Open-access Os efeitos da cultura psicanalítica na relação terapêutica

Os efeitos da cultura psicanalítica na relação terapêutica

Sérvulo Augusto Figueira é psicólogo, professor no Curso de Psicologia da PUC-RJ, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, autor de Contexto Social da Psicanálise (Francisco Alves, 1981) e organizador de coletâneas como Cultura da Psicanálise (Brasiliense, 1985). Seus estudos sobre a cultura psicanalítica vêm apontando novas problematizações para a teoria e a prática psicoterápicas. Mais ainda, servem de referencial básico para se analisar o contexto das "culturas locais", nos quais se inserem as psicoterapias, enfatizando, sobretudo, que as psicoterapias e os contextos culturais estão imbricados de formas indissociáveis.

Quando se trata de estudar as relações entre psicoterapia e cultura, surgem questões que os psicanalistas não costumam considerar como pensáveis psicanaliticamente e ficam fora das definições oficiais da Psicanálise. Entre essas várias questões deixadas fora do campo psicanalítico, existem duas que são muito importantes: a) o papel da difusão sobre o desenvolvimento da própria psicanálise nos planos teórico, técnico e institucional; b) o papel das culturas nacionais no desevolvimento das várias "psicanálises nacionais."

A dificuldade com essas duas questões é que não estão apenas epistemologicamente fora do campo científico da Psicanálise mas, na verdade, as pessoas que pensam essas questões são vistas como sendo não-psicanalistas, pelos psicanalistas mais comuns, pela maioria dominante. Essas questões quando são pensadas acabam sendo vistas com um certo cheiro de heterodoxia e de assunto perigoso e estranho. Os psicanalistas, em geral, reagem acionando processos de exclusão simbólica ou adotam essa forma de excomunhão perpétua, assumida quando definem que o sujeito que se interessa por essas questões não é psicanalista ou isso não é Psicanálise.

Inicialmente, a Psicanálise surge com Freud em Viena, dentro de um padrão de cultura alemã, e tão logo começa a se organizar também começa a se difundir, por ene meios. Os primeiros são as publicações, os comentários de boca-em-boca, as fofocas nos cafés de Viena. Muito cedo começa a entrar no circuito de popularização e a atingir outras pessoas que não sejam Freud. Depois, a Psicanálise começa a se difundir de Viena para outros países e culturas regionais. Esse processo todo de transplante envolve uma série de adaptações e várias delas aparecem, num primeiro momento, como distorções. O caso norte-americano é o mais conhecido, porque se fala muito que eles distorceram a Psicanálise. Na verdade, não há uma distorção propriamente dita, porque a situação original da Psicanálise em Viena não é uma régua firme que depois seria distorcida por outras culturas; essa distorção ocorre somente em termos relativos. Assim, toda a vez que a Psicanálise entra num País, ela sofre uma série de distorções entre aspas, por conta das tradições intelectuais locais e também por conta dos primeiros intérpretes que, quase invariavelmente, impõem um certo grau de distorção daquela situação vienense original.

No Brasil, a Picanálise tem uma história e, a partir basicamente da década de 70, ela começa a se difundir maciçamente por várias vias e se estabelece o que poderíamos chamar de uma cultura psicanalítica. Esse termo evidentemente é um exagero porque é uma metáfora e uma hipérbole combinadas, mas serve para descrever o que acontece com a psicanálise quando ela atinge um tal grau de popularização que passa a funcionar como uma "visão de mundo". Num artigo publicado na coletânea Cultura da Psicanálise (Brasiliense, 1985), defino a cultura psicanalítica em termos de ethos (ou código de emoções), de eidos ( um outro código para organização do pensamento) e dialeto psicologizante. No entanto, o que nos importa é que encontramos fragmentos de psicanálise, expressões ligadas a ela, valores, éticas, modelos e sub-modelos, enfim uma grande manifestação fragmentária da Psicanálise em vários casos da vida cultural. Quais efeitos isso pode ter sobre a Psicanálise propriamente dita?

O primeiro efeito mais óbvio observa-se nas formas de recrutamento de pacientes em geral ou de recrutamento de "candidatos" a psicanalistas. Num lugar em que a Psicanálise se torna tão popular, também passa a ser incensada, idealizada, e isso tem o efeito de aumentar a demanda de formação psicanalística e, portanto, envolve razões financeiras, de narcisismo, de oportunismo etc., como também aumenta a demanda de pacientes para se submeterem à análise ou às terapias em geral.

Além desse primeiro efeito mais óbvio, existem outros muito mais sutis. Por exemplo, numa cultura psicanalítica, a experiência de ser psicoanalisado ou psicoterapeutizado tem o papel de iniciação e de acesso ao bem simbólico específico que é a Psicanálise. Nesse sentido, existe uma manipulação dela pelos grupos sociais em termos de criar limites entre os que estão dentro e os que estão fora do círculo dos "efeitos" psicanalíticos. Várias pessoas vão procurar análise literalmente apenas para pertencer a essa cultura. É uma situação meio absurda, mas acontece.

Essa constatação cria uma condição interessantíssima porque a Psicanálise, em maior ou menor grau, faz sempre o seu trabalho em cima de um movimento subversivo muito localizado que é confundido por muita gente como se ela fosse uma grande subversão da ordem social estabelecida — o que ela não é. Fez-se essa confusão na França durante a década de 60, na Argentina também, com o fato de a Psicanálise ser intrinsecamente subversiva. Sempre enfrento esse argumento do seguinte modo: a psicanálise sempre e inescapavelmente leva a alguma forma de adaptação social. A prova disso é que nunca, ninguém, jamais publicou um artigo psicanalítico dizendo que o paciente se suicidou e que esta conclusão do tratamento foi ótima. Esse é o exemplo máximo ou a prova paradoxal de que a Psicanálise leva sempre a alguma forma de adaptação, pois o suicídio, como a quebra mais radical com a ordem social, não é aceitável. Em termos sociológicos, a Psicanálise é basicamente uma subversão daquilo que foi introjetado pelo sujeito como norma, ordem e valor da sociedade em que vive. Qualquer que seja a Psicanálise (Freud, Klein, Lacan etc.), ela envolve sempre, na sua prática, um afrouxamento e relativização dos valores introjetados e um questionamento desses valores ou dessas formas canônicas dentro do sujeito. Nesse sentido, é uma subversão localizada através do processo de descoberta do sujeito sobre seu próprio desejo, da emergência do conflito, do Édipo etc. Ela sempre aponta e está baseada em uma ideologia individualista de descobrir o seu próprio caminho, através do processo de individualização, o qual sempre passa por uma discriminação entre um caminho mais individualizado e as formas herdadas de determinação cultural, familiar, desejo de pai, de mãe, do que o sujeito deveria ser etc. Então, há sempre um trabalho de distinção do sujeito em relação à cultura na qual ele está localizado em termos das identidades e do projeto que formou para si próprio. E assim que funciona a experiência analítica numa cultura comum.

Agora, se a cultura for uma cultura psicanalítica, fica muito interessante porque se coloca o ser analisado, se torna compulsório, em termos de uma via de acesso aos grupos, à linguagem, aos códigos, aos patamares dominantes dessa cultura. O paciente vem fazer análise e já vem programado para sofrer um afastamento em relação à sua cultura dominante, só que essa cultura dominante passa por esse aspecto da relação do sujeito com a cultura psicanalítica. A cultura coloca a análise como um aliado e como um passaporte necessário para acesso a ela, senão o sujeito é excluído dela e não tem acesso aos bens simbólicos. Como a experiência psicanalítica pressuporia uma relativização desses bens culturais que cercam o sujeito, o esforço de relativização fica bloqueado pelo fato de que a Psicanálise é demanda da cultura. Isso cria um efeito muito curioso porque diminui, de fora para dentro, toda a possibilidade de individuação através do processo terapêutico. Não é que o impeça, mas diminui esse impacto e cria um problema extra para o psicanalista, em países como o Brasil.

No Brasil, um dos problemas para o psicanalista trabalhar é a própria relação que o paciente tem com a Psicanálise: o que quer dela, o que espera dela etc. Entender isso é um recurso técnico para tentar lidar com essa situação que é uma redundância entre o que a Psicanálise vai fazer e o que a cultura exige. A cultura psicanalítica tende a esvaziar o processo psicanalítico e tende a controlá-lo de diferentes modos. Não somente se espera que a pessoa faça análise, como também espera-se que questione, ou seja, esse questionamento é esperado, exigido e concedido. É uma situação inteiramente diferente de uma cultura que se vê ameaçada pelo discurso psicanalítico, como foi a cultura de classe média da década de 50, no Rio de Janeiro. Hoje, a cultura de, por exemplo, Ipanema de pessoas com 25,30 anos, a cultura não é ameaçada pelo exercício da Psicanálise; ao contrário, ela é reforçada e controla a Psicanálise.

Além disso, a experiência psicanalítica é controlada de outros modos bem mais concretos. Por exemplo, uma pessoa está em análise há dois meses e vive uma experiência emocionalmente perturbadora como analisando. Entrou com insônia e agora além disso está com gastrite, depressão e vontade de se matar. Esse paciente perplexo e angustiado vai falar com um amigo e este responde: "Olha, é assim mesmo, é assim que análise funciona. Eu também passei por isso. Fulano passou por muito pior do que você. Isso é uma fase: você piora agora, depois melhora". Bem, estas duas pessoas pertencem a uma espécie de Sociedade de Amigos da Psicanálise. Através desta, há um processo de socialização da experiência psicanalítica, tornando possível obter um conhecimento sobre como a experiência acontece e, de certa forma, há um controle de fora para dentro dos passos dessa experiência. Portanto, novamente, ocorre um esvaziamento do impacto emocional e subversivo da experiência psicanalítica sobre o paciente.

Um outro modo de controle é o conhecimento sobre psicanálise caracterizado como o de um consumidor expert. Numa cultura como a brasileira, a Psicanálise se tornou um produto para a classe média como, por exemplo, queijo ou vinho branco se tornaram nos últimos anos. Há dez anos atrás, ninguém na classe média sabia o que era vinho branco. De repente, começou a ser produzido aqui e se desenvolveu todo um conhecimento sobre produção, tipo de uva, safra etc. A mesma coisa aconteceu com a Psicanálise.

Já vivi situações em que havia de oito a dez pessoas numa mesa de jantar e eu era o único psicanalista presente. A conversa entre elas era assim: "Fulano está em análise com o doutor xis. Pois é, todo paciente do xis fica assim! Que coisa incrível! E o doutor ipsilon? Bem, este já tem um outro estilo". Então, não se faz somente um comentário sobre Psicanálise enquanto generalidade, mas há um comentário específico sobre o que as pessoas consideram ser o efeito daquele produto altamente individualizado. Assim, os pacientes chegam para fazer análise já controlados multiplamente, o que tem todo um efeito de esvaziamento da novidade da experiência psicanalítica — a qual deveria ser uma possibilidade de transcender o conhecido. Entretanto, há neste caso um efeito de controlar o desconhecido ao máximo, não é que se controle real e premeditadamente, mas certamente tem-se a ilusão de um saber.

Até agora, falei dos vários efeitos da psicanálise difundida desde a perspectiva do paciente. Agora, poderia falar da perspectiva do psicanalista. A difusão pode causar um efeito de grande confusionamento no analista. Por exemplo, a Psicanálise tem um enorme preconceito contra o uso da cabeça por parte do paciente. Isso quer dizer o seguinte: quer ver o analista nervoso? E quando um paciente começa a falar de idéias muito sofisticadas. Em uma dona-de-casa, que não trabalha fora, isso tem um papel de racionalização muito grande. E muito diferente, no entanto, se essas idéias vêm de um professor livre-docente de Sociologia da UNICAMP, que fala de Marx e Weber porque isso faz parte da cultura profissional dele, isso não pode ser tratado pelo analista do mesmo modo como uma racionalização ou intelectualização.

Agora imaginem a confusão que ocorre quando, além do uso do intelecto, os pacientes começam a poder utilizar o conhecimento psicanalítico e informações sobre o processo psicanalítico. Conheço muitos pacientes que dominam muito mais teoria psicanalítica do que o analista deles. Às vezes, eles sabem coisas incríveis a respeito do analista: sua técnica, sua formação, seu passado etc. É como se os analisandos estivessem tendo acesso aos bastidores da Psicanálise. Cria-se uma série de dificuldades para o analista.

Há dificuldades grandes em como lidar com esse paciente que demanda intervenção analítica. Se ele está numa cultura psicanalítica em que é normativo fazer análise, ele deseja a interpretação. E claro que estou caricaturizando um pouco, mas em algum grau isso se encontra em várias situações, de vários pacientes. Se o paciente demanda a interpretação, todo efeito perturbador que a interpretação vai ter pode ser neutralizado pelo fato de o sujeito desejar a perturbação. A perturbação não perturba mais na medida em que é desejada. O que exige que o analista aprenda a lidar ou desenvolva meios de lidar com todos esses efeitos de redundância ou eco, que existe entre ele e o paciente, criados pela cultura psicanalítica.

Existe um fenômeno muito curioso: em 1901, quando Freud escreveu Sobre os sonhos, ele descobriu algo que quase ninguém comenta hoje. Quando o paciente entra em análise e é virgem em análise, os sonhos dele são muito mais transparentes. Assim que o paciente percebe como o analista trata o sonho, qual é o procedimento interpretativo da Psicanálise, as defesas usam esse conhecimento adquirido no contato com o analista para complexificarem os sonhos. Isso indica que há no psiquismo lugares que aprendem esses códigos vindos do analista. O que faz isso no trabalho onírico deve ser certamente a função de elaboração secundária que diagrama, organiza e faz a edição do sonho. É claro que esse efeito de micro-difusão psicanalítica é um efeito estruturante para a produção de sintomas, para produção de sonhos e, por assim dizer, na própria produção do fato mental. Estou indo mais longe e radicalizando tal visão: a cultura psicanalítica não exerce somente um controle externo e circunstancial, mas ela entra de certa forma na trama do psiquismo, tendo assim um impacto grande sobre a prática psicanalítica em países como o Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Set 2012
  • Data do Fascículo
    1989
location_on
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro