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(Des)compassos do Trabalho Psicológico no Acompanhamento Familiar no CRAS

(Dis)order of the Psychological Work Within Family Care at CRAS

(Des)compás del trabajo psicológico en el Seguimiento Familiar en el Centro de Referencia de Asistencia Social (CRAS)

Resumo:

Esta pesquisa teve como objetivo investigar as perspectivas dos psicólogos dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) que compõem a equipe de Proteção e Atenção Integral à Família (PAIF) a respeito do seu trabalho no Acompanhamento Familiar oferecido para famílias com membros com transtornos mentais. Oito psicólogos que atuavam nos CRAS de um município no interior de Minas Gerais participaram do estudo. O instrumento utilizado foi um roteiro de entrevista semiestruturada, com a subsequente análise de conteúdo temática. As categorias temáticas foram analisadas à luz da literatura específica da área. De maneira geral, os resultados indicaram que os psicólogos se sentem despreparados para o exercício de sua função no CRAS, uma vez que a formação específica e continuada em Psicologia não ofereceu subsídios adequados para o conhecimento da atuação no campo da Assistência Social. A natureza (psico)terapêutica do trabalho é discutida, assim como a necessidade de formações continuadas para a atuação. Ressalta-se a necessidade de mais pesquisas que abordem a formação em Psicologia e suas relações com a Assistência Social, bem como os impactos desse despreparo na prática dos profissionais, de maneira a fomentar maior satisfação pessoal/profissional e, consequentemente, aprimorar a assistência oferecida à comunidade.

Palavras-chave:
Atuação do Psicólogo; CRAS; Psicologia; Psicologia Social

Abstract:

This study aims to investigate the views of psychologists who worked at Social Assistance Reference Centers (CRAS) associated with the Comprehensive Family Care Program (PAIF) on their work with the aforementioned program. Overall, eight psychologists who worked at CRAS units in small municipalities in Minas Gerais for at least one year participated in this research. The instrument used was a semi-structured interview script, and the data were analyzed under the content analysis (thematic) method. Thematic categories were analyzed based on the specific literature. Results indicate that the psychologists generally felt unprepared to work at CRAS since their degree in Psychology provided inadequate knowledge to deal with Social Assistance issues. This study discusses the (psycho)therapeutic nature of their practice and the need for ongoing training for their proper performance. This study highlights the need for further research that addresses the links between education in Psychology and Social Assistance and the impacts of said unpreparedness on the performance of those professionals. Such research might provide more professional/personal satisfaction and, in turn, improve the quality of the offered service.

Keywords:
Psychologist’s Professional Performance; Social Assistance Reference Centers; Psychology; Social Psychology

Resumen:

Este estudio tuvo la intención de conocer las perspectivas de los psicólogos de los Centros de Referencia de Asistencia Social (CRAS) que forman parte de los equipos del Protección y Atención Integral a la Familia (PAIF) acerca del seguimiento de familias con miembros portadores de trastornos mentales. Ocho psicólogos que actuaban en los CRAS de un municipio del interior del estado de Minas Gerais (Brasil) participaron en el estudio. El instrumento utilizado fue un guion de entrevistas semiestructuradas; y, para análisis de datos, se utilizó el análisis de contenido temático. Las categorías temáticas se analizaron a la luz de la literatura específica del campo. De modo general, los resultados indicaron que los psicólogos no se sienten preparados para desempeñar la función en el CRAS, puesto que la formación en Psicología no ofreció conocimientos adecuados para actuar en el campo de la asistencia social. Se discuten la naturaleza (psico)terapéutica del trabajo y la necesidad de formación continua para esta actuación. Se destaca la necesidad de más investigaciones que tratan de la formación en Psicología y sus relaciones con la asistencia social, y los impactos de esta falta de preparo en la práctica de los profesionales, de modo a promover una satisfacción personal/profesional y, consecuentemente, optimizar la asistencia ofrecida a la comunidad.

Palabras clave:
actuación del psicólogo; CRAS; psicología; piscología socia

Introdução

Na segunda metade dos anos 1980, com a aprovação da Constituição Federal em 1988, temas referentes à descentralização e ao reordenamento do tripé da seguridade social (saúde, educação e assistência social) foram destacados, dando-se notoriedade à participação social e ao poder local como mecanismos democratizadores da vida política nacional. Aprovada em 1993, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) regulamentou os artigos 203 (definição dos objetivos da Assistência Social) e 204 (as ações da Assistência Social devem ser realizadas com recursos do orçamento da seguridade social) da Constituição. Em síntese, esses artigos configuram a Assistência Social como dever do Estado e direito do cidadão (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. (1988, 5 de outubro). Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/con...
).

Outro marco normativo foi a Política Nacional de Assistência Social (PNAS) promulgada em 1995, que propagou o conteúdo específico dessa política ao definir suas funções, usuários, ações, prioridades e outras diretrizes. Por intermédio da Secretaria Nacional do Desenvolvimento Social (SNAS) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), foi elaborada a PNAS com a finalidade de implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) (Beato et al., 2011Beato, M. S. F., Sousa, L. A., Florentino, B. R. B., Junior, W. M., Neiva, K. M., & Toffaneli, V. F. (2011). A psicologia e o trabalho no CRAS. Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais. ).

A iniciativa foi resultado da IV Conferência Nacional da Assistência Social, realizada em Brasília em 2003, e destacou o compromisso do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), extinto em 2019, da SNAS e do CNAS em materializar as diretrizes da LOAS e dar efetividade à Assistência Social como política pública. A construção dessa política pública considera três dimensões de proteção social: as pessoas, as circunstâncias em que elas vivem e seu núcleo de apoio elementar, ou seja, a família (MDS, 2012 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2012). Orientações técnicas sobre o PAIF: Volume 2 – Trabalho social com famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Orientacoes_PAIF_2.pdf
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).

Para executar o SUAS, em 2004, foi estruturada a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (NOB/SUAS), que reconheceu a existência de respostas públicas diferenciadas e caracterizou o SUAS como sistema de atenção hierarquizado a partir de níveis distintos de proteção social e complexidade. Os principais níveis definidos foram a Proteção Social Básica, composta pelo Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), que desenvolve ações para a proteção da família e indivíduos em situação de risco pessoal e social; e a Proteção Social Especial, composto pelo Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), que realiza ações para as famílias e usuários cujos direitos foram violados (MDS, 2005 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004): Norma Operacional Básica (NOB/SUAS). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
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). Diferente do CREAS, o CRAS deve atuar no território dos usuários, não se limitando este ao espaço geográfico de residência, mas compreendendo as relações de reconhecimento, afetividade e identidade entre os indivíduos que compartilham a vida em determinada localidade (MDS, 2009 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2009). Orientações Técnicas Centro de Referência da Assistência Social – CRAS. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/orientacoes_Cras.pdf
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). Dessa forma, os territórios possibilitam a constituição de comunidades, isto é, de relações de solidariedade, cumplicidade, pertença e identidade entre indivíduos que, por isso, podem auxiliar na realização da gestão dos recursos locais (Lira & Chaves, 2016 Lira, T. de M., & Chaves, M. do P. S. R. (2016). Comunidades ribeirinhas na Amazônia: Organização sociocultural e política. Interações, 17(1), 66–76. https://doi.org/10.20435/1518-70122016107
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). Assim, o CRAS também atua atendendo as comunidades consideradas tradicionais, como os povos ribeirinhos, indígenas e a população da área rural.

Visando a explicar e padronizar os serviços e os objetivos do CRAS e CREAS, foi elaborada a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, que define o serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF), criado em 2004 e reformulado e reorganizado em 2009, como um serviço de oferta obrigatória pelo CRAS, o qual tem como principal função a definição dos públicos-alvo do PAIF: a) famílias em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, ou de vínculos de pertencimento ou de sociabilidade fragilizados; b) famílias que apresentam risco social residentes nos territórios de abrangência dos CRAS, incluindo famílias beneficiárias de programas de transferência de renda e benefícios assistenciais; c) famílias que atendem os critérios de elegibilidade a tais programas ou benefícios, mas que ainda não foram contempladas; d) famílias em situação de vulnerabilidade em decorrência de dificuldades vivenciadas por algum de seus membros; e e) pessoas com deficiência e/ou pessoas idosas em situações de vulnerabilidade e risco social (MDS, 2005 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2005). Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004): Norma Operacional Básica (NOB/SUAS). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/PNAS2004.pdf
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; MDS, 2014 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2014). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
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).

O PAIF tem como principal atividade o serviço de Acompanhamento Familiar, conjunto de intervenções que pretendem permitir que as famílias tenham um espaço para refletir sobre suas realidades, construir novos projetos de vida e modificar suas relações intra e extrafamiliares (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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). Esse serviço pretende fortalecer as funções protetivas das famílias, prevenir a ruptura de seus vínculos, promover o acesso e usufruto de direitos e contribuir na melhoria de sua qualidade de vida (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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). A Tipificação Socioassistencial define como um dos seus públicos prioritários as pessoas com deficiências, incluindo nesta categoria os indivíduos com transtorno mental, uma vez que podem apresentar prejuízos mentais, intelectuais e/ou sensoriais que dificultem sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (Costa, Marcelino, Duarte, & Uhr, 2016 Costa, N. R., Marcelino, M. A., Duarte, C.M.R., & Uhr, D.(2016). Proteção social e pessoa com deficiência no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, 21(10), 3037–3047. https://doi.org/10.1590/1413-812320152110.18292016
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; MDS, 2016 Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Caderno de orientações: Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e fortalecimento de vínculos – articulação necessária na Proteção Social Básica. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Cartilha_PAIF_1605.pdf
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; Vaitsman & Lobato, 2017 Vaitsman, J., & Lobato, L.V. C. (2017). Benefício de Prestação Continuada (BPC) para pessoas com deficiência: Barreiras de acesso e lacunas intersetoriais. Ciência & Saúde Coletiva, 22(11), 3527–3536. https://doi.org/10.1590/1413-812320172211.20042017
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). Aymar et al. ( 2021 Aymar, M. L. F. A., Francisco, M. M., Andrade, I. A. F., Silva, L. S. R., Simões, E. M. S., Cruz, R. R. L (2021). Desafios da família cuidando da pessoa com transtorno mental. Nursing, 24(283), 6717–6730. https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-1371444
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) mencionaram que as pessoas com transtorno mental podem apresentar comportamentos disruptivos (autodestruição, agressividades e hábitos inadequados de higiene) que necessitam de acompanhamento intensivo por parte dos seus familiares e ou cuidadores visando a estimular o convívio social – mas cabe destacar que a pessoa acometida pode vivenciar situações de constrangimento e preconceito.

Consequentemente, a condição da pessoa com deficiência pode gerar a sobrecarga nos familiares e/ou cuidadores, gerando sentimentos de ansiedade, raiva, culpa, medo e angústia nos cuidadores. Por isso, e devido à sobrecarga de atividades, o cuidador também pode desenvolver sofrimento mental e vivenciar comprometimento na sua própria vida social, ocupacional e financeira. O MDS ( 2014 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2014). Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Normativas/tipificacao.pdf
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) estabelece que as famílias que possuem membros com transtorno mental necessitam igualmente estar inseridos no Acompanhamento Familiar, preferencialmente em grupos no CRAS, com o objetivo de estabelecer espaços de escuta e de troca de vivências a fim de enfrentar as adversidades de ser cuidador de familiar que apresenta transtorno mental ou algum outro tipo de deficiência.

Além de oferecer espaços coletivos, o MDS ( 2016 Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Caderno de orientações: Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e fortalecimento de vínculos – articulação necessária na Proteção Social Básica. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Cartilha_PAIF_1605.pdf
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) descreve que no serviço de Acompanhamento Familiar devem existir atendimentos individualizados. A Resolução n. 17, de 20 de junho de 2011 Resolução CNAS n° 17, de 20 de junho de 2011. (2011, 20 de junho). Ratificar a equipe de referência definida pela Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência Social – NOB-RH/SUAS e Reconhecer as categorias profissionais de nível superior para atender as especificidades dos serviços socioassistenciais e das funções essenciais de gestão do Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Conselho Nacional de Assistência Social. http://blog.mds.gov.br/redesuas/resolucao-no-17-de-20-de-junho-de-2011/
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, define que o psicólogo deve compor obrigatoriamente a equipe de referência. No entanto, destacou-se que a psicoterapia não deve ser realizada no CRAS, ou seja, as demandas em saúde mental precisam ser encaminhadas para a rede intersetorial, em especial para a saúde. Nota-se, portanto, um impasse quanto à atuação do psicólogo na Assistência Social, uma vez que a identidade do psicólogo sempre esteve relacionada à atividade clínica (Ferreira Neto, 2017Ferreira Neto, J. L. (2017). Psicologia, políticas públicas e o SUS (2a ed.). Escuta. ; Sales, & Maciel, 2019 Sales, A. R. P., & Maciel, R. H. (2019). A atuação do psicólogo na assistência social brasileira. Trends in Psychology, 27(1), 233–247. https://doi.org/10.9788/TP2019.1-17
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).

Solon ( 2018 Solon, A. F. A. C. (2018). Desafios da trajetória da psicologia nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Repositório institucional da UFRN. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/26967
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) acrescenta que na Assistência Social no Brasil, em meados de 2007 e 2008, ainda eram encontrados psicólogos que realizavam psicoterapia no CRAS. No entanto, atualmente, estudos têm apontado que tais profissionais estão se apropriando do conhecimento de que não se deve realizar a psicoterapia nesse contexto, ainda que exista a demanda de atividades clínicas por parte dos usuários do CRAS (Carretero, 2018 Carretero, G. H. (2018). Atuação de psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS: (Im)possibilidades [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Repositório institucional da PUC-SP. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/21185
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; Flor & Goto, 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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; Solon, 2018 Solon, A. F. A. C. (2018). Desafios da trajetória da psicologia nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Repositório institucional da UFRN. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/26967
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). A literatura da área (Carretero, 2018 Carretero, G. H. (2018). Atuação de psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS: (Im)possibilidades [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Repositório institucional da PUC-SP. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/21185
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; Solon, 2018 Solon, A. F. A. C. (2018). Desafios da trajetória da psicologia nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Repositório institucional da UFRN. https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/26967
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) tem reforçado o MDS ao citar que o psicólogo do CRAS não deve realizar a psicoterapia e que o psicólogo do PAIF deve focar seus atendimentos realizando orientações e esclarecimentos a respeito dos direitos sociais básicos. Tais práticas parecem não ser suficientes para responder às demandas referentes aos vínculos fragilizados dos usuários do CRAS. Carretero ( 2018 Carretero, G. H. (2018). Atuação de psicólogos nos Centros de Referência de Assistência Social – CRAS: (Im)possibilidades [Tese de doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Repositório institucional da PUC-SP. https://repositorio.pucsp.br/jspui/handle/handle/21185
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) descreve que as principais demandas dos usuários que procuravam o psicólogo no CRAS envolviam dificuldades nos relacionamentos familiares (discussões entre pais e filhos devido aos problemas relacionados à aprendizagem, dificuldades de afetividade devido à ausência de diálogos entre os cônjuges ou entre pais/responsáveis e filhos, e problemas de saúde mental). Além disso, Scott, Santos, Sousa, Solon, & Oliveira ( 2020 Scott, J. B., Santos, A. G., Sousa, B. S., Solon, A. F. A. C., & Oliveira, I. F. (2020). Articulações da psicologia no território: Intersetorialidade na proteção social básica. Psicologia Política, 20(49), 654–666. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2020000300015#:~:text=Cabe%20ressaltar%20que%20a%20busca,de%20acompanhamento%20em%20rede%2C%20considerando
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) revelaram em seu estudo que os profissionais de psicologia ainda percebiam demandas dos usuários relacionadas à saúde mental.

Silva e Albanese ( 2020 Silva, A. C. R., & Albanese, L. (2020). Formação acadêmica e atuação do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000400004&lng=pt&tlng=pt
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) identificaram que os psicólogos ainda têm a percepção de que a formação em psicologia privilegia a área clínica, que a universidade não prepara o aluno para trabalhar com áreas menos favorecidas e que existe uma lacuna na formação em Psicologia Social nos cursos de formação. Diante do exposto, este estudo teve como objetivo investigar as perspectivas dos psicólogos dos CRAS que compõem a equipe do PAIF a respeito do seu trabalho no Acompanhamento Familiar oferecido para famílias de membros com transtornos mentais.

Aspectos Metodológicos

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo exploratório e descritivo de corte transversal com enfoque qualitativo. De acordo com Turato ( 2013Turato, E. R. (2013). Tratado da pesquisa clínico-qualitativa: Construção teórico-epistemológica, discussão comparada e aplicação nas áreas da saúde e humanas (6a ed.). Vozes. ), a pesquisa qualitativa investiga os fenômenos em seus ambientes naturais com intuito de interpretá-los a partir do significado que as pessoas lhes atribuem. Esse enfoque de pesquisa exige a produção de uma análise sistemática e aprofundada cuja matéria-prima são as opiniões, valores, crenças, relações e ações humanas e sociais.

Cenário e Participantes

De acordo com o IBGE ( 2020 Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020). IBGE Cidades e Estados [Online]. https://cidades.ibge.gov.br/
https://cidades.ibge.gov.br/...
), a cidade onde foi desenvolvida a pesquisa tinha aproximadamente 337.092 habitantes no momento da coleta dos dados. Além disso, possuía 331 bairros urbanos e rurais. Outra informação acerca da referida cidade é que havia oito CRAS disponíveis para atendimento de sua população.

Segundo as informações repassadas pela Secretaria 1 1 Comunicação pessoal fornecida pelo Diretor do local onde foi realizada a pesquisa em 08/07/2020. responsável pela oferta da Assistência Social, existiam 23.361 famílias consideradas em situação de vulnerabilidade social por meio do cadastro único. Além disso, os oito CRAS daquela cidade tinham 8.787 pessoas com deficiências inscritas, sendo 1.589 inscritas por transtorno mental. O total de famílias inseridas no Acompanhamento Familiar pela equipe do PAIF é de 1.909, sendo que 893 famílias participavam de modo regular dos grupos do PAIF e 41 pessoas com deficiência participavam do grupo do PAIF ativamente. Cabe mencionar que, apesar de existirem 41 pessoas com deficiência, apenas 15 familiares dos oito CRAS participavam ativamente do Acompanhamento Familiar.

Naquela cidade, a Secretaria apresenta gestão descentralizada e participativa do SUAS, que gerencia a Política de Assistência Social do município por intermédio de dois tipos de proteção: proteção social básica e proteção social especial. Os CRAS encontram-se situados estrategicamente em bairros considerados socialmente vulneráveis. Vale ressaltar que, dos oito CRAS existentes naquele município, apenas três ofereciam atendimentos para a zona rural.

Para atender a esses territórios, cada CRAS possuía duas equipes, sendo que uma prestava atendimento no período matutino e a outra no período vespertino. Cada uma delas possuía um coordenador, um assistente social, um psicólogo e um agente social. Todos os CRAS tinham uma recepção, uma sala de coordenação e, no mínimo, duas salas para atendimentos, as quais eram divididas entre os agentes sociais, assistentes sociais e psicólogos. Participaram da pesquisa oito psicólogos que faziam parte do quadro de profissionais da equipe do PAIF, tendo sido selecionado um psicólogo de cada sede institucional do CRAS.

Critérios de inclusão: graduação completa em Psicologia; servidores efetivos ou contratados das prefeituras municipais; atuar como psicólogo no CRAS há pelo um ano.

Critérios de exclusão: profissionais de outras áreas que não a Psicologia; psicólogos que atuavam no CRAS, mas no momento estavam de licença ou afastamento do trabalho.

O Tabela 1 apresenta as características gerais dos participantes.

Tabela 1
Características dos participantes.

Instrumentos

Foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada pelas pesquisadoras, cujas perguntas estavam relacionadas aos seguintes temas: dados sociodemográficos; funcionamento do serviço de Acompanhamento Familiar; perspectivas das famílias em relação ao trabalho do psicólogo no Acompanhamento Familiar; perspectivas do psicólogo acerca das demandas das famílias.

Procedimentos de coleta de dados

Inicialmente uma das coautoras deste estudo entrou em contato com a secretaria ligada à prefeitura municipal para fornecer explicações a respeito da pesquisa e obteve a autorização para realizá-la nos oito CRAS de uma cidade do interior do estado de Minas Gerais. Mediante anuência dos participantes, foi marcado um horário individual para cada um, de acordo com a sua disponibilidade e sem prejuízo no exercício e funcionamento de seu trabalho. Na data agendada, foi explicado e assinado o Termo de Consentimento Livre Esclarecido. A coleta de dados foi realizada em salas do CRAS que ofereciam as devidas condições de sigilo e privacidade.

Procedimentos de análise de dados

A análise de dados foi realizada por meio da análise de conteúdo de Braun e Clarke ( 2006 Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77–101, https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1191/1478088706qp063oa
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). Esses autores descreveram seis etapas que compõem o exame dos dados: a) familiarização com os dados; b) geração de códigos iniciais; c) busca de temas; d) revisão de temas; e) definição e nomeação de temas; e f) produção do relatório.

Primeiramente, a familiarização com os dados ocorreu por meio das entrevistas, que foram transcritas de maneira integral e literal, constituindo o corpus de pesquisa. Depois da transcrição, foi realizada a leitura flutuante de todo o material, possibilitando a visualização da totalidade dos conteúdos das falas dos participantes. Em seguida, foi feita a organização dos dados, que possibilitou a geração de códigos iniciais e busca de temas; e, ato contínuo, as etapas cinco e seis consistiram, respectivamente, no agrupamento das temáticas correlatas em categorias e subcategorias e na subsequente produção dos textos referentes a cada uma delas.

Para compreender as possibilidades e as dificuldades da atuação do psicólogo no Acompanhamento Familiar, foi utilizada a literatura recente e específica da área de maneira a dialogar com os dados encontrados e possibilitar um entendimento adequado sobre o tema. Sendo assim, as autoras recorreram a livros, documentos elaborados pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) e pelo MDS, bem como a artigos científicos.

Considerações éticas

Esta pesquisa foi realizada segundo as exigências éticas para as pesquisas com seres humanos, estando amparada na resolução nº 510, de 07/04/2016, do Conselho Nacional de Saúde, sendo aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Resultados e Discussão

A seguir serão apresentadas e discutidas as categorias e subcategorias temáticas elaboradas neste estudo.

Categoria 1: A trajetória profissional dos psicólogos do CRAS

A presente categoria diz respeito à maneira como os participantes chegaram até o trabalho que desempenham no CRAS. A primeira subcategoria se refere à entrada dos psicólogos no CRAS , que se deu por meio de processo seletivo, sendo contrato celetista ou concurso público.

Os participantes relataram que não tiveram a oportunidade de escolher o local e o serviço que iriam desempenhar, ou seja, foram encaminhados/alocados segundo as necessidades da gestão daquele município, sem saber se o trabalho estava de acordo com o seu perfil e sua orientação profissional. Resultados semelhantes foram descritos por Cordeiro e Curado ( 2017 Cordeiro, M. P., & Curado, J. C. (2017). Psicologia na Assistência Social: Um campo em formação. Psicologia & Sociedade, 29, e169210. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29169210
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), cujo estudo demonstrou que os psicólogos vinham a saber que trabalhariam no CRAS apenas após a aprovação no concurso.

Nota-se, portanto, que o tipo de processo seletivo envolvido na contratação de profissionais para o CRAS não possibilitava oportunidade para escolha baseada no interesse e na motivação pessoal dos candidatos, o que parece ter acarretado consequências negativas no envolvimento destes profissionais com a prática. Um exemplo pertinente a esse fato é: “ Na verdade, não foi uma escolha. Na época que eu prestei esse concurso, não era para esse cargo especificamente, para o cargo que eu tinha prestado; e aí, quando eles me chamaram, eu tava desempregada e me chamaram ” (Ísis).

Tal fala está em consonância com Silva e Albanese ( 2020 Silva, A. C. R., & Albanese, L. (2020). Formação acadêmica e atuação do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000400004&lng=pt&tlng=pt
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) que ressaltaram em seu estudo o fato de que os psicólogos que ingressavam para trabalhar no CRAS por ser a única oportunidade de entrar no mercado de trabalho em determinado momento, de modo que que não tinham interesse genuíno de atuar no CRAS.

O trecho anterior também serve para ilustrar a segunda subcategoria, que trata da escolha profissional . Dessa forma, nenhum participante havia trabalhado na área da Assistência Social antes de ingressar no CRAS, possuindo experiências profissionais diversificadas (empresas, escolas, projetos sociais e até mesmo na própria prefeitura, mas em outras secretarias, como a de saúde, ou em clínicas particulares).

A terceira subcategoria refere-se às dificuldades ao ingressar no CRAS , tais como: a) não ter participado de processos formativos antes do início do trabalho; b) não conhecer o serviço por não ter sido abordado durante a graduação; c) falta de acolhimento por parte dos funcionários; d) dificuldade de compreender seu papel na instituição; e e) falta de espaço físico adequado para trabalhar. Um trecho de entrevista exemplifica o exposto: “ No começo eu senti um pouco porque eu era muito clínica, eu ficava muito no consultório, então até eu entender todas as demandas sociais, as questões das políticas públicas, assim, foi um pouco difícil ” (Daniela).

Uma política pública que preconiza a interdisciplinaridade como elemento de atuação diante das vulnerabilidades sociais tem a obrigação de apoiar as suas equipes de trabalho por meio de capacitações, materiais, instrumentais e outras formas de educação permanente e contínua. Se as equipes têm o compromisso de investir na atuação interdisciplinar, também têm o direito de serem preparadas e assistidas para tal, especialmente quando se considera que os cursos de Psicologia nem sempre oferecem elementos teórico-metodológicos ligados às diversas políticas públicas. Torna-se interessante sugerir que haja, no SUAS, reuniões, momentos destinados às discussões de concepções, casos, metodologias, instrumentais e técnicas que possam ser utilizados no trabalho da equipe multiprofissional (CFP, 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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). Para Scott et al. ( 2019 Ferreira, M., Freitas, A. P. M., Marion, J., Pereira, C. R. R., Scott, J. B., Marion, J., Freitas, A. P. M., Ferreira, M., Pereira, C. R. R., & Siqueira, A. C. (2019). Desafios da atuação do psicólogo em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 12(1), 125–141. http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120110
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), além das capacitações oferecidas do MDS, o próprio psicólogo que ingressa nesse campo deve, como primeiro movimento, familiarizar-se com as políticas e práticas da assistência social e realizar uma atuação contextualizada e efetiva nos CRAS.

Além das dificuldades mencionadas, outro aspecto relatado pelos participantes foi a própria estrutura dos seus cursos de graduação, cuja grade curricular possuía poucas disciplinas (Psicopatologia, Psicanálise, Psicologia Social e Psicologia de Grupo) que contribuíram, ainda que de maneira indireta, para o trabalho no CRAS: “ Eu tento lembrar muito, né? Das de psicopatologia, quando as pessoas me falam: ‘ah, eu tenho isso, eu tenho aquilo e estou sentindo isso...’ Psicanálise... É, acho que Psicanálise ” (Ísis).

Vale ressaltar que a maioria dos participantes se formaram entre 2009 e 2014. Nesse sentido, como o CRAS surgiu em 2005, é possível concluir que, enquanto esses psicólogos realizavam a sua formação, o serviço de Assistência Social ainda estava sendo estruturado e discutido.

Ainda no contexto atual, os estudos de Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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) e Rinhel-Silva ( 2016 Rinhel-Silva, C. M. (2016). O psicólogo no CRAS: Travessia, tessituras, desafios e possibilidades [Tese de doutorado, Universidade Estadual Paulista]. Repositório institucional da UNESP. https://repositorio.unesp.br/handle/11449/143068?show=full
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) identificaram lacunas que serão abordadas na próxima subcategoria acerca das grades curriculares dos cursos de Psicologia em relação ao ensino das políticas públicas de Assistência Social. Como consequência, os profissionais de Psicologia encontram-se sem referências objetivas e práticas para sua própria atuação no CRAS. A questão da formação acadêmica no preparo de psicólogos para atuação na área da Assistência Social tem sido discutida por vários autores (Silva & Albanese, 2020 Silva, A. C. R., & Albanese, L. (2020). Formação acadêmica e atuação do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000400004&lng=pt&tlng=pt
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; Zanella, Bousfield, & Moreira, 2015 Zanella, A., Bousfield, A. B., & Moreira, A. N. V. (2015). A atuação dos/as psicólogos/as nos CRAS, em Florianópolis, e alguns desafios para a formação. In A. Accorssi, A. B. S. Bousfield, H. S. Gonçalves, K. Aguiar, & R. S. L. Guzzo (Orgs.). Distintas faces da questão social: Desafios para a Psicologia (pp. 423–438). ABRAPSO. https://repositorio.ufsc.br/xmlui/bitstream/handle/123456789/134067/Book%20V%20pdfA.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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; Cordeiro, 2018 Cordeiro, M. P. (2018). A psicologia no SUAS: Uma revisão de literatura. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(3), 166–183. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672018000300012&lng=pt&tlng=pt
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; Ribeiro, & Guzzo, 2014 Ribeiro, M. E., & Guzzo, R. S. L. (2014). Psicologia no Sistema Único de Assistência Social (SUAS): Reflexões críticas sobre ações e dilemas profissionais. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(1), 83–96. https://doi.org/10.1590/1984-0292/421
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; Ribeiro, Seixas, & Oliveira, 2014 Ribeiro, A. B., Seixas, P. S., & Oliveira, I. M. F. F. (2014). Desafios da atuação dos psicólogos nos CREAS do Rio Grande do Norte. Fractal: Revista de Psicologia, 26(2), 461–478. https://doi.org/10.1590/1984-0292/421
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). De maneira geral, esses estudos demonstraram que, nos últimos anos, o número de profissionais que atuam nas políticas públicas vem aumentando, porém os cursos de graduação não estão sendo atualizados de maneira a acompanhar essas novas possibilidades de atuação profissional 2 2 Um coordenador de curso de Psicologia de uma das universidades nas quais os participantes se formaram informou que apenas duas reformas no projeto pedagógico ocorreram desde 2005, sendo que não havia disciplinas específicas sobre o trabalho do psicólogo no SUAS e no CRAS (informação pessoal). . Nota-se, portanto, um descompasso entre as solicitações da demanda social e o que é oferecido em termos de ensino pela universidade durante a formação acadêmica.

O CFP ( 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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) menciona que, na ação profissional, é imprescindível a atenção acerca do significado social da profissão e da direção da intervenção da Psicologia na sociedade, indicando novos dispositivos que rompam com o privativo da clínica, porém não com a formação em Psicologia, que traz em seu âmago referenciais teóricos e técnicos de valorização do ser humano, aspectos de intervenção e escuta sistemática para o processo de superação e de promoção dos usuários atendidos. É crucial que o Conselho Regional de Psicologia (CRP) aprofunde-se em como os psicólogos que atuam no CRAS podem romper com a abordagem tradicional da clínica e, ao mesmo tempo, oferecer uma escuta qualificada que contribua para que os usuários superem seus limites.

Além disso, é importante que os cursos de graduação em Psicologia passem a incluir cada vez mais temas referentes ao SUAS em disciplinas de políticas públicas, contribuindo para a atuação de futuros psicólogos em instituições como o CRAS. Além disso, para que o trabalho do psicólogo nesse contexto seja efetivo, há a necessidade de que a recomendação do próprio MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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) sobre a importância de cursos de formação continuada seja cumprida. O presente estudo demonstrou que o não oferecimento de processos formativos para esses profissionais limita suas possibilidades de conhecer o contexto e suas estratégias de trabalho, bem como de implementar de maneira efetiva sua prática, o que compromete a qualidade do serviço ofertado à comunidade.

Porém, a formação do psicólogo se pauta num princípio ético de que “o psicólogo atuará com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional, contribuindo para o desenvolvimento da Psicologia como campo científico de conhecimento e de prática” (CFP, 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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). Sendo assim, apesar da existência das normativas do MDS para fornecer as capacitações, os psicólogos podem buscar se atualizar por meio de diversificados recursos – cartilhas disponíveis do MDS e do CFP, grupos de estudos etc. –, conforme apontado no estudo de Scott et. al. ( 2019 Ferreira, M., Freitas, A. P. M., Marion, J., Pereira, C. R. R., Scott, J. B., Marion, J., Freitas, A. P. M., Ferreira, M., Pereira, C. R. R., & Siqueira, A. C. (2019). Desafios da atuação do psicólogo em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 12(1), 125–141. http://dx.doi.org/10.36298/gerais2019120110
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), para discutir sobre o trabalho realizado no CRAS.

Categoria 2: Percepções dos psicólogos acerca dos atendimentos e do Acompanhamento Familiar

De acordo com o MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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), o Acompanhamento Familiar é descrito como um conjunto de intervenções contínuas junto aos familiares de usuários com transtorno mental. Os participantes relataram compreender que o Acompanhamento Familiar deve ser contínuo, porém demonstraram não ter conhecimento exato do que significa esse “conjunto de intervenções”.

Outro aspecto a ser ressaltado é que, para realizar o Acompanhamento Familiar, deve-se construir um Plano de Acompanhamento Familiar (PAF) – primeira subcategoria –, que é o estabelecimento de um plano anterior ao início do trabalho e que está contido no conjunto de intervenções. No entanto, nenhum participante mencionou conhecer esse plano. Porém, mesmo sem conhecimento prévio a respeito do PAF, os participantes relataram, a partir de sua prática no serviço, que é necessário ter um planejamento para executar o serviço de Acompanhamento Familiar. Nota-se, portanto, uma aprendizagem a partir da própria prática: “ A gente entra naquela casa, e vai conhecer questões daquela família de dor, e de conflito, então isso é uma coisa muito séria, e que tem que ter muito respeito, então, dar continuidade ” (Daniela).

O fluxograma de atendimentos é a segunda subcategoria. O MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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) cita a existência de um conjunto de modalidades de atendimentos para efetivar o Acompanhamento Familiar. A primeira é a acolhida, definida como a escuta das demandas dos familiares, que pode ser realizada em grupo ou individualmente. A modalidade seguinte é o estudo social, que visa a determinar o formato do acompanhamento, o qual pode ser particularizado ou em grupo. O MDS instrui, ainda, que, posteriormente, o profissional deverá realizar o PAF que define as responsabilidades do profissional e da família assistida para elaboração e execução dos objetivos; e, ao final desses atendimentos, será realizada a avaliação no PAF (verificação do cumprimento dos objetivos propostos). Caso a família tenha alcançado os objetivos propostos, o serviço será encerrado. Caso contrário, o PAF deverá ser readequado.

Apesar disso, o fluxograma de atendimentos não foi mencionado pelos participantes, que relataram compreender o serviço de Acompanhamento Familiar como modalidade de visitas contínuas e citaram como dificuldade a ausência de automóvel para realizar as visitas, o que compromete essa continuidade. Diante disso, afirmaram que o único modo de realizar o Acompanhamento Familiar é mediante atendimentos grupais.

Referente às demandas que, segundo os participantes, os familiares trazem para o Acompanhamento Familiar, a primeira delas foi a acolhida – um processo de escuta das necessidades e demandas das famílias e a obtenção de informações para as ações do PAIF, do serviço, da rede socioassistencial, em especial do CRAS e demais políticas setoriais. Sendo assim, os resultados encontrados neste estudo indicaram a acolhida é significada como demanda por esses profissionais, pois os relataram que os familiares tinham necessidades de informações gerais (dúvidas quanto à obtenção de documentos pessoais, quanto ao funcionamento de outros serviços da rede de saúde). Ainda, conforme apontado por Santos e Heckert ( 2017 Santos, K. L., Heckert A. L. C. (2017). Problematizando a produção da vulnerabilidade e da pobreza higienizada na assistência social. Psicologia: Teoria e Prática, 19(2), 86–97. https://dx.doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v19n2p86-97
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), os psicólogos que atuavam no CRAS orientavam também acerca da higiene básica dos indivíduos e suas necessidades de serem ouvidos e de terem um espaço para expressar seus sentimentos. Além disso, vale ressaltar que a acolhida foi considerada por todos os participantes como meio de conhecer o familiar e, posteriormente, atender suas demandas:

É informação, acho que acolhimento também. Os principais que eu faço acompanhamento são pais de crianças, então eu percebo que sentem falta de um acolhimento. Porque não é fácil você ter um filho, e você não imagina que ele terá um transtorno ou alguma deficiência (Fernanda).

O MDS ( 2016 Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2016). Caderno de orientações: Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família e Serviço de Convivência e fortalecimento de vínculos – articulação necessária na Proteção Social Básica. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Cartilha_PAIF_1605.pdf
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) menciona que o Acompanhamento Familiar deve possibilitar o acesso dessas famílias aos direitos sociais. Os direitos sociais e o projeto de vida são outra subcategoria referente às demandas dos usuários e de seus familiares. Os participantes relataram que forneciam às famílias orientações acerca das leis aplicáveis e dos programas de transferência de renda, visando a auxiliar o familiar a superar a situação de vulnerabilidade.

O MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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) menciona que a equipe do PAIF deve ajudar na construção e realização do projeto de vida; no entanto, não define exatamente como seriam esses projetos. Os participantes relataram compreender os projetos de vida como mudanças de atitudes desses familiares por meio das informações recebidas nos atendimentos. Assim, eles consideravam que auxiliavam os familiares na elaboração do projeto.

Amorim et al. ( 2014 Amorim, K. M. O., Araújo, R. L., Coelho-Lima, F., Nascimento, M. N. C., Oliveira, I. F., & Oliveira, N. L. A. (2014). Atuação dos psicólogos nos CRAS do interior do RN. Psicologia & Sociedade, 26(2), 103–112. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000600011
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) ressaltaram que demandas da subcategoria Atividades Clínicas Tradicionais são mais solicitadas do que as atribuições que os psicólogos deveriam desempenhar no CRAS. Essas atividades clínicas tradicionais foram definidas por Lo Bianco, Bastos, Nunes e Silva ( 1994Lo Bianco, A. C., Bastos, A. V. B., Nunes, M. L. T., & Silva, R. C. (1994). Concepções e atividades emergentes na psicologia clínica: Implicações para a formação. In R. Achcar (Coord.). Psicólogo brasileiro: Práticas emergentes e desafios para a formação (pp. 17–100). Casa do Psicólogo. ) como psicodiagnóstico e/ou terapia individual ou grupal, atividades exercidas em consultório particular em que o psicólogo se apresenta como profissional autônomo, atendendo, geralmente, a uma clientela financeiramente abastada. Tal atividade priorizaria o enfoque intrapsíquico e os processos psicológicos e psicopatológicos do indivíduo, sendo norteada por uma concepção de sujeito abstrato e descontextualizado historicamente. Macêdo et al. ( 2018 Macêdo, O. J. V., Lima, C. M. P. D., Brito, F. H. S., Souza, J. N. P., Sousa, N. K. M., Sousa, S. P., & Dias, S. G. (2018). Atuação dos profissionais de psicologia nos CRAS do interior da Paraíba. Trends in Psychology, 26(2), 1083–1097. https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt
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) identificaram que os usuários percebiam a atuação dos psicólogos como vinculadas à área clínica de atendimento individual. Os participantes deste estudo relataram que os familiares, muitas vezes, apresentaram demandas que deveriam ser contempladas por meio de psicoterapia, mas relataram não realizar atendimentos psicoterápicos: “ Agora, fazer psicoterapia é o que eles mais queriam que eu fizesse. É o que eu percebo: as pessoas que vêm aqui procurar pela psicóloga, na grande maioria, elas querem é o atendimento psicoterapêutico, né? ” (Cíntia).

Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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) e Silva e Bonatti ( 2020 Silva, R. B., & Bonatti, G. L (2020). A clínica ampliada e o trabalho do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social. Revista Psicologia e Saúde, 12(2), 59–72. http://dx.doi.org/10.20435/pssa.v0i0.891
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) afirmam que ainda há confusão acerca dos termos “psicoterapêutico” e “terapêutico” para os psicólogos que atuam no CRAS. As percepções dos participantes ressaltam as (in)definições da natureza de seu trabalho no Acompanhamento Familiar, especialmente no que diz respeito à função terapêutica e/ou psicoterapêutica dos atendimentos oferecidos. Segundo Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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), para compreender as práticas psicológicas no contexto brasileiro, é essencial resgatar o conceito da clínica psicológica definida pela Resolução 10/2000 do CFP:

Um processo científico de compreensão, análise e intervenção que se realiza através da aplicação sistematizada e controlada de métodos e técnicas psicológicas reconhecidas pela ciência, pela prática e pela ética profissional, promovendo a saúde mental e propiciando condições para o enfrentamento de conflitos e/ou transtornos psíquicos de indivíduos ou grupos

(Resolução CFP n° 010, 2000 Resolução CFP n° 010/00, de 20 de dezembro de 2000. (2000, 20 de dezembro). Especifica e qualifica a Psicoterapia como prática do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2000/12/resolucao2000_10.pdf
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, p. 1).

No percurso da atuação do psicólogo, suas práticas tiveram como referência a psicoterapia e o psicodiagnóstico tradicional. Entretanto, na década de 1970 iniciaram-se movimentos sociais e políticos contrários a ditadura militar e, desde então, foram estabelecidas formas alternativas de enfrentar os problemas nas áreas de saúde, educação e Assistência Social. A Psicologia participou desse contexto de mudanças e começou a atuar junto aos grupos sociais empobrecidos e/ou em situação de vulnerabilidade ou risco psicossocial juntamente com o campo da Assistência Social (Ferreira Neto, 2017Ferreira Neto, J. L. (2017). Psicologia, políticas públicas e o SUS (2a ed.). Escuta. ). Embora a formação em Psicologia e a trajetória do psicólogo no contexto brasileiro tenham sido pautadas por práticas clínicas , pode-se visualizar que:

Não compete o desenvolvimento de ações de caráter terapêutico, compreendidas aqui como as práticas psicoterapêuticas, psicodiagnósticas e psicopedagógicas, ou seja, práticas clínicas no âmbito do PAIF, pois não correspondem às seguranças afiançadas pela política de assistência social. Também são consideradas equivocadas quaisquer outras modalidades com fins terapêuticos, tais como terapias alternativas, terapias holísticas ou a implementação de ações que não estejam vinculadas às atribuições do PAIF, bem como aos projetos ético-político profissionais dos técnicos, quando inseridos no SUAS. Ou seja, as práticas psicoterapêuticas, psicodiagnósticas e psicopedagógicas só devem ser ofertadas em serviços que tenham essa atribuição, o que não é o caso do PAIF ou outros serviços ofertados nos CRAS

(CFP, 2016 Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota Técnica com parâmetros para atuação das(os) profissionais de psicologia no âmbito Sistema Único de Assistência Social (SUAS). CFP. https://site.cfp.org.br/documentos/nota-tecnica-com-parametros-para-atuacao-as-os-profissionais-de-psicologia-no-ambito-do-sistema-unico-de-assistencia-social-suas/
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, p. 18).

O campo de atuação profissional consiste na Política Pública de Assistência Social, no qual a psicoterapia não é uma oferta de serviços. Os saberes psicológicos podem contribuir para a proteção social de Assistência Social e superação das desigualdades sociais, para o empoderamento dos coletivos, a garantia de direitos e o fortalecimento da função protetiva da família

(MDS, 2012 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2012). Orientações técnicas sobre o PAIF: Volume 2 – Trabalho social com famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Orientacoes_PAIF_2.pdf
http://www.mds.gov.br/webarquivos/public...
, p. 15).

Neste estudo, os participantes relataram que não realizavam atendimento psicoterapêutico no CRAS, uma vez que o Acompanhamento Familiar não permite o aprofundamento em questões psicodinâmicas e, muitas vezes, não há espaço físico adequado para a realização de atendimentos individuais. Um dos participantes relatou que: “ Então, a questão da psicoterapia eu acho que realmente não dá para fazer, porque a gente não tem estrutura [física]” (Fernanda). Além disso, esse serviço estava composto por outras atividades, tais como visitas domiciliares, acolhida, oficinas e atendimentos em grupos, tornando a característica psicoterapêutica inviável diante dos objetivos do PAIF, quais sejam:

Fortalecer a função protetiva da família, contribuindo na melhoria da sua qualidade de vida;

Prevenir a ruptura dos vínculos familiares e comunitários, possibilitando a superação de situações de fragilidade social vivenciadas;

Promover aquisições sociais e materiais às famílias, potencializando o protagonismo e a autonomia das famílias e comunidades;

Promover o acesso a benefícios, programas de transferência de renda e serviços socioassistenciais, contribuindo para a inserção das famílias na rede de proteção social de assistência social;

Promover acesso aos demais serviços setoriais, contribuindo para o usufruto de direitos; Apoiar famílias que possuem, dentre seus membros, indivíduos que necessitam de cuidados, por meio da promoção de espaços coletivos de escuta e troca de vivências familiares.

(MDS, 2018 Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2018). Contribuições para aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em evidência. Ministério do Desenvolvimento Social. https://amve.org.br/uploads/sites/580/2023/08/1437465_Contribuicao_para_o_Aprimoramento_do_PAIF_final_1.pdf
https://amve.org.br/uploads/sites/580/20...
, p. 12).

O trecho anterior é diferente do relatado por Macêdo et al. ( 2015 Macêdo, O. J. V., A., Santos, M. F.P., Souza, D. P., Pereira, G., & Oliveira, V. S. (2015). Ações do profissional de psicologia no Centro de Referência da Assistência Social. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(3), 809–823. https://doi.org/10.1590/1982-3703001632013
https://doi.org/10.1590/1982-37030016320...
), em cuja pesquisa os psicólogos participantes afirmaram que realizavam atendimentos clínicos, ainda que não fossem sua atividade predominante. Eles relataram saber que os atendimentos clínicos não faziam parte de suas atribuições profissionais no CRAS, porém, em função das dificuldades encontradas pelos usuários para serem atendidos pela rede intersetorial, os atendimentos clínicos eram realizados com intuito de trazer alívio para a pessoa atendida.

Outros estudos, como o de Silva e Albanese ( 2020 Silva, A. C. R., & Albanese, L. (2020). Formação acadêmica e atuação do psicólogo nos Centros de Referência de Assistência Social. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-16. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082020000400004&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
), apontaram que psicólogos que atuavam na Assistência Social não realizavam psicoterapia, apenas atividades de escuta e orientações para os usuários e seus familiares. Mello ( 2016 Mello, I. C. P. (2016). A escuta psicológica ao envelhecimento em Centro de Referência da Assistência Social (CRAS): Relato de experiência. Revista de Psicologia da UNESP, 15(2), 64–71. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/revpsico/v15n2/v15n2a05.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/revpsico/v...
) argumentou que os psicólogos dos seus estudos usavam o termo “acolhimento” para se referir aos atendimentos psicológicos individuais, compreendido como “forma primordial de atendimento à demanda espontânea” (Amorim et al., 2014 Amorim, K. M. O., Araújo, R. L., Coelho-Lima, F., Nascimento, M. N. C., Oliveira, I. F., & Oliveira, N. L. A. (2014). Atuação dos psicólogos nos CRAS do interior do RN. Psicologia & Sociedade, 26(2), 103–112. https://doi.org/10.1590/S0102-71822014000600011
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201400...
, p. 105) e meio de assimilação de demandas familiares passíveis de encaminhamentos, prática reconhecidamente desempenhada com maior frequência pelos psicólogos que trabalham no CRAS na atualidade. Por fim, Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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) relataram que os psicólogos não realizavam atendimentos clínicos devido ao fato de a rotina de trabalho apresentar atividades diversificadas (visitas domiciliares, confecção de relatórios e planejamento de atividades em grupo).

Nota-se que os participantes associaram o conceito de “psicoterapêutico” com psicoterapia individual, isto é, como aquela realizada no consultório clínico dos psicólogos particulares. No entanto, há um descompasso entre essa percepção e a definição de psicoterapia proposta pelo CFP na Resolução 10/2000, cujo conceito de atendimento clínico é mais amplo do que apenas a atividade exercida pela psicoterapia dentro do consultório.

Ainda que neste estudo os psicólogos tenham relatado não realizar psicoterapia individual, eles esclareceram que seu trabalho possuía características terapêuticas em função da escuta cuidadosa e especializada. Por exemplo, um dos participantes relatou que: “ Todo o trabalho que nós realizamos é terapêutico. Todo e qualquer trabalho, a partir do momento que você senta para escutar a pessoa, para mim, isso é terapêutico enquanto cuidado, então todo atendimento que eu faço é terapêutico ” (Fernanda). Esses dados corroboram os de Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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), segundo os quais os psicólogos caracterizaram suas práticas como terapêuticas por meio do acolhimento que realizavam, das orientações fornecidas às famílias acerca dos seus direitos e das atividades que conduziam as famílias a refletir sobre suas potencialidades.

No âmbito da saúde mental, Vieira Filho e Nóbrega ( 2004 Vieira Filho, N. G., & Nóbrega, S. M. (2004). A atenção psicossocial em saúde mental: Contribuição teórica para o trabalho terapêutico em rede social. Estudos de Psicologia, 9(2), 373–379. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2004000200020
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) citaram que a palavra “atendimento” tem origem da palavra latim attendere e significa “acolher”. Já “terapêutico” tem origem no grego terapéuo que tem sentido de “tratar diligentemente”. Nesse sentido, “atendimento terapêutico” pode ser compreendido como o ato de acolher e de receber com cortesia, buscando escutar atentamente a pessoa que apresenta demandas de cuidados. Tal definição assemelha-se à do CFP ( 2016 Conselho Federal de Psicologia. (2016). Nota Técnica com parâmetros para atuação das(os) profissionais de psicologia no âmbito Sistema Único de Assistência Social (SUAS). CFP. https://site.cfp.org.br/documentos/nota-tecnica-com-parametros-para-atuacao-as-os-profissionais-de-psicologia-no-ambito-do-sistema-unico-de-assistencia-social-suas/
https://site.cfp.org.br/documentos/nota-...
) acerca do trabalho psicológico no CRAS, que descreve que o profissional que atua na proteção básica deve realizar uma escuta qualificada em espaços de acolhimento.

Vale salientar que os participantes do presente estudo partiram de uma definição do termo “terapêutico” como referente à escuta das demandas, ao vínculo estabelecido com o familiar, à promoção da autonomia e do bem-estar. Um dos participantes relatou que “ Terapêutico é tudo aquilo que promove o bem-estar, né? O vínculo, isso já é terapêutico” (Daniela). Tal definição encontra-se em concordância com o MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
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), que cita que o serviço de Acompanhamento Familiar deve incluir a criação de um vínculo com o usuário e incentivar a capacidade de prover a si mesmo, ou seja, fomentar o desenvolvimento da autonomia e da qualidade de vida, elementos condizentes com o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (CRP/SP, 2016 Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. (2016). Caderno de orientações do CRP SP para atuação de psicólogas(os) na Assistência Social. CRPSP. https://www.crpsp.org/uploads/impresso/298/ZWPzxz5oeFefG8eheMUhmwSn8IcftC2H.pdf
https://www.crpsp.org/uploads/impresso/2...
, p. 16):

Qualquer relação entre as pessoas pode desempenhar uma função terapêutica sem que isso seja entendido como vínculo psicoterapêutico. Neste sentido, na medida em que os indivíduos ou famílias são acompanhados por um serviço está implícito o estabelecimento de vínculos, e na medida em que a intervenção técnica se dá, efeitos terapêuticos podem ocorrer para pessoas ou coletivos. Não podemos aqui confundir acompanhamento psicoterapêutico e os processos que se estabelecem neste com as estratégias de abordagens e procedimentos inerentes ao trabalho da(o) psicóloga(o) na Assistência Social.

Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
) estão em concordância com o argumento anterior ao afirmarem que se deve partir do pressuposto de que os atendimentos realizados por psicólogos podem ser terapêuticos ainda que não sigam o modelo de psicoterapia tradicional. O CREPOP ( 2008 Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (2008). Referências técnicas para atuação do(a) psicólogo(a) no CRAS/SUAS (2a ed.). CFP. http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/artes-graficas/arquivos/2008-crepop-cras-suas.pdf
http://www.crpsp.org.br/portal/comunicac...
, p. 24) menciona:

Temos o compromisso de oferecer serviços de qualidade, diminuir sofrimentos, evitar a cronificação dos quadros de vulnerabilidade, defender o processo democrático e favorecer a emancipação social. Para isso, é importante compreender a demanda e suas condições históricas, culturais, sociais e políticas de produção, a partir do conhecimento das peculiaridades das comunidades e do território (inserção comunitária) e do seu impacto na vida dos sujeitos.

Nota-se que os psicólogos que atuam no CRAS exercem uma dupla função, uma vez que devem empregar seus conhecimentos para atender e acompanhar as famílias, possibilitando uma escuta dos aspectos subjetivos enredados nas situações de vulnerabilidades vivenciadas pelas famílias, ao mesmo tempo em que tal ação tem por objetivo fazer com que os usuários sejam sujeitos de direitos (MDS, 2012 Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. (2012). Orientações técnicas sobre o PAIF: Volume 2 – Trabalho social com famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/Cadernos/Orientacoes_PAIF_2.pdf
http://www.mds.gov.br/webarquivos/public...
).

Para Chimainski, Ubessi, Martins e Jardim ( 2016 Chimainski, C., Ubessi, L. D., Martins, S. S., & Jardim, V. M. R. (2016). Atuação do(a) profissional de psicologia em sistemas de proteção social brasileiros. Mudanças – Psicologia da Saúde, 24(1), 55–63. https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/biblio-835046
https://pesquisa.bvsalud.org/portal/reso...
) o psicólogo no CRAS deve contribuir com a produção de práticas de cuidado na saúde e social, pois a articulação entre esses serviços contribui para a melhoria dos atendimentos oferecidos. Isso corrobora os resultados deste estudo, que identificou que os familiares buscam demandas referentes à rede intersetorial: os psicólogos relataram que os familiares não tinham informações acerca do funcionamento e encaminhamentos dos serviços de saúde e/ou educação disponíveis nas próprias escolas, unidades básicas de saúde, CAPS, entre outros, e, por esse motivo, procuravam os psicólogos do CRAS.

Embora o MDS (Azevedo et al., 2018 Azevedo, A. B., Blanes, D. N., Cariaga, M. H., Carneiro, M. L. N. C., Conserva, M. S., Corá, M. A., Gambardella, A. D., Scavazza, B., Silva, M. S. (Orgs.). (2018). Contribuições para o aprimoramento do PAIF: Gestão, família e território em abrangência. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. . http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquivo/assistencia_social/consulta_publica/Contribuicao%20para%20o%20Aprimoramento%20do%20PAIF%20final.pdf
http://www.mds.gov.br/webarquivos/arquiv...
) e o CFP ( 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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) enfatizem a importância de realizar o trabalho intersetorial e que tal prática deve ser usada para efetivar um serviço de qualidade, Macêdo et al. ( 2018 Macêdo, O. J. V., Lima, C. M. P. D., Brito, F. H. S., Souza, J. N. P., Sousa, N. K. M., Sousa, S. P., & Dias, S. G. (2018). Atuação dos profissionais de psicologia nos CRAS do interior da Paraíba. Trends in Psychology, 26(2), 1083–1097. https://doi.org/10.9788/TP2018.2-20Pt
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), Flor e Goto ( 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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), e Ribeiro e Guzzo ( 2014 Ribeiro, M. E., & Guzzo, R. S. L. (2014). Psicologia no Sistema Único de Assistência Social (SUAS): Reflexões críticas sobre ações e dilemas profissionais. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(1), 83–96. https://doi.org/10.1590/1984-0292/421
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) encontraram, em seus estudos, que o trabalho intersetorial apresenta dificuldades, tais como a falta de organização e de sistematização da rede, além da ausência de atendimentos nas áreas de saúde e educação. Todos esses são elementos semelhantes aos encontrados neste estudo, pois os participantes relataram que, ainda que realizassem os encaminhamentos para a rede intersetorial (saúde e educação), as famílias tinham dificuldades de receber atendimento daqueles setores.

Evidencia-se, portanto, que o princípio da intersetorialidade, referido pela PNAS, pelas Referências Técnicas do CFP e pelo CFP ( 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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), não está sendo devidamente efetivado, havendo a necessidade de localizar as redes de apoio e articular os serviços do CRAS com aqueles oferecidos por outras políticas públicas. Especificamente, o CFP ( 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
) menciona que é necessário reconhecer que existem obstáculos para a população conseguir acesso à saúde mental nos diversos territórios, provocando, como consequência, um deslocamento da demanda para a Psicologia na equipe multiprofissional do CRAS. Nesse sentido, os psicólogos ficam diante do dilema entre o que está determinado na PNAS (não se deve realizar atendimentos psicoterápicos individualizados no CRAS) e a sua conduta ética diante de casos de vulnerabilidade psíquica e social, inclusive com riscos de violência e autoextermínio. Não se trata, necessariamente, de falta de compreensão das determinações políticas e legais, mais sim de impasse ético.

Considerando as reflexões acima, Cordeiro ( 2018 Cordeiro, M. P. (2018). A psicologia no SUAS: Uma revisão de literatura. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 70(3), 166–183. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672018000300012&lng=pt&tlng=pt
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) encontrou em seu estudo a existência de três grupos diferentes em relação aos posicionamentos dos profissionais psicólogos em relação ao trabalho desenvolvido na Assistência Social. O primeiro contrapõe-se a qualquer intervenção clínica do SUAS; o segundo defende uma clínica ampliada ou diferenciada, que se utilize de saberes técnicos e clínicos adaptados a esse “novo contexto” de intervenção; já o terceiro não vê contradições entre os objetivos das políticas públicas e o atendimento da clínica/psicoterapia tradicional.

Os participantes deste estudo mencionaram que realizavam um acolhimento com uma escuta qualificada e pareciam compreender que essa escuta apresentava características terapêuticas. Entretanto, não ficou claro se essa escuta poderia ser considerada uma prática relacionada à clínica ampliada, que ocorre por meio de plantões psicológicos voltados para uma “intervenção em crise” e que visa a proporcionar uma ajuda aos que têm demandas urgentes, providenciando uma assistência imediata e suficiente para o restabelecimento do equilíbrio psicoemocional do usuário (Almeida & Goto, 2011 Almeida, B. P., & Goto, T. A. (2011). Intervenção e cuidado com crianças e adolescentes vitimizadas: Atuação do psicólogo no Programa Sentinela (CREAS) em Poços de Caldas (MG). Mudanças – Psicologia da Saúde, 19(1-2), 89–98. https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/MUD/article/view/2328/3062
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; Flor & Goto, 2015 Flor, T. C., & Goto, T. A. (2015). Atuação do psicólogo no CRAS: Uma análise fenomenológico-empírica. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(1), 22–34. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000100004&lng=pt&tlng=pt
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; Ribeiro, & Goto, 2012 Ribeiro, M. E., & Goto, T. A. (2012). Psicologia no Sistema Único de Assistência Social: Uma experiência de clínica ampliada e intervenção em crise. Gerais: Revista Interinstitucional de Psicologia, 5(1), 184–194. 461- http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1983-82202012000100012
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). Essa prática parece estar em consonância com a acolhida, modalidade de atendimento do fluxograma do Acompanhamento Familiar.

Dessa forma, pode-se depreender que os participantes do presente estudo, embora não exercessem o atendimento clínico tradicional, realizavam a acolhida, e que tal modalidade de atendimento pode ser considerada como terapêutica. Assim, é necessário fomentar mais discussões acerca dos sentidos psicoterapêutico e terapêutico de suas condutas, para que os psicólogos do CRAS tenham maior clareza acerca das possibilidades e limites da sua atuação. Por fim, deve-se considerar que o CFP ( 2021 Conselho Federal de Psicologia. (2021). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) no CRAS (3a ed.). CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2021/12/rt_crepop_cras_2021.pdf
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) instrui que a formação do profissional psicólogo deve incluir uma diversidade de saberes e práticas, incluindo a escuta qualificada dos usuários.

Considerações finais

Este estudo investigou as perspectivas dos psicólogos dos CRAS que compunham as equipes do PAIF a respeito do seu trabalho no Acompanhamento Familiar junto às famílias com membros com transtornos mentais.

Considera-se de grande valia que os cursos de graduação em Psicologia ofereçam atividades que possibilitem o desenvolvimento da criatividade como habilidade, pois tais profissionais precisam ser capazes de criar práticas nos CRAS que atendam às demandas dos usuários e, ainda, precisam ter estratégias para lidar com as adversidades que ocorrem no campo da Assistência Social. Vale ressaltar que um dos objetivos do PAIF é desenvolver a autonomia dos usuários e, uma vez que o psicólogo precisa atuar dentro das normativas do MDS, revela-se talvez uma contradição: como os psicólogos vão auxiliar a autonomia e protagonismo dos usuários se o próprio profissional também é muitas vezes limitado pelas normativas do MDS?

A ausência da formação continuada no local de trabalho, juntamente com o desconhecimento desses profissionais a respeito do trabalho psicológico na área, ocasiona confusão quanto aos limites da sua atuação e das práticas realizadas, afetando a qualidade do trabalho para com as famílias atendidas. Nesse sentido, o fornecimento de informações, no edital do concurso, a respeito da área da vaga ofertada e a realização da análise do perfil do candidato são imprescindíveis no processo de seleção, a fim de que os profissionais possam ter afinidade com a área ao executarem suas atribuições.

Enfatiza-se a importância de que os setores responsáveis desenvolvam treinamentos e formações continuadas acerca da Assistência Social e de outros temas pertinentes para a atuação do psicólogo logo no início do ingresso desses profissionais no CRAS, pois os resultados do presente estudo indicaram que a falta de conhecimento a respeito dos instrumentos e técnicas à disposição impacta negativamente na sua atuação. É essencial que as políticas de capacitação e de formação contínua sejam implementadas, de modo que os psicólogos não fiquem à sua espera para atualizar os seus conhecimentos, mas sim que tenham a iniciativa de realizar grupos de estudos, por meio de cartilhas e outros materiais disponíveis no serviço.

Os resultados deste estudo também demonstraram que, embora a psicoterapia e outros serviços de rede intersetorial sejam demandas dos familiares, essa política não tem chance de se tornar efetiva em um futuro próximo, pois os setores de saúde e educação foram destacados pelos profissionais como espaços sobrecarregados e incapazes de atender aos encaminhamentos realizados pelos psicólogos do CRAS.

O estudo também evidenciou que, embora os participantes tenham relatado diversas dificuldades para sua atuação profissional no CRAS, o exercício de sua função encontra-se em consonância com as determinações do MDS e do CFP ao executarem a acolhida com características terapêuticas. Entretanto, os resultados indicaram que os conceitos “psicoterapêuticos” e “terapêuticos” não são bem explanados pelos órgãos definidores do trabalho psicológico no CRAS, o que gera incertezas por parte dos profissionais e, consequentemente, resulta na realização de um trabalho pautado na própria prática e na percepção dos próprios profissionais a respeito do que a população atendida de fato demanda. Além disso, a acolhida necessita ser melhor investigada, já que tanto este estudo quanto outros indicaram que esta é uma das modalidades de atendimento mais solicitadas e executadas pelos psicólogos do CRAS, existindo, no entanto, poucos materiais e documentos que aprofundem essa prática como possibilidade de atuação específica do psicólogo no CRAS. Outra atividade que o psicólogo pode realizar como tentativa de atuar além de um modelo clínico é conhecendo o território por meio de visitas e fortalecendo vínculos com a comunidade.

Como limitação do estudo, destacam-se a amostra pequena de participantes e a restrição da coleta de dados a apenas uma cidade. No entanto, considerando-se o cenário desta pesquisa, de maneira geral, foram revelados diversos descompassos e contradições entre o que é preconizado pelo MDS e a prática efetiva dos psicólogos no CRAS. Por isso, a fim de aprimorar o serviço de Acompanhamento Familiar, são necessárias mais pesquisas que abordem temas que correlacionem a formação em Psicologia, a não-implementação de processos formativos continuados na Assistência Social e os impactos desse despreparo na prática dos profissionais. Os resultados de eventuais estudos poderiam fomentar maior satisfação pessoal/profissional dos psicólogos em seu contexto de trabalho e, principalmente, aprimorar a assistência oferecida à comunidade. Em suma, a importância deste estudo foi contribuir para conhecer as principais dificuldades encontradas por esses profissionais e produzir reflexões acerca do trabalho do Acompanhamento Familiar, a fim de aprimorar a atuação profissional dos psicólogos.

Referências

  • 1
    Comunicação pessoal fornecida pelo Diretor do local onde foi realizada a pesquisa em 08/07/2020.
  • 2
    Um coordenador de curso de Psicologia de uma das universidades nas quais os participantes se formaram informou que apenas duas reformas no projeto pedagógico ocorreram desde 2005, sendo que não havia disciplinas específicas sobre o trabalho do psicólogo no SUAS e no CRAS (informação pessoal).
  • Como citar:

    Fernandes, V. S., Leonidas, C., & Tilio, R. (2024). (Des)compassos do Trabalho Psicológico no Acompanhamento Familiar no CRAS. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003264104
  • How to cite:

    Fernandes, V. S., Leonidas, C., & Tilio, R. (2024). (Dis)order of the Psychological Work Within Family Care at CRAS. Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003264104
  • Cómo citar:

    Fernandes, V. S., Leonidas, C., & Tilio, R. (2024). (Des)compás del trabajo psicológico en el Seguimiento Familiar en el Centro de Referencia de Asistencia Social (CRAS). Psicologia: Ciência e Profissão , 44 , 1-16. https://doi.org/10.1590/1982-3703003264104

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2022
  • Aceito
    12 Dez 2022
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