças ao saborear uma “madeleine” se devia a um “tempo redescoberto”, em que impressões e encontros forçaram a olhar e a interpretar.

Desde a memória involuntária, juntas fomos abrindo caixas, desdobrando conteúdos e escolhendo o que melhor poderia dar forma à matéria, este texto. Como refere Deleuze, “não se deve perguntar quem escolheu isto, porque nós mesmos somos escolhidos”. Nesse processo partilhado de abertura de caixas, foi inevitável que sensações antigas tentassem se superpor, ao mesmo tempo em que se acoplavam às sensações atuais, levando-nos a várias épocas ao mesmo tempo. Uma trajetória redescoberta.

Dessa forma, nesta escrita buscamos uma outra concepção de temporalidade: em vez de uma narrativa que segmentasse os tempos (passado, presente e futuro) como eventos distintos e posicionados em uma linha de tempo, optamos por um tempo emaranhado, em uma reconstrução singular da memória. Afirmar a singularização do vivido não significa que iremos traduzir a trajetória a partir de existências particulares em que se ressalta o papel de determinados personagens ou lugares. Como sinaliza Walter Benjamim ( 2012Benjamim, W. (2012). Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Vol. 1). Brasiliense. ), o contar está imerso em uma certa experiência individual ( erfahrung ), que é também uma experiência coletiva transmissível.

Portanto, buscamos aqui a reconstrução singular da memória da Psicologia na luta antimanicomial em uma perspectiva que requer um certo esvaziamento da primeira pessoa e dos pronomes pessoais, trazendo uma análise do percurso não em termos de individuações impessoais, mas sempre coletivas. Assim sendo, esta cartografia é percorrida em dois sentidos complementares: como um processo que põe em relevo os agenciamentos coletivos e de interações de diversas origens que produziram deslocamentos, ao mesmo tempo em que cartografa a expansão dos territórios profissionais para além dos padrões de modelização e normatividade, em direção a uma reconstrução singular do fazer profissional.

Identificamos alguns agenciamentos que de alguma forma se mostraram capazes de forjar novas coordenadas no fazer profissional, abrindo novas perspectivas para a Psicologia. Tomamos de empréstimo o conceito de platôs em Deleuze e Guattari ( 1996Deleuze, G., & Guattari F. (1996). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Editora 34. ) para definir esses pontos como microfendas que se comunicam de maneira a formar e estender um rizoma, enquanto linha que vai se derivando em vários outros caminhos: no caso, a trajetória da Psicologia brasileira na saúde mental. Esse percurso é colocado em análise a partir de quatro platôs de agenciamentos, cartografados a seguir: a Psicologia Comunitária, o movimento sanitário, a luta antimanicomial e os novos pactos sociais.

Os agenciamentos da Psicologia Comunitária: o primeiro platô

A década de 1970 pode ser considerada como um desses momentos disruptores no campo psi, coincidindo com o período de abertura de caminhos para o trabalho de psicólogas(os) em diversas instituições: escolas, unidades de saúde, hospitais gerais e psiquiátricos. Nas escolas, iniciaram atividades de consultoria aos professores, avaliação psicológica e atendimento de alunos; nas unidades de saúde e hospitais gerais as ações eram predominantemente dirigidas à população materno-infantil, enquanto nos hospitais psiquiátricos trabalhavam nas equipes responsáveis pelo tratamento e reabilitação das pessoas internadas.

Muito embora existam indícios de que a crise política e econômica vivenciada no país naquele período vinha afastando os pacientes dos consultórios privados, não nos parece razoável o argumento de que isso tenha forçado os psicólogos a buscarem outros contextos de atuação (Goya & Rasera, 2007Goya, A. C. A., & Rasera, E. F. (2007). A Atuação do Psicólogo nos Serviços Públicos de Atenção Primária à Saúde em Uberlândia, MG. Horizonte Científico, 1, 1-21. ). Tal deslocamento nos parece estar mais relacionado à necessidade de redefinir a função social da Psicologia nesse contexto de alta vulnerabilidade.

Esse período violento do país trouxe uma marca de ambiguidade para a Psicologia brasileira: ao mesmo tempo em que aconteceu a criação das entidades regulamentadoras do exercício profissional do psicólogo, as associações profissionais priorizaram questões corporativas, evitando entrar em conflito com o Estado ditatorial (Hur, 2012 Hur, D. U. (2012). Políticas da Psicologia: histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004
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), inclusive atraiçoando sua origem nas Ciências Humanas pela conivência com o afastamento de docentes oriundos dessas áreas e críticos ao regime e com a censura imposta às universidades. Tal posicionamento de omissão política pode ter favorecido a expansão da profissão, tendo em vista que as práticas em Psicologia foram consideradas pouco ameaçadoras, uma vez que as questões sociais e políticas estavam camufladas (Coimbra, 1995Coimbra, C. M. B. (1995). Guardiões da Ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre”. Oficina do Autor. ).

Como explicar que nesse contexto de retrocesso cívico emergiu o interesse pelo campo da Psicologia Comunitária? Seguindo a hipótese de Wiesenfeld e Sánchez ( 1991Wiesenfeld, E., & Sánchez, E. (1991). The Why, What and How of Community Social Psychology in Latin America. Applied Psychology, 40, 113-117. ), foi justamente a dramática realidade vivida por países do chamado Terceiro Mundo e, em contrapartida, a inadequação do conhecimento importado para apontar a solução desses problemas concretos que deram origem à insatisfação de estudantes e profissionais latino-americanos, especialmente aqueles mais mobilizados com as questões éticas e políticas envolvidas na prática psi.

No caso brasileiro, pode-se afirmar que a emergência da Psicologia Comunitária nos anos 1970 foi propulsora da inserção dos profissionais psi em uma agenda pública. Essa saída do consultório e da prática privada propiciou um alargamento profissional com novos dispositivos, a exemplo da base territorial, do trabalho em equipe, foco preventivo, atenção a grupos mais vulneráveis e práticas grupais. Algumas circunstâncias podem ter favorecido o surgimento desse novo âmbito de atuação psicológica em um contexto de fechamento institucional: a “chancela” da experiência americana com os Centros Comunitários de Saúde Mental 1 1 Um momento decisivo para a abordagem comunitária foi a proposta apresentada pelo Presidente Kennedy ao Congresso Americano em 1963, em que defendeu a reintegração dos doentes mentais na comunidade e uma perspectiva preventiva do sofrimento humano. Esse conjunto de propostas deu origem à Lei dos Centros de Saúde Mental Comunitários. ; o não reconhecimento como subárea da Psicologia Clínica (apesar das influências do campo psicanalítico na Psiquiatria de Setor, na França, e na Psicohigiene, na Argentina), o que abriu possibilidades de descolamento da abordagem tradicional; e, ainda, a sua característica territorial e popular, que não representava uma concorrência no mercado de trabalho privado.

Sendo assim, o ingresso de psicólogos nas políticas públicas de saúde não pode ser interpretado apenas como uma tendência expansionista do campo de trabalho, em que se aplicam as mesmas ferramentas conceituais e práticas da clínica tradicional em mais lugares. Nessa guinada, o que ficou evidente foi a necessidade de construção de uma nova área e, sobretudo, de um novo campo de saber, em deslocamento dos parâmetros tradicionais de atuação da Psicologia (Cantele et al., 2012 Cantele, J, Arpini D. M., & Doso, A. (2012). A Psicologia no Modelo Atual em Saúde Mental. Psicologia: Ciência e Profissão, 32(4). https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000400011
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). Assim sendo, parece razoável supor que a Psicologia somente poderia ampliar seu campo de trabalho se aumentasse o seu “coeficiente de transversalidade”, conforme sugerido por Guattari ( 2004Guattari, F. (2004). Psicanálise e Transversalidade: ensaios de análise institucional. Ideias & Letras. ), o que significaria colocar a prática profissional em uma dimensão mais conectiva, lançada na trama das instituições e do social para a produção de novas realidades.

A transversalização da Psicologia na saúde pública: o segundo e o terceiro platôs

O segundo platô diz respeito à experiência do Movimento Sanitário nos anos 1970, na luta contra a ditadura e pela redemocratização do Brasil, protagonizada pelos movimentos populares e entidades como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) e a Associação Brasileira de Pós-graduação em Saúde Coletiva (Abrasco). Cabe salientar que esse processo de abertura democrática, que foi intensificado nos anos 1980, teve a ampla participação de psicólogas(os) na luta pelos direitos humanos e para a reconstituição do Estado brasileiro.

É nesse contexto que a 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, formulou os princípios, as diretrizes e o arcabouço jurídico do Sistema Único de Saúde (SUS), promulgados depois na Constituição de 1988. A institucionalidade do SUS propiciou que se constituíssem novos atores sociais e fossem criados dispositivos de pactuação e deliberação, tais como o Conselho Nacional de Saúde e as Conferências Nacionais de Saúde, que passaram a ser deliberativas e paritárias.

Tais inovações no campo sanitário produziram novos cenários para os profissionais psi, com destaque para quatro campos principais de atuação de psicólogas(os) na construção, fortalecimento e defesa do SUS: nos conselhos municipais, estaduais, distrital e federal; na gestão do sistema em todos os níveis; na composição de equipes multiprofissionais em diferentes equipamentos da rede assistencial; e no contexto acadêmico em ensino, pesquisa e extensão. Essa diversificada atuação da Psicologia marcou a estruturação tecno-assistencial do SUS, tanto nos processos de municipalização e de regionalização, na implantação na Atenção Básica e da estratégia da saúde da família (ESF), nas linhas de cuidados contínuos em territórios e na implementação da rede de atenção psicossocial (Raps), como veremos a seguir.

O terceiro platô mobilizador de deslocamentos da Psicologia está associado ao Movimento de Trabalhadores de Saúde Mental, que foi vanguardista da luta antimanicomial ao decidir, no seu encontro em Bauru, em 1987, a criação do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, com a consigna “Por uma Sociedade sem Manicômios”, e a definição do dia 18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial.

Para além do seu papel decisivo na implementação e defesa da reforma psiquiátrica brasileira, o movimento pode ser considerado um intercessor na ressignificação dos profissionais psi enquanto trabalhadores de saúde mental. Enquanto o segundo platô, associado ao surgimento do SUS, produziu o necessário desassossego para uma ampliação das práticas psi no campo da saúde pública, foi no movimento antimanicomial que o viés corporativo demonstrou ser um fardo praticamente inútil, na medida em que a inserção nessa luta exigiu o enlace da dimensão ética com a prática coletiva e a mobilização comunitária, tornando a Psicologia ainda mais transversal.

Em consonância com a participação social do SUS, as Conferências Nacionais de Saúde Mental foram organizadas como espaços deliberativos na avaliação e nas proposições para a política nacional na área, tornando-se um espaço privilegiado para o protagonismo dos usuários e familiares, que por séculos estiveram silenciados. Portanto, não se tratava mais de construir projetos experimentais em pequena escala, como na Psicologia Comunitária, mas de implementar uma nova política pública de saúde mental, com ampla participação.

Nesse processo de mobilização, ao longo dos anos observamos que os duas principais expressões utilizadas para essa mobilização: “Reforma Psiquiátrica” e “luta antimanicomial”, podem ter favorecido algumas interpretações um tanto equivocadas. Apesar de serem expressões que poderiam ter a vantagem de fácil entendimento na opinião pública, trouxeram algumas ambiguidades ao não deixar muito nítido o horizonte almejado por essas lutas sociais.

O primeiro termo, “Reforma Psiquiátrica”, chama a atenção para uma finalidade que se poderia chamar de “despsiquiatrização da loucura”. Existem fortes argumentos para essa proposição, uma vez que a história demonstra que a Psiquiatria esteve indelevelmente ligada à história do confinamento, já que a reclusão dos “loucos” se deu por legitimação do saber psiquiátrico ao conferir à loucura um estatuto de doença. A Psiquiatria também protagonizou a passagem desse modo de confinamento a um outro, o uso da “camisa-de-força química”, com a medicalização crescente nas últimas décadas.

Todavia, cabe ressalvar que alguns dispositivos psi também podem se constituir em dispositivos de normalização. Portanto, seria restritivo pautar com centralidade a Psiquiatria na reforma, na medida em que outros campos de saber, como a Psicologia, precisariam também ser problematizados em seu papel de sobrediagnósticos e modelagem das subjetividades. Muito embora a reforma tenha produzido um tensionamento entre corporações, o mais fundamental tem sido o cotejo sobre epistemologias, ética e práxis do cuidado em liberdade.

O outro termo, “luta antimanicomial”, teve o mérito de confrontar as práticas custodiais e a sua função na ordem social. Historicamente, sabemos que o enclausuramento foi uma das respostas à crise econômica no século XVII, com a intenção de ocultar a miséria e tornar invisíveis os chamados “párias sociais”, e mais tarde, com a tutela médica, o confinamento passou a ser definido como medida terapêutica indispensável.

Enquanto a função terapêutica dos manicômios desde muito cedo foi problematizada, a função de proteção da sociedade de determinados grupos sociais ainda é fortemente reivindicada, mesmo três séculos depois do grande enclausuramento, na premissa de que o direito de ser tutelado é, pressupostamente, o direito de ser protegido. O fato é que, apesar da inutilidade terapêutica e do alto custo social, o confinamento ainda tem forte apelo em determinados setores da sociedade, a exemplo das demandas em torno das comunidades terapêuticas no Brasil, em um contexto de crescente empresariamento e de precarização do trabalho no SUS.

Portanto, as lutas pela desinstitucionalização em nosso tempo não poderão desconhecer tais aspectos, sob pena de se restringir a um combate corporativo contra os psiquiatras, ou espacializante contra as instituições totais, por exemplo. Desinstitucionalizar é algo muito mais complexo do que confrontar a psiquiatrização ou fechar as instituições totais, na medida em que é possível recompor essas mesmas dinâmicas quando se criam novos dispositivos de intervenção num processo de miniaturização das antigas estruturas segregativas, como advertiu Guattari ( 1992Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético. Editora 34. ). Por isso, mais do que problematizar os dois paradigmas no exercício profissional – um tradicional e outro emergente, como apontado por Silva e Carvalhaes ( 2016 Silva, R. B., & Carvalhaes, F. F. (2016). Psicologia e Políticas Públicas: impasses e reinvenções. Psicologia & Sociedade, 28(2), 247-256. https://doi.org/10.1590/1807-03102016v28n2p247
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) –, cabe colocar em análise a coexistência desses distintos modos de operar a Psicologia pelos mesmos profissionais. Assim sendo, Romagnoli, Neves e Paulon ( 2018 Romagnoli, R. C., Neves, C. E. A. B., & Paulon, S. M. (2018). Intercessão entre políticas: Psicologia e produção de cuidado nas políticas públicas. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(2), 236-250. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672018000200017&lng=pt&tlng=pt
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) salientam as tensões na práxis psi em que coexistem práticas de cuidado e práticas de controle, que sustentam as relações de poder e naturalizam as desigualdades.

Os novos pactos sociais (interseccionalidade e emergência climática): o quarto platô

O umbral do século XXI sinaliza um novo alargamento conceitual e pragmático da Psicologia na área da saúde. Destacamos aqui dois desses vetores que constituiriam o quarto platô: a interseccionalidade e a emergência climática. Partimos da ideia de que existem conexões entre esses dois fatores, correspondendo a lutas sociais em curso e trazendo novos impactos à saúde mental e novas demandas ao campo psi.

Por interseccionalidade 2 2 O conceito de interseccionalidade foi cunhado na Conferência Mundial de Durban, em 2001, por Kimberlé Crenshaw, uma professora negra estadunidense, pesquisadora dos estudos de raça e defensora dos direitos civis. entendemos a inseparável intersecção das matrizes de privilégio e opressão existentes na sociedade. Essa definição tem sido associada aos chamados “marcadores sociais de diferença” que definem características diversas dos indivíduos e dos grupos sociais, tais como raça, identidade de gênero, classe social, etnia, região, religião, entre outras. Esses marcadores estão fortemente relacionados com estigma e preconceito e, via de regra, imprimem desigualdades no acesso às políticas públicas.

A indagação que se coloca é como a interseccionalidade impacta a Psicologia. De uma certa forma, o reconhecimento das desigualdades e das discriminações direcionadas a determinados grupos sociais faz parte da problematização que, desde os anos 1970, tensiona o campo psi para uma revisão dos pressupostos de neutralidade científica e de universalidade dos conceitos. Como vimos, isso se fez presente na trajetória da Psicologia Comunitária em nossa região, inclusive em uma perspectiva descolonizada e de abertura para o trabalho com setores marginalizados da população. Contudo, o foco da intervenção comunitária era, predominantemente a “cultura da pobreza”, em uma leitura de classe a partir da territorialidade. Como refere Moffat ( 1984Moffat, A. (1984). Psicoterapia do Oprimido: ideologia e técnica da psiquiatria popular. Cortez. , p. 71), “o setor da cultura que mais nos interessa do ponto de vista de uma psicoterapia para as camadas marginalizadas é o da classe operária baixa”.

Nos anos 1960, o psiquiatra martinicano Frantz Fanon foi primeiro a pautar a opressão político-econômica a partir das relações entre colonialismo e racismo. Nascido em uma colônia francesa, vivenciou tanto a brutalidade do regime colonial na imposição de valores para garantir a sua supremacia quanto as discriminações durante seus estudos na França. Para Fanon, a colonialidade estrutura relações não complementares pelo princípio da exclusão e pela brutalidade, inclusive a violência da linguagem como fenômeno produtor de valores e representações.

Pode-se dizer que se encontram aí os embriões de uma Psicologia interseccional. Contudo, parece ser necessário socavar bem mais nossas crenças e nossos saberes não apenas a respeito dos processos de classe social e de racialização, mas também sobre a reprodução dos modos coloniais de dizer e pautar os povos indígenas, as mulheres, a diversidade sexual e o etarismo, por exemplo. Essa recomendação se faz ainda mais necessária em um contexto em que a Psicologia se encontra, muitas vezes, seduzida por modelos biologicistas ou por discursos patologizantes, e até mesmo moralistas.

Assim, destacamos as iniciativas do Conselho Federal de Psicologia em reconhecer as intersecções entre território, raça, etnia, classe, geração, deficiências, identidades e expressões de gênero como marcadores sociais de diferenças. Nessa direção, foi fundamental a aprovação de várias resoluções, como sobre a orientação sexual (Resolução CFP nº 001/1999), pessoas trans e travestis (Resolução CFP nº 01/2018), violência de gênero (Resolução CFP nº 8/2020), pessoas monodissidentes (Resolução CFP nº 8/2022) e discriminação racial (Resolução CFP n 018/2022).

Na política de saúde mental tem sido recorrente a demanda de construir a intersetorialidade, mas ainda parece incipiente a reorganização dos serviços a partir da interseccionalidade, que, no caso da Raps, significaria revisar as linhas de cuidado e os dispositivos e, sobretudo, ativar conexões com outros coletivos sociais, operando uma nova desterritorialização, rumo à desconstrução ampliada dos manicômios mentais e das discriminações de todas as espécies.

Por fim, ressaltamos a “emergência climática” como um segundo vetor no quarto platô por representar um dos desafios mais complexos e urgentes da atualidade ao trazer ameaças que pesam sobre as condições de sobrevivência dos seres vivos. Essa situação tem conexões com a problemática dos marcadores sociais de diferença, uma vez que os eventos extremos do clima exacerbam as desigualdades preexistentes, produzindo impactos desiguais na intersecção de g ê nero com raça, classe, etnia, sexualidade, identidade indígena, idade, deficiência, rendimento, estatuto de migrante e localização geográfica. Dessa forma, a luta contra as catástrofes climáticas é também uma luta contra as desigualdades, daí o termo “justiça climática”.

Por outro lado, a emergência climática não apenas agrava as condições ambientais e as desigualdades, mas também amplifica o mal-estar social, mobilizando estratégias de defesa de difícil intervenção, como no caso do negacionismo, do sentimento de impotência e do catastrofismo. Cabe ressaltar que os colapsos pandêmico e climático tiveram e têm o efeito de um trauma, de baixa intensidade e larga duração; um trauma em câmara lenta, como refere Berardi ( 2024Berardi, F. (2024) El Tercer Inconsciente: la psicoesfera em la época viral. Caja Negra. ). Contudo, esse trauma pode ser considerado a ponta do iceberg de devastações mais profundas no domínio das relações sociais e das subjetividades, provocadas pelo imperialismo do mercado e um crescimento econômico sem preocupação com os seus danos (Guattari, 2015Guattari, F (2015). Que es la Ecosofia?. Cactus. ).

No caso dos eventos extremos, observa-se uma sobrecarga emocional em resposta à morte de familiares ou amigos, deslocamentos forçados, danos materiais, perda de meios de subsistência, entre outros impactos. Em tal contexto, é de se esperar a maior incidência de uso de substâncias psicoativas, violência doméstica, depressão, ansiedade, stress pós-traumático e crises psicóticas, além de agravamento de transtornos já existentes, como apontado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas ( 2022 Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. (2022). Sexto Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas. ONU. https://www.ipcc.ch/report/ar6/wg2/chapter/technical-summary/
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). Esse estudo aponta que tais impactos na saúde, por sua vez, frequentemente prejudicam os esforços para o desenvolvimento inclusivo.

O que podemos atualizar da trajetória feita pela Psicologia nessas últimas décadas para aprender a operar em uma terra degradada? Talvez a principal marca que trazemos dos “anos de chumbo” em que emerge a Psicologia Comunitária seja o cultivo da capacidade de reagir para tornarmos uns aos outros capazes, em uma sobrevivência colaborativa. Afinal, como sugere Donna Haraway ( 2023Haraway, D. J. (2023). Ficar com o Problema: fazer perênteses no chthluceno. n-1 Edições ), precisamos de um tipo de sabedoria surrada e resistente, que nos leve a ressemear, mas também a reinocular em múltiplas alianças.

Talvez tenha sido essa a intenção deste ensaio, em que buscamos rememorar um pouco o percurso feito, coletar aquilo que nos pareceu crucial para a continuidade, rastreando estórias com/de pessoas que se importam e agem, narrando estórias de mão em mão, dígito sobre dígito, passando adiante os fios, tal como no jogo das figuras de barbante. Se o contexto atual exige “ficar com o problema”, como Haraway sugere, queremos fazer isso com alegria, terror e pensamento coletivo gerativo.

Referências

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  • Wiesenfeld, E., & Sánchez, E. (1991). The Why, What and How of Community Social Psychology in Latin America. Applied Psychology, 40, 113-117.
  • 1
    Um momento decisivo para a abordagem comunitária foi a proposta apresentada pelo Presidente Kennedy ao Congresso Americano em 1963, em que defendeu a reintegração dos doentes mentais na comunidade e uma perspectiva preventiva do sofrimento humano. Esse conjunto de propostas deu origem à Lei dos Centros de Saúde Mental Comunitários.
  • 2
    O conceito de interseccionalidade foi cunhado na Conferência Mundial de Durban, em 2001, por Kimberlé Crenshaw, uma professora negra estadunidense, pesquisadora dos estudos de raça e defensora dos direitos civis.
  • Como citar:

    Oliveira, C. S., & Fagundes, S. M. S. (2024). Psicologia brasileira e políticas de saúde mental: memórias e tempo redescoberto. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe) , -214. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287529
  • How to cite:

    Oliveira, C. S., & Fagundes, S. M. S. (2024). Brazilian psychology and mental health policies: memories and rediscovered time. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe) , -214. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287529
  • Cómo citar:

    Oliveira, C. S., & Fagundes, S. M. S. (2024). Psicología brasileña y políticas de salud mental: memorias y tiempo redescubierto. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 (n.spe) , -214. https://doi.org/10.1590/1982-3703003287529

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2024
  • Aceito
    13 Jun 2024
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