Resumos
A diversidade de concepções presente na Psicologia Clínica torna as possibilidades de diálogo entre abordagens uma questão importante. Objetivou-se neste trabalho compreender a dinâmica de aproximações e afastamentos entre duas abordagens humanistas - a Gestalt-terapia e o Psicodrama - a partir da análise dos dados provenientes de entrevistas realizadas com profissionais das duas orientações. A Teoria Fundamentada nos Dados foi escolhida como método, na busca de produção teórica a partir do contato analítico com narrativas de terapeutas. Foram entrevistados 22 profissionais do Psicodrama e da Gestalt-terapia (onze de cada orientação) que possuem expressivo percurso na abordagem de filiação. As experiências que facilitaram a abertura e flexibilidade para o exame sério e interessado das contribuições de outros sistemas incluem o contato com vários sistemas desde cedo na carreira, a apreciação de conceitos trabalhados na outra abordagem e a influência de alguém importante que exercia prática integrativa. A admiração, a fidelidade e o sentimento de que a própria abordagem supre as necessidades pessoais contribuem para que o profissional fique fechado às contribuições de outras escolas.
Psicodrama; gestalt-terapia; interdisciplinaridade
The diversity of conceptions present in clinical psychology makes the possibilities for dialogue between approaches an important issue.The aim of this study is to understand the dynamics of approximation and estrangement between two humanistic approaches - Gestalt Therapy and Psychodrama - from the analysis of data from interviews with professionals in both orientations. A Grounded Theory analysis was chosen in order to build theory that is analytically based on the therapists' narratives. Twenty two professionals were interviewed, eleven of each orientation, who have significant path in this approach. The experiences that facilitated the openness and flexibility for serious and interested examination of the contributions of other systems include: contact with various systems early in his career, the assessment of concepts worked on another approach and the influence of someone who held important integrative practice. The admiration, loyalty and the feeling that one's approach meets the personal needs that contribute to the professional stay closed on contributions from other schools.
Psychodrama; gestalt therapy; interdisciplinarity
La diversidad de concepciones presentes en la psicología clínica hace con que las posibilidades de diálogo entre enfoques sean un tema importante. El objetivo de este trabajo fue comprender la dinámica de aproximación y alejamiento entre dos enfoques humanistas - la Terapia Gestalt y el Psicodrama - a partir del análisis de los datos provenientes de entrevistas realizadas con profesionales de ambas las orientaciones. La Teoría Fundamentada en los datos fue elegida como método, en la búsqueda de la producción teórica a partir del contacto analítico con los relatos de terapeutas. Fueron entrevistados 22 profesionales del Psicodrama y de la Terapia de Gestalt, once de cada orientación que poseen una expresiva trayectoria en el enfoque de filiación. Las experiencias que facilitaron la apertura y flexibilidad para el examen serio e interesado de las aportaciones de otros sistemas incluyen: el contacto con varios sistemas desde muy temprano en la carrera, la apreciación de conceptos trabajados en otro enfoque y la influencia de alguien importante que ejercía una práctica integradora. La admiración, fidelidad y el sentimiento de que el proprio enfoque suple las necesidades personales contribuyen para que el profesional se quede cerrado a las aportaciones de otras escuelas.
Psicodrama; terapia de gestalt; interdisciplinaridad
ARTIGOS
Possibilidades de diálogos entre abordagens humanistas: escutando vivências de psicodramatistas e gestalt-terapeutas
Possibilities of dialogue between humanistic approaches: listening experiencies of psicodramatists and gestalt therapists
Posibilidades de diálogos entre enfoque humanistas: escuchando las vivencias de psicodramatistas y terapeutas gestálticas
Érico Douglas VieiraI; Luc VandenbergheII
IMestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, doutorando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, professor efetivo do curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí
IIMestrado em Psicologia Clínica pela Rijks Universiteit Gent, Bélgica, doutorado em Psicologia pela Université de l’Etat à Liège, Bélgica professor adjunto da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e orientador dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia, em Ciências Ambientais e em Saúde
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Dona Esmeralda, 606, Vila Fátima, CEP 75.803-095 - Jataí-GO. E-mail: ericopsi@yahoo.com.br
RESUMO
A diversidade de concepções presente na Psicologia Clínica torna as possibilidades de diálogo entre abordagens uma questão importante. Objetivou-se neste trabalho compreender a dinâmica de aproximações e afastamentos entre duas abordagens humanistas - a Gestalt-terapia e o Psicodrama - a partir da análise dos dados provenientes de entrevistas realizadas com profissionais das duas orientações. A Teoria Fundamentada nos Dados foi escolhida como método, na busca de produção teórica a partir do contato analítico com narrativas de terapeutas. Foram entrevistados 22 profissionais do Psicodrama e da Gestalt-terapia (onze de cada orientação) que possuem expressivo percurso na abordagem de filiação. As experiências que facilitaram a abertura e flexibilidade para o exame sério e interessado das contribuições de outros sistemas incluem o contato com vários sistemas desde cedo na carreira, a apreciação de conceitos trabalhados na outra abordagem e a influência de alguém importante que exercia prática integrativa. A admiração, a fidelidade e o sentimento de que a própria abordagem supre as necessidades pessoais contribuem para que o profissional fique fechado às contribuições de outras escolas.
Palavras-chave: Psicodrama; gestalt-terapia; interdisciplinaridade.
ABSTRACT
The diversity of conceptions present in clinical psychology makes the possibilities for dialogue between approaches an important issue.The aim of this study is to understand the dynamics of approximation and estrangement between two humanistic approaches - Gestalt Therapy and Psychodrama - from the analysis of data from interviews with professionals in both orientations. A Grounded Theory analysis was chosen in order to build theory that is analytically based on the therapists' narratives. Twenty two professionals were interviewed, eleven of each orientation, who have significant path in this approach. The experiences that facilitated the openness and flexibility for serious and interested examination of the contributions of other systems include: contact with various systems early in his career, the assessment of concepts worked on another approach and the influence of someone who held important integrative practice. The admiration, loyalty and the feeling that one's approach meets the personal needs that contribute to the professional stay closed on contributions from other schools.
Key words: Psychodrama; gestalt therapy; interdisciplinarity.
RESUMEN
La diversidad de concepciones presentes en la psicología clínica hace con que las posibilidades de diálogo entre enfoques sean un tema importante. El objetivo de este trabajo fue comprender la dinámica de aproximación y alejamiento entre dos enfoques humanistas la Terapia Gestalt y el Psicodrama a partir del análisis de los datos provenientes de entrevistas realizadas con profesionales de ambas las orientaciones. La Teoría Fundamentada en los datos fue elegida como método, en la búsqueda de la producción teórica a partir del contacto analítico con los relatos de terapeutas. Fueron entrevistados 22 profesionales del Psicodrama y de la Terapia de Gestalt, once de cada orientación que poseen una expresiva trayectoria en el enfoque de filiación. Las experiencias que facilitaron la apertura y flexibilidad para el examen serio e interesado de las aportaciones de otros sistemas incluyen: el contacto con varios sistemas desde muy temprano en la carrera, la apreciación de conceptos trabajados en otro enfoque y la influencia de alguien importante que ejercía una práctica integradora. La admiración, fidelidad y el sentimiento de que el proprio enfoque suple las necesidades personales contribuyen para que el profesional se quede cerrado a las aportaciones de otras escuelas.
Palabras-clave: Psicodrama; terapia de gestalt; interdisciplinaridad
Nos primeiros contatos com as diversas abordagens em psicoterapia é compreensível que se sinta uma mescla de surpresa e angústia ante a multiplicidade de saberes. Ao invés de uma comunidade científica unificada, há a descoberta de várias psicologias com diferentes enfoques, objetivos e procedimentos (Figueiredo, 1991). O que espera o estudante no seu futuro profissional? Cumpre entender de que maneira o psicólogo formado lida com a pluralidade dos modos de apreensão do psicológico.
Figueiredo (2009) aponta dois caminhos negativos: o dogmatismo e o ecletismo. No primeiro, o profissional se enclausura dentro do seu sistema, fechando-se para tudo o que possa contestá-lo. No caso do ecletismo, há a adoção indiscriminada dos métodos e técnicas disponíveis para fazer frente aos desafios da prática. A falta de rigor e compromisso teórico aproxima o profissional do senso comum. De fato, o termo eclético goza de uma péssima reputação entre os psicólogos brasileiros. A cautela com práticas desordenadas é uma questão legítima e, sobretudo, ética.
Por outro lado, no meio estadunidense, de um quarto à metade dos psicólogos preferem o rótulo de ecléticos ou integrativos (Gold & Stricker, 2006; Norcross, 2005). Nos Estados Unidos, desde a década de 80, existe o Movimento de Integração em Psicoterapia, constituído por pesquisadores e psicoterapeutas que se interessam em estudar sistematicamente formas de comunicação entre as diversas abordagens psicológicas (Norcross, 2005; Paris, 2013; Watchel, 2010). O desejo de ultrapassar as fronteiras da abordagem de filiação e examinar seriamente as contribuições de outras escolas é a essência do movimento. O que os psicólogos brasileiros chamam de ecletismo a literatura de língua inglesa denomina de sincretismo, que se refere à seleção indiscriminada e arbitrária de conceitos e técnicas de fontes divergentes, gerando uma abordagem incoerente e sem princípios norteadores (Gold, 2010; Norcross, 2005). Existem modalidades organizadas de integração, muitas delas baseadas em pesquisas empíricas amplamente veiculadas pelo Movimento de Integração em Psicoterapia (Stricker & Gold, 1996). O campo de pesquisa deste movimento engloba diversos tipos de comunicação entre escolas psicológicas, como comparações de conceitos, busca de aspectos em comum e assimilação de aspectos de outras abordagens considerados vantajosos.
No tocante ao caso brasileiro, não existe um movimento de integração institucionalizado, mas tentativas dispersas de integração entre abordagens. Para o exame desta lacuna objetivou-se, neste trabalho, compreender a dinâmica de aproximações e afastamentos entre duas abordagens humanistas - a Gestalt-terapia e o Psicodrama , tendo-se como referência a análise dos dados provenientes de entrevistas realizadas com profissionais das duas orientações. Na inexistência de um movimento de integração institucionalizado, pretendeu-se compreender as vivências dos profissionais que podem facilitar integrações e as vivências que podem fechá-los dentro dos muros da própria abordagem. Embora exista reconhecimento quanto a aproximações epistemológicas entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama (Almeida, 2006), são escassos trabalhos que explorem as possibilidades de integração entre elas. A escolha destas abordagens específicas se deu pela percepção desta outra lacuna na literatura profissional.
Neste ponto, faz-se necessário apresentar apenas breves descrições dos fundamentos teóricos e práticos do Psicodrama e da Gestalt-terapia, pois uma caracterização mais exaustiva e completa foge ao escopo deste trabalho.
O Psicodrama é uma abordagem criada no início de século XX em Viena, na Áustria, pelo médico romeno Jacob Levy Moreno (1889-1974). Influenciado pelo pensamento fenomenológico existencial, Moreno buscava alternativas diante das limitações dos modelos científicos e das formas de sociabilidade da época, vistas por ele como estruturas rígidas e restritivas da expressão da criatividade humana (Almeida, 2006). Um aspecto fundamental da proposta moreniana é a utilização da arte do teatro para a representação de conflitos oriundos do contexto social através da dramatização. O espaço cênico é o veículo de expressão das questões vividas no cotidiano dos indivíduos, famílias, grupos e comunidades (Contro, 2011). Podem ser dramatizadas situações passadas, presentes e algumas que nunca aconteceram, mas que são significativas para os sujeitos. A dissolução de fronteiras através da saída do mundo limitado a partir da vivência em uma realidade suplementar mobiliza as emoções das pessoas. O palco oferece liberdade para uma experiência que inclua a imaginação e a movimentação espacial e corporal (Moraes Neto, 2011).
A primazia do trabalho grupal revelava a concepção do ser humano em relação. No caso brasileiro, a partir da década de 1980 teve início uma forte tendência, ainda hegemônica no movimento psicodramático, que consiste no desenvolvimento de aportes metodológicos e teóricos para o atendimento em psicoterapia individual; no entanto, mais recentemente começou-se a tentar responder às demandas institucionais e sociais, o que permite o resgate de algumas características iniciais do Psicodrama (Motta, 2008).
Há uma crença nos aspectos saudáveis da personalidade, uma concepção de homem como um gênio em potencial (Moreno, 1975). O Psicodrama busca o resgate da espontaneidade através do rompimento com padrões de comportamento estereotipados, com valores e formas de participação na vida social que acarretem a automatização do ser humano. Moreno (1975) define espontaneidade como a capacidade de responder de maneiras adequadas a situações que se manifestem, ou de dar novas respostas às situações antigas. A espontaneidade é um conceito que leva em consideração a imersão do ser humano no seu contexto. Não é uma relação de ajustamento ao meio, mas uma relação de compromisso entre sujeito e mundo, constituindo um esforço para resgatar uma presença atuante e integrante nas situações. Nesta relação de compromisso o ser humano se transforma e é transformado pelo meio (Naffah-Netto, 1997). O trabalho com a ação, a capacidade de fomentar a renovação, a criação e a busca por transformar a realidade social apontam o psicodrama como importante ferramenta teórica e metodológica para intervenções sobre realidades subjetivas e sociais (Contro, 2011).
Em perspectiva similar de crença nos aspectos saudáveis do indivíduo, inserida no bojo das psicoterapias humanistas que floresciam no período pós-Segunda Guerra Mundial, a Gestalt-terapia apresentava as propostas de valorizar o crescimento e o desenvolvimento da personalidade e de perceber o homem como capaz de se autogerir e de se autorregular (Rodrigues, 2000).
Há forte consenso na comunidade da Gestalt-terapia em que seu surgimento se deu no ano de 1951, com a publicação do livro Gestalt-therapy: excitement and growth in the human personality, escrito por Frederick Perls em parceria com Paul Goodmam e Ralph Hefferline, traduzido para o português em 1997 com o título abreviado Gestalt-terapia. Frederick Perls (1893-1970), influenciado pela fenomenologia de Husserl e pelo movimento da Psicologia da Gestalt, buscou empreender um exame radical das limitações da Psicanálise (Frazão & Fukumitsu, 2013). No novo método, buscava explorar mais a descrição da experiência presente do cliente do que a interpretação centrada no inconsciente e nas experiências passadas (Perls, Hefferline & Goodman, 1997). A partir da década de 1980 estabeleceu-se entre os gestalt-terapeutas uma tendência a modificar o modelo instituído por Perls, com base em exercícios de ação propostos ao paciente, para um modelo centrado na relação terapeuta-paciente. A chamada Gestalt-terapia relacional, além de ter sido influenciada pelas ideias de Martin Buber, procurou também fortalecer os fundamentos teóricos e filosóficos da abordagem. No caso brasileiro esta tendência ainda prevalece (Frazão & Fukumitsu, 2013).
A meta da Gestalt-terapia é o crescimento. Na fronteira de contato entre o organismo e o ambiente, a transição renovada entre a rotina e a novidade resulta em assimilação e crescimento (Perls et al., 1997). O ajustamento criativo permite que o organismo assimile do ambiente o que é nutritivo e descarte o que é tóxico ou desnecessário. Uma boa capacidade de estar consciente da própria experiência viabiliza o crescimento, capacitando o organismo a digerir suas experiências psicológicas, absorvendo somente o que é nutritivo. Assim, a Gestalt-terapia enfatiza o trabalho com a consciência e a percepção. Neste sentido, a awareness é um estado de concentração em que o sujeito é capaz de focar sua atenção nas figuras que emergem na percepção. A tomada de consciência facilita um livre fluir no processo natural do delineamento figura e fundo. O processo de figura e fundo é a seleção do organismo, que deve se adaptar para perceber o que é mais importante no momento para a satisfação das suas necessidades: "a formação figura/fundo que for mais forte, assumirá temporariamente o controle do organismo total" (Perls, 1979, p.113). Interferências na flexibilidade no processo figura/fundo geram acúmulo de situações inacabadas, ideias fixas e rigidez nos comportamentos (Perls, 1979). A ênfase na atitude descritiva voltada para o momento presente, a priorização da promoção de uma ampla conscientização nas formas de ser e agir do cliente e a busca do crescimento pessoal apontam como significativas as contribuições da Gestalt-terapia para o exercício da psicoterapia (Rodrigues, 2000).
Espera-se que o estudo possa auxiliar os estudantes e psicólogos que se dedicam à psicoterapia na reflexão sobre o manejo pessoal e profissional com a diversidade epistemológica presente na Psicologia. Profissionais mais conscientes da sua relação com o saber profissional podem prestar melhor serviço à população atendida.
As abordagens psicológicas expressam modos de constituição dos sujeitos e não meramente modos diferentes de representação do psicológico (Ferreira Neto & Penna, 2006). O aprendizado dos conceitos das abordagens não é somente um processo cognitivo de transmissão de informações, mas uma experiência vivida com fortes tonalidades afetivas, em que a subjetividade do terapeuta está implicada (Ferreira Neto, 2004). Nesta perspectiva, cada teoria é uma intervenção ética, por isso são relevantes as tentativas de compreender a relação entre aspectos subjetivos do clínico e o diálogo entre as escolas psicológicas.
Na intrincada relação com o universo dos saberes psi, o terapeuta precisa descobrir sua própria maneira de ser e trabalhar. O desenvolvimento dos seus modos de se relacionar com as teorias se dá através de um processo extremamente pessoal (Figueiredo, 2009). Além disso, o terapeuta tem que enfrentar o difícil mas necessário desafio de lidar com a complexidade da experiência que se apresenta na clínica. A escuta da particularidade de cada caso estimula uma crescente busca de subsídios e saberes (Ferreira Neto & Penna, 2006). Aqui, a pertinência da questão da integração revela seu aspecto ético. Será que os terapeutas prestarão um melhor serviço se permanecerem fiéis à abordagem de filiação ou se partirem em busca de novos saberes?
Por fim, o trabalho pode contribuir para estimular algumas reflexões sobre a identidade científica da Psicologia. O seu polimorfismo é sinal de vitalidade e crescimento ou de imaturidade e fragmentação? Devemos acentuar, como propõe Figueiredo (1991), o desenvolvimento de cada abordagem para delimitar produtivamente a realidade a ser estudada?; ou devemos adotar as discussões interabordagens em Psicologia como problema legítimo de investigação que pode ampliar nossa visão da realidade?
MÉTODO
Para a realização da pesquisa foram entrevistados onze profissionais de cada abordagem, totalizando vinte e dois entrevistados. As entrevistas semiestruturadas sondaram as seguintes questões norteadoras: trajetória na própria abordagem; grau de conhecimento da outra abordagem; pontos em comum entre a Gestalt-terapia e o Psicodrama; pontos de divergência; possibilidades de integrações entre as abordagens. Foram convidados profissionais de relevância nas abordagens no cenário nacional, dos quais alguns são membros pioneiros e outros têm um percurso de atuação reconhecidamente importante. Procurou-se, desta forma, identificar profissionais que tenham uma reflexão mais apurada sobre a própria abordagem. Alguns profissionais são professores de curso de formação na própria abordagem, o que aponta a possibilidade de que os participantes tenham contato intenso e constante com os conceitos e pressupostos filosóficos da sua abordagem. A atuação prática relevante foi um critério de inclusão para todos os sujeitos. Foram entrevistadas catorze mulheres (seis psicodramatistas e oito gestalt-terapeutas) e oito homens (cinco psicodramatistas e três gestalt-terapeutas). Participaram seis diretores/fundadores de institutos de formação, sendo dois psicodramatistas e quatro gestalt-terapeutas. A maioria (dezoito sujeitos) é constituída de professores de formação na abordagem, dos quais sete são psicodramatistas e onze são gestalt-terapeutas. Seis são professores universitários (cinco de Gestalt-terapia e um de Psicodrama). Por fim, oito são autores de livros na abordagem, três são gestalt-terapeutas e cinco são psicodramatistas. O encerramento da busca de novos participantes se deu pelo entendimento de que a pergunta de pesquisa foi respondida.
Foi adotado um metodo qualitativo, a Teoria Fundamentada nos Dados, a qual consiste em diretrizes que permitem coletar e analisar dados, com o objetivo de construir um modelo teórico fundamentado nos próprios dados (Charmaz, 2009). As entrevistas transcritas geraram o material que foi codificado e categorizado. A codificação inicial representa uma primeira tentativa de nomear os segmentos de dados, que são os trechos das entrevistas. A codificação pretende promover um salto dos eventos concretos para os insights teóricos (Charmaz, 2009). Os códigos emergentes foram comparados constantemente com os códigos iniciais, sendo modificados e agrupados em subcategorias e categorias. Para a análise abstrata dos dados, a equipe de pesquisa, constituída de dois psicólogos clínicos (os autores deste artigo), realizou discussões e registros de insights e hipóteses. Os conceitos emergentes destas análises foram comparados com novos dados, de modo a se obter um refinamento cada vez maior dos conceitos (Lyn & Morse, 2013). As narrativas de cada entrevista foram comparadas, buscando-se os eventos principais para se identificarem os padrões em comum.
Nas tentativas de entender as possibilidades de diálogo entre Psicodrama e Gestalt-terapia, seu processo e seus desafios, uma categoria se revelou fundamental: a relação entre as vivências pessoais do profissional e a abordagem. Percebeu-se que os aspectos subjetivos ligados à trajetória profissional do psicoterapeuta são condições que facilitam o diálogo ou podem dificultá-los. As experiências pessoais - como o contato com vários sistemas desde cedo na carreira, a apreciação de conceitos trabalhados na outra abordagem e a influência de alguém importante que exercia prática integrativa - contribuem para direções integrativas. Grande admiração e fidelidade à própria abordagem contribuem para que o profissional fique fechado aos atrativos de outras escolas, uma vez que a própria abordagem supre suas necessidades pessoais e profissionais.
RESULTADOS
Emergiram da análise dos dados dois conceitos que explicam a relação entre as vivências pessoais do profissional e as possibilidades de integração entre o Psicodrama e a Gestalt-terapia: as vivências que dispõem o profissional à integração e as que o inibem. Os conteúdos dos quais esses dois conceitos emergiram estão explicados na seção seguinte, com referências às contribuições dos participantes que são designados pelas letras G para gestalt-terapeutas e P para psicodramatistas, seguidas de números que indicam a ordem na qual foram entrevistados.
Vivências profissionais pró-integração
A vivência na abordagem permite o exercício profissional e a paulatina construção da identidade profissional. Neste percurso, determinados tipos de vivência profissional constituem uma abertura para o exame dos aspectos positivos de outras abordagens.
Uma dessas vivências foi a experiência de insatisfação no primeiro contato com a própria abordagem. A percepção da falta de profundidade teórica, o estranhamento com conceitos ou de difícil entendimento ou que não sintonizavam com a prática vivida, assim como o desconforto em ter participado de demonstrações práticas nas quais se sentiram constrangidos, foram aspectos que causaram decepção nos primeiros contatos (P10, P11, P16, G18 e G20). A afiliação à própria abordagem foi garantida por experiências positivas posteriores (P10, G18 e G20), porém as experiências negativas já tinham mostrado que a própria abordagem não era perfeita e, consequentemente, abriram o profissional para as contribuições de outras escolas.
A atração por determinados aspectos metodológicos apoiados pela outra abordagem constitui-se em outro grupo de vivências pró-integração. A metodologia de atendimento em grupos e os recursos de ação atraíram os profissionais, pois com estes recursos se sentiram mais munidos para a prática (P1, G3, G6 e P9). Os profissionais se identificam a trabalhos que envolvessem a concretização da experiência através das dramatizações, o que pode promover ressignificações (G5 e P14). Alguns gestalt-terapeutas (G3 e G5) compreendem que o trabalho em grupo é muito rico, permitindo diversos olhares sobre um mesmo fenômeno. Estes aspectos, compartilhados pelo Psicodrama e pela Gestalt-terapia, influíram na escolha da própria abordagem e, ao mesmo tempo, promoveram uma aproximação do profissional com a outra abordagem.
Reconhecemos uma aproximação mais direta com a outra abordagem, proporcionada pela admiração por ela, quando os profissionais mencionam que utilizam suas contribuições. Os aspectos em comum facilitam esta aproximação e a admiração pelos recursos de ação da outra escola a sustentam (P1, G5, P13 e P15). Há a assimilação de aspectos considerados vantajosos, como a fundamentação filosófica e teórica da outra abordagem (P1 e P15). A entrevistada P15 atualmente faz a formação em Gestalt-terapia porque percebe o Psicodrama como carente de uma visão de ser humano mais consistente. A entrevistada G5 diz que sempre trouxe incorporados elementos do Psicodrama em sua prática, principalmente os recursos para os trabalhos grupais. A entrevistada P13 menciona que transforma exercícios da Gestalt-terapia em exercícios do Psicodrama.
Uma vivência profissional marcante foi o início da trajetória na outra abordagem (G2 e P9). A entrevistada G2 escolheu formar-se em Psicodrama pela possibilidade de atuação dialógica oferecida pelo trabalho nas dramatizações. No decorrer dos estudos decepcionou-se, pois percebeu que a prática desconsiderava a autonomia do cliente pelo caráter diretivo da atuação do terapeuta. O mesmo recurso que a tinha atraído, a dramatização, passou a ser visto como invasivo e imposto pela autoridade do terapeuta. Posteriormente, encontrou a dimensão do diálogo da Gestalt-terapia, uma abordagem com a qual ela se identifica mais. A entrevistada P9 iniciou sua trajetória na Gestalt-terapia, buscando a psicoterapia, como graduanda, com um professor de Psicodrama que na clínica era gestalt-terapeuta. As ideias de Perls e de Moreno forneceram a ela visões alternativas à da Psicanálise, embora esta predominasse em sua grade curricular. Apesar de redirecionar sua formação e atuação profissional para o Psicodrama, manteve uma percepção positiva e uma posterior abertura para a Gestalt-terapia. Assim, a desilusão de G2 com a abordagem inicial fechou as portas para a integração, enquanto P9 manteve o interesse pela abordagem que tinha abandonado.
Por fim, um grupo de vivências pró-integração colocou os participantes em contato com a diversidade de escolas. Em vários casos, os profissionais foram influenciados no início da carreira por uma figura de referência, que representava um modelo a ser seguido seja um professor ou um terapeuta e que trazia em seu exercício profissional elementos de mais de uma abordagem (G6, P9, P13, P14, G19 e P21). Em outros casos, em sua carreira os profissionais entraram em contato com a diversidade desde cedo, com o envolvimento em estudos de outras teorias, motivados pela curiosidade intelectual e pela busca de aprimoramento, pois sentiram que a formação na profissão não fornecia suporte suficiente para a prática (G2, P14, P16 e G22). Por esses caminhos, diversos conceitos e atitudes clínicas de outras escolas foram incorporados ao exercício profissional (P13, P14, P17, G20, P21 e G22). A busca de contribuições de sistemas que sintonizem com a sua identidade e que se assemelhem, quanto à fundamentação filosófica, com a própria abordagem, é outro caminho para a integração (G20, P21 e G22), como também o insight promovido pelo aprofundamento em outras abordagens (G20 e P21). Ao ascender à função de professor, o docente pode ter que lecionar disciplinas com conceitos pouco desenvolvidos ou ausentes na sua abordagem de filiação, precisando, ao menos, conhecer outras escolas (G20). A busca de outros saberes não é uma traição, pois inclusive permite permanecer fiel à preferência emocional, sem sofrer pelas limitações do modelo (P17 e P21).
Assim, os atrativos para a integração envolvem necessidades profissionais, curiosidade intelectual, busca pelo aprimoramento, apelos emocionais e experiências pessoais.
Vivências profissionais anti-integração
O sentimento de afiliação e pertencimento proporcionado pela vivência na abordagem pode levar seus membros a desqualificar as outras abordagens e valorizar a própria. A própria abordagem preenche necessidades profissionais e pessoais. Há um sentimento de gratidão pela comunidade na qual o profissional se encaixa. Isto pode ser acompanhado por um desinteresse pelas outras abordagens, erguendo uma barreira para integrações. O profissional que se identifica intensamente sentirá a busca por algo interessante fora dos muros da sua abordagem como uma transgressão.
É comum profissionais justificarem sua escolha e permanência na abordagem de pertencimento por uma exposição de sua forte ligação com o sistema. Neste sentido, vários participantes destacam a compreensão contextual do ser humano. A própria abordagem trabalha com o mundo vivo do cliente, compreendendo-o como um organismo que pertence a um ambiente (G2). A compreensão do terapeuta é ampliada com a visão de que o ser humano é parte integrante de uma rede relacional (P10 e P11) e de que os determinantes do sofrimento não podem ser buscados como se fossem originados somente no cliente isoladamente (P11, P16 e G19). Há uma celebração da ruptura com a ênfase no indivíduo isolado, aspecto indesejável das abordagens psicodinâmicas (P10 e G19). O foco no desenvolvimento pessoal, e não na cura de sintomas (P11), e o preceito que o terapeuta deve se comportar como fundo para que o cliente seja a figura do processo (G18), também são motivos de admiração da abordagem.
Os aspectos admirados na abordagem podem desestimular o interesse por outras escolas. Alguns pressupostos filosóficos e teóricos atraíram os profissionais para a abordagem, principalmente: o respeito demonstrado ao cliente; a visão de ser humano; a forma de concepção do processo de mudança e a ênfase nos aspectos saudáveis da personalidade (G4, G5, G7, P17, G18 e G20); não trabalhar com o planejamento de técnicas independente da relação terapêutica; não impor um caminho para o cliente, nem apressar seu desenvolvimento (G2, G5, G6, G7, G18, G19 e G20); confiar nas partes saudáveis do cliente (G6 e G18); e facilitar a emergência dos conteúdos de maneira não diretiva (G2, G5, G18, G19 e G20). A própria abordagem possui recursos para o trabalho com o material emergente (P12 e G18).
Prosseguindo na exposição das vivências profissionais anti-integração, os participantes relataram a segurança proporcionada a partir do amparo metodológico fornecido pela abordagem de filiação. Alguns psicodramatistas apontam que a abordagem construiu ferramentas conceituais mais amplas para o trabalho com grupos (P9, P10 e P11), e um gestalt-terapeuta se diz satisfeito com a evolução recente de sua escola nesta modalidade e na direção de uma prática mais dialógica (G7).
No primeiro contato com a abordagem, houve uma experiência de encantamento súbito com o método, relatada por alguns psicodramatistas que participaram de um workshop que os impressionou sobremaneira pela capacidade de trabalho criativo com grupos (P1, P12 e P16). A criatividade das técnicas utilizadas e as possibilidades de movimentação espacial e de trabalhos com grandes grupos serviram para solidificar a admiração pelo Psicodrama nos contatos subsequentes (P1, P11, P12, P13, P15 e P16). A essência da abordagem, a dramatização, é vista como um fator terapêutico indispensável por P13.
Os gestalt-terapeutas destacam o poder do trabalho com a experiência presente, que é vista como superior ao trabalho interpretativo (G6), além do potencial terapêutico envolvido no resgate da experiência imediata como forma de reviver as emoções passadas e ressignificá-las (G3 e G8). A Gestalt-terapia possui conceitos que permitem a atuação do psicólogo em outros contextos que não o da clínica tradicional. Desta forma, atualmente seus membros passam a denominá-la de Abordagem Gestáltica (G19).
No processo de reflexão sobre a conexão com a própria abordagem alguns aspectos subjetivos dos participantes emergem de maneira significativa. Os profissionais escolheram a abordagem por perceberem uma sintonia entre conceitos, técnicas e atitudes clínicas com sua própria "maneira de funcionar" (G2, G3 e P21). A trajetória na abordagem preenche necessidades profissionais e pessoais (G6, P9, P11, P16, P17, G18, G19, G20, P21 E G22). A insatisfação com outros sistemas coloca o profissional na busca de uma abordagem que possa se encaixar com sua identidade (P13, G20 e P21). No momento em que conhecem a abordagem, experimentam uma sensação de aproximação dos seus conceitos e métodos com suas características pessoais. Os participantes utilizam metáforas interessantes para expressar o vínculo emocional com a abordagem de filiação: "Nessa trajetória eu acho que chegar na Gestalt-terapia foi meio que achar o sapato que cabia no pé" (G18); "Para mim a Gestalt continua sendo esse sapato hiper confortável, aquela roupa deliciosa que você veste, a sua segunda pele" (G22).
É encontrada uma forte sintonia entre os conceitos e fundamentos filosóficos da abordagem e as características e valores pessoais: "Gente, é como todo mundo que descobre a Gestalt diz isso: sou eu! Sou eu, isso tem a ver comigo! É a Gestalt que me descobriu, porque ela diz daquilo que eu acredito" (G6).
O "otimismo" da abordagem que enfatiza o desenvolvimento humano e os aspectos saudáveis da personalidade confirma algo que o profissional já possuía: "eu era sonhadora e o Psicodrama me deu mais isto (P17)". O encaixe entendido como "perfeito" entre o sistema e os aspectos subjetivos leva os participantes a perceber a abordagem como parte integrante de sua identidade pessoal. Alguns pressupostos filosóficos - como a ênfase na liberdade e no potencial de crescimento do ser humano - são vistos como libertadores na esfera pessoal (G5 e G6). Para uma gestalt-terapeuta, a crença no potencial humano não só foi útil na atuação profissional, mas também serviu como um suporte pessoal (G6). Uma psicodramatista relata que sua inserção na abordagem ajudou-a a combater sua timidez e introversão (P9). A abordagem escolhida responde a questionamentos existenciais e necessidades pessoais: "É essa concepção de homem, essa confiança no potencial, eu acho que isso foi uma coisa superimportante pra mim, que talvez eu pessoalmente precisasse disso, né" (G6).
A abordagem é elogiada por sua capacidade de respaldar a atuação com conceitos e métodos e, acima de tudo, de mobilizar um envolvimento emocional. Como a sintonia entre identidade e abordagem é uma meta a ser seguida, há um risco perene de desencontro entre as falhas pessoais dos profissionais e os pressupostos filosóficos da abordagem, causado por "fraquezas humanas" (G20). A coerência entre as características pessoais e a abordagem é um valor importante. Para alcançar a condição de integrante exemplar, o profissional deve aprimorar seus aspectos pessoais para sustentar uma atuação coerente com as ideias da abordagem (G20). Características incompatíveis, como a vaidade, por exemplo, devem ser combatidas. As condutas desejáveis devem ser vividas em todas as circunstâncias da vida pessoal, inclusive no exercício profissional.
A gratidão por ter encontrado uma abordagem que responde a questionamentos existenciais e profissionais produz uma intensa identificação com essa abordagem, numa espécie de encantamento. Este processo de filiação, que possui um revestimento racional com um cerne mais emocional, promove um investimento endógeno, no qual as outras abordagens se apresentam sem atrativos.
DISCUSSÃO
O Psicodrama e a Gestalt-terapia possuem pontos de convergência nas suas concepções filosóficas e em muitos procedimentos metodológicos. A aproximação entre as abordagens pode estimular a realização de trocas que podem ser benéficas para cada uma delas. Segundo Almeida (2006), "a Gestalt-terapia enriquece a compreensão do ocorrido nas sessões com propostas coirmãs do Psicodrama" (p.21). Nos discursos pró-integração feitos na presente pesquisa percebe-se que as abordagens são retratadas como pertencentes à visão de um homem dotado de liberdade e com uma tendência ao crescimento. Além da valorização dos recursos dramáticos, as duas abordagens são contemporâneas nas origens do movimento da Psicologia Humanista (Sá-Júnior, 2009).
Como antes mencionado, já existem intercâmbios entre estas orientações. Alguns profissionais incorporam ativamente elementos da outra abordagem que faltam na própria como forma de sustentar uma atuação mais eficaz. Um caminho para as trocas é apontado pelos dados. Houve entre os gestalt-terapeutas uma tendência a exaltar os aspectos filosóficos e teóricos da sua abordagem, enquanto os psicodramatistas relataram admirar os recursos metodológicos do Psicodrama. A Gestalt-terapia pode inspirar um maior aprofundamento em reflexões filosóficas do psicodramatista, enquanto o Psicodrama pode dar contribuições ao gestaltista através da sua criatividade metodológica.
Cabe observar que os depoimentos dos participantes da presente pesquisa não contrariam a noção de que as abordagens devem preservar suas singularidades, caso contrário suas ricas contribuições seriam ofuscadas. É possível usar de maneira metafórica a noção gestáltica de fronteira do ego para ilustrar este aspecto. Para Perls (1977), o organismo individual deve possuir fronteiras bem-delimitadas e flexíveis, cuja principal função é a discriminação entre aspectos do ambiente que podem ser tóxicos ou nutritivos. O organismo cresce quando se expande, quando incorpora e assimila substâncias de fora. Trazendo esta perspectiva para o tema da integração, podemos dizer que cada abordagem deve ter sua fronteira bem-construída e, ao mesmo tempo, ser flexível o suficiente para fazer contato com outras teorizações, caso contrário seu crescimento fica estagnado.
A trajetória percorrida na própria abordagem revela não somente escolhas pragmáticas pela busca de ferramentas que possam respaldar o exercício profissional, pois ao também estão envolvidos aspectos mais subjetivos, baseados no reconhecimento de um conjunto de anseios e valores que os profissionais já carregavam antes da escolha e que coincidem com as ideias filosóficas da abordagem. A abordagem seduz o profissional primeiramente por fatores emocionais profundos. Posteriormente, o profissional sente a necessidade de pensar em motivos racionais para justificar sua escolha e permanência na abordagem. Numa vertente similar, Figueiredo (2009) contesta a ideia de que há uma escolha consciente da abordagem. Segundo o autor, o que ocorre são atrações e rejeições baseadas em afinidades que têm mais a ver com ressonâncias afetivas do que com reflexões racionais; portanto, é a abordagem que "fisga" cada adepto, o que não dispensa as tentativas de entendê-la e se posicionar quanto à afiliação" (Figueiredo, 2009, p. 45).
Existe uma espécie de sintonia entre a identidade do profissional - com seus valores, visão de ser humano e de mundo e os pressupostos filosóficos da abordagem. "Certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece: como não fui eu que fiz?" (Nascimento, 1999). Este trecho de música ilustra algo que os entrevistados dizem nas entrelinhas. Há uma semelhança entre as ideias do profissional e os conceitos trazidos pela abordagem. A descoberta da abordagem promove uma sensação de harmonia entre as teorias e aspectos subjetivos do profissional, o qual, enfim, pode terminar sua busca de inserção em um sistema psicológico. A dificuldade de se identificar com outras escolas, somada a esta intensa experiência de descoberta, pode produzir uma satisfação que desestimula a busca fora das fronteiras da abordagem de filiação. Dificilmente um processo desta natureza não se dá de forma apaixonada. As metáforas da abordagem como "segunda pele" ou como um "sapato que cabe no pé" indicam uma sensação de realização profissional pela inserção em um sistema admirado. Por outro lado, denotam uma relação de plenitude e idealização que merece ser examinada de forma crítica. Nenhuma abordagem pode preencher todas as necessidades do profissional. O profissional poderia lucrar com a constatação sobre a impossibilidade de plenitude, tornando-se motivado a se adaptar ativamente para dar conta de suas necessidades, e este processo pode ensejar buscas integrativas.
No processo de afiliação o estudante/profissional passa a integrar e a ser solidário a uma subcomunidade, compartilhando seus valores, crenças básicas e métodos que são pouco questionados por seus adeptos (Figueiredo, 2009). Os clínicos, ao escolherem determinada abordagem, passam a fazer parte de uma comunidade. "É só no contexto social de uma comunidade científica que cada cientista adquire os instrumentos materiais, conceituais e técnicos capazes de permitir que ele entre num contato fecundo com seus objetos (Figueiredo, 2009, p. 139)". O fato de pertencer a um grande grupo de pessoas que pensam de modo semelhante, mesmo havendo subgrupos representando vertentes distintas dentro destas comunidades, é vivido como algo muito significativo. Pertencer a uma abordagem que acredite no potencial humano e na transformação da sociedade fornece um profundo significado existencial e, além disso, dá um suporte existencial a seus membros. A abordagem é vivida como algo mais que um mero programa terapêutico: algo que pode transformar as relações sociais e resgatar o potencial humano.
O grupo de pertença, com seus valores e preceitos, exerce forte influência sobre seus membros, assim como o pertencimento institucional, outro fator social que alimenta o fechamento na teoria de filiação. Os profissionais que ocupam posição de destaque e de referência em sua abordagem por dirigirem institutos responsáveis pela formação de profissionais e por atendimentos clínicos, estão suscetíveis a defender a própria abordagem e até mesmo a desqualificar a outra, que passa a ser depositária de atitudes clínicas indesejáveis. Existem condutas ideais dentro da própria escola. As condutas contrárias ou que fogem a este ideal são atribuídas à outra. Alguns participantes estão absorvidos em exaltar as qualidades e o potencial terapêutico da própria teoria, pois precisam "vendê-la" e zelar pela sua boa imagem. Muitas vezes esta disputa de mercado é real e concreta, pois estes institutos oferecem formação e especialização. Tal configuração dificulta uma distância necessária para o exame crítico das fragilidades da própria abordagem.
Na análise da forte conexão com a abordagem de formação, alguns processos se destacam: (1) harmonia entre identidade e abordagem: pertencimento a uma abordagem que é admirada em seus pressupostos, fornece um amparo para a prática e fortalece a identidade profissional através da consonância entre conceitos e aspectos subjetivos do terapeuta; (2) idealização endógena: a abordagem preenche as necessidades do profissional resultando em atitudes que maximizam suas virtudes e, ao mesmo tempo, produzem um desinteresse pelas teorizações de outras escolas. A harmonia entre identidade e abordagem é uma importante conquista do profissional, que pode resultar em ganho de qualidade dos atendimentos prestados à população. Trata-se, portanto, de uma questão que se reveste de importância ética. Por outro lado, a idealização endógena pode limitar a visão do profissional que não sente motivação em buscar teorizações e métodos capazes de enriquecer sua atuação. É importante mencionar que estes processos podem se inter-relacionar, um alimentando o outro.
O presente estudo permite entender os movimentos de integração e de fechamento dentro de construções teóricas e metodológicas na relação com as vivências e necessidades subjetivas dos profissionais. Esta compreensão permite abordar as possibilidades de diálogo e assimilação como resultante de processos idiossincráticos, que dizem respeito tanto à vivência emocional quanto à reflexão e ponderação racional. O artigo sugere que as tentativas de diálogo entre as abordagens terapêuticas e o movimento de integração atentem mais para essa realidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As vantagens de um enraizamento numa abordagem preferida são claras, porém o enclausuramento dentro desta abordagem encerra riscos importantes. A psicoterapia, ofício de caráter complexo, obriga à problematização da própria atuação. O suporte fornecido pela abordagem de filiação é importante para o fortalecimento da identidade do profissional. Por outro lado, a satisfação e admiração devem ser manejadas para não transformar o pertencimento a uma abordagem em sectarismo, pois a clausura pode limitar a visão.
O paradigma da complexidade de Morin (2008) pode ser uma referência útil para se pensar na diversidade de concepções presentes na Psicologia. Nesta concepção, reflexões críticas são formuladas em relação aos modos simplificadores do conhecimento científico que mutilam a realidade estudada, em vez de retratá-la Há a proposta de uma nova organização do conhecimento, permanecendo a separação, distinção e divisão de domínios do conhecimento, mas com a inserção da comunicação entre eles através do exercício da interdisciplinaridade. O processo de articulação do que foi dissociado convive com o procedimento tradicional de hierarquização e separação de saberes. No caso da Psicologia, a distinção entre abordagens garante a manutenção da riqueza específica de cada sistema, e ao mesmo tempo uma realidade mais ampla e complexa pode emergir das aproximações e diálogos entre as orientações.
Recebido em 31/10/2013
Aceito em 23/02/2014
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Endereço para correspondência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Out 2014 -
Data do Fascículo
Mar 2014
Histórico
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Aceito
23 Fev 2014 -
Recebido
31 Out 2013