Open-access Psicologia, 60 anos, e a Crítica da Crítica

Psychology: 60 Years and the Critique of the Critique

Psicología, 60 años y la Crítica a la Crítica

Resumo

Num marco de 60 anos da regulamentação da psicologia, em momento de aguçamento da crise estrutural do capital, analisamos em que sentido a crítica na/da/à psicologia se desenvolve, como ela influi no recente desenvolvimento da profissão e suas implicações. Trata-se de um trabalho teórico em que dialogamos com exercícios analíticos críticos na psicologia brasileira desde o marxismo. Por um lado, verificamos a crítica na/da/à psicologia não apenas se desenvolvendo, como influindo no desenvolvimento dessa área no Brasil em direção a análises e explicações mais condizentes com a realidade, bem como a práticas mais comprometidas ética e politicamente, superando lacunas históricas. Por outro, constatamos inflexões e abrandamentos na crítica atrelados à conjuntura, sua institucionalização na academia (em termos da produção de conhecimento) e políticas sociais (referente ao trabalho profissional), formando uma crise na práxis da psicologia crítica: o aguçamento da crise estrutural do capital se expressando nas propostas críticas à/da/na psicologia. Como caminhos para a continuidade da crítica como motor do desenvolvimento da psicologia, sinalizamos: a) explicitação da dimensão ontológica na/da crítica e seus projetos ético-políticos de psicologia e sociedade; b) análises totalizantes, em vez de fragmentações da realidade; c) práxis como critério de verdade, superando a noção da crítica como algo em si ou mero exercício teórico descolado da realidade; d) emancipação humana como horizonte; e) resgate da radicalidade; e f) ir além das fronteiras da psicologia, em direção às lutas e movimentos sociais.

Palavras-chave: Crítica; Psicologia Crítica; História da Psicologia; Marxismo; Brasil

Abstract

Within the framework of the 60th anniversary of psychology regulation in Brazil, in a moment of sharpening of the structural crisis of capital, this paper analyzes in what sense the critique in/of psychology is developed, how it influences recent psi development and its implications. This theoretical work dialogues with critical analytical exercises in Brazilian psychology since Marxism. On one hand, we see the critique of psychology not only developing, but also influencing the development of this field in Brazil towards analyses and explanations more consistent with reality, as well as towards more ethically-politically committed practices, overcoming historical gaps. On the other, we observe inflections and slowdowns in the critique linked to the conjuncture, its institutionalization in academia (in terms of knowledge production) and social policies (referring to professional work), leading to a crisis in critical psychology praxis; the sharpening of the structural crisis of capital expressed in critical proposals of/in psychology. As paths for a continued critique as a driver for developing psychology, we point out a) explicitness of the ontological dimension of the critic and its ethical-political projects of psychology and society; b) totalizing analyses, instead of fragmentations of reality; c) praxis as a truth criteria, overcoming the notion of critique as something in itself or mere theoretical exercise detached from reality; d) human emancipation as a horizon; e) rescue of radicalism; and f) go beyond the borders of psychology, towards social struggles and movements.

Keywords: Critique; Critical Psychology; History of Psychology; Marxism; Brazil

Resumen

En el hito de los 60 años de regulación de la psicología y la agudización de la crisis estructural del capital, analizamos en qué sentido se desarrolla la crítica en/a la psicología, cómo esta influye en el reciente desarrollo de la profesión y sus implicaciones. Es un trabajo teórico, que dialoga con ejercicios analíticos críticos en la psicología brasileña desde el marxismo. Por un lado, la crítica en/a la psicología no solo se desarrolla, sino que incide en la psicología brasileña por medio de un análisis y explicaciones más acordes con la realidad, así como prácticas más comprometidas ético-políticamente al superar lagunas históricas. Por otro, se constatan las inflexiones y ablandamientos en la crítica relacionados a la coyuntura, su institucionalización en la academia (en relación a la producción de conocimiento) y en las políticas sociales (referidas al trabajo profesional), lo que configura una crisis en la praxis de la psicología crítica: la agudización de la crisis estructural del capital se expresa en propuestas críticas a/desde la psicología. Para seguir la crítica como motor del desarrollo de la psicología, señalamos: a) la explicitación de la dimensión ontológica en/de la crítica y los proyectos ético-políticos de psicología y sociedad; b) los análisis totalizadores más que fragmentaciones de la realidad; c) la praxis como criterio de verdad, superando la noción de la crítica como algo en sí o mero ejercicio teórico desvinculado de la realidad; d) la emancipación humana como horizonte; e) el rescate del radicalismo; e f) ir más allá de las fronteras de la psicología hacia luchas y movimientos sociales.

Palabras clave: Crítica; Psicología Crítica; Historia de la Psicología; Marxismo; Brasil

Introdução

Décadas completadas geralmente configuram momentos comemorativos, mas também importantes oportunidades analíticas, de sínteses e balanços. No caso da psicologia, 2022 marca os 60 anos de regulamentação da profissão, a partir da Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Não que tais exercícios devam ser feitos apenas de dez em dez anos, mas pensamos ser uma importante chance de nos debruçarmos sobre um recorte temporal relevante (uma década), atrelado ao desenvolvimento da psicologia, sobretudo desde sua regulamentação.

Ao mesmo tempo, o movimento analítico é justificado pela conjuntura. Para Lacerda (2013), “a descrição do que ocorre em um complexo específico de ideias e práticas - a psicologia brasileira - deve ser realizada a partir de sua inserção em um complexo mais amplo: a sociedade capitalista brasileira” (p. 218). É necessária uma análise totalizante, que tome a psicologia no contexto em que ela se faz psicologia, o Modo de Produção Capitalista (MPC), em seu presente estágio de desenvolvimento na particularidade brasileira, de um capitalismo dependente, de gênese colonial-escravocrata, profundamente desigual, racista, machista, misógino, dentre outras características marcantes que remetem às suas estruturas exploratório-opressivas e condição periférica.

Vivemos um período de crise - a nosso ver, de aguçamento da crise estrutural do capital (Mészáros, 2002). Um desenvolvimento crítico que diz do estágio contemporâneo do MPC e a impossibilidade de um desenvolvimento que não seja destrutivo, barbárico, a partir do esgotamento de suas possibilidades civilizatórias - contraditórias, limitadas etc. Dessa forma, envolve “toda a estrutura da ordem do capital” (Netto, 2012, p. 415), não sendo uma “mera” crise de setores específicos, de frações capitalistas isoladas ou do Estado. Ademais, possui caráter global, generalizado, com implicações econômicas, políticas, ambientais, culturais, humanitárias etc. Por isso, não pode ser sanada por dentro do MPC, postergada ou transferida para outros âmbitos da reprodução do sistema, colocando a necessidade ainda mais premente de se ir para além do capital e do sociometabolismo por ele engendrado (Mészáros, 2002).

Segundo Lacerda (2010), “os períodos de crise do domínio da burguesia foram, também, períodos de crise para a psicologia” (p. 367). Sendo assim, poderíamos especular que a atual conjuntura de recrudescimento da crise estrutural do capital também se expressa na psicologia e até nas vertentes críticas da psicologia - hipótese essa que analisaremos também neste artigo.

Recentemente, em 2020, tivemos também outro marco histórico: os 40 anos da Associação Brasileira de Psicologia Social (Abrapso), cuja fundação e desenvolvimento partem, justamente, do erigir e desenvolver da crítica na/à/da psicologia brasileira - e latino-americana, em extensão. Não que as críticas à psicologia em solo brasileiro surjam apenas em 1980, com a criação da Abrapso. Contudo, com essa associação, temos um ponto de virada, de reconhecimento institucional e relevância da crítica na/à/da psicologia brasileira, sendo que sua fundação já representa este aguçamento da crítica como expressão particular de movimentos mais amplos - em especial, na América Latina -, face às contribuições da psicologia em nosso histórico de exploração, opressão, colonização e dependência.

Sendo assim, acreditamos que o momento seja propício a análises não apenas da regulamentação da profissão, mas do desenvolvimento da psicologia enquanto ciência e profissão e das críticas a ela em nossa realidade. Tão necessária quanto a análise crítica da psicologia é a análise da crítica na/da/à psicologia, apreendendo suas implicações, isto é, se e como ela contribui com o objeto criticado: a psicologia1.

Pretendemos com o presente ensaio esboçar uma crítica da crítica na psicologia brasileira, extraindo sinalizações para entendimento conjuntural e ações necessárias, que impliquem em transformações tanto na ordem social, quanto na psicologia, que, novamente, se faz psicologia nessa realidade. Em hipótese alguma se trata de trabalho conclusivo. Pelo contrário: por um lado, desejamos dar continuidade a análises e reflexões desenvolvidas no/pelo diálogo entre marxismo e psicologia, considerando que tal relação não se dá sem contradições, demonstrando também a relevância da teoria social marxiana e marxista à psicologia (Lacerda, 2016). Por outro, aproveitamos o marco de 60 anos da regulamentação da profissão e os 40 anos da Abrapso para analisar as mudanças e inflexões na dinâmica da psicologia como ciência e profissão, focalizando nas últimas décadas e em que sentido a crítica à/na/da psicologia contribui para sua transformação e se também carece de crítica, até para que acompanhe a realidade, que é processual e dinâmica.

A partir de busca e levantamento não sistemáticos, dialogamos com exercícios analíticos críticos do desenvolvimento da psicologia brasileira. Trata-se de um trabalho teórico, mas cujas reflexões não simplesmente brotam de cabeças em direção à realidade; pelo contrário, advém da análise do real concreto enquanto síntese de múltiplas determinações (Marx, 2008), buscando expressá-lo enquanto real pensado, de modo não apenas a conhecê-lo, mas a transformá-lo; uma análise, pois, materialista histórico-dialética do desenvolvimento da psicologia no país, apreendendo seu movimento, resgatando sua história e revelando seus traços estruturais como ciência e profissão, atrelados à sua dinâmica mais recente.

Para isso, primeiramente discorremos sobre o papel e o movimento da crítica na e à psicologia, que culminou numa tradição crítica dentro dela, que, na sua diversidade, tem sido denominada de psicologia crítica. Num segundo momento, trazemos algumas reflexões acerca do desenvolvimento da psicologia crítica e suas contradições, sobretudo a partir da década de 1980, dado o aguçamento das perspectivas críticas psi a partir deste período. Por fim, fazemos um balanço dos achados, com sinalizações futuras.

O que é, o que é? Crítica e psicologia; crítica à/da/na psicologia

Inicialmente, é necessário esclarecer o que se entende por crítica. Sendo a realidade contraditória, dinâmica e processual, a crítica se põe como manifestação do real em movimento, mesmo que em termos de sua negação, uma oposição a ele (ou a seus elementos), com o conhecimento sendo marcado pelas condições históricas de sua produção. Desse modo, sempre haverá crítica, apesar de como ela pode ser feita ou recebida. As próprias críticas podem ser criticadas e o movimento crítico deve ser, sobretudo, autocrítico. A crítica é, então, mutável, não tendo conteúdo e forma predeterminados ou rígidos, muito menos é boa ou má per se; não é pelo fato de ser crítica (a algo, alguém) que ela é imanentemente superior a que(m) critica. Ademais, a crítica no campo das ciências humanas traz consigo, mesmo que inconscientemente, determinada concepção de realidade, de mundo, de sociedade, de indivíduo - ela expressa tais concepções e as conforma - na forma de questionamentos, teorias, conceitos e explicações que, por sua vez, desaguam em métodos e formas de se analisar a realidade (e atuar nela) e as consequências concretas de todo esse processo; uma amálgama ontológica, epistemológica, metodológica e ético-política na/pela práxis (Montero, 2004).

De acordo com Pavón Cuellar (2019), a psicologia crítica não é uma forma de psicologia, uma corrente ou vertente teórico-metodológica, mas algo que se orienta à psicologia e que, ao mesmo tempo, ocorre na psicologia: “uma relação crítica da psicologia consigo mesma” (p. 20, tradução nossa). Nesse sentido, diz da (crítica à) psicologia como um todo; uma totalidade múltipla em sua constituição; uma unidade na diversidade e, nisso, da crítica a esse todo e, de maneira mais específica e concreta, da crítica às partes que compõem o todo e que só se fazem parte, justamente, no todo, na totalidade da psicologia, expressando-a, de maneira particular e, do mesmo modo, forjando-a como psicologia-totalidade. Ainda segundo o autor:

É, então, algo que se faz e não exatamente algo que já seja. Não consiste em um corpo de conhecimento psicológico, mas em um conjunto diverso e disperso de atitudes e atos de questionamento. É um retorno crítico da psicologia sobre si mesma. É um gesto reflexivo pelo qual a mesma psicologia se relaciona criticamente com o que é e com a forma como procede (Pavón Cuellar, 2019, p. 20, tradução nossa).

Para Lacerda (2013), a psicologia crítica é “um termo guarda-chuva que abarca toda proposta que busca criticar a sociedade e a psicologia” (p. 217). Temos, então, uma dupla faceta da crítica: à psicologia, que, na sua concretude, se trata de uma produção concreta da sociabilidade capitalista, ao mesmo tempo que a conforma. A crítica à psicologia pela crítica do MPC e a crítica do MPC na/pela crítica da psicologia. Ou seja, o caráter de crítica na psicologia deve tratar desta como ciência e profissão germinada no bojo do desenvolvimento capitalista, não por mero acaso ou fruto das cabeças de indivíduos geniais - por mais que fossem -, muito menos por uma mera conjunção de ideias, descoladas de um chão histórico. Trata-se, pois, de uma crítica da crítica: a crítica da psicologia deve ser, dialeticamente, a crítica da sociabilidade que a forja enquanto necessidade, se expressando nela/por ela e, também, sendo explicada, justificada, produzida e perpetuada por ela.

Por mais que o desenvolvimento dos saberes psicológicos e da psicologia brasileira tenha sido sempre eivado de contradições, é nos anos 1970 que temos o ganho de força de perspectivas contra-hegemônicas questionando todo o complexo de produção de saber e de práticas psi. Não por acaso, isso se dá num contexto de ebulição social, com acirramento das lutas sociais nas suas mais variadas manifestações, formando uma unidade em termos da ofensiva da classe trabalhadora. A psicologia brasileira, que não se produz no vazio histórico, não passou ilesa, manifestando em suas trincheiras tal efervescência. Grosso modo, as críticas, nas suas mais variadas facetas (teóricas, metodológicas, práticas etc.), tinham como núcleo sustentador a crítica à psicologia e sua função social (Lacerda, 2013). Nesse interregno, ganham forças não apenas as críticas, mas movimentos de alternativa, de contra-hegemonia, formando uma tradição plural sob o guarda-chuva de psicologia crítica.

Ressaltamos que essa dinâmica se refere às particularidades da formação social brasileira (e da psicologia brasileira), não estando dissociada da totalidade social. Temos movimentos similares na América Latina (AL) de questionamento à psicologia e seu mandato social hegemônico de corroboração e justificação da ordem, bem como em outras partes do globo (Pavón Cuellar, 2019). Tais processos se plasmam aos acontecimentos no país, nos permitindo concluir que o grosso da crítica à/da/na psicologia, mesmo que desenvolvida internamente a ela/nela, advém de fora ou são inspiradas em movimentos por fora dela - inclusive, a partir da maior vinculação de psicólogos(as) com frações mais exploradas e oprimidas de nossa sociedade e suas lutas. É a partir desta breve contextualização que analisaremos, a seguir, as nuanças da crítica à/da/na psicologia recente.

O desenvolvimento recente da crítica na/da/à psicologia brasileira: avanços e inflexões

Para balizar nossas reflexões, além do diálogo com análises sobre o desenvolvimento psi no país, realizamos, em novembro de 2021, uma busca na SciELO, utilizando o termo “psicologia crítica”. Salientamos que tal exercício foi realizado com o intuito de ser ponto de partida da análise; fornecer a materialidade de que são extraídas as reflexões aqui apresentadas, num movimento da e para a realidade. Não é nosso intuito realizar um “estado da arte” da psicologia crítica ou da crítica à/na/da psicologia brasileira, o que demandaria buscas mais abrangentes em outras bases de dados, análise de dissertações, teses, capítulos e livros e produções vinculadas a grupos de pesquisa, associações e entidades na psicologia, como a Abrapso e outras2.

A busca resultou, inicialmente, em 678 artigos, com o primeiro datando de 1993 - o que não significa não haver “psicologia crítica” anteriormente a esta data, apenas as limitações da busca (voltada a artigos em revistas na SciELO). Contudo, mesmo com as limitações, pudemos constatar um aumento expressivo a partir dos anos 2000 do número de publicações cujos conteúdos se põem a criticar, de alguma forma, a psicologia, o que, por sua vez, acompanha a própria expansão da produção acadêmica brasileira, do ensino superior e, nele, da psicologia.

Desconsiderando os artigos que não tratavam diretamente da psicologia brasileira e da crítica à psicologia (ou psicologia crítica), tivemos a proeminência dos seguintes movimentos e temas: a) trabalhos teóricos de diversos referenciais, dialogando (mesmo que criticamente) com autores, teorias e conceitos renomados no campo psi e ciências humanas em geral, destacando-se a crítica epistemológica - e também metodológica; b) discussões no campo escolar/educacional (psicopatologização e medicalização da infância, bullying, queixa escolar, relações escola-família-comunidade, democratização da escola, ensino superior, dentre outros); c) psicologia em contextos sociocomunitários e nas políticas sociais, em especial na saúde e assistência social; d) gênero e sexualidades; e) juventudes; f) interfaces entre psicologia e o mundo do trabalho; g) formação, institucionalização e produção de acadêmica em psicologia; h) história da psicologia como ciência e profissão no país; i) questão étnico-racial, racismo, colonização, branquitude; e j) manifestações ou desdobramentos da “questão social” (pobreza, criminalidade, drogas, violência etc.).

Cabe ressaltar que a separação das categorias cumpre função mais organizativa e didática, não significando que os temas se deem de maneira fragmentária na realidade. Muitos trabalhos, inclusive, se transversalizam nas categorias supracitadas. Esta caracterização converge com o panorama explicitado por Lacerda (2013) e as constatações de Guareschi, Galeano e Bicalho (2020), que, analisando artigos de 2005 a 2018 da revista Psicologia: Ciência e Profissão (que também completou 40 anos de existência em 2020), extraíram 19 temáticas: teórico/conceitual; formação e atuação profissional; saúde mental; organizacional e trabalho; gênero/sexualidade/violência; avaliação psicológica; infância/juventude; políticas públicas/direitos; educação/escolar; desenvolvimento; método/ética; álcool e outras drogas; deficiência/inclusão; encarceramento/violência; cidade/subjetividade; questões étnico-raciais; história da psicologia; mobilidade urbana; e hospitalar. Segundo a autora e os autores, há um avanço no reconhecimento de temas e pautas como gênero, sexualidades, raça, etnia, condições socioeconômicas, dentre outras, que tratam da concretude de nossa existência e produção de vida, decorrentes de críticas a perspectivas tradicionais na psicologia que tomam o ser e sua realidade de maneira genérica, abstrata, via universalização de particulares (que não os nossos). Tal avanço remete à “indissociabilidade entre as implicações epistemológicas, sociais e políticas, uma vez que estas dão condições para compreender que a produção e publicação de conhecimento estão atreladas a todo um conjunto de demandas político-sociais feitas à Psicologia” (Guareschi et al., 2020, p. 7).

Como exemplo, trazemos a análise de Schucman e Martins (2017) sobre como a temática das relações raciais atravessa a psicologia brasileira. Segundo a autora e o autor, por mais que a questão racial tenha estado presente em todo o desenvolvimento dos saberes psicológicos e da psicologia, é a partir do final dos anos 1970, no bojo de efervescência social e conformação de diversas lutas, sobretudo as do Movimento Negro Unificado, que passamos a ter na psicologia - em especial na psicologia social - não somente um maior debate sobre nossa constituição racializada e racista, mas “o negro não mais como ‘objeto da ciência’, mas sim como agente produtor de sua própria história” (Schucman & Martins, 2017, p. 172). Cenário similar, resguardadas as particularidades, pode ser observado no que se refere às relações e dimensões de gênero e sexualidades (Curado & Jacó-Vilela, 2021). No entanto, tal processo não ocorre sem suas contradições, como, por exemplo, a reprodução da hegemonia etnocêntrica, cisheterossexista etc., não “alterando de forma significativa as teorias e métodos das principais abordagens psicossociais da psicologia” (Curado & Jacó-Vilela, 2021, p. 13).

A partir do exposto, acreditamos ser possível afirmar que a crítica na/da/à psicologia não apenas tem se desenvolvido, como influi no desenvolvimento da psicologia brasileira em direção a análises e explicações mais condizentes com a realidade, bem como a práticas mais comprometidas ética e politicamente. Ressaltamos que tal processo é recente, complexo e atrelado à: a) expansão da oferta psi, sobretudo pela inserção nas políticas sociais, o que foi também consequência de b) movimentos da categoria face às contingências do mercado de trabalho num contexto de crise nos anos 1980 (e diminuição da demanda clínica); c) embates teóricos, ideológicos e políticos, potencializados pela maior inserção de psicólogos em movimentos sociais, nas entidades de categoria, sindicatos etc.; e d) pela crescente psicologização da realidade (Dimenstein, 1998; Yamamoto, 2009).

Demos como exemplos os processos de racialização e apreensão das dimensões de gênero e sexualidades e seu caráter feminista, antipatriarcal, antiLGBTQIA+fóbico, antirracista. Fica o desafio para que tais movimentos se aglutinem, forjando análises totalizantes e unidade na diversidade, que advoga pela produção do universal de fato universal, expressão (e produto) das inúmeras possibilidades singulares de existência, mediadas pelas particularidades sociais (de classe, raça, etnia, gênero e sexualidades); até mesmo porque se defrontam contra um todo muito bem coeso (classista, racista, patriarcal etc.), cuja transformação radical das partes carece da superação do todo. Além disso, por mais que possa se tratar do encontro com o óbvio - afinal, tais “temas” são dimensões constitutivas da realidade e dos indivíduos - e que ainda assim é feito tardia e lentamente, eivado de insuficiências, não podemos descartar sua relevância. O que deve mais incomodar é o questionamento acerca de qual realidade a psicologia supõe conhecer, explicar e a que(m) isso tem servido? Como supracitado, isso não acontece sem contradições, lacunas etc., algumas sobre quais discorremos a seguir.

Dois aspectos iniciais a serem ressaltados, e que se imbricam dialeticamente, são: a) a concepção de que a crítica per se basta; certa “autossuficiência” do exercício de crítica, do ato de criticar e que se autoproclamar crítico significa ser crítico - e algo imanentemente bom, superior; e b) não só a predominância de trabalhos teóricos voltados ao debate de conceitos e pensamentos de autores(as), mas a certas posturas que acabam por tomar a reflexão filosófica de maneira ensimesmada, orbitando a si mesma, como se estivesse suspensa da realidade que diz explicar, descrever. Temos, recorrentemente, a crítica pela crítica, nos levando a parafrasear Marx (1845): os(as) psicólogos(as) críticos(as) têm criticado a psicologia de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-la (e transformar a sociedade que a tem como psicologia em tais formas). Para evitar ruídos, ressaltamos que a paráfrase não se volta à totalidade de psicólogos(as) e dos exercícios críticos; muitos(as) se imbuem do esforço práxico e dialético de crítica e transformação da psicologia e da realidade como um todo. Também não endossamos posturas que rebaixam ou desconsideram a relevância do exercício teórico, da reflexão filosófica, pois não se faz prática de mudança sem teoria igualmente de mudança, que se oriente a isso e a possibilite. No entanto, dada a prevalência de trabalhos nos moldes supracitados, coadunamos as reflexões de Hur (2012) e Lacerda (2013) sobre a institucionalização da crítica à/na/da psicologia no âmbito acadêmico e suas consequências.

Soma-se a isso a reflexão de Lacerda (2016) sobre a postura epistemologista nas críticas à/da/na psicologia. Não que o debate epistemológico - ou metodológico - seja algo ruim; pelo contrário, ele é necessário. Entretanto, “antes de passar ao debate sobre os princípios epistemológicos [e metodológicos], é preciso analisar ontologicamente o objeto que foi abordado pela ciência psicológica e as condições histórico-sociais que possibilitaram a emergência dessa ciência” (p. 265). Acredita-se conhecer a realidade encaixando-a no ideal, em abstrações, numa relação com os objetos em que o sujeito é quem constrói o objeto - não havendo existência prévia ou em si deste. Logo, não há a necessidade de se defrontar com os objetos (que se analisa), sua natureza - mesmo que a conclusão seja que se trata de uma natureza social, histórica - e determinações ontológicas, desconsiderando que a realidade é concreta pelo fato de o concreto ser “síntese de múltiplas determinações, isto é, a unidade no diverso” (Marx, 2008, p. 258). Inclusive, no bojo dos embates teóricos, surge a necessidade não só de análises imanentes, dissecando lógicas e argumentos internos, mas também da gênese e função social das teorias e conceitos. Como apresentado, a crítica deve conscientemente perpassar as dimensões inerentes à produção de conhecimento - ontológica, epistemológica, metodológica, ética e política (Montero, 2004) - mesmo que se focalize em uma. Mesmo que não se tenha consciência disso, ela já é constituída e atravessada por tais dimensões.

Com isso, apontamos também - de maneira autocrítica - uma limitação deste trabalho e demais produções sobre psicologia crítica e/ou crítica à/da psicologia: a de que a crítica está na academia ou na produção científica; a vanguarda da crítica como vanguarda acadêmica. Apesar de o trabalho e seus autores estarem submetidos aos ditames acadêmicos, inseridos na universidade, e dialogando com outras produções igualmente acadêmicas, sabemos que não é a academia que, necessariamente, rege ou dita a psicologia, muito menos a segunda se resume à primeira, ou seja sinônimo dela. Portanto, o exercício aqui realizado é lacunar e não-conclusivo, fazendo parte de um todo; de um esforço mais abrangente - e necessário - de se debruçar sobre a psicologia como ciência e profissão, seu desenvolvimento e função social em nossa realidade. Ao mesmo tempo, a ponderação não significa reforçar coros raivosos que atentam contra a academia per se, não estranhamente chafurdados de negacionismos e irracionalismo. Contudo, sabemos que não há psicologia crítica ou crítica à/na/da psicologia apenas no meio acadêmico e em trabalhos acadêmicos. Fica o desafio à psicologia na academia não apenas de se fazer ouvir, mas de escutar e aprender, o que, por sua vez, implica na velha-nova necessidade de sair de si, de seus muros físicos e simbólicos; e isso não como fim em si, mas como meio, mediação. Aliás, o fazer-se ouvir, a nosso ver, passa pelo escutar, pelas trocas possibilitadas por este movimento de alteridade; a democratização da crítica passa por isso.

Se, por um lado, há uma institucionalização da crítica na psicologia e da psicologia crítica na academia, por outro, no que diz respeito à prática, outra faceta dessa institucionalização se dá na relação da psicologia com as políticas sociais - como demonstram as categorizações supracitadas. A institucionalização psi nas políticas sociais possibilitou não apenas a ampliação de trabalho, mas uma maior aproximação de parcelas populacionais historicamente negligenciadas: mais pauperizadas, mormente negras. Só que tal aproximação não pode ser tomada como sinônimo de atuação e reflexão críticas, de compromisso social por si só com as maiorias populares, até mesmo por conta das limitações e contradições que ela tem tido em reverberar em reformulações dos fundamentos e práxis hegemônicos da psicologia (Yamamoto, 2012). Isso não significa que não há crítica, mudança, melhorias; muito pelo contrário, a própria inserção da psicologia em tais realidades já é expressão de críticas à/na/da área, de modo que a continuidade desse processo tem colocado novos (novos-velhos) problemas, indagações, aprofundando as críticas no âmbito da psicologia. No entanto, tal movimento, a nosso ver, ainda é aquém do que pode e deve ser - ainda mais considerando o histórico da psicologia em nossa realidade. Conforme Yamamoto e Oliveira (2010),

pensar numa atuação que conjugue um posicionamento político mais crítico por parte dos psicólogos, com novos referenciais teóricos e técnicos que podem ou não partir dos já consolidados, mas que necessariamente, precisariam ultrapassá-los, é o grande desafio para a profissão no campo das políticas sociais em geral (p. 21).

A isso, somamos o caráter contraditório e limitado das políticas sociais, enquanto mediações do Estado em nosso capitalismo dependente e periférico. Apesar da importância das políticas sociais - e, nisso, da inserção e práxis psi críticas, comprometidas ética e politicamente - no atendimento às necessidades objetivas e concretas da classe trabalhadora, estando afeitas aos tensionamentos dessa classe face à correlação de forças, elas não são capazes de superar questões estruturais, afinal não se propõem a isso. Na melhor das hipóteses, se orientam de maneira paliativa e remediativa para os sintomas do caráter imanentemente desigual do MPC - e isso não é pouca coisa, ainda mais na formação social brasileira e nossos abruptos antagonismos de classe, racistas, patriarcais etc. Assim, ao mesmo tempo que uma práxis que fortaleça as políticas sociais é premente, não podemos tomá-la como fim em si, mas como mediação, meio, para a emancipação humana, que não se dará pela psicologia, mas a qual ela deve se comprometer a contribuir - e nisso, se questionar, transformar.

A configuração das políticas “se relaciona com o avanço do movimento popular organizado; ou em outras palavras, em momentos de fortalecimento da democracia - inclusive a burguesa” (Yamamoto, 1987, p. 41). O que temos com o aguçamento da crise estrutural é o contrário, devido ao desmonte estatal, atrelado a inflexões na organização e mobilização popular, de modo que a correlação de forças fique ainda mais desfavorável à classe trabalhadora. No caso da psicologia, coloca-se um sinal vermelho, afinal, tais políticas têm sido o principal mecanismo de empregabilidade para além da clínica autônoma-liberal. Além disso, fica o alerta para a psicologia crítica ou crítica da/na/à psicologia, que tem nas políticas, no Estado - em extensão, na emancipação política - a sua bala de prata. Se a defesa das políticas é um fim em si, se a inserção e atuação nelas é sinônimo de crítica, de trabalho compromissado, com seu desmonte, temos o fim do horizonte político e da crítica psi ou sua rarefação, o que pode gerar imobilismo - da mesma forma que este já pode ser produto deles.

Para piorar, apesar do crescimento da inserção nas políticas sociais, a atividade clínica não deixou de ser a “área nobre” da psicologia (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos [Dieese], 2016). E as parcelas-alvos tradicionais dela - estratos médios da classe trabalhadora - são afetadas pelo aguçamento da crise estrutural e ofensiva do capital. Com perdas de direitos, aumento do desemprego, subemprego e modalidades informais, aumento inflacionário, tudo isso recrudescido pela pandemia (e, principalmente, por uma gestão genocida da pandemia), a “opção” pela psicoterapia tende a ser deixada de lado num conjunto de escolhas ainda mais escassas e precárias, em detrimento de necessidades objetivas mais imediatas, como alimentação, transporte e deslocamento etc., que, mesmo assim, são dificilmente sanadas por um número cada vez maior de pessoas. Em suma, a demanda pela clínica autônoma tende a diminuir.

Somado ao desmonte das políticas sociais, cortes em direitos, temos uma retroalimentação, em que tal cenário de precarização objetiva - e subjetiva - tende a produzir mais sofrimento e assim sucessivamente. Um paradoxo surge: aumenta-se, em tese, a relevância da psicologia, mas a profissão é tolhida pelas condições concretas de se acessá-la ou de ela chegar aos indivíduos que dela precisam. Poderíamos até problematizar os discursos comuns romantizados e irrealistas da psicoterapia (em extensão da psicologia) como salvadora da pátria, o que, por sua vez, denota um caráter intrinsecamente corporativista, bem como de psicologização da realidade. Porém, abriríamos um flanco que, devido à falta de espaço, não seríamos capazes de fechar. O que questionamos é a forma como, historicamente, aborda-se a dimensão subjetiva e a saúde mental e seu descolamento da realidade brasileira e das necessidades das maiorias populares, hegemonizada por subjetivismos e pelo método clínico - de concepção do ser e atuação individualizantes -, o que remete às críticas à função social da psicologia para a manutenção da ordem. Conceber a saúde mental como fenômeno psíquico, privativo, sua abordagem como sinônimo de psicologia (ou campo psi no geral) e, nisso, de psicoterapia e clínica, é descaracterizá-la enquanto produção de vida, dizendo das condições concretas que os sujeitos se produzem concretamente: como (e se) comem, trabalham, dormem, se relacionam uns com os outros etc.

Tudo isso indica um processo de inflexão política, de abrandamento da crítica na/à/da psicologia em seu desenvolvimento mais recente, com ela limitada à ordem, mesmo que também a criticando, mas cujos limites são os da ordem, os da sua superação. Por exemplo, tal inflexão é constatada na Psicologia Comunitária (Baima & Guzzo, 2019), que se constituiu, historicamente, como vertente, área crítica na/da/à psicologia, possuindo uma gênese contestatória e insurgente radical. Segundo Baima & Guzzo (2019), a

assimilação da ideia de transformação da sociedade por meio da defesa das políticas públicas e sociais expressa uma inflexão na trajetória do campo que encontra correspondência no processo histórico-social e na luta de classes como um todo. E essa assimilação parece revelar que a tendência nos debates em torno da questão caminha para o recuo político, na análise de sua trajetória histórica (p. 74).

De modo geral, temos um giro que vai das necessidades das maiorias populares às necessidades das políticas, do Estado, ou como as políticas compreendem e abordam as necessidades da classe trabalhadora. Não que tais necessidades deixem de ser abordadas, mas não pelo prisma dos sujeitos que, em suas concretudes, as têm como necessidades. Temos um movimento que vai do questionamento do Estado como instrumento de dominação - por mais que atravessado pela luta de classes, ao movimento dos de baixo - a tomar os preceitos do Estado como seus; “do enfrentamento à reivindicação do Estado” (Baima & Guzzo, 2019, p. 70). Em suma, uma crítica incompleta, limítrofe, que carece de radicalidade, de ir à raiz das questões, se orientando à construção do que não está posto - para além do possibilismo. E, novamente, não se trata de algo abstrato ou novo na psicologia e crítica à/da/na psicologia, quando remetemos ao seu desenvolvimento histórico (Yamamoto, 1987; Lacerda, 2013).

Ainda dialogando com Baima & Guzzo (2019), trata-se de uma expressão na psicologia de um movimento mais amplo: da luta de classes no estágio presente do MPC e no capitalismo dependente brasileiro; da ofensiva do capital e das derrotas da classe trabalhadora. As autoras citam, como exemplo, as capitulações da Central Única dos Trabalhadores (CUT). Boechat (2017), analisando a psicologia no ciclo democrático-popular - da ascensão das lutas no final de 1970 até o fim dos governos petistas -, também ressalta os recuos políticos da CUT e outros aparelhos da classe trabalhadora, como o Partido dos Trabalhadores, apontando as expressões na psicologia crítica, em especial a germinada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Abrapso. O autor opera uma importante crítica à ideologia do compromisso social na psicologia que, apesar da relevância, contribuiu “para difundir ilusões sobre a possibilidade de emancipação no interior de uma ordem social que se funda, precisamente, na manutenção da contradição entre a igualdade formal e a desigualdade real” (Boechat, 2017, p. 67). Aliás, problematizamos como tais inflexões na psicologia também se atrelam ao “abandono ou transformismo de importantes fundamentos e categorias do materialismo histórico-dialético” (Carvalho, 2014, p. 8) ou à negação/desconsideração do marxismo.

Podemos ver traços semelhantes em movimentos que, inclusive, contam com marcante participação da psicologia, como a Luta Antimanicomial (Costa & Mendes, 2021) e na dinâmica mais recente de setores e grupos críticos no âmbito das políticas da psicologia e da condução dos rumos psi, como demonstra a análise de Hur (2012):

em vez de ocupar a instituição ser um meio para realizar a plataforma política, ocupar e ganhar a instituição se tornou o fim, independente das semelhanças ou diferenças em relação ao projeto político. Tomar o poder se tornou o principal objetivo, denotando assim o desejo de fixação ao poder da instituição, num processo de institucionalização (uma “estatização”?), deixando o projeto do movimento social em segundo plano (p. 84).

Essa inflexão representa uma crise na práxis da psicologia crítica (ou nas críticas à/da/na psicologia); o aguçamento da crise estrutural do MPC se expressa na/pela psicologia, no aguçamento de sua própria crise, e até mesmo nas propostas críticas à/da/na psicologia. Ademais, todo esse cenário manifesta, a nosso ver, o triunfo da psicologia sobre a crítica, e a institucionalização da última dentro dessa área, na forma de correntes críticas; é sua conversão em “uma psicologia a mais entre outras” (Pavón Cuellar, 2019, p. 28, tradução nossa), mesmo que crítica de outras. Contudo, em última instância, tem-se falhado na crítica à psicologia como um todo e nesta como produção real na concretude do MPC e nosso capitalismo dependente. Novamente, em diálogo com Pavón Cuellar (2019), “o problema não é uma ou outra psicologia, senão a psicologia mesma” (p. 27, tradução nossa), por mais que algumas vertentes possam ser mais problemáticas que outras - e, portanto, devam ser criticadas nas suas especificidades.

Assim, mesmo com os avanços, é necessário pontuar as contradições, sinalizando como a crítica à/da/na psicologia, ao se desenvolver, traz e gera contradições que carecem de análise e superação. Consonantes a Pavón Cuellar (2019), para que a psicologia crítica não seja mais uma psicologia ou ramificação psi, é necessário reforçar que seu caráter crítico manifesta seu compromisso ético-político - atrelado à sua concepção de sociedade e seu projeto societário. E tal caráter crítico derivou das lutas sociais face às crises societárias (crises do MPC), por mais que expresso e desenvolvido internamente na psicologia. Ou seja, a condição de criticidade da/à/na psicologia, se relaciona invariavelmente ao atrelamento da crítica à luta da classe trabalhadora, do conjunto dos explorados e oprimidos; o nível e a “qualidade” de sua crítica dependendo no nível e “qualidade” de seu envolvimento com as lutas sociais, movimentos insurgentes e como eles adentram as trincheiras da psicologia. Não se trata de regra ou relação causal, como se quanto mais militante mais verídico e/ou válido; muito menos se impõe a condição de se ser militante para a crítica ou que seja válido concluir que, o sendo, automaticamente se é crítico.

Contudo, se o horizonte é a transformação da realidade e da psicologia como resultado da própria crítica, é necessário pensar não apenas num movimento por e para fora da psicologia, se nutrindo do conjunto de lutas, como buscar outros meios igualmente por fora da psicologia para contribuir para tal transformação: uma militância anticapitalista, socialista (e contra quaisquer formas de opressão). Se a saída da crise estrutural do capital, cujo aguçamento se expressa na/pela psicologia, está para além do capital, a crítica na/da/à psicologia não só deve buscar suas armas e se tornar arma da crítica por fora da psicologia, buscando transformá-la e superá-la, como tal movimento será potencializado se também vinculado e orientado à superação do MPC; por fora e para além da psicologia, orientada para além do capital.

Remetendo ao histórico da psicologia crítica ou crítica à/da/na psicologia, vemos que tal movimento de “fora para dentro”, expressou e expressa a correlação de forças e luta de classes na psicologia. No contexto de exacerbação da ofensiva do capital e recrudescimento de sua crise estrutural, tende-se a arrefecer a capacidade mobilizatória e contestatória da classe trabalhadora, resultando no abrandamento da crítica - que, invariavelmente, adentra na psicologia e se manifesta nela/por ela. Porém, dialeticamente se intensifica a necessidade de luta, de organização: da crítica, pois. Logo, as contribuições “de fora para dentro” à psicologia, o movimento de sair de si, mais do que nunca, são necessárias. Sair de si no sentido de dialogar com outros campos do saber-fazer, rasurando fronteiras do conhecimento e o esquartejamento (e descaracterização) da realidade pelas ciências parcelares em direção a análises totalizantes; mas também no de impregnar-se da realidade e dos sujeitos que, para viverem e se humanizarem, expressam em suas existências não só o caráter desumanizante do MPC, mas negações a ele. Ficam os ensinamentos da psicologia crítica na América Latina e seu desenvolver atrelado às lutas e movimentos sociais, em momentos históricos não menos difíceis. Não se trata de reinventar a roda, por mais que a capacidade inventiva e criativa seja premente, mas de, ao resgatar tal processo histórico, apreender como ele desagua no presente, para sua transformação e construção do futuro.

Propomos a continuidade do desenvolvimento da crítica como meio, mediação da transformação da psicologia e da realidade que a faz psicologia, bem como se expressa nela/por ela e dela se nutre, em vez da crítica ensimesmada, encapsulada (institucionalizada) e possibilista. Até porque a crítica, ao ser orientada a algo, já é sua negação, ao passo que a síntese dialética extraída desse movimento se apresenta como horizonte, produzindo novas sínteses superadoras. Como afirmado por Marx (2008), a “humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir” (p. 48). Uma crítica destrutivo-construtiva, que não se ocupe apenas de psicologias, da dimensão epistemológica (e/ou metodológica), mas da psicologia como um todo e sua sociabilidade, forjando-se na/pela radicalidade.

Finalizamos dialogando com Yamamoto (2012), para quem não apenas é viável, como necessário que a crítica deságue em um projeto coletivo, um projeto ético-político da psicologia, que deve ser permanentemente (auto)crítico. Isso não significa tomar nem a psicologia nem as críticas a ela como homogêneas; pelo contrário, trata-se de reconhecer suas diversidades, que vêm a se expressar em projetos também diversos a disputarem a hegemonia psi - processo este que pode resultar em diálogos profícuos, sínteses vigorosas.

Considerações finais

Visando esboçar uma crítica da crítica à/da/na psicologia, aproveitando o marco de 60 anos de sua regulamentação e o aguçamento da crise estrutural do capital, analisamos em que sentido a crítica na/da/à psicologia se desenvolve e como ela influi no desenvolvimento psi não apenas enquanto profissão, mas também ciência. Por um lado, constatamos avanços em termos da apreensão da realidade e dos sujeitos que a produzem - e são produtos - em suas concretudes, confrontando-se com lacunas históricas da psicologia. Por outro, temos inflexões e abrandamentos na/da crítica atrelados à sua institucionalização na academia, em termos da produção de conhecimento, e nas políticas sociais, referente ao trabalho profissional.

Assim como em outros períodos históricos, o presente cenário de recrudescimento da crise do capital se expressa na/pela psicologia e em inflexões das críticas à/da/na própria. Porém, acentua a relevância da crítica e a necessidade de seu fortalecimento. Sendo assim, apontamos algumas possibilidades de continuidade da crítica como motor do desenvolvimento de uma psicologia condizente com nossa realidade e suas necessidades: (a) consideração da dimensão ontológica na crítica (não apenas a epistemológica ou metodológica) atrelada ao projeto ético-político de psicologia e sociedade que expressa e conforma; (b) sínteses e junções, quando possíveis, produzindo análises totalizantes, não fragmentárias, em termos da unidade na diversidade; (c) práxis como critério de verdade também da crítica, indo além do entendimento desta como algo em si ou mero exercício teórico descolado de base histórica; (d) emancipação humana como horizonte, com defesa e avanço da consolidação de direitos, das políticas como manifestações da emancipação política, mas indo além, não tomando-os como fins em si ou sinônimos de crítica; (e) resgate da radicalidade na crítica; e (f) superar as fronteiras da psicologia, com as principais contribuições à crítica da/à/na área, historicamente, vindas de fora, feitas por fora, nas lutas e movimentos sociais.

Referências

  • Baima, L. S., & Guzzo, R. S. L. (2019). Psicologia e questão social: Considerações sobre projetos políticos da psicologia comunitária ao longo de sua trajetória histórica no Brasil. Revista Psicologia Política, 19(44), 65-77.
  • Boechat, F. M. (2017). A psicologia brasileira nos ciclos democrático-nacional e democrático-popular. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(spe), 57-70. https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1982-3703040002017
  • Carvalho, B. P. (2014). A escola de São Paulo de psicologia social: Uma análise histórica do seu desenvolvimento desde o materialismo histórico-dialético [Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo].
  • Costa, P. H. A., & Mendes, K. T. (2021). Pandemia e luta antimanicomial. Insurgência, 7(1), 125-145. https://doi.org/10.26512/insurgncia.v7i1.35542
    » https://doi.org/https://doi.org/10.26512/insurgncia.v7i1.35542
  • Curado, J. C., & Jacó-Vilela, A. M. (2021). Estudos de gênero na psicologia (1980-2016): Aproximações e distanciamentos. Psicologia: Ciência e Profissão , 41, 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003219132
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1982-3703003219132
  • Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. (2016). Levantamento de informações sobre a inserção dos psicólogos no mercado de trabalho brasileiro: Relatório final. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
  • Dimenstein, M. D. B. (1998). O psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde: Desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia (Natal), 3(1), 53-81. https://doi.org/10.1590/S1413-294X1998000100004
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S1413-294X1998000100004
  • Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B., & Bicalho, P. P. G. (2020). 40 anos: O que a psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão , 40, e237742, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742
  • Hur, D. U. (2012). Políticas da psicologia: Histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004
  • Lacerda, F., Jr. (2010). Psicologia para fazer a crítica? Apologética, individualismo e marxismo em alguns projetos psi. (Tese de Doutorado), Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
  • Lacerda, F., Jr. (2013). Capitalismo dependente e a psicologia no Brasil: das alternativas à psicologia crítica. Teoría y crítica de la psicología, 3, 216-263.
  • Lacerda, F., Jr. (2016). Marxismo e psicologia: Notas críticas sobre epistemologismo, emancipação e historicidade. In I. F. Oliveira, I. L. Paiva, A. L. F. Costa, K. Amorim, & F. Coelho-Lima (Orgs.), Marx hoje: Pesquisa e transformação social (pp. 255-276). Outras Expressões.
  • Marx, K. (1845). Teses sobre Feuerbach. Arquivo Marxista na Internet. https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm
    » https://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm
  • Marx, K. (2008). Contribuição à crítica da economia política. Expressão Popular.
  • Mészáros, I. (2002). Para além do capital: Rumo a uma teoria da transição. Boitempo.
  • Montero, M. (2004). Introducción a la psicología comunitaria: Desarrollo, conceptos y procesos. Paidós.
  • Netto, J. P. (2012). Crise do capital e consequências societárias. Serviço Social e Sociedade, 111, 413-429. https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0101-66282012000300002
  • Pavón Cuellar, D. (2019). Psicología crítica y lucha social: pasado, presente, futuro [Psicologia crítica e luta social: pasado, presente, futuro]. Poiésis, (37), 19-34. https://doi.org/10.21501/16920945.3340
    » https://doi.org/https://doi.org/10.21501/16920945.3340
  • Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2017). A psicologia e o discurso racial sobre o negro: Do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psicologia: Ciência e Profissão , 37(spe), 172-185. https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017
  • Yamamoto, O. H. (1987). A crise e as alternativas da psicologia. Edicon.
  • Yamamoto, O. H. (2009). Questão social e políticas públicas: revendo o compromisso da Psicologia. In A. M. B. Bock. (Org.), Psicologia e o compromisso social (pp. 29-36). Cortez.
  • Yamamoto, O. H. (2012). 50 anos de profissão: Responsabilidade social ou projeto ético-político? Psicologia: Ciência e Profissão , 32(spe), 6-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500002
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500002
  • Yamamoto, O. H., & Oliveira, I. F. (2010). Política social e psicologia: uma trajetória de 25 anos. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 26(spe), 9-24. https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500002
    » https://doi.org/https://doi.org/10.1590/S0102-37722010000500002
  • 1
    A nosso ver, os trabalhos de Yamamoto (1987) e Lacerda (2010; 2013) marcam pontos de virada na crítica da crítica da/na/à psicologia brasileira, no sentido aqui trabalhado. Ambos em decorrência de sua qualidade, mas o primeiro em especial por seu vanguardismo e o segundo por dar continuidade ao exercício prévio e aprofundá-lo, possibilitando uma abrangente crítica da psicologia crítica, decorrente de sua análise estrutural e dinâmica.
  • 2
    Uma boa síntese da produção no âmbito da psicologia crítica brasileira, apresentando sua história, dinâmica e tendências é feita por Lacerda (2013). Algumas importantes associações, no que se refere à crítica na/da/à psicologia, são: Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), Associação Brasileira de Psicologia Política (ABPP); Associação Brasileira de Ensino de Psicologia (Abep), dentre outras. Soma-se a isso o Sistema Conselhos (Conselho Federal de Psicologia - CFP - e Conselhos Regionais de Psicologia - CRP), ao menos desde o final de 1970, com a entrada de grupos progressistas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2022
  • Aceito
    26 Abr 2022
location_on
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro