Acessibilidade / Reportar erro

Psicologia/arte no pensamento filosófico de Nietzsche

** Ressonância: Comentário ao texto Arte e Modernidade, de Rodrigo A. P. Duarte publicado em Psicologia: Ciência e Profissão, ano 14, n 1,2 e 3, 1994, p.10-13.

Gracia Mônica M. V. Vianna

Psicóloga. Professora de Filosofia na Faculdade Carioca, R.J.

Não há dúvidas de que Platão e Aristóteles representaram o antigo mundo das idéias a respeito do fenômeno estético. O novo mundo surge no século XVIII, quando a ortodoxia neoclássica sucumbe e o empirismo, o associacionismo e suas variantes o substituem. No começo do século XIX, o utilitarismo e o positivismo foram os herdeiros imediatos seguidos pelo pragmatismo, e o behaviorismo e o positivismo lógico que, por sua vez, não negaram sua ascendência.

Conquanto, a grande tradição da estética alemã de Kant e Hegel reafirmam a identificação da arte com a filosofia. A obra de arte, como entidade estética, torna-se dissolvida em favor de um estudo dos sentimentos, conceitos e filosofias do artista. O ato criador e o artista passam a ser os centros de atenção em detrimento da obra de arte.

Na verdade, a Clínica do Juízo Estético de Kant dá início ao movimento do Romantismo; se tudo está contido nos limites da razão, o Romantismo busca extrapolar esses limites na exaltação dos sentimentos entendidos como algo caótico, incontrolável. Na célebre expressão Sturm und Drang (tempestade e ímpeto), o movimento filosófico/ literário/artístico abre caminhos para a valorização dos sentimentos, dos desejos, da vontade como elementos fundamentais que dão sentido à existência do homem, do mundo, da vida.

É no período do pessimismo romântico de Nietzsche (1870-1876) que Wagner e Schopenhauer simbolizarão os grandes espíritos românticos anunciadores da revolução cultural alemã. Por assim dizer, o sentimento de paixão do filósofo pelo drama musical wagneriano e o sentimento de admiração ao pessimismo de Schopenhauer impulsionarão Nietzsche a reconhecer a música de Wagner como expressão da metafísica de Schopenhauer. A arte wagneriana será compreendida como a manifestação do crescimento da grande arte grega.

A concepção nietzscheana sobre a arte tem suas raízes na tragédia grega. O grego arcaico foi quem mais teve sensibilidade para o sofrimento e intuição da tragédia da existência. No Nascimento da Tragédia (1871), Nietzsche conta a antiga lenda do sábio Sileno, companheiro de Dionísio, quando este, prisioneiro e interpelado pelo rei Midas, revela com desprezo aquilo que convinha à espécie humana: "O melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer".11 Cf. Nietzsche, F. O Nascimento da Tragédia, § 3. Esta problemática existencial é que dá origem à arte e à tragédia grega. A tragédia significa o conflito entre as pulsões artísticas da natureza; a arte trágica é que possibilita a união e o equilíbrio entre os instintos pulsionais apolíneo e dionisíaco da natureza.

Isto significa dizer que a tragédia grega tem como heróis primordiais Apolo e Dionísio; Dionísio, o deus da desmesura, do caos, da fúria sexual, da volúpia da dor, representa o elemento extático do palco grego, enquanto que o deus Apolo é a expressão da luz, da beleza, da harmonia, da ordem, da liberdade dos sonhos que possibilita tornar a vida possível e desejável. A união de Apolo e Dionísio enquanto forças simbólicas expressam a essência da natureza. Daí resulta que Dionísio não possa viver sem os limites que Apolo lhes oferece ao transformar o mundo em arte.

Na exaltação da cultura trágica grega, Nietzsche revela a existência do duplo princípio gerador das artes como expressão essencial do mundo: as pulsões naturais artísticas apolíneo e dionisíaco, as quais manifestam-se na vida humana através dos estados estéticos, respectivamente, do sonho e da embriguez. Esses estados fisiológicos opõem-se como condições necessárias para a arte produzir-se. O sonho caracteriza o mundo estético originário do princípio apolíneo como símbolo da bela aparência face ao mundo estético da embriaguez originário do princípio dionisíaco. A embriaguez é o estado que despedaça e elimina o individual. Em outras palavras, na embriaguez desfaz-se os laços do principium individuationis como se o véu de maia rasgasse para aparecer a realidade mais fundamental: a união do homem com a natureza. É, sob a inspiração da metafísica da arte de Schopenhauer, que Nietzsche compreende a oposição das pulsões a partir da noção de Vontade schopenhaueriana. No primeiro capítulo de O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer consagra à Vontade, entendida como o núcleo do mundo, o uno primordial, o lugar de origem ou o fim de toda efêmera individualidade. Essa unidade mais originária e fundamental (das Ur-Eine), em incessante e suprema dor, se dá eternamente ao movimento de esfacelamento em direção à individuação. Por assim dizer, com a dilaceração do principium individuum pela intensificação das emoções dionisíacas, tudo volta à unidade primeira. O homem reconcilia-se com a natureza dando nascimento à arte musical e imagística que é a tragédia. O artista dionisíaco é aquele que joga com o sonho e a embriaguez. A lucidez é o elemento apolíneo de transfiguração que se introduz no dionisíaco para transformá-lo em arte. Apolo vem em auxílio do artista salvando-o do desejo de perder-se na vontade e de dilacerar-se no devir dionisíaco.

É através dessa hipótese da metafísica do artista que Nietzsche busca elucidar o processo transfigurador do uno primordial que a natureza realiza através do sonho para criar a bela aparência.

Contudo, com a tendência anti-dionisíaca iniciada por Eurípedes ao privilegiar a razão, a consciência como critério pelo qual se deve orientar toda a produção estética, a relação entre arte e vida cede lugar à relação arte e ciência; o espírito racionalista de Eurípedes desdobra-se no racionalismo socrático-platônico que se estende sobre a posteridade.

Este pequeno esboço do pensamento de Nietzsche sobre a arte vinculada à vida na investigação do fenômeno dionisíaco na Grécia arcaica revela dupla inovação - a criação de uma sui generis psicologia e interpretação do socratismo. A singular psicologia nietzscheana ao operar com as pulsões artísticas da natureza manifesta um inconsciente primordial o qual escapa às possibilidades de representação da consciência. A dimensão do inconsciente emerge como função de um princípio ativo, embora em seu pensamento filosófico não seja apresentado como um princípio fundamental. É preciso dizer que a Psicologia de Nietzsche situa-se no domínio da reflexão filosófica e não se refere ao campo específico da investigação caracterizado pela valoração positiva da experiência sensível como fonte principal do conhecimento. A psicologia nietzscheana está mais próxima de um método peculiar de interpretação do que propriamente de uma ciência constituída.

Em sua autobiografia Ecce Homo, o filósofo refere-se à Psicologia como a arte de "ver além dos ângulos"22 Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Porque sou tão sábio, § 1., como um dom artístico da visão aprimorada para ver aquilo que há de mais profundo e enigmático na realidade existencial: a dimensão pulsional, dos instintos. Essa arte da visão, além de qualquer perspectiva, diz respeito a uma dupla e talvez a uma terceira visão ciclópica dos metafísicos, sob o efeito da interdição, não pode contemplar a dimensão obscura da existência, tal como nos sugere Nietzsche: "Imaginemos agora o grande e único olho ciclópico de Sócrates, voltado para a tragédia, aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de entusiasmo artístico - e pensemos quão interdito lhe estava mirar com agrado para os abismos dionisíacos: o que devia ele realmente divisar na "sublime e exaltada" arte trágica, como Platão a denomina? Algo verdadeiramente irracional, com causas sem efeitos e com efeitos que pareciam não ter causas; e, no todo, um conjunto tão variegado e multiforme que teria de repugnar a uma índole ponderada, constituindo, entretanto, para as almas sensíveis e suscetíveis uma perigosa isca".33 Cf. Nietzsche, F. O nascimento da Tragédia, § 14.

A citação exposta vale para esclarecer a posição característica de Nietzsche em relação a Sócrates e a Platão vistos como representantes do início da decadência do espírito grego. Com Sócrates começa a idade da razão, do homem teórico em oposição ao homem trágico, isto é, aquele que acredita dar ordenação ética aos problemas essenciais da existência. Todavia, o olhar sagaz do filósofo-psicólogo, que provém não apenas de suas possibilidades de divisão interiorizada, mas também da sua sensibilidade artística, alcança os abismos dionisíacos da existência.

É certo quer Nietzsche auto denomina-se como o primeiro "psicólogo sem igual"44 Cf. Nietzsche, F. Ecce homo, Por que Escrevo Bons Livros, 5. porque ninguém antes dele teve a ousadia de produzir tão "complexa arte de estilo".55 Idem, 4. Um tipo de arte que comunica "um estado d'alma, uma tensão interna do sentimento",66 Idem. do sentimento do Eterno Retorno...pois, Nietzsche-Zaratustra, "o primeiro psicólogo dos bons"77 Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Por que sou Tão Fatalista, 5., afirma a intensidade da eternidade ao superar todas as dicotomias da vida, ao desejar atravessá-la "até a um dionisíaco dizer-sim ao mundo, tal como é, sem desconto, exceção e seleção"88 Cf. Nietzsche, F. Os pensadores - Obras Incompletas. Eterno Retorno, § 10.. Este é o paradigma supremo que se pode alcançar "estar dionisiacamente diante da existência"99 Idem. tendo como fórmula "amor fati"1010 Idem. para a grandeza do homem.

NOTAS

** Professora de Filosofia na Faculdade Carioca, Rio de Janeiro.

  • NOFFAT NETO, A. O Inconsciente Como Potęncia Subversiva. Săo Paulo: Escuta, 1991.
  • NIETZSCHE, F. O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo, trad. , notas e posfácio de J. Guinsburg. Săo Paulo: Companhia das Letras, 1992.
  • NIETZSCHE, F. Ecce Homo, trad. de Lourival de Queiroz Hentel. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d.
  • NIETZSCHE, F. Os Pensadores. Obras. Incompletas Săo Paulo: Abril Cultural, 1993.
  • MARTON, S. Nietzsche: Conscięncia e Inconscięncia In: A. L. AUFRANc et al. Săo Paulo: Escuta, 1991.
  • *
    Ressonância: Comentário ao texto Arte e Modernidade, de Rodrigo A. P. Duarte publicado em Psicologia: Ciência e Profissão, ano 14, n 1,2 e 3, 1994, p.10-13.
  • 1
    Cf. Nietzsche, F. O Nascimento da Tragédia, § 3.
  • 2
    Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Porque sou tão sábio, § 1.
  • 3
    Cf. Nietzsche, F. O nascimento da Tragédia, § 14.
  • 4
    Cf. Nietzsche, F. Ecce homo, Por que Escrevo Bons Livros, 5.
  • 5
    Idem, 4.
  • 6
    Idem.
  • 7
    Cf. Nietzsche, F. Ecce Homo, Por que sou Tão Fatalista, 5.
  • 8
    Cf. Nietzsche, F. Os pensadores - Obras Incompletas. Eterno Retorno, § 10.
  • 9
    Idem.
  • 10
    Idem.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Set 2012
    • Data do Fascículo
      1995
    Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: revista@cfp.org.br