Resumo:
O presente artigo se baseou na análise de autobiografias de pais de autistas com objetivo de aprofundar o conhecimento científico atual acerca do funcionamento psíquico no autismo. A análise qualitativa dos livros autobiográficos evidencia como autistas que manifestaram um quadro sintomatológico severo na infância, saíram do quadro de autismo clássico, puderam se tornar falantes e se desenvolver em todas as áreas. Enfocamos particularmente a análise qualitativa dos relatos autobiográficos da família Clark, o que nos permitiu elucidar diversos aspectos da estruturação do pensamento e da linguagem da sua filha autista Jessy Park, além de nos propiciar um repertório de intervenções e dos efeitos que elas tiveram, favorecendo a evolução do quadro autístico. A opção de utilização do material autobiográfico como substrato da pesquisa, embora pouco usual no campo dos estudos em Psicologia no campo do autismo, viabilizou uma quantidade significativa de dados clínicos ao abarcar 40 anos da vida de Jessy. Privilegiamos seus primeiros 15 anos, nos quais foi possível detectar a evolução do quadro sintomático, o que nos permitiu cumprir o objetivo proposto de aprofundar o conhecimento científico acerca do autismo.
Palavras-chave: Autismo; Autobiografia; Pensamento; Linguagem
Abstract:
This paper is based on the analysis of autobiographies written by the parents of autistic in order to deepen the current scientific knowledge about the psychic functioning in autism. Our qualitative analysis of these autobiographical books evidenced how autistic children who manifested severe symptoms in childhood left the classic autism, became speaking autistic and were able to develop in all areas. We particularly focused on the qualitative analysis of the autobiographical accounts of the Clark Family, which allowed us to elucidate several aspects of the structure of language and thought of her autistic youngest child, Jessy Park; moreover, it provided us with an interesting repertoire of the interventions and the effects of those interventions, making possible the evolution of the autistic symptoms. The choice of using autobiographical material as the substrate of this research, although unusual in the field of studies in psychology in the field of autism, provided us with a significant amount of clinical data covering 40 years of Jessy's life, of which we focused on her first fifteen years, which enabled us to fulfill the proposed goal of deepening scientific knowledge about autism.
Keywords: Autism; Autobiography; Thought; Language
Resumen:
El presente artículo tuvo como base el análisis de autobiografías de padres de autistas con el objetivo de profundizar el conocimiento científico actual acerca del funcionamiento psíquico en el autismo. Nuestro análisis cualitativo de los libros autobiográficos puso de manifiesto cómo autistas a los que se les diagnosticaba un cuadro sintomatológico severo en la infancia dejaron de presentar el cuadro autístico clásico, empezaron a hablar y a desarrollarse en todas las áreas. Nos centramos, concretamente, en el análisis cualitativo de los relatos autobiográficos de la familia Clark. Ello nos permitió aclarar diversos aspectos de la estructuración del pensamiento y del lenguaje de su hija menor autista, Jessy Park, además de propiciarnos un interesante repertorio de las intervenciones y los efectos que estas tuvieron sobre la autista, favoreciendo la evolución de su cuadro. La opción de utilizar el material autobiográfico como sustrato de la investigación, aunque poco habitual en los estudios en psicología en el campo del autismo, viabilizó una cantidad significativa de datos clínicos al abarcar cuarenta años de la vida de Jessy. En la investigación privilegiamos sus primeros quince años de vida, en los cuales detectamos la evolución del cuadro sintomático, lo que nos permitió cumplir el objetivo propuesto de profundizar el conocimiento científico acerca del autismo.
Palabras clave: Autismo; Autobiografia; Pensamiento; Lenguaje
Introdução
O uso do material literário e científico escrito por autistas está quase que completamente ausente da produção científica brasileira no campo do autismo. Há alguns trabalhos recentes que abordam a análise das autobiografias, encabeçados pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, na linha de pesquisa da “Análise crítica de relatos autobiográficos relativos à experiência da doença feitos pelos sujeitos ou por familiares”, que desembocaram na publicação de um artigo científico (Ortega et al., 2013) e de uma dissertação de mestrado (Feldman, 2013) que enfocaram a utilização deste material literário em termos de construção diagnóstica e seus efeitos na saúde coletiva. Ao contrário dessa abordagem das autobiografias salientando a representação social do autista, o estudo dos textos autobiográficos como base para a compreensão do funcionamento psíquico no autismo é raro.
A opção pela utilização do material autobiográfico como substrato da pesquisa viabilizou uma quantidade significativa de dados clínicos, cuja análise nos permitiu cumprir o objetivo proposto de aprofundar o conhecimento científico acerca do autismo. Além de validar a riqueza desse material autobiográfico, vale destacar que, ao tomar como base de estudo narrativas de pais de autistas, a produção científica em Psicologia pode evitar uma polarização como a que se encontra atualmente no panorama do autismo, no qual diversos pais e associações de pais de autistas criticam os especialistas da área de Psicologia por não se interessarem pelo que os pais têm a contribuir acerca do funcionamento psíquico autista.
Nesse contexto, o presente artigo se ancora em uma pesquisa em andamento acerca dos escritos de pais de autistas, abordados enquanto estudos de casos que nos permitem elucidar o funcionamento psíquico no autismo. A análise dos livros autobiográficos escritos pelos pais dos autistas Ann (Copeland, 1974), Baptiste (Rivat, & Rivat, 2010), Carly (Fleischmann, 2012), Cati (Hebaudière, 1972, 1981), Dale (Gardner, 2008, 2013), Elijah (Paradiz, 2002), Fraser (Booth, 2014), George (Moore, 2006), George (Romp, 2010), Iris (Carter-Johnson, 2016), Jake (Barnett, 2013), Jean (Ollier, 2015), Jessy (Park, 1995, 2002), Jody (Shaw, 2002), Matthieu (Idoux-Thivet, 2009), Owen (Suskind, 2014), Rowan (Isaacson, 2011), Sam (Moore, 2006), Seth (Chwast, 2011), Temple (Cutler, 2004), Thomas (De Clercq, 2012, 2013) e Tony (Callaham, 1993) evidencia como eles manifestaram um quadro sintomatológico severo, mas saíram do quadro de autismo clássico e puderam se tornar falantes e se desenvolver em todas as áreas – intelectual, emocional e social. Em todos esses livros, é premente a árdua luta dos pais para detectar e traduzir pequenos indícios comportamentais com o objetivo de compreender seus filhos, apostando haver um sentido naquilo que parecia ilógico. Seus relatos frisam a importância de sua presença, ao mesmo tempo ativa e delicada, capaz de transformar todas as pequenas atividades cotidianas em oportunidades terapêuticas/educativas, o que exigia intenso e constante investimentos de sua parte, por precisarem persistentemente tentar chamar seu filho autista para o vínculo, despertar seu interesse pelo mundo e ajudá-lo a descobrir o que podia motivá-lo para a abertura ao outro.
No presente artigo abordamos detalhadamente as autobiografias (Park, 1995, 2002) escritas por Clara Park, mãe de uma criança autista que manifestou na primeira infância um quadro autístico severo, buscando elucidar o funcionamento psíquico autístico e a evolução obtida. O método de análise é qualitativo, enfocando de modo predominantemente descritivo as autobiografias como estudos de caso.
As primeiras manifestações sintomáticas
A norte-americana Clara Park escreveu dois livros autobiográficos: o primeiro deles (Park, 1995) aborda os primeiros oito anos de vida de sua filha autista Jessica/Jessy e o segundo livro (Park, 2002) desemboca na vida adulta de Jessy. O desenvolvimento inicial de Jessy foi normal, sem que Clara notasse algo muito diferente dos três outros filhos. As primeiras fotos do acervo familiar mostram a caçula sorrindo, sempre procurando o olhar de um dos pais. Um bebê divertido, desenvolvendo-se bem fisicamente, socialmente e emocionalmente. Já aos oito meses de idade, parecia ficar tensionada o tempo todo e, nas fotos com nove meses de idade, o sorriso desaparece e ela aparece séria o tempo todo.
Aos 18 meses de idade, Jessy ficava engatinhando em círculos em um “misterioso prazer autoabsorto” (Park, 1995, p. 3). Aparentemente desconectada de qualquer objeto, totalmente alheia às outras pessoas, ficava rindo sozinha e nunca mostrava para as outras pessoas o que tanto a agradava. Quando não estava dando estas voltas, ficava sentada com uma corrente enrolando e desenrolando na sua mão. Se estivesse com comida e água à disposição, nunca parecia ficar cansada e era capaz de realizar interminavelmente esses dois movimentos repetitivos.
É tamanho seu isolamento, parecendo nunca escutar as pessoas que a chamam, que eles questionam se ela seria capaz de ouvi-los, mas constatam que, às vezes, um pequeno ruído inesperado podia assustá-la. Ela aparenta não perceber a existência das pessoas, olhando para elas como se não as visse, mas detectam que ela nunca tropeça nas pessoas e que era capaz de desviar com alta eficácia do contato corporal acidental com qualquer pessoa. Seus movimentos eram precisos, rápidos e bem coordenados para sua finalidade, mas nunca parecia aberta para a comunicação com os outros. Quando recebia diretrizes para fazer algo, parecia ignorar totalmente o que era solicitado. Para se comunicar com os outros, tinha pouquíssimas palavras que pareciam não se acumular em um repertório de vocabulário, mas desaparecer uma em prol da outra.
Em casa, parecia sempre se isolar, buscando se retrair separada das outras pessoas: “ela olhava pelos seres humanos como se fossem vidro. Criava solidão no meio da companhia, silêncio no meio da tagarelice” (p. 5). Não somente não buscava o contato com outros humanos, como parecia ativamente evitá-los, somente procurando alguém quando precisava de ajuda para pegar algo que não alcançava, mas, nesse caso, pegava na mão do adulto como uma “ferramenta” (p. 9) impessoal.
Já tendo outros três filhos, inicialmente Clara achou bom ter uma filha que nunca demandava algo, mas com o tempo ficou apreensiva com o fato de ela ser autossuficiente em demasia. Nunca parecia ter curiosidade pelo mundo, não saia sozinha do berço, não tentava atravessar a portinha de crianças. Embora tenham aventado a hipótese que não conseguiria realizar movimentos por falta de capacidade intelectual, notaram que os poucos movimentos mais complexos que realizava eram sempre eficazes e realizados de modo deliberado. Realça que “na época do seu retraimento mais extremo, o que nos impressionava não era, como se poderia esperar, a inadequação desta criança, mas o extremo grau que o ambiente estava sob seu controle” (p. 89). Pequenas mudanças da rotina desencadeavam imensas crises de choros violentos, que só paravam quando descobrissem o que estava fora do usual. Muitas vezes era um detalhe ou algo trivial, o que dificultava descobrirem o que desencadeara a crise. As crises contrastavam com sua habitual “serenidade” (p. 8). No dia a dia, predominava uma “passividade” (p. 10) em todas as áreas. Jessy nunca tomava a iniciativa, mas Clara nota que se interviesse iniciando uma atividade, ela podia continuá-la.
Quando Jessy tem por volta de dois anos de idade, atividades como a construção de torres com bloquinhos de brinquedo podiam ser realizadas lentamente e de modo ordenado. Mas era somente após realizar o movimento espelhado com a mãe que Jessy podia a seguir montar sozinha uma torre. Após diversas repetições conjuntas dos movimentos, ela ficou meses montando torres e inventando outras atividades com os blocos, por exemplo, organizando entre 80 e 100 blocos em filas paralelas perfeitamente simétricas. No entanto, tal atividade não desembocou em atividades mais complexas, tornando-se “estéril e repetitiva” (p. 10) e foi abandonada em seis meses para nunca mais ser retomada. Além das atividades que eram repetidas incessantemente por meses sem possibilitarem uma complexificação e incorriam em uma repetição automatizada, havia ocupações, palavras e gestos que apareciam uma única vez, espontaneamente, e nunca mais se repetiam.
A decisão de intervir ativa e deliberadamente
Analisando a melhor maneira de evitar que as atividades se tornassem estéreis e que os comportamentos se automatizassem, Clara afirma ter constatado a importância de uma presença insistente, decidindo intervir ativamente para manter a filha vinculada. Observa que, desde que não fizessem “demandas” (p. 12), Jessy parecia “em perfeito equilíbrio” (p. 12), isolada, retraída, desconectada de todos e tudo; sempre “serena” sorrindo “dentro das paredes invisíveis que a cercavam” (p. 12). Decidem, “no entanto, [que] nós não poderíamos deixa-la lá […] porque o equilíbrio que havia encontrado, por perfeito que fosse, negava a possibilidade de crescimento” (p. 12). Clara teceu a hipótese de que esse fechamento era fruto da decisão da própria Jessy de construir os muros de um isolamento autocriado, ao avaliar que ela não sairia sozinha desse mundo à parte. Toma, então, a decisão de que deveria forçar a filha a sair dessa fortaleza para ser humanizada e crescer. Nesse âmbito, define o mote da estratégia familiar: “nós devemos nos intrometer, atacar, invadir” (p. 12) para forçá-la a sair do isolamento.
Na perspectiva de Clara, Jessy parecia feliz isolada e levanta a questão do que justificaria tirá-la desse mundo isolado onde parecia tão à vontade. Ela constata, então, que Jessy vivia em “nirvana” (p. 12) e que retirá-la desse mundo seria colocá-la em um “mundo de risco, fracasso e frustração” (p. 12). Ancorou, então, sua decisão no desejo de que a filha participe do mundo com eles. Diante da “recusa da vida” (p. 12), “nós deveríamos usar todo estratagema que podíamos inventar para atacar sua fortaleza, para atrair, entreter, seduzir ela para dentro da condição humana” (p. 12). Ao averiguar que, embora Jessy ainda fosse um bebê, era como se ela tivesse tomado esta decisão, questiona “Como tornar o mundo desejável para aqueles que não o desejam?” (p. 90). Clara, então, dedica-se a atrair a atenção de Jessy, buscando se inserir no mundo autístico de Jessy para de lá ajudar a filha. Analisa todas as situações nas quais Jessy podia sair do isolamento, procurando recriar as condições que lhe viabilizavam sair do retraimento autístico. Concomitantemente, registrou áreas sensíveis nas quais não se devia pressioná-la sob risco de um retraimento reativo, realçando a importância do respeito ao seu tempo subjetivo.
Em várias atividades, Clara oferecia sua mão como uma ferramenta para que Jessy fizesse o que queria, mas, no decorrer do tempo, pôde progressivamente realizar sozinha os movimentos e se apropriar do corpo próprio. No entanto, inicialmente, precisava que a mãe realizasse movimentos espelhados para que pudesse se apropriar do corpo próprio.
Embora Jessy parecesse sempre bem quando isolada e retraída, e nunca saísse sozinha desse estado, quando podia estabelecia interações e realizava conjuntamente atividades, como a acima descrita, nas quais parecia obter prazer, de tal modo que “embora ela não pudesse tomar a iniciativa, ficava feliz quando a iniciativa era tomada” (p. 93). Clara tece a hipótese de que havia uma parte íntima de Jessy que esperava que eles vencessem a batalha contra sua “fortaleza” (p. 93) e que estava “entediada dentro da sua serenidade” (p. 93).
A sistematização das anotações para delimitar estratégias interventivas
Após 12 meses de dedicação intensa com finalidade de atrair Jessy para o mundo compartilhado, Clara resolve apostar que novas intervenções permitiriam uma evolução dos sintomas. A família Clark se dedica à invenção de estratégias para continuar esse trabalho interventivo, anotando minuciosamente em um diário todas as observações sobre a filha com o objetivo de planejar e delimitar um plano de ação. Por meio destas anotações, Clara estruturou um repertório de informações acerca do funcionamento psíquico de Jessy, sua linguagem, seus comportamentos, suas obsessões, suas angústias, os indícios da sua vida psíquica. Essas anotações eram escritas em pequenas tiras de papel, que eram categorizadas em envelopes organizados em folders na cozinha para, posteriormente, serem transcritas nos livros autobiográficos. Na primeira autobiografia, os envelopes foram categorizados nas seguintes categorias: “hipersensibilidades; obsessões. Compulsões (ordem, erros); verbal; social; autoconsciência; estrangeirice/vida secreta; correlações/analogias; números” (Park, 2002, p. 25), enquanto, na segunda autobiografia, Clara enfatiza ter reorganizado seus folders onde anotava o dia a dia da filha criando três categorias principais: a linguagem; o comportamento e a compreensão social; e a estrangeirice (no qual descrevia o que era diferente de como as pessoas geralmente pensavam, se relacionavam com os outros etc.), por considerar que as categorias anteriormente delimitadas podiam ser englobadas em uma destas três principais. Vale destacar que Clara enfatiza que não se tratava somente de registrar, mas de interpretar a filha a partir deste repertório de observações, de modo a inferir a lógica do seu funcionamento psíquico.
O desenvolvimento da linguagem
Quando tem por volta de quatro anos de idade, Jessy fica muda quase todo o tempo, mas ocasionalmente diz palavras isoladas. Seu repertório se restringia a cinco ou seis palavras por semana, sendo que, no decorrer dos primeiros quatro anos de vida, ela havia utilizado um total de 31 palavras. A primeira palavra que disse, aos 14 meses de idade, foi ursinho e, um mês depois, mamãe; aos dois anos de idade, disse o próprio nome, e só voltou a repeti-las após dois anos. A seguir, pronunciou algumas palavras isoladas que pareciam se suceder umas às outras e não se acumular.
Ela nunca repetia as palavras que ouvia e não parecia compreender o que queriam dizer. Sua linguagem era “tão não funcional” (p. 75) que ela parecia não saber para que ela funcionava. Além disso, tão logo se apropriava de uma palavra, Clara tinha impressão de que, para Jessy, esta palavra deixava de poder pertencer às outras pessoas, nunca podendo ser usada para se comunicar. Clara tece a hipótese que Jessy tinha dificuldade para aceitar algo aprendido como oriundo de um outro. Ao contrário, precisava “negar o contato interpessoal” (p. 67) para poder aprender, desconectando o que aprendia de uma pessoa, como se surgisse do modo espontâneo do nada. Se, por um lado, precisava recusar de quem havia aprendido a fazer círculos, Clara enfatiza a importância de Jessy encontrar alguém de quem podia se apropriar de algo ensinado, ao invés de ignorá-lo completamente.
Clara tentava traçar um histórico da origem e desenvolvimento de cada palavra, mas geralmente não conseguia identificar de onde tinha se originado, quando ela havia começado a falá-la e nem porque havia parado de usá-la. Por exemplo, quando tem três anos de idade, Jessy aprende a palavra olho, ao ver um olho artificial nomeado por um amigo da mãe. Quando volta para casa, Clara usa várias bonecas para designar o olho e Jessy começa a apreciar falar esta palavra. Um dia, retira os óculos da mãe, fala olho e se diverte. É também capaz de apontar o olho de uma de suas bonecas, mas dentro de um mês a palavra “já estava perdendo o significado” (p. 76) e, em dois meses, não somente não a dizia mais, como parecia incapaz de reconhecê-la quando a ouvia.
Toda a família Clark se esforçava para se endereçar a Jessy, preferencialmente quando ela estava olhando para eles; tentavam usar seu vocabulário e evitavam designar o mesmo objeto por mais de um nome. Também tentaram todos os tons de voz até encontrar aqueles aos quais ela parecia responder melhor e se sentir mais à vontade.
Aos 56 meses de idade, Jessy tinha um vocabulário de 38 palavras e já era capaz de usar cerca de 20 palavras por semana, sendo que uma grande parte destas palavras pareciam já estar registradas em seu repertório de vocabulário. No entanto, toda palavra ficava fortemente conectada ao referente original, de modo que “para ela, as palavras ainda estão ancoradas em seus primeiros contextos” (p. 257).
Embora pronunciasse raras palavras, com frequência Jessy emitia alguns sons que pareciam “sons relaxados de bebês” (p. 101), além de vocalizar o tempo todo músicas e rimas infantis. Clara começou a repetir esses sons, tão logo os escutava, afirmando que “se ela não podia me imitar, nós devíamos nadar no sentido contrário, e eu ia imitá-la” (p. 101). Após quatro meses, um dia quando Clara a imita – tanto o som produzido quanto a intensidade “ah-ah-ah-ah-AH!” (p. 101) – a filha repete novamente o som que ela pronunciou; Clara a imita de novo, até que Jessy começa a rir. Os pais de Jessy gostavam de inventar músicas infantis para os filhos, às vezes, para cantarolar algo que ocorreria no seu dia, mas ela nunca repetia o que ouvira imediatamente após escutar uma música, mas horas ou dias depois era capaz de imitar perfeitamente uma melodia escutada uma única vez. No entanto, se notasse alguém prestando atenção, parava imediatamente.
Nessa época, “melodias musicais se tornaram palavras” (p. 83) de modo que “a música estava servindo como uma avenida para as palavras” (p. 84). A descoberta da maneira de Jessy construir estas melodias designatórias havia viabilizado uma nova janela psíquica para seus pais obterem insights acerca do seu funcionamento psíquico, sendo que Clara afirma que conseguia ouvi-la pensar por meio desta relação com a música, como se ela utilizasse um leitmotiv musical por meio do qual era desvelado seu pensamento por trás do que cantava.
Quando Jessy tem quase cinco anos de idade, seu vocabulário era de 51 palavras, mas, a partir dessa idade, seu repertório aumentou de modo rápido e consistente. Clara comenta que é como se uma barreira tivesse sido derrubada e a aquisição de linguagem deslanchou. No entanto, embora manifestasse uma capacidade infindável para adquirir palavras sem especial importância, como iglu, até os oito anos de idade não conseguiu aprender as palavras amigo ou estranho. Nessa época Clara se dedicava a expandir os usos das palavras que a filha já havia adquirido: ela conseguia compreender com facilidade palavras que compreendia em si, como caixa ou girafa, enquanto palavras que, para serem compreendidas, precisavam ser remetidas a outras eram dificilmente apreensíveis, como o termo estranho que depende da apreensão da distinção de quem era familiar.
Progressivamente diversas situações cotidianas sinalizam Jessy tendo prazer nas interações com os outros: ao receber cócegas da mãe e provocando-a com uma cutucadinha, abraçando espontaneamente sua irmã, dando docinhos na boca da mãe, convidando pessoas conhecidas a fazer cócegas nela, divertindo-se apagando a luz da sala quando a família estava comendo a refeição. Além disso, pela primeira vez na vida, demonstra hostilidade e raiva em relação a outras crianças em contraposição à usual indiferença.
Aos cinco anos de idade, uma das atividades prediletas de Jessy é pintar e desenhar: linhas, paralelas, retângulos e outras formas geométricas são traçados nas mais variadas combinações e em diversos tamanhos, sempre de modo muito bem organizado e distribuído. Geralmente cada padrão escolhido era repetido durante semanas, mas eventualmente realizava desenhos únicos que não eram repetidos e, nesse caso, nunca eram desenhos de padrões geométricos, mas figuras como uma janela aberta ou uma casa. Além de deliberado, todo o processo de desenhar era realizado com imenso prazer.
Jessy começa a frequentar a escola, onde se torna capaz de identificar o nome de todos os 13 colegas, apontando-os com o dedo. Na área de aquisição de linguagem, seu uso linguístico se torna “rigidamente consistente, severamente lógico” (p. 207), carecendo, no entanto, do “instinto social” (p. 207) que poderia guiá-la “no labirinto das relações pessoais” (p. 207), o que afetava a maneira como podia aprender a fala.
Quando Jessy obtém um vocabulário significativo de palavras, Clara tenta colocá-las em sequências que se aproximassem de uma estorinha, mas detecta que quanto mais se esforça para fazê-la compreendê-las, mais ela evitava as atividades com palavras. No entanto, se uma atividade com letras envolvesse dizer uma palavra para cada letra do alfabeto, como c para cama ou quando seu pai inventou um jogo de pronúncia ancorando-se no seu interesse por letras combinadas com imagens, no qual ela ganhava um marshmallows quando acertava, ela dava fortes indícios de se interessar pelo manejo linguístico.
Somente com quase seis anos de idade, torna--se capaz de expressar duas palavras conjuntamente. Clara buscava ilustrar tudo o que ensinava linguisticamente. Explicavam, por exemplo, o verbo brincar com a figura de uma criança se balançando, de modo que Jessy era capaz de aprender os substantivos criança e balanço, mas não o verbo. O modo de aprendizagem de Jessy, por um lado, parecia mais lento que o das outras crianças e, por outro, parecia uma inversão, de modo que algumas palavras básicas para qualquer criança aprender ao escutar os pais só puderam ser reconhecidas e aprendidas ao vê-las por escrito. Além disso, Clara considera que, durante os oito primeiros anos de vida descritos no primeiro livro autobiográfico, o uso de linguagem da filha se restringia a designar, rotular, identificar e nunca para julgar o que descrevia, atribuir um juízo de valor ou mesmo para expressar uma emoção.
Apesar do aumento significativo do repertório de vocabulário, “a descoberta que as palavras poderiam alterar as circunstâncias não efetuou uma abertura milagrosa das possibilidades de comunicação” (p. 216). Jessy parecia não ter quase nada que a motivava a usar a linguagem para demandar algo ou expressar seus pensamentos e emoções. Ela pedia leite e objetos, mas era prevalente, embora atenuados, “a fraqueza, a inércia e o isolamento” (p. 216), de modo que Jessy “era ainda – é ainda – não muito boa em querer coisas” (p. 216).
Até os seis anos de idade, se já podia obedecer vários comandos do dia a dia, ainda era incapaz de responder a questões. Aos seis anos e meio, conseguia responder não. E aos sete anos aprendeu a falar sim, tornando-se capaz de responder sim/não corretamente a questões desse tipo, desde que compreendesse o que estava sendo perguntado. Progressivamente, pôde responder perguntas quantitativas, por exemplo, quantas unidades havia de um objeto, qual a idade de alguém, mas nunca era capaz de responder algo como onde estava uma pessoa da família dentro da casa. Também nunca formulou qualquer questão durante todo o relato da primeira autobiografia.
Havia uma preocupação da família em evitar falar sobre eventos improváveis, por considerarem que para ela era algo inapreensível pela linguagem. Então, buscavam somente afirmar algo se tivessem certeza de que isto ocorreria. Se dissessem que iriam até o supermercado, mesmo que começasse a chover a cântaros, não mudavam o plano, reiterando a importância que ela pudesse ter uma relação de confiança com o que os outros lhe diziam. Somente no final da primeira autobiografia, Jessy está começando a pincelar o conceito de incerteza na vida e na linguagem.
Clara relata a importância de Jessy poder aceder à linguagem em situações difíceis que ocorriam no dia a dia, o que lhe permite, aos poucos, amenizar a intensa angústia que sentia diante de mudanças de rotina. Por exemplo, começaram a falar: “às vezes vai para a escola, às vezes não vai para a escola” (p. 228) e então a própria Jessy começou a dizer, por exemplo, que “às vezes não tem doce” (p. 228) quando não encontrava um docinho para comer. Aos oito anos de idade, seus pais consideram que ela consegue compreender quase tudo que uma criança de quatro compreenderia. Sua fala também progrediu lentamente: um dia a escutaram toda animada falando sozinha1 e, a seguir, falando enquanto brincava na sua casinha de boneca2.
Nessa época, pela primeira vez na vida, Clara escuta a voz de Jessy falando seu nome, enquanto cantarolava “Cla-ra!” (p. 217), mas ela faz de tal modo que não parece chamar a mãe, teve a impressão de que ela estava falando isto como se não estivesse presente na sala ao seu lado. Geralmente, quando procurava por Clara, ela fica vagueando pela casa, dizendo “Oi?” (p. 217) e nunca o seu nome ou designando-a por mamãe.
Em relação à capacidade de compreender a fala, os pais tinham a impressão de que sua compreensão ainda era mínima, como se estivesse “cercada por uma língua estrangeira” (p. 225) em um país no qual houvesse chegado há apenas algumas semanas. Consideram que, quando ela tinha expectativa de que iam falar com ela ou sua atenção já estava focada, e o que escutava estava contido no repertório de vocábulos que já conhecia, parecia compreender parte do que falavam: caso contrário, era totalmente incapaz de compreensão. Eles se esforçam para utilizar o vocabulário “jessyano” quando se endereçam à filha, mas a cada vez buscam elevar discretamente e gradualmente o grau de dificuldade do que e como falam.
A importância da sistematização numérica para o desenvolvimento do pensamento
Embora a família respeitasse a importância de ordem para Jessy, buscava evitar que “suas rotinas se tornassem sacrossantas” (p. 232). Notavam que ela parecia criar “pequenas ilhas” (p. 232) que funcionavam como “configurações” (p. 232) que surgiam do nada e que estabeleciam um sistema ordenado, para seu grande prazer. Qualquer mudança nesta ilha ordenada era noticiada e Clara nota que Jessy parecia desenvolver sua capacidade de registrar e acompanhar no tempo e no espaço como perduravam os objetos nesses sistemas ilhados.
Progressivamente a necessidade de imutabilidade e de fixação em rotinas foi atenuada a partir do desenvolvimento da capacidade de organizar a realidade por meio de sistematizações e categorizações. A capacidade de Jessy pensar sistemas numéricos e determinar padrões se ancorou nas primeiras categorizações dos objetos que eram organizados por padrões como tamanho. No decorrer do tempo, ela já podia categorizar segundo um critério que depreendia como a função dos objetos, viabilizando uma “ordem formal em um mundo mutante” (p. 232).
Aos seis anos de idade, quando ganhou um calendário com uma cor para cada dia da semana, espontaneamente Jessy começa a verbalizar os acontecimentos previstos para cada dia, por exemplo, segunda escola, sábado não escola. Embora ainda não pudesse compreender o amanhã e o ontem, esse foi um primeiro esboço de organização temporal da sua vida cotidiana. Aos sete anos e meio de idade, encontra um modo de apreender a relação entre o tempo futuro e passado, por meio dos números. Ela podia dizer: “Mama forty-two… Ha’ birthday Mama forty-three” (p. 233), sinalizando que a cada aniversário sua mãe aumentava um ano cronológico.
Quando está aprendendo distinções linguísticas como ninguém (nobody) e alguém (somebody), utiliza os números para designá-los (zero-body, one-body, two-body, three-body etc.). A partir daí, também pôde compreender algumas oposições verbais (entre o nobody e o “yes-body”), ficando “encantada quando as palavras exibem princípios ordenadores” (p. 243). Aos 11 anos de idade, ao conhecer o bebê recém-nascido de um vizinho, ela formula que, quando ela tinha dez anos, ele ainda não existia, era menos um: “When I ten, that minus one!” (Park, 2002, p. 85). É tamanha sua paixão pela aritmética e pelos sistemas de números que, aos oito anos de idade, toda vez que triunfa um cálculo matemático ou descobre a lógica de um sistema numérico, fala animada “Yo ho! Yo ho! Yo ho!” (Park, 1995, p. 242).
Síntese da evolução obtida nos primeiros oito anos de vida
Jessy ainda brincava muito tempo sozinha de uma maneira predominantemente repetitiva, a não ser que outra pessoa intervenha e introduza alterações na atividade, mas, vez ou outra, inventava estórias criativas, por exemplo, ao dramatizar uma cena na qual suas bonequinhas iam comprar vinho e bebiam todo ele. Ela pega as garrafas em miniatura na cozinha da casa de boneca e faz com a boca o barulho de desarrolhar; oferece vinho para as bonecas crianças que recusam, dizendo que somente as bonecas adultas podem beber. Outro dia, dramatiza as bonecas indo ao hospital.
Uma síntese realizada por Clara evidencia as mudanças psíquicas ocorridas nos primeiros oito nos de vida abarcados na primeira autobiografia:
Alguém que a visse agora pela primeira vez e não tivesse conhecimento da sua história provavelmente não pensaria que ela era autista. A fala penetra nos ouvidos que por tanto tempo pareciam não escutar; os olhos que não viam agora registram toda a variedade do mundo. O isolamento autístico em si está muito atenuado (p. 252).
A segunda autobiografia e o desenvolvimento da linguagem e do pensamento
No segundo livro autobiográfico (Park, 2002), é possível se identificar com ainda mais nitidez como se estruturam os processos psíquicos que se esboçavam no livro anterior, pois, uma vez que Jessy se expressa com mais fluência verbal, pôde explicar o modo de organização do seu pensamento e o modo como a sua linguagem se estrutura, assim como esclarecer alguns comportamentos outrora enigmáticos, principalmente aqueles que se manifestaram nos primeiros oito anos de vida.
Em uma das primeiras anedotas desse livro, aos 15 anos de idade, Jessy prepara oito bacons para seu café da manhã. Quando Clara lhe pergunta o porquê daquele número, Jessy dá várias explicações3, que são impossíveis de serem compreendidas, mas demonstra já haver uma lógica idiossincrática que determinava seu pensamento e seu comportamento, assim como evidencia sua vontade de compartilhar com a mãe seu sistema de pensamento. Nessa época, seu pensamento era “uma amálgama única de simplicidade e complexidade lógica” (p. 28) e sua linguagem, uma junção de “palavras em algo parecido com o Inglês” (p. 31), pois ela “ainda fala sua língua nativa como uma língua estrangeira” (p. 31), no entanto, já busca organizar parte de seu pensamento pela linguagem compartilhada.
Predominava na sua fala habitual um tom monótono, como se ela criasse um padrão sempre igual na maneira de alterar o tom, de modo que sua “prosódia é tão estereotipada quanto sua linguagem” (p. 61). Ocasionalmente, Jessy falava alguma frase em voz alta que aumentava o mistério sobre como se desenvolviam e se articulavam seu pensamento e sua linguagem. Aos 40 anos de idade, após falar, inesperadamente, “You caught my name” (p. 60), Clara pergunta o que ela está dizendo, e ela afirma que esta frase “keep me from crying” (p. 60). Desde pequena, ela emitia a expressão “Wee-alo, Wee-alo4” (p. 61) em crises de choro que eram “um êxtase de desolação” (p. 61). Quando começou a dizer a frase “You caught my name”, Jessy explicou posteriormente que era uma frase que havia inventado para prevenir estas crises de desolação.
Buscando se respaldar nessa maneira de utilizar uma expressão linguística para desencadear/evitar uma ação ou uma emoção, quando Jessy ficava fixada em uma “fala obsessiva” (p. 110), por exemplo, repetindo todos os detalhes do resfriado de um dos familiares, descrevendo em quais datas e circunstância cada sintoma apareceu, o que também era usual quando percebia que algo estava faltando, começaram a usar uma frase, “Drop it like a hot potato” (p. 111) e que passou a funcionar para parar com a fala obsessiva. Constatam que era preciso dizer esta frase de um modo inesperado e alto, e a seguir, Jessy mudava de tópico.
No decorrer da segunda autobiografia, Clara enfatiza a importância dessa “lógica do número” (p. 66) para ancorar o pensamento de Jessy. Aos poucos, detectaram haver o “sistema dos sistemas” (p. 73) por meio do qual ela estabelecia uma relação entre as fases da lua, os ciclos lunares, as nuvens, e um sistema de portas, estabelecendo uma padronização entre as nuvens desenhadas e o número delas que correspondia a portas. Progressivamente, seu modo de organização se tornou tão elaborado a ponto de se tornar tema de um artigo científico de dois matemáticos que decifram o seu modo de correlação entre números, emoções e clima meteorológico.
Gradualmente, os números deixaram de ser uma linguagem privada marcada por um sistema idiossincrático de clima, emoções e correlações entre números designados bons e maus e pôde ser sistematizado em um sistema mais compartilhável. Jessy escrevia páginas e mais páginas com números, sendo que sempre havia um fio condutor lógico que estabelecia a relações entre os diversos elementos numéricos, viabilizando as interconexões. Nesse sentido, Clara a define como uma “estruturalista” (Park, 1995, p. 297), procurando dar estrutura ao caos pelo estabelecimento de padrões e pela criação de sistemas.
Em um dos exemplos autobiográficos, Clara conta que em uma ocasião, quando Jessy está prestes a completar 12 anos de idade, começa a escrever uma sequência de números: 11 - 351/365, 11 - 71/73, 11 - 359/365. Seus pais tentam desvendar a misteriosa lógica que poderia estar determinando esta sequência, até que notaram qual era o padrão numérico: 351 = 365 dias no ano menos 14 dias que faltavam para o seu aniversário; 359 = 365 dias no ano menos os dias que faltavam para o seu aniversário; e 71/73 era a menor divisão numérica possível para representar 355/365, escrito quando faltavam dez dias para seu aniversário. Detectam, então, que suas “obsessões e compulsões forneciam tanto o material quanto o método do seu pensamento. Seus sistemas, seus números, suas elaboradas correlações eram integrais à atividade da sua mente” (p. 108). Nesta época, os números estruturavam seu pensamento de tal modo que, “no momento em que as palavras e os números se conectaram, outra janela se abriu para aquele estranho mundo interno” (p. 95).
Quando a linguagem de Jessy pôde se desenvolver de modo mais coeso, por volta dos 15 anos de idade, os números deixaram de ser o elemento estruturante da sua apreensão da realidade e organização do pensamento e ela conseguiu estruturar seu pensamento e sua linguagem de uma maneira menos idiossincrática. Com o desenvolvimento da linguagem, Jessy pôde se expressar com fluência, suas frases se tornaram mais complexas, bem estruturadas gramaticalmente e encadeadas logicamente. Embora ainda permanecesse uma tendência à literalidade, ela se interessou progressivamente por expressões figurativas e provérbios, o que aumentou sua habilidade nas interações sociais e na compreensão de mundo. Nunca desenvolveu a capacidade para ironia, mas aprendeu a mentir, embora ainda fosse prevalente sua ingenuidade.
Na vida adulta, Jessy fica ocupada em um emprego no qual organiza a parte burocrática de correspondências e, no seu tempo livre, gosta de pintar – principalmente objetos e algumas construções arquitetônicas – sendo que Clara enfatiza que “o que é uma obsessão em psiquiatra, em arte se torna a exploração de um tema” (p. 14). Ela vendeu a maior parte dos quadros que pintou, embora sua família tenha imposto limites para que ela não fique exclusivamente pintando. Ao contrário da paixão pelos números que se esvaiu – hoje seu interesse nos números se restringe à matemática necessária na vida cotidiana –, a vontade de pintar nunca estancou. Clara conclui a segunda autobiografia enfatizando que, ao contrário dos outros adultos que têm inúmeros projetos para o futuro e que estão sempre insatisfeitos, Jessy se satisfaz na simplicidade, não tem objetivos futuros, mas vive o presente com prazer. Aos 40 anos de idade, ela frisa que Jessy é uma das pessoas mais contentes que conhece e não fica insatisfeita com a vida que tem por nunca ser aquilo que se desejaria.
Considerações finais
O prefácio escrito por Sacks (2002) para o segundo livro autobiográfico sintetiza a importância da publicação desse material autobiográfico para a compreensão do autismo, enfatizando a importância de ambos os livros5 por abordar 40 anos da vida de Jessy e toda a evolução sintomática nesse período, elucidando importantes nuanças do funcionamento psíquico no autismo.
Apontamos, nesses relatos autobiográficos, o surgimento das primeiras manifestações sintomatológicas na infância – retraimento, isolamento, mutismo, perturbações severas das relações sociais, dificuldades de sociabilização, atraso e perturbações na aquisição da linguagem, interesses específicos, busca de mesmice e necessidade de rotinas fixas, preferência por ficar sozinha, aparente autossuficiência. Realçamos como progressivamente Jessy pôde realizar atividades desde que colada em Clara, espelhando seus movimentos e expandindo lentamente sua zona de conforto e disponibilidade para atividades novas. Sinalizamos a importância do registro minucioso das situações nas quais Jessy podia se sentir segura para estender os pseudópodes em direção aos outros, enfatizando o valor da presença interventiva gentil mas insistente da sua mãe, de modo que essas intervenções inicialmente se edificaram a partir da inscrição de Clara no mundo autístico de Jessy, para de lá intervir, atraindo-a para o mundo compartilhado com os outros.
Na área de aquisição de linguagem, descrevemos o atraso na aquisição das palavras e apontamos quanto a musicalidade – o recurso a canções e melodias – foi a primeira modalidade de comunicação com os outros. Caracterizamos como progressivamente sua linguagem pôde se desenvolver, embora mesmo adulta tenha dificuldade em decodificar gírias ou situações de expressões linguísticas que ganham sentido contextual. Em relação ao pensamento, apontamos a importância da invenção de sistematizações edificadas principalmente em números, sendo que a possibilidade de ordenar a apreensão do mundo permitiu a Jessy se sentir mais segura na relação com os outros, além de ancorar ainda mais o desenvolvimento da linguagem e do pensamento, corroborando por um lado com a afirmação de Clara que esse trabalho era “somente uma extensão e intensificação” (Park, 1995, p. 46) do processo que ocorre no desenvolvimento normal, por outro reconhecendo que se tratava do retrato da “estrangeirice daquela mente ocupada, [no] aturdito entrejogo entre sua criatividade e sua deficiência” (Park, 2002, p. 97).
Nas primeiras autobiografias de pais de autistas, como as de Clara Park, notamos um trabalho de sistematização clínica semelhante ao que podemos notar nos próprios escritos de Kanner, responsável pela principal e princeps caracterização psicopatológica do quadro de autismo. Esses escritos autobiográficos são oriundos do esforço de pais que se depararam com filhos que não se encaixavam nas descrições do que seria o filho perfeito ou aquele condizente com o padrão normal e realizaram, através do enredamento, um esforço de descrição equivalente a uma monografia clínica extremamente minuciosa. A construção desse material clínico ocorreu em paralelo à construção das teorias psicológicas e psiquiátricas que procuravam explicar o autismo. No presente artigo, procuramos nos debruçar sobre os relatos de um destes pais, procurando validar a riqueza dessas descrições clínicas, considerando que esta abordagem nos permitiu de fato aumentar o conhecimento científico brasileiro acerca do funcionamento psíquico no autismo.
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1
“Go Roger’ house. Ha’ little Christmas party. Come back go bed wake up ha’ Christmastime. Elly go-uh-dolly house see-uh-dolly Christmas tree” (Park, 1995, p. 230).
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2
“Nice, pretty room. Pretty day. There Christmas tree. Yes. Look. Two candy cane. Eat up, dolly. [cantando:] Oh Christmas tree. Dolly ha’ two TV. Color TV, black-uh-white TV” (Park, 1995, p. 230).
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3
“Because Ann cough and burp too (Pause) And silence is 8. And between silence and sound is 7” (Park, 2002, p. 26) e, a seguir, “1 to 8 is very magic. If I have less than 5 and egg I have to cut that thin slices of toast. If I have less than 5 and no egg I have to make thick slices of toast” (p. 27)
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4
Quando na segunda autobiografia, Clara pergunta para Jessy qual a origem do “Wee-alo”, ela relata que sua origem foi simultânea à expressão hello que emitia no fim de cada sentença que pronunciava. (2002)
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5
“It was the first ‘inside’ (as opposed to clinical) account of an autistic child's development and life; and it was written with an intelligence, a clear-sightedness, the ‘otherness’, of the autistic mind. It also brought out how much an empathetic understanding could help to lay siege to autism's seemingly impregnable isolation” (Sacks, 2002, p. ix).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2017
Histórico
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Recebido
11 Fev 2017 -
Aceito
12 Set 2017