Open-access Interseccionalidade como Horizonte Primordial à Psicologia Social: Reflexões Sobre Diversidade Epistemológica

Intersectionality as the Primordial Horizon to Social Psichology: Reflections On Epistemological Diversity

Interseccionalidad como Horizonte Primordial para la Psicología Social: Reflexiones sobre la Diversidad Epistemológica

Resumo:

O presente estudo é de caráter qualitativo e objetiva refletir sobre a utilização da interseccionalidade como horizonte primordial à psicologia social. A posição tomada neste trabalho é favorável a uma ética comprometida com a justiça e transformação social, e evidencia que os saberes interseccionais ampliam nossas ferramentas analíticas sobre a realidade de desigualdades sociais produzidas historicamente. Sugerimos que uma epistemologia “interseccionafricana” em psicologia social poderá partir de proposições que potencializam o aprendizado sobre nossas raízes históricas, por meio de um movimento de apropriação dos processos de desumanização perpetrados contra populações atravessadas por diferentes marcadores sociais da diferença: de raça, gênero, classe, deficiências, sexualidades, geracionais, etc., além de afirmar que esses movimentos só se tornarão inteligíveis a partir da subversão de uma organização epistêmica, que pode viabilizar a consciência sobre a existência dessas experiências e o aprendizado com e a partir de . A discussão, portanto, toca em aspectos de ordem epistemológica da psicologia social brasileira, contribuindo com tensionamentos acerca da produção do conhecimento científico e seu papel na luta política em direção à transformação social.

Palavras-Chave:  Psicologia Social; Conhecimento; Enquadramento Interseccional; Decolonialidade

Abstract:

This qualitative study aims to reflect on the use of intersectionality as a primordial horizon for social psychology. The position it takes favors an ethics committed to justice and social transformation and shows that intersectional knowledge expands our analytical tools on the reality of historically produced social inequalities. We suggest that an “interseccionafrican” epistemology in social psychology can start from propositions that enhance learning about our historical roots by appropriating the dehumanization processes perpetrated against populations crossed by several social markers of difference: of race, gender, class, disabilities, sexualities, generations, etc., and by stating that these movements will only become intelligible by subverting an epistemic organization that can enable awareness about the existence of these experiences and learning with and from them. The discussion, therefore, touches on epistemological aspects of Brazilian social psychology, contributing to tensions about the production of scientific knowledge and its role in the political struggle toward social transformation.

Keywords:  Psychology; Social; Knowledge; Intersectional Framework; Decoloniality

Resumen:

Este estudio cualitativo tiene como objetivo reflexionar sobre el uso de la interseccionalidad como horizonte primordial para la psicología social. La posición asumida en este trabajo es favorable a una ética comprometida con la justicia y la transformación social, y muestra que el conocimiento interseccional amplía nuestras herramientas de análisis sobre la realidad de las desigualdades sociales que se producen históricamente. Se argumenta que una epistemología “interseccionafricana” en psicología social puede partir de proposiciones que promuevan el aprendizaje de nuestras raíces históricas mediante un movimiento de apropiación de los procesos de deshumanización perpetrados contra poblaciones atravesadas por distintos marcadores sociales de diferencia: de raza, género, clase, discapacidad, sexualidades, generaciones, etc., además de afirmar que estos movimientos solo serán inteligibles a partir de la subversión de una organización epistémica que permita la toma de conciencia de la existencia de estas experiencias y el aprendizaje con o desde ellas. La discusión aborda aspectos epistemológicos de la psicología social brasileña, contribuyendo a las tensiones sobre la producción de conocimiento científico y su papel en la lucha política por la transformación social.

Palabras Clave:  Psicología Social; Conocimiento; Marco Interseccional; Decolonialidad

Introdução

Interseccionalidade é um conceito que tem sido utilizado de forma recorrente nas diferentes disciplinas de Psicologia e de outras áreas do conhecimento. Esse uso é justificado pela potência analítica, metodológica, política e epistemológica ao possibilitar vislumbrar e denunciar inúmeros sistemas de opressão vivenciados por sujeitos atravessados por distintos marcadores sociais da diferença. No entanto, não se trata de uma lente orientadora da compreensão da realidade que busca produzir um somatório de opressões, como vem sendo utilizado comumente no contexto brasileiro (Bueno, 2020 ). Ao contrário disso, o conceito, em sua formulação original, leva-nos a refletir sobre de que forma a sobreposição de categorias de raça, classe, sexualidade, gênero, deficiências etc., produz eixos de subordinação em nosso cotidiano (Crenshaw, 2002 ; Assis, 2019 ), além de nos instigar a traçar múltiplas estratégias de enfrentamento desses processos de subordinação que perfazem os processos sociais e psicológicos.

É importante ressaltar que o conceito de interseccionalidade emerge em um contexto de reivindicação de mulheres que se inclinavam a lutar pela equiparação de direitos em relação aos homens e, consequentemente, pelo acesso à arena pública e aos lugares de negociação. A grande questão, que se coloca nesse contexto histórico, é que o movimento feminista se configurou como um feminismo hegemônico majoritariamente constituído por mulheres brancas de classe média, sendo as questões e pautas reivindicadas por feministas negras relegadas no interior do feminismo branco e dos movimentos antirracistas (Akotirene, 2019 ). Assim, a interseccionalidade surge como uma ferramenta política de crítica ao feminismo hegemônico, apontando que uma lente monofocal poderia (re)produzir as relações de poder que se pretendia desestabilizar (Collins, & Bilge, 2020 ).

Essa reivindicação pode ser observada no discurso proferido por Sojourner Truth, na Women’s Rights Convention , em Akron Ohio, Estados Unidos, no ano de 1851. O evento em questão foi uma intervenção realizada em uma reunião de clérigos que debatiam sobre os direitos das mulheres. Pastores presentes, ancorados em perspectivas religiosas, posicionaram-se contrários aos direitos das mulheres equiparados aos direitos dos homens, tendo em vista que a primeira mulher, segundo as escrituras, foi pecadora; as mulheres seriam frágeis e intelectualmente débeis, além disso, Jesus foi um homem. Com isso, a grande crítica ao feminismo hegemônico residia na categoria de mulheres universais que excluíam as experiências e violências estruturais de mulheres negras. O trecho a seguir foi retirado do discurso:

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher?

(1851).

Por ser um conceito que pode viabilizar a compreensão e explicação mais ampliada das complexidades presentes no mundo e nas experiências humanas (Collins, & Bilge, 2020 ), acreditamos que as bases teórico-epistemológicas que são constitutivas de sua própria formulação podem ser inteligíveis como uma importante ferramenta para vislumbrar o caráter estrutural de diferentes sistemas de opressão na sociedade e nas relações. Desse modo, as categorias de pertencimento racial, sexual, de gênero, deficiências etc., ancoradas em relações de poder, potencializam processos de hierarquização e inferiorização de uns sobre outros na dinâmica social, devendo existir ferramentas políticas 1 que deem conta de viabilizar tensionamentos e aprofundamentos analíticos necessários para produzir deslocamentos nessas configurações.

As contribuições de Anibal Quijano são primorosas para a compreensão dessas dinâmicas de poder. Para o autor, a concepção de raça na modernidade produziu, historicamente, efeitos nas relações de dominação, pois tais processos identitários foram associados “às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, com constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha” (Quijano, 2005 , p. 117). O padrão mundial de poder – colonial/moderno, capitalista e eurocentrado – do ponto de vista da produção intelectual, além de viabilizar dinâmicas concretas de opressão, possibilitou/possibilita também o silenciamento e/ou baixa valoração das produções, legitimidade e alteridade do “‘outro não europeu’, ‘do outro não branco’, ‘do outro não civilizado’” (Alves, & Delmondez, 2015 , p. 650), posicionando-as em níveis de inferioridade às tradições europeias (Quijano, 2005 ).

Estamos vivenciando, tardiamente, um contexto em que sujeitos marginalizados e vulnerabilizados historicamente têm acessado lugares de negociação e disputa para reivindicar a legitimidade de suas experiências (Collins, & Bilge, 2020 ). Neste contexto, a interseccionalidade se mostra como uma estratégia eficaz na potencialização da luta por patamares mais elevados de justiça social e igualdade de direitos. Ademais, no que tange à própria produção do conhecimento, o genocídio epistêmico passa a ser questionado e, consequentemente, desnaturalizado, abrindo caminhos para a produção sistemática de temáticas que borram a hegemonia branca, cisheterossexista, burguesa, corponormativa etc. (Grosfoguel, 2016 ; Ribeiro, 2019 ). Nesse sentido, ao afirmar a interseccionalidade como horizonte primordial à Psicologia Social, nos sentimos mobilizados a confrontar argumentos tradicionais dessa área do conhecimento com base em outro paradigma analítico, com vistas a desestabilizar e desnaturalizar o apagamento sistemático de produções de outsiders (Collins, 2016 ).

Em consonância com Santos ( 2009 ), acreditamos que toda experiência social (re)produz algum tipo de conhecimento, estando este diretamente ligado a uma vertente epistemológica. Diante disso, concordamos com a ideia do referido autor de que é por meio do conhecimento válido sobre a realidade que a experiência social se torna intencional e inteligível. Não se trata, portanto, de produzir um relativismo epistemológico ao considerar a pluralidade de experiências e as produções de conhecimentos de grupos historicamente oprimidos. Diferentemente dos modelos teóricos ancorados nos paradigmas universais da modernidade (branca, heterossexual, burguesa, corponormativa), que produziram hierarquias de conhecimentos, o que se pretende é complexificar e ampliar nossas perspectivas analíticas a partir das inúmeras possibilidades de intervenção e interpretação no mundo, considerando a intersecção dos diferentes saberes produzidos (Santos, 2009 ).

Assim, partimos da perspectiva que considera as relações sociais como sempre culturais (intraculturais ou interculturais) e políticas, na medida em que a forma com que se estabelecem na dinâmica e no cotidiano social representam e (re)produzem hierarquização e inferiorização na sociedade e, portanto, relações de poder. Assim, diferentemente da perspectiva multiculturalista, que considera a existência de uma cultura hegemônica que aceita, tolera e/ou respeita a existência de culturas e experiências outras 2 em seu espaço cultural, acreditamos que a interculturalidade é mais democrática e eficaz para a compreensão da realidade, visto que adota a ideia de reciprocidade e horizontalidade na produção do conhecimento em que há aprendizado e enriquecimento mútuo entre diferentes culturas que ocupam um mesmo espaço (Santos, 2009 ).

Salienta-se que reconhecemos a heterogeneidade de proposições na compreensão e utilização da interseccionalidade como categoria analítica: nem sempre unívocas. De diferentes formas essa ferramenta teórica pode ser útil para visibilizar resoluções para problemas de desigualdades sociais, elementos geográficos produtores de (in)visibilidades históricas, o modus operandi do entrecruzamento de preconceitos estruturais (sexismo, machismo, preconceito sexual, misoginia) em seus efeitos políticos e legais, promoção da equidade nos diferentes espaços sociais (de modo a torná-los mais acolhedores das diversidades constitutivas de sua própria organização), práticas discriminatórias legitimadas e incentivadas social e institucionalmente, produções intencionais de estratégias inviabilizadoras de quaisquer possibilidade de ascensão social e consequente exclusão do mercado de trabalho etc (Akotirene, 2019 ; Collins, & Bilge, 2020 ).

Neste estudo, refletiremos sobre a afirmação da interseccionalidade como lente analítica epistemológica imprescindível, demonstrando como a colonialidade do poder (Quijano, 2005 ) viabilizou determinada organização epistêmica que torna (in)visíveis contingências históricas na/da produção do conhecimento em Psicologia Social, tornando as proposições de inúmeros autores destituídas de legitimidade. Assim, a proposta inicial de adotar a perspectiva “interseccionafricana” à Psicologia Social é resultante de um esforço teórico-reflexivo de demarcação da potência encontrada nas produções de autores posicionados em culturas subjugadas historicamente, que resistiram/resistem aos investimentos coloniais produtores de silenciamentos e genocídios epistemológicos (Oliveira, & Murad, 2022 ), e que emergem como vozes dissonantes importantes para produzir tensionamentos sobre a visão de mundo, visão histórica e visão de ser humano (Alves, & Delmondez, 2015 ).

Assume-se, portanto, como fio condutor dos processos analíticos, o compromisso da transformação e justiça social por meio da construção de uma agenda política de mudança estrutural das relações e das sociedades, com proposições que viabilizem fraturas nos diferentes sistemas de opressão produtores de experiências subalternas e invisibilização, silenciamento e apagamento sistemático de produções e saberes construídos por grupos historicamente oprimidos (Ribeiro, 2019 ).

Mas e a Psicologia Social, o que ela tem a ver com isso?

Psicologia Social e diversidade epistemológica

Como ponto de partida para as reflexões aqui propostas, devemos nos perguntar: é possível considerar qualquer produção do conhecimento que dê conta em sua totalidade dos processos que explicam as inúmeras possibilidades de ser e estar no mundo em sua essência, explicitando uma verdade absoluta e atemporal sobre os fatos e fenômenos sociais? (D’Oca, Santos, & Santos, 2017 ). De acordo com esses autores, embora pareça uma pergunta que evidencie algum nível de ingenuidade, torna-se importante dizer que sua resposta estará ancorada em pressupostos epistemológicos diferentes e ocorre na medida em que, explicitamente ou implicitamente, Psicólogos/Pesquisadores Sociais produzem e sistematizam o conhecimento.

Inicialmente, essa resposta foi dada por Psicólogos Sociais que acreditavam de forma unívoca na verdade científica. Os teóricos dessa corrente, denominados positivistas, argumentavam sobre a existência de leis universais e invariáveis que dão conta de explicar o comportamento humano. Além disso, nesse processo, o papel da ciência seria o de desvelar tais leis por meio da produção de conhecimento, com o auxílio da adoção de procedimentos metodológicos objetivos (D’Oca, Santos, & Santos, 2017 ).

Ancorados em uma perspectiva norte-americana – Psicologia Social Psicológica –, o enfoque desses psicólogos estava no indivíduo e nos processos psicológicos. Desse modo, estavam/estão interessados na compreensão, principalmente, dos processos intraindividuais responsáveis pela forma que diferentes indivíduos respondiam, agiam e se comportavam frente aos estímulos sociais. Esses estudiosos buscaram/buscam explicar os sentimentos, pensamentos e comportamentos desses sujeitos na presença real ou imaginada de outras pessoas (Ferreira, 2010 ), o quê, em perspectivas críticas da Psicologia Social, pode ser visto como uma individualização dos processos e fenômenos sociais, e uma responsabilização do sujeito, desconsiderando os aspectos relacionais presentes na organização e nas relações sociais.

Por outro lado, a corrente da Psicologia Social Sociológica tem como foco a experiência social que os sujeitos adquirem na relação estabelecida entre os diferentes grupos aos quais eles pertencem/convivem. Os Psicólogos(as) que se ancoram nos pressupostos dessa perspectiva se inclinam a estudar os fenômenos que emergem dos diferentes grupos e sociedades (Ferreira, 2010 ). Para esses pesquisadores, construcionistas, o conhecimento é uma produção histórica e, portanto, posicionada e localizada no contexto e no momento em que foi produzida. O conhecimento é “limitado pela linguagem do contexto em que se produz, bem como pela nossa concepção de realidade” (D’Oca, Santos, & Santos, 2017 , p. 11). Por meio desse prisma, esses autores destacam que a compreensão dos fenômenos sociais não pode se tornar inteligível por meio da verdade dos fatos, mas sim pela versão 3 dos fatos.

Na década de 80, importante momento histórico, produziu-se um significativo movimento no interior da Psicologia Social em contexto latino-americano. A “crítica a nós mesmos”, na forma como vínhamos conduzindo nossas reflexões acerca da relação estabelecida entre indivíduo-sociedade, produziu uma modificação no que tange aos aspectos epistemológicos e estabeleceu críticas importantes e necessárias a outras correntes teóricas, chamando a atenção para que se produzisse um conhecimento que estivesse concretamente comprometido com a transformação da realidade de desigualdades sociais do nosso povo: perspectiva do compromisso social (Bock, 1999 ) no “ quefazer ” profissional da Psicologia Social (Martín-Baró, 1996 ).

A Psicologia Social Crítica e/ou Sócio-histórica emerge nesse momento histórico com ferramentas analíticas importantes de desestabilização dessa dicotomia produzida na Psicologia Social, ao afirmar que, se por um lado os indivíduos internalizam as instituições sociais, por outro, a materialidade/funcionamento e organização dessas instituições só é possível por meio das proposições de nós mesmos: atores que compõem, constroem e organizam, no cotidiano, a estrutura social. Nessa perspectiva, fragiliza-se a dicotomia, até então, (re)produzida no campo (indivíduo versus sociedade), cedendo lugar a uma compreensão que considera a indissociabilidade dessas relações (indivíduo e sociedade) na compreensão dos fenômenos, relações e fatos sociais. Não há, portanto, a possibilidade de desconsiderar a existência de um sujeito psicossocial (Prado, Torres, Machado, & Costa, 2009 ).

Aqui, faz-se mister retomarmos um importante conceito desenvolvido no âmbito da educação (Freire, 1970 ) e apropriado pela Psicologia Social Crítica (Martín-Baró, 1996 ) como possibilidade de afirmação do compromisso social de profissionais da Psicologia (Bock, 1999 ) e da diversidade epistemológica ou ecologia dos saberes, conforme apresentado nas sistematizações de Santos ( 2009 ). Se a realidade da população brasileira pode ser caracterizada pelas injustiças e desigualdades sócio-históricas no que tange ao acesso a bens e serviços, preconceitos estruturais, violação de direitos, entre outros aspectos que demarcam a experiência subalterna de uns sobre outros, a conscientização se apresenta como ferramenta política potente de desalienação de pessoas ou grupos, auxiliando-os a alcançarem um saber crítico sobre a realidades e sobre si mesmos (Freire, 1970 ; Martín-Baró, 1996 ). Além de viabilizar espaços para que essas produções passem a ser validadas como saber científico.

Assim sendo, apostar na potência da conscientização para a emancipação de pessoas e grupos oprimidos diz respeito a: considerar o papel ativo do ser humano na sua transformação ao modificar a sua realidade; viabilizar inteligibilidades sobre os diferentes sistemas e mecanismos de opressão e desumanização, promovendo a desnaturalização das injustiças produzidas historicamente. Essa consciência crítica viabiliza novas possibilidades de intervenção, interpretação do mundo, além de propiciar novas formas de consciência e a promoção de novos conhecimentos do sujeito oprimido sobre sua realidade. Portanto, a apropriação de sua memória histórica produz movimentos emancipatórios e autônomos de seu futuro, potencializando novas formas de compreender a si mesmo seu papel e sua identidade social (Martín-Baró, 1996 ).

Acreditamos que apostar no compromisso ético de transformação e justiça social da Psicologia Social poderá potencializar a diversidade epistemológica existente no mundo, na tentativa de recuperar e valorizar a riqueza de experiências que resistiram com êxito aos processos históricos de desumanização. Além disso, se a Psicologia Social reflete sobre diferentes estratégias de intervenção na dinâmica social, em uma direção emancipatória de sujeitos subalternizados, entendemos e sugerimos a afirmação da interseccionalidade como uma ferramenta metodológica-epistemológica potente de identificação dos problemas sociais e/ou respostas às históricas injustiças sociais (Collins, & Bilge, 2020 ).

Por conseguinte, o resgate do compromisso social na produção do conhecimento em Psicologia Social a partir de uma perspectiva interseccional, em nossa compreensão, diz respeito a construir uma agenda política comprometida com a transformação da realidade social de pessoas historicamente marginalizadas, utilizando-se de ferramentas metodológicas e epistemológicas que coloquem no centro das análises as relações de poder como possibilidade de desestabilização dos diferentes sistemas de opressão, observados não somente na dinâmica social, mas também na própria produção do conhecimento.

A fim de ampliar esse debate, alguns questionamentos e desafios epistêmicos ainda nos chamam atenção para que possamos dar continuidade às nossas reflexões. Em consonância com Santos ( 2009 ), indagamos: o que levou o campo científico, nas últimas décadas, a produzir uma dominação de epistemologias que silenciaram e negaram determinadas reflexões epistemológicas do contexto cultural, político e da própria produção sistemática do conhecimento? Quais foram as consequências concretas desse apagamento? Podemos afirmar a existência de epistemologias alternativas? Em que momento a interseccionalidade pode ser afirmada como uma ferramenta epistemológica alternativa à Psicologia Social para a interpretação da realidade por meio do conhecimento produzido?

“Interseccionafricando” o olhar da Psicologia Social: Contribuições dos estudos de decolonialidade para o pensamento social

O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão europeia foi também um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos. Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista ou, durante boa parte do nosso século, a expansão comunista (neste domínio tão moderno quanto a capitalista); e também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu e extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central europeu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais)

(Santos, 1994 , p. 104).

Em consonância com Boaventura de Sousa Santos, vários autores têm nos chamado atenção para que possamos nos apropriar e (re)conhecer os conhecimentos produzidos por autoras(es) negras(os), com deficiências, mulheres, indígenas, LGBTs etc. Sob o risco de (re)produzir o genocídio epistêmico que inviabiliza a construção de uma prática científica mais horizontal, plural, humanizada e democrática, ao deslegitimar os saberes sistematizados por experiências que resistiram às mais diversas formas de violências perpetradas historicamente, em prol da manutenção da hegemonia dos paradigmas universais da modernidade.

A localização dessa produção de saber a partir dessa relação de poder pode corroborar o genocídio epistêmico. Grosfoguel ( 2016 ) chama a nossa atenção para a existência do privilégio epistêmico, que tem produzido, historicamente, a inferiorização de conhecimentos realizados por diferentes corpos políticos, sobretudo aqueles que são atravessados por injustiças históricas, para assegurar a manutenção de projetos hegemônicos, cabendo aos homens ocidentais (brancos, heterossexuais, burgueses, sem deficiências etc.) a definição do que é verdade pela posição de privilégio que ocupam.

Dessa forma, além das barreiras estruturais reproduzidas no cotidiano e que inviabilizam o acesso dessas populações aos lugares de produção do conhecimento, esses sujeitos precisam lidar com o apagamento dessas produções (Ribeiro, 2019 ). Não é por acaso que esses saberes são negligenciados e tidos como subalternos. São poucos os currículos de formação que contemplam de forma satisfatória os debates de raça, gênero, sexualidade, classe, deficiências e suas intersecções, causando um atraso irreparável em discussões que poderiam estar mais avançadas, mas que pela não difusão dessas produções acaba por assegurar a manutenção do genocídio cultural, moral, político e epistemológico dessas populações.

Destarte, Dussel ( 2016 ) destaca a importância desse campo de produção para um “projeto de libertação”, uma vez que reconhece que, em decorrência dos processos de colonização, diferentes culturas foram silenciadas, desprezadas e negligenciadas ao longo do contexto histórico. Suas reflexões são válidas para nossas discussões, visto que, para o autor em questão, tais experiências não foram exterminadas por esses processos, elas resistiram e continuam vivas, (re)conhecendo a riqueza de vivências não consideradas pelo colonialismo. Tendo em vista que as experiências de sujeitos atravessados por distintos marcadores sociais da diferença são alvos de inúmeras dinâmicas de opressão, e que as mesmas estão localizadas na exterioridade da modernidade, torna-se importante a publicização e visibilização dessas produções como importante ferramenta de luta política por legitimidade e (re)conhecimento em um processo que é transmoderno e considera diferentes formas de ser e estar no mundo como possibilidades legítimas de expressão humana.

Considerando, também, as proposições do projeto de libertação refletido por Dussel ( 2016 ), precisamos nos atentar e levar em consideração as reflexões trazidas por Spivak ( 2010 ), em Pode o Subalterno Falar? , pois elas complementam e, ao mesmo tempo, complexificam nossas discussões. Ao provocar esse questionamento, Spivak nos faz refletir sobre nossas posições como pesquisadores. De acordo com a autora, assumimos uma posição em que, nessa relação saber/poder, julgamos estar legitimados a falar do/pelo outro e, a partir de suas experiências, produzindo discursos de contra-hegemonia que funcionam como ferramentas políticas de resistência. Colocar-se nesses lugares e posições, reforçando o status quo de poder na produção de conhecimento, sem possibilitar a criação concreta de espaços de escuta e fala de nossos participantes de pesquisa, é (re)produzir e atualizar as mesmas estruturas e sistemas de opressão que se tensiona.

Propomos um movimento que seja capaz de reconhecer e tornar legítimos os sujeitos com experiências dissidentes como porta-vozes de suas vivências, atentando-se para a sua posição de subalternidade frente à norma instituída, sobretudo no que tange à própria produção do conhecimento (Spivak, 2010 ; Queiroz, & Prado, 2018 ). Ao propor o reconhecimento e apropriação de conhecimentos produzidos por esses sujeitos, estamos sugerindo que a visibilidade de saberes antirracistas, anticapacitistas, antiheterossexistas etc. pode fortalecer o debate público e político, na academia, nas mídias e em diferentes espaços sociais (Ribeiro, 2019 ).

Acrescentamos a essas reflexões os tensionamentos realizados por Sabah Mahmood ( 2006 ). Na produção do conhecimento nos colocamos como mediadores entre nossos participantes e a construção de saberes contra-hegemônicos de resistência. Levando em consideração os apontamentos realizados por Spivak ( 2010 ) e Mahmood ( 2006 ), ao refletir sobre nossos objetos de pesquisa e as experiências vivenciadas por eles, devemos ampliar nossos olhares, como pesquisadores, para a forma que estamos compreendendo diferentes formas de organização social por meio de nossas lentes analíticas.

Dito isso, levantamos o seguinte questionamento: ao ocupar o lugar de pesquisadores “autorizados” socialmente a falar sobre a experiência do/pelo outro, criando uma rede discursiva que considera que a “libertação” dessas experiências de subalternidade estaria localizada na subversão e rejeição aos sistemas que colocam diferentes sujeitos sociais em posições de inferiorização social, não estaríamos desconsiderando os sentidos que são constitutivos dessas formas de organização? Portanto, “ será que um conhecimento íntimo de estilos de vida distintos do meu questiona a minha própria certeza sobre aquilo que prescrevo para os outros como sendo um modo de vida superior? ” (Mahmood, 2006 , p. 152).

Mesmo que tal reflexão seja considerada paradoxal para algumas correntes feministas – pois reivindica a ocupação de mulheres, por exemplo, a espaços historicamente concedidos a homens, do mesmo modo que lhes atribui o ensinamento de conteúdos que asseguram a manutenção de suas experiências de subordinação – salientamos a perspectiva da autora ao considerar que não se trata de abandonar as proposições que consideram a luta contra as opressões de grupos historicamente vulnerabilizados e marginalizados em nosso cotidiano, a partir de perspectivas que nos auxiliem a criar estratégias de subversão e enfrentamento aos ditames das lógicas que colocam mulheres, negros, não heterossexuais etc. em posições de subalternidade (Mahmood, 2006 ).

Ao contrário disso, Mahmood ( 2006 ) nos convida a “ deixar em aberto as possibilidades das nossas certezas políticas e analíticas serem transformadas no processo de movimento não liberais ” (p. 154), e de as experiências subalternas representarem uma nova possibilidade, para além do que construímos como saber político/científico de tradução e compreensão, de nos ensinar algo a mais sobre as formas de organização, resistência e agência dos sistemas produtores de opressão. Frente a esse cenário, podemos depreender que se uma das astúcias da norma é não falar sobre si, mas exigir que as experiências que escapam aos modelos normativos (de raça, sexualidade, gênero, classe, deficiências etc.) ofereçam explicações sobre suas vivências dissidentes (Seffner, 2013 ), capturar tais experiências a partir desse lugar que Mahmood ( 2006 ) nos convida a ocupar, como pesquisadores, pode ser considerado uma potente ferramenta política para fazer a norma falar sobre sua forma de organização e dinâmicas que asseguram a manutenção de privilégios de uns sobre outros.

Segundo Crenshaw ( 2002 ), a interseccionalidade funciona como uma importante ferramenta política para compreender como as ações e políticas específicas produzem diferentes tipos de opressões que transitam no decorrer de diferentes eixos de subordinação, tendo como uma de suas funcionalidades o desempoderamento e, consequentemente, a manutenção das hierarquias sociais. No que tange à origem interligada das opressões, Patrícia Hill Collins ( 2016 ) complementa, explicitando que compreender as violências produzidas historicamente em intersecção com outras opressões é importante, pois muda o ponto de partida das nossas investigações: de uma busca que tenta oferecer explicações sobre os elementos que constituem cada estrutura de opressão (de raça, classe, gênero, sexualidade etc.), para uma perspectiva que considere os elos entre esses sistemas sem produzir a hierarquização de opressões. Além disso, para a autora, a possibilidade de considerar as experiências subalternas a partir desses múltiplos eixos de subordinação traz a perspectiva humanista na estruturação e organização da sociedade. Portanto, nessa perspectiva, a interseccionalidade não é vista como um luxo, mas como uma ferramenta epistêmico-metodológica necessária.

De acordo com Collins ( 2016 ), esse processo e necessidade de se produzir análises que colocam no cerne das discussões a mulher negra é fundamental por: resistir diariamente aos processos de desumanização e desvalorização da subjetividade do oprimido como estruturais dos sistemas de dominação, e pela possibilidade da rejeição das violências psicológicas internalizadas ao longo de todo processo histórico. Nesse sentido, a autora em questão coloca que a autodefinição – como sendo o desafio aos processos de legitimação do conhecimento político, que auxiliaram na manutenção de perspectivas estereotipadas vivenciadas por mulheres afro-americanas no cotidiano – e a autoavaliação – entendida como processo que avalia as autodefinições produzidas historicamente acerca das condições dessas mulheres, (re)significando-as com imagens autênticas da condição de feminina afro-americanas – são processos necessários para a sobrevivência da mulher negra (mas não só se considerarmos outros marcadores sociais da diferença) na estrutura social que é opressora, pois as experiências marginais têm sido um estímulo à criatividade (Collins, 2016 ).

Em seu texto “Aprendendo com a outsider within: significação sociológica do pensamento feminista negro”, Patrícia Hill Collins ( 2016 ) se propõe a refletir sobre os desafios colocados historicamente para mulheres negras no contexto da academia. Por meio das experiências “marginais”, essas mulheres têm produzido conhecimentos para compreender seu posicionamento e pertencimento no mundo em relação a si mesmas, família e sociedade. Se não foi conferido validade científica para esses saberes ao longo do contexto histórico, na contemporaneidade, sugerimos a importância desse resgate sob o risco de desconsiderar a diversidade epistemológica apagada pelos processos de colonização.

Segundo Collins ( 2016 ), alguns autores apontam que, se por um lado essas experiências podem despertar a força criativa para se pensar as disciplinas acadêmicas, por outro podem ser dolorosas para quem o faz. Um exemplo disso pode ser encontrado nos escritos da memorável Bell Hooks 4 ( 2013 ), ao explicitar sua trajetória intelectual caracterizada, segundo seu relato, como insurgente:

. . . Os alunos brancos (homens) considerados “excepcionais” frequentemente tinham permissão para traçar por si mesmos o curso de sua jornada intelectual, mas dos outros (e particularmente dos grupos marginais) só se esperava que se conformassem. Qualquer falta de conformidade da nossa parte era vista como suspeita, como um gesto vazio de desafio cujo objetivo era mascarar a inferioridade ou um trabalho abaixo do padrão. Naquela época, os alunos oriundos de grupos marginais que tinham permissão para entrar em faculdades prestigiadas e predominantemente brancas eram levados a sentir que não estavam lá para aprender, mas para provar que eram iguais aos brancos. Estávamos lá para provar isso mostrando o quanto éramos capazes de nos tornar clones de nossos colegas. À medida que nos deparávamos com os constantes preconceitos, uma corrente oculta de tensão afetava nossa experiência de aprendizado

(p. 14).

Nosso estudo vai, portanto, na mesma direção da crítica feita a uma visão essencialista sobre a importância de se estudar autoras(es) negras(os), mulheres, não heterossexuais, com deficiências etc. apenas por estarem posicionados socialmente a partir desses marcadores sociais da diferença. Nossa posição é de ruptura com a questão de que, em uma sociedade tão plural e diversa como a nossa, caracterizada pela diversidade de experiências, apenas um grupo seja legitimado a produzir conhecimentos (Ribeiro, 2019 ). Ao tomar a interseccionalidade como ferramenta política que afirma a diversidade epistemológica existente em nosso país, estamos querendo demarcar a possibilidade de acreditar que pessoas negras, não heterossexuais, com deficiências, periféricas, mulheres etc. integram o processo de elaboração e interpretação do mundo e, portanto, auxiliam na construção de uma Psicologia Social concretamente crítica aos processos de exclusão, produção social e estritamente comprometida com a transformação e justiça social.

Cada corrente teórica e fenômeno que são objetos de estudo da Psicologia Social desenvolveram/desenvolvem explicações às necessidades de suas próprias sociedades. Ao se consolidarem no mundo de relações coloniais, conferindo a validade científica produzida por autores que correspondem aos paradigmas universais da modernidade e aos critérios de validade ancorados na falaciosa objetividade e neutralidade do pesquisador frente à realidade pesquisada, essas teorias são convertidas em hegemônicas no contexto internacional, inviabilizando a diversidade epistemológica contidas em outras produções (Carvajal, 2020 ).

Como já dito neste texto, não pretendemos negar ou desmerecer o que Psicólogos Sociais fizeram e continuam fazendo em suas sociedades. Nós queremos posicionar, a partir do contexto brasileiro, uma epistemologia alternativa em Psicologia Social que se utiliza da interseccionalidade para afirmar o nosso compromisso profissional com a transformação social de desigualdades históricas, explicitando a construção de nossa práxis junto às comunidades e explicitando nossos próprios processos de mudança.

A essa perspectiva reafirmamos nossa posição, como pesquisadores, sobre a impossibilidade de se produzir conhecimentos que considerem a objetividade e neutralidade do pesquisador. Adotamos, portanto, um posicionamento que considere a reflexividade, a posicionalidade e a situacionalidade como elementos fundamentais e constitutivos da/na sistematização do conhecimento, pois a produção de conhecimentos a partir dessas posições pode viabilizar a construção de modos criativos de resistência e agenciamento.

Assim, consideramos que a interseccionalidade, como epistemologia alternativa e horizonte primordial à Psicologia Social para a compreensão da realidade, retira-nos das armadilhas e dos riscos de uma história contada numa perspectiva universal. Além disso, acreditamos que o privilégio social provocado por nossos pertencimentos sociais pode viabilizar um processo de privilégio epistêmico, que deve ser confrontado em nossa práxis para que a história não seja escrita pela perspectiva do biopoder. Em seus estudos, Ribeiro ( 2019 ) afirma ser danoso e perverso que, em uma sociedade tão diversa como a nossa, as pessoas não tomem conhecimento e não se apropriem da história das populações que a construíram. Sem dúvidas, nosso posicionamento frente a essas questões dialoga diretamente com essa visão.

Conclusões Provisórias

Partindo dos próprios constructos que foram constitutivos da formação teórica da interseccionalidade, propomos uma mudança conceitual para “interseccionafricanidade” nas práticas e produções em Psicologia Social no contexto brasileiro. Embora tenha se afirmado o compromisso social com populações marginalizadas e vulnerabilizadas historicamente, ainda se observa a supremacia e imposição de saberes hegemônicos em nossas produções acadêmicas e currículos de formação profissional. Acreditamos que a manutenção dessa hegemonia assegura a hierarquização de saberes, inviabilizando uma análise horizontal e mais abrangente dos fenômenos e fatos sociais, além de garantir os processos históricos de apagamento e embranquecimento de saberes subalternos que também precisam ser considerados em suas intersecções.

Estamos sugerindo que uma epistemologia “interseccionafricana” em Psicologia Social poderá partir de proposições que potencializam o aprendizado sobre nossas raízes históricas, por meio de um movimento de apropriação dos processos de desumanização perpetrados contra populações atravessadas por diferentes marcadores sociais da diferença: de raça, gênero, classe, deficiências, sexualidades etc., em nosso país, e que não foram reconhecidos como saberes legítimos. Esses movimentos só se tornam inteligíveis e intencionais a partir da subversão de uma organização epistêmica que pode viabilizar a consciência sobre a existência dessas experiências e o aprendizado com e a partir de .

Assim, acreditamos que africanizar a interseccionalidade no Brasil perpassa, necessariamente, pela apropriação de saberes subalternos que se utilizaram de lentes orientadoras interseccionais no processo analítico, antes mesmo da própria cunhagem do conceito, para tornar inteligíveis os fatos e fenômenos inerentes às diferentes formas de organização social. Tendo isso em vista, acreditamos que assegurar a manutenção de silenciamentos e negacionismos em relação à produção do conhecimento por experiências subalternas, sob a égide de garantir a validade científica, é por si só (re)produzir uma espécie de fixação epistemológica que legitima as inclinações sexistas, cisheteronormativas e racistas, estruturadas historicamente por uma marca ocidental.

No que tange ao (re)conhecimento dessas existências, não se trata de (re)produzir as relações de poder constitutivas das sociedades e relações humanas que legitimam um olhar de compaixão dos grupos dominantes em relação aos grupos dominados. Ao contrário, valoriza-se a potência de grupos subalternizados na construção de uma Psicologia comprometida com a transformação da realidade social, para demarcar um campo de produções que denote o caráter político dessas relações, viabilizando ferramentas que deem conta, concretamente, de desnaturalizar as injustiças, violências e silenciamentos históricos na práxis e na produção do conhecimento em Psicologia Social.

Precisamos, portanto, nos mobilizar na afirmação da interseccionalidade como horizonte primordial para a Psicologia Social, visto que não podemos ignorar em nossa práxis o padrão de violência estrutural (re)produzida contra experiências dissidentes aos paradigmas universais da modernidade. Se o compromisso social pressupõe o trânsito histórico de transformação social em um movimento de crítica a nós mesmos, acreditamos que a interseccionalidade poderá funcionar como mais uma ferramenta político-epistemológica que viabilizará novas perguntas e novas respostas que queremos construir para a contemporaneidade, e para os novos momentos históricos na nossa prática profissional.

Embora tenhamos ciência de que esses saberes se constituem como conhecimentos interdisciplinares, não sendo desenvolvidos especificamente no âmbito da Psicologia Social, acreditamos em sua potência para a afirmação e (re)conhecimento da diversidade epistemológica desse campo, sendo, portanto, um movimento importante e necessário para uma área do conhecimento que se pretende estruturar e se afirmar de forma horizontalizada. Ademais, as críticas estabelecidas neste estudo podem se tornar objetos criticados na arena de disputas pela construção e organização desse campo do conhecimento; e pelas lentes analíticas produtoras de inteligibilidades acerca dos fenômenos e fatos sociais por meio da afirmação, organização e sistematização de outros imaginários sociais (Costa, & Prado, 2016 ).

Por fim, acreditamos que a beleza de ser gente está na possibilidade de conhecer e se apropriar de ações criativas das experiências que sobreviveram com bravura na exterioridade da modernidade e dos processos de desumanização, para fazer frente aos ditames normativos em direção à adoção de uma epistemologia da Psicologia que se pretende emancipatória da realidade de degradação humana.

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  • Spivak, G. C. (2010). Pode o subalterno falar? UFMG.
  • 1
    E aqui acreditamos na interseccionalidade.
  • 2
    Neste caso, estamos nos referindo a modos de ser e estar no mundo posicionados em contextos de subalternidade. Nesse sentido, podemos falar em grupos oprimidos historicamente que se localizam em categorias identitárias de pertencimento racial, sexual, de classe, gênero, deficiências etc., sendo objetos de investimento de sistemas discriminatórios e de opressão (Akotirene, 2019 ).
  • 3
    A tentativa de explicar os fatos e fenômenos sociais por meio da sistematização do conhecimento perpassa, obrigatoriamente, por nossas crenças, valores, sentimentos, inquietações etc. A objetividade e neutralidade do pesquisador frente à realidade observada é, portanto, falaciosa.
  • 4
    Ao fazer menção às reflexões de autores do campo educacional, demarcamos as aproximações epistemológicas profícuas entre o campo da Psicologia Social Sócio-histórica e Pedagogia Histórico-crítica (Saviani, 1944 ) na produção de conhecimentos emancipatórios da realidade de desigualdades sociais e subalternidade humana.
  • Como citar:
    Magno-Silva, W. (2024). Interseccionalidade como horizonte primordial à Psicologia Social: Reflexões sobre diversidade epistemológica. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003266845
  • How to cite:
    Magno-Silva, W. (2024). Intersectionality as the primordial horizon to social psichology: reflections on epistemological diversity. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003266845
  • Cómo citar:
    Magno-Silva, W. (2024). Interseccionalidad como horizonte primordial para la psicología social: reflexiones sobre la diversidad epistemológica. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-13. https://doi.org/10.1590/1982-3703003266845

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Nov 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2022
  • Aceito
    13 Mar 2023
  • Revisado
    12 Fev 2023
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