RESUMO.
A diminuição do desejo é a queixa sexual mais frequente entre as mulheres brasileiras e tem sido objeto de estudos a partir de uma perspectiva predominantemente biológica. O presente trabalho teve como objetivo analisar a narrativa de mulheres cis e heterossexuais com queixa de diminuição de libido, sob a perspectiva dos estudos de gênero. Para tanto, foram selecionadas 11 mulheres, oriundas de três consultórios de ginecologia, de diferentes classes socais, escolaridades e raças, com faixa etária variando de 34 a 62 anos, em relacionamentos prolongados. A partir da realização de entrevistas semiestruturadas e análise de conteúdo, foram encontradas três categorias: 1) criação/ educação sexista; 2) relacionamentos amorosos marcados por assimetria; 3) dilemas da maternidade. Evidenciou-se a incorporação de valores negativos em relação ao exercício da sexualidade pelas mulheres, diferenças de expectativas sobre o ato sexual entre os casais e forte impacto negativo da maternidade sobre a libido feminina. A cultura sexista, com os papéis sexuais bem marcados pelo gênero, se mostrou importante influenciador negativo do desejo sexual entre as mulheres.
Palavras-chave: Desejo sexual; gênero; mulheres
RESUMEN.
La disminución del deseo es la queja sexual más frecuente entre las mujeres brasileñas y ha sido objeto de estudios desde una perspectiva predominantemente biológica. El presente trabajo tuvo como objetivo analizar la narrativa de mujeres cis y heterosexuales con quejas de disminución de libido, bajo la perspectiva de los estudios de género. Por lo tanto, fueron seleccionadas once mujeres, provenientes de tres consultorios de ginecología, de diferentes clases sociales, niveles educativos y razas, con rango de edades variando entre 34 y 62 años, en relacionamientos largos. A partir de la realización de entrevistas semiestructuradas y análisis de contenido, fueron encontradas 3 categorías: 1) Creación/Educación sexista; 2) Relacionamientos amorosos marcados por asimetría; 3) Dilemas de la maternidad. Se evidenció la incorporación de valores negativos en relación al ejercicio de la sexualidad por las mujeres, diferenciales de expectativas sobre el acto sexual entre las parejas y fuerte impacto negativo de maternidad sobre libido femenino. La cultura sexista, con los papeles sexuales fuertemente marcados por el género, se mostró un importante factor de influencia negativa del deseo sexual entre las mujeres.
Palabras clave: Deseo sexual; género; mujeres
ABSTRACT.
Low sex drive is the most recurring sexual complaint of Brazilian women and has been investigated through a predominantly biological perspective. This work aimed to analyze the speech of cis and heterosexual women with low libido from the gender studies perspective. To this end, we selected eleven women aged 34-62 who are patients in three gynecological offices, from different social classes, education levels, and races, and who have been in long-term relationships. We found three categories from semi-structured interviews and content analysis: 1) Sexist Education/Formation, 2) Asymmetrical Relationships, and 3) Motherhood Dilemmas. The respondents showed negative values about the exercise of sexuality by women, differences in expectations regarding the sexual act between couples, and a strong negative impact of motherhood on women’s sex drive. The sexist culture, with sexual roles strongly marked by gender, proved to be a major negative influencer on the sex drive among women.
Keywords: Sexual desire; gender; women
Introdução
A diminuição do desejo entre as mulheres é a queixa sexual mais frequente no consultório de ginecologia, dado evidenciado tanto na literatura científica internacional (Cacchioni, 2015; Leiblum, 2012; McCool-Myers, Theurich, Zuelke, Knuettel, & Apfelbacher, 2018; Thomas & Thurston, 2016) quanto nacional (Abdo, Valadares, Júnior, Scanavino, & Affif-Abdo, 2010; Lara, 2017; Wolpe, Zomkowski, Silva, Queiroz, & Sperandio, 2017). Esta queixa é quatro vezes mais frequente nas mulheres brasileiras que nos homens, resultando em discrepância em relação ao interesse e frequência sexual, trazendo sofrimento, angústia e conflito entre os casais (Abdo, 2004). No Brasil, algumas pesquisas têm sido realizadas sobre esse tema, entretanto, a maioria delas tem viés biológico na escolha da amostra e/ou na interpretação dos dados, estudando mulheres que tenham determinada doença ou estejam em determinado status hormonal (Araújo & Zanello, 2022).
A mais recente mudança no modelo de ciclo sexual humano, definido por Master e Johnson na década de 70, foi produzida a partir da contribuição da pesquisadora Rosemary Basson, em 2000. Ela demonstrou que em relacionamentos prolongados, como são considerados os que têm mais que um ano de duração, cerca de 90% das mulheres não retornam espontaneamente à fase de desejo e permanecem no que ela denominou de ‘neutralidade’. Elas retornam ao ciclo sexual motivadas pelo desejo do parceiro, na dependência de fatores ligados às recompensas da proximidade emocional: o aumento do comprometimento, do vínculo e da tolerância às imperfeições no relacionamento, juntamente com uma apreciação do bem-estar subsequente do parceiro. A partir daí, seguem-se as outras fases do ciclo, que são excitação, orgasmo e resolução (Basson, 2000). O que determina essa diferença entre homens e mulheres em relação ao retorno à fase de desejo espontâneo, a partir de determinado tempo de relacionamento, permanece uma questão a ser respondida.
O desejo sexual das mulheres é frequentemente considerado como determinado pela interação de vários fatores: biológicos, consequência de mecanismos neuroendócrinos que estimulam interesse sexual; psicológicos, como alterações do humor e automonitoramento crítico durante o ato sexual; socioculturais, as crenças e valores que são o resultado do componente social que promove expectativas e idealizações sobre a atividade sexual e, finalmente, os fatores interpessoais, a satisfação da mulher com o seu relacionamento, a qualidade da comunicação entre ela e o parceiro, resultando na sua motivação para o sexo. Todos essas condições podem afetar o desejo feminino e interagem entre si o tempo todo, de forma dinâmica (Abdo et al., 2010; Thomas & Thurston, 2016).
Segundo Gagnon (2006), o comportamento sexual pode ser um aprendizado cultural e diferenciado de acordo com o gênero, não determinado por impulsos instintivos e fisiológicos, mas inserido em roteiros sociais complexos, específicos de contextos culturais e históricos. Esses roteiros são performados pelos atores sociais, que interpretam as normas da sociedade e os mitos culturais. A relação entre os gêneros interfere na visão do que é considerado apropriado para a conduta sexual, como se lida com o prazer, quem o merece, a que preço e a que ponto do ciclo de vida deve ser praticado, determinando um script sexual a ser seguido diferenciadamente de acordo com o gênero.
Nesse sentido, foi a partir do século XIX, que emergiu, no Ocidente, para as mulheres, o pudor como ideal, passando a ser então a continência sexual, a moderação e a ausência de desejo, qualidades consideradas como inerentes a elas. Como objetos a serem possuídos, deveriam estar atentas ao desejo que possam suscitar. Já os homens foram firmados como sujeitos que desejam e cuja performance sexual chancelaria sua própria masculinidade (Bozon, 2004).
Na sociedade brasileira, tradicionalmente influenciada por valores cristãos, caracterizados por rígidos códigos de conduta relacionados ao gênero, a expressão do desejo sexual pode variar de acordo com o grau de reflexividade e internalização destes conceitos pelas mulheres (Heilborn & Cabral, 2013), resultando em menos libido e menor satisfação sexual quando comparadas aos homens, e também quando comparadas às mulheres de países onde há menos desigualdade entre os gêneros (McCool-Myers et al., 2018).
No Brasil, a virgindade como valor e o casamento como pré-requisito para o exercício da atividade sexual ainda são condições consideradas na qualificação atribuída às mulheres, dependendo da faixa etária, região, pertencimento a grupos religiosos e concepções familiares. Independentemente destas circunstâncias, há a expectativa que sua prática sexual esteja associada ao sentimento, ao amor romântico. Para que seja legitimada, a sexualidade delas se distancia do prazer e se insere no campo da afetividade. Desta forma, ainda que as relações não se restrinjam aos limites religiosos e do casamento, mesmo assim, não se inscreve no campo erótico (Castro, 2009).
Além disso, para as mulheres, ser escolhida por um homem para viver esse amor romântico é fator identitário. Zanello (2018) denomina ‘dispositivo amoroso’, este caminho privilegiado, no qual as mulheres se subjetivam consigo mesmas, mediadas pelo olhar do outro. A autora usa a metáfora da ‘prateleira do amor’ para exemplificar como elas buscam se encaixar em um ideal estético e demonstrar determinadas características que são mais valorizadas pelo mundo masculino, para que possam ser escolhidas e, então, chanceladas em sua ‘mulheridade’.
O modelo ideal de amor na nossa cultura, portanto, é aquele realizado dentro do casamento, no qual se espera que as mulheres sejam monogâmicas, intensamente dedicadas a este relacionamento que as valida como sujeito, e a desejar o desejo masculino. Muitas vezes casam com o casamento, ignorando a satisfação que tenham com o parceiro e com a relação. Aos homens cabem a ‘poligamia consentida’ (Lagarde, 2011) e o baixo investimento na relação. A eficácia sexual, incluindo número de parceiras, frequência e performance, é um dos fatores identitários masculinos (Zanello, 2018).
O dispositivo materno é o outro pilar identitário das mulheres brasileiras, culturalmente naturalizadas como aquelas que cuidam, sacrificam-se, estão sempre disponíveis, são centradas no bem-estar do outro; e, muitas vezes, é associado a um modelo de mãe, assexuado (Zanello, 2018). O momento da chegada dos filhos representa para muitos casais uma situação gendrada produtora de desigualdade, impactando a vida sexual, e destinando o desejo sexual das mulheres a um segundo plano (Bozon, 2004).
Levando isso em consideração, e a quase inexistência de pesquisas brasileiras, qualitativas e não biológicas sobre o baixo desejo feminino, a presente pesquisa teve como objetivo fazer uma análise psicodinâmica, gendrada, de falas de mulheres em relacionamentos prolongados, com a queixa de diminuição de desejo sexual.
Método
Foi realizado um estudo qualitativo, com uso de entrevistas semiestruturadas, com 11 mulheres de uma capital brasileira. As participantes foram selecionadas em três serviços ambulatoriais de ginecologia, sendo dois públicos e um privado (em 02 dos quais 01 das pesquisadoras atua como ginecologista), no período de fevereiro a junho/2019. Foram distribuídos questionários a todas as 379 mulheres que vieram consultar neste período, nos quais constavam perguntas sobre dados sociodemográficos e questões relacionadas à frequência e à qualidade da sua vida sexual. A partir do levantamento de 204 questionários respondidos, foram elencadas as participantes que preenchiam os seguintes critérios: ser mulher do ponto de vista biológico; ter um relacionamento heterossexual maior que um ano de duração; relatar diminuição do desejo sexual há mais de um ano; ter interesse e disponibilidade para conceder a entrevista; e assentir com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Com a ajuda das ginecologistas, foram escolhidas as mulheres cuja queixa de ausência de desejo sexual fosse mais antiga e persistente no decorrer do tempo. As 11 entrevistadas tinham a idade de 34 a 62 anos, com média de 47 anos. O tempo de relacionamento variou de seis a 40 anos, sendo a média de 27 anos. Uma participante tinha relacionamento estável, morando em casas separadas e não tinha filhos, enquanto as outras dez eram casadas, com um a três filhos. Quanto à crença religiosa, uma não tinha religião, duas eram católicas, duas espíritas e seis eram protestantes. A predominância da profissão foi de técnicas e analistas judiciárias, em oito delas, enquanto uma era bombeira, e duas, donas de casa. A renda familiar variou de quatro a 20 ou mais salários mínimos.
As entrevistas duraram cerca de 01 hora e foram realizadas nos respectivos serviços de ginecologia de origem das pacientes. A entrevista se iniciava com a pergunta disparadora ‘fale-me sobre o seu desejo sexual’, e no decorrer dela, perguntas complementares eram feitas de acordo com a narrativa das mulheres, tais como aspectos relacionados à educação sexual, crenças, conjugalidade, características e significado da relação sexual para cada entrevistada.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, e, posteriormente, integralmente transcritas para a realização da análise de conteúdo. Inicialmente, duas pesquisadoras analisaram o material e levantaram os temas separadamente. Em um segundo momento, deliberaram em conjunto e elencaram três categorias (Bardin, 2016). Os resultados foram interpretados a partir de teorias feministas em psicologia e abordagem sociológica da sexualidade (Bozon, 2004; Gagnon, 2006; Heilborn, 2006; Zanello, 2018). Os trechos das entrevistas que exemplificam os temas estão entre aspas ou em bloco de texto separado, e as participantes são identificadas por nomes fictícios.
A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Brasília (IH/UnB), sob o número de 2.994.810/2018.
Resultados e discussão
A partir da análise de conteúdo, foram elencadas três categorias, a saber: 1) criação/ educação sexista; 2) relacionamentos amorosos marcados por assimetria; 3) dilemas da maternidade. Elas serão descritas a seguir, com os trechos das entrevistas que as exemplificam.
A primeira categoria, ‘Criação/ Educação sexista’, aponta para o papel que a família, a religião e o entorno cultural da mulher tiveram na sua formação tanto emocional, quanto subjetiva, e na relação com a sua sexualidade. Englobou os seguintes temas: ‘Sexo como tabu’, ‘Religiosidade’ e ‘Valor da virgindade’. Todos estes temas estiveram aliados às representações bem tradicionais dos papéis de gênero, evidenciados nas narrativas das mulheres entrevistadas.
O primeiro tema, ‘Sexo como tabu’, foi recorrente em todos os discursos analisados, independentemente da região de origem das mulheres, fossem elas do nordeste, centro-oeste, sudeste ou do Distrito Federal. Algumas vezes apareceu como uma interdição implícita de se falar sobre o tema, o que levou as mulheres a entender que este era um assunto a ser evitado, delicado, e mesmo ruim. Olívia, 49 anos, conta como era na sua casa. “A gente tinha um tabu, que falar de sexo era um tabu terrível”. O não dito, nesse contexto, tem implícito todo um conjunto de valores associado ao sexo como algo proibido, sujo, errado. Telma, 52 anos, confirma o subentendido desse silêncio. “Meu pai é militar, minha mãe é toda, também, é [...] pudica. Sexo era uma coisa que não se falava, uma coisa feia, uma coisa [...] entendeu?”.
Quando excepcionalmente o assunto sexo era abordado, estava sempre associado a significados negativos, de proibição, pecado, que transformava a dignidade da mulher em ‘maculada’ e a fazia perder seu valor social. Na casa de Olívia, 49 anos, a norma era clara. “Pode ser a idade que for, que relação sexual não era permitido e engravida”. Elvira, 54 anos, faz suposições de como acha que estabeleceu tantas regras para fazer sexo. “Tem uma coisa estranha assim porque eu sempre, com relação a sexo, eu sempre ouvi a minha mãe falando mal”. Renata, 38 anos, tenta relacionar a sua falta de motivação para o sexo, com o que ouvia da sua mãe e da sua avó. “Acho que tem a ver com, com a criação [...] com o que cê ouve dentro de casa, né? Essa coisa de que isso é feio, que [...] ai, você não vai achar homem nenhum mais na sua vida”.
Essa ausência de informação resultou em desconhecimento de aspectos básicos de anatomia da genitália e de como se dá uma relação sexual, que em alguns casos perdurou até o casamento. A falta de educação sexual é fator de risco importante para transtorno de desejo na vida adulta, embora muitas vezes seja um aspecto desconsiderado, pela ênfase dada aos aspectos biológicos dos problemas sexuais (Abdo et al., 2010; McCool-Myers et al., 2018; McHugh, 2016). Conta Sílvia, 57 anos, técnica judiciária, que às vésperas do seu casamento não tinha o menor conhecimento do que iria acontecer. “Eu não sabia [...] vou ser bem sincera, eu não sabia o que que era ejaculação, eu não sabia como é que [...] eu não sabia nada, não sabia nada”.
O segundo tema, ‘Religiosidade’, retrata como a religião e a forma de vivenciá-la, desempenharam papel importante na formação dos conceitos introjetados sobre sexo, na vida das entrevistadas. Dentro das suas práticas religiosas, fossem elas católicas, evangélicas ou espíritas, receberam orientações a respeito de comportamento sexual e do valor da virgindade para as mulheres. Renata, protestante, narra o que ouvia.
Na igreja sempre tinha umas [...] umas mensagens, umas coisas [...] de que ‘vocês têm que se guardar’, ‘Deus não criou o sexo antes do casamento’, que ‘vocês vão se machucar’, ‘se vocês fizerem sexo antes do casamento, as consequências podem vir’.
Algumas vezes, não existia nem uma explicação fundamentada, como narrou Cátia, 40 anos, sobre o que ouvia na Igreja Católica sobre sexo. “‘Porque não’, ‘porque é sujo’ e não sei o quê…essas coisas assim podam muito a libido, né?”. Fabiana, 34 anos, sintetiza a orientação que recebia nas palestras espíritas. “É muito, assim, caridade e tudo, mas essa questão sexual é mais pra pessoas menos evoluídas”.
A ‘Virgindade’, terceiro tema desta categoria, aponta a renúncia sexual como uma condição a ser preservada e relacionada a ser ou não escolhida por um homem, como mulher de valor, para o casamento. Essas mulheres aprenderam a gerenciar o seu desejo sexual desde o início da sua vida relacional, não legitimando o desejo que sentiam. A manifestação desse desejo foi para elas motivo de culpa e desvalorização como mulher elegível e digna de ser escolhida por um homem, perdendo valor na metáfora da prateleira do amor (Heilborn & Cabral, 2013; Zanello, 2018).
Na casa de Olívia, não havia dúvida. “Eu sou de uma família muito tradicional, que mulher tem que casar virgem”. Cátia, 40 anos, descreve a orientação ameaçadora que recebia da sua mãe. “Se transar antes do casamento, depois nenhum homem vai te querer”. Renata explica que, além das orientações religiosas sobre o valor da virgindade, em casa, esse comportamento era reforçado com outros argumentos. “Cê vai comparar, cê vai sofrer, cê vai lembrar do outro, vai que o outro era melhor, não sei o quê. Sabe essas coisas? Enfim [...] eu ouvi esse tipo de coisa, entendeu? Tudo sempre muito velado”. Diante do exposto, não causa surpresa que a maior religiosidade e crenças conservadoras estão relacionados a diminuição do pensamento erótico entre as mulheres (McCool-Myers et al., 2018; Rosenkrantz & Mark, 2018; Thomas & Thurston, 2016).
Consequentemente, a prática sexual estava sempre associada à culpa, evidente quando Olívia conta como se sentiu após a primeira relação sexual aos 19 anos. “Eu pensei até de cometer suicídio porque eu tinha tido uma relação sexual. Eu tomei um vidro de Dramin porque foi a única coisa que achei na minha frente, porque eu queria apagar e não acordar nunca mais”. Renata, que namorou dos 16 aos 21 anos, antes de casar, fala do conflito que viveu nessa fase.
E aí nisso, com os hormônios à flor da pele, cê quer fazer mas não pode, sua cabeça diz que não pode, que só depois de casar e nã nã nã [...] isso vai deixando a gente meio travada, né? Que isso é feio, isso é feio, isso é feio e não pode. Aí chorava [...] aí ficava chateada, aí ficava triste, entendeu? Foi um tempo de guerra assim, sabe, comigo mesma.
A internalização do controle do desejo, tradicionalmente influenciado no Brasil por códigos rígidos de acordo com o gênero (Heilborn & Cabral, 2013), pode permanecer mesmo após o casamento, continuando o exercício da atividade sexual relacionado à culpa e à evitação, mesmo que conscientemente já seja socialmente aceitável. Renata explica.
Dentro do casamento é para ser abençoado, mas eu não consigo porque o começo foi cheio de culpa, cheio de medo. Então você carrega isso pra dentro do casamento, né? E eu não tenho dúvidas de que alguma forma isso gera um bloqueio, em mim, de algum jeito, não sei direito aonde, mas toda história de como isso foi e como isso começou […] Estou sempre de ‘freio de mão puxado’.
Ficou também evidente a essas mulheres que a proibição ao sexo seria exclusividade delas, já que os homens teriam permissão para exercer a sexualidade de forma plena. Na família de Helena, 42 anos, a virgindade era uma condição exigida dela, porém o irmão tinha liberdade para trazer a namorada para dormir. “Tipo assim: família nordestina, o homem pode, como é aquele ditado? ‘Prende suas cabritas que meu bode está solto’. Era, funcionava mais ou menos assim, e aí, comigo ela prendeu, não foi o mesmo com ele”. Olívia conta da interdição de até discordar/discutir com o pai, porque era mulher, enquanto que ao irmão tudo era permitido. “O homem pode fazer o que for, se a mulher fizer é feio demais. Desde que me entendi por gente que sexo é, em relação a isso: o homem pode fazer tudo e a mulher não pode fazer nada”. Valores diferenciados socialmente construídos (gendrados), portanto, norteiam a iniciação sexual distinta entre homens e mulheres no Brasil, e determinam a distinção do controle parental sobre suas filhas (Borges & Nakamura, 2009).
Esses três temas, portanto, apontam para valores repassados pela família e religião conduzindo as mulheres à renúncia sexual, que apareceu de forma evidente na fala de grande parte das entrevistadas. Esses temas também sinalizam para uma construção de representações tradicionais, sexistas de gênero, nas quais ao homem cabem a experiência sexual e o privilégio da escolha. Ficam determinados à mulher, o papel de guardiã, o recato, a castidade, a continência sexual, a restrição do número de parceiros sexuais e a ausência de iniciativa. Neste cenário cultural, o prazer das mulheres se constitui em algo moralmente inaceitável (Bozon, 2004; Gagnon, 2006; Heilborn & Cabral, 2013; Zanello, Fiuza, & Costa, 2015; Zanello, 2018).
A segunda categoria, ‘Relacionamentos amorosos marcados por assimetria’, diz respeito à vivência atual, por parte das entrevistadas, de relacionamentos marcados por uma desigualdade de investimento e/ou compromisso em relação aos cônjuges. Nesta categoria foram englobados três temas que indicam esta diferença: ‘Diferenças de expectativas’; ‘Divisão desigual emocional e econômica na relação’; ‘Lealdade/fidelidade’.
O tema predominante desta categoria foi ‘Diferença de expectativas’, que diz respeito ao que se espera do relacionamento, presente nas narrativas de todas as entrevistadas. Enquanto elas esperam afeto, os homens, na visão delas, esperam a realização sexual. A conduta sexual e os sentimentos de desejo e prazer associados às experiências corporais, estão ligados, na maior parte das sociedades, ao gênero. As mulheres aprendem, desde a infância, a incorporar roteiros românticos sobre a interação homem-mulher e privilegiar a afetividade, enquanto os homens têm um roteiro que inclui mais fortemente práticas masturbatórias, influência da pornografia, e genitalidade; sendo a eficácia sexual, um dos seus grandes pilares identitários (Gagnon, 2006; Zanello, 2018).
Todas as mulheres entrevistadas, sem exceção, usaram a palavra ‘carinho’ quando se referiam ao seu principal objetivo no contato com o parceiro, enquanto o ato sexual seria consequência, menos importante, ou até um compromisso/ ‘dever’ a ser cumprido. Elvira, 40 anos de casada, resume o seu sentimento. “O que eu acho bom é a proximidade, não é o prazer não, é o que vem com isso, o carinho. Porque de fazer sexo [...] gosto muito mais de dormir abraçado, de ‘pé dado’, do que de fazer sexo”.
Fabiana, 13 anos de casada, diz que a frequência com que gostaria de ter relação sexual seria uma vez por mês e justifica. “Pra mim o mais importante é o carinho, sabe, a presença, o tempo de qualidade [...] fazer outras coisas juntos. Porque pra mim o ‘vamo ver’ é o menos importante”. Alice, seis anos de relacionamento, tem a mesmo aspiração. “Eu acho que uma vez por semana ou a cada 15 dias eu tenho o desejo de transar. Eu quero muito tá junto. Eu gosto da companhia, do carinho, assim de estar junto, mas a relação mesmo é difícil”.
Essa postura é consonante com o aprendizado social por parte das mulheres de uma atividade sexual ligada ao afeto, e distante do campo erótico (Borges & Nakamura, 2009; Murray & Milhausen, 2012).
Onipresente também, nos discursos, foi o contraste entre a expectativa das mulheres do sexo ligado ao romantismo, e a realidade de se sentir objetificada. Márcia, 40 anos de casada, exemplifica.
Mulher não deita pra fazer sexo. A gente deita pra quê? Pro romance, porque eu acho que tudo tem que ter romance. Aí, quando você vai deitar, já vem passando a mão no seu peito, passando a mão na sua bunda, como se você fosse um [...] Falo: ‘gente!’.
Outra queixa constante foi o homem interpretar qualquer iniciativa de contato físico por parte da mulher, como intenção de realizar o ato sexual, implicando muitas vezes em que as mulheres se mantenham fisicamente distantes, como explica Dolores.
Ele fala que eu não me aproximo dele. Mas eu não me aproximo por isso, porque se eu me aproximo, vou abraçar, ele já vem com as mãos, entendeu? E ele aperta meus peitos [...] E eu não suporto isso, não suporto. Sabe quando dá a impressão que você é um objeto? Não existe sexo sem afeto, pra mulher não, porque ela vai se sentir usada. É como te falei, ‘vai emprestar’, né?
Nessa fala se identifica a percepção pela mulher de ser vista como um corpo a ser usado, sem que as suas subjetividade e individualidade sejam consideradas.
A insatisfação com o ato sexual em si, performado pelo parceiro, esteve presente em muitos discursos. Muitas mulheres relataram se ressentir que o interesse do parceiro era um gozo direto, sem haver interesse nas preliminares e no prazer delas, como explica Cátia.“Eu acho que ele [...] num tem muita capacidade, de preliminares, assim. Muito aprendizado, né, de como começou a vida sexual dele - começou num puteiro. Então ali ele não consegue desenvolver uma coisa de excitação, de carinho, de abraço, né”.
Márcia conta como fica irritada com a abordagem do marido, que desconsidera a fase excitatória do ato sexual e prioriza a penetração.
Ó, quando você vem já tirando a minha calcinha você num tá pensando em mim, você tá pensando em você, entendeu? Num tem aquela preocupação da preparação, aquela coisa, entendeu? São egoístas, só pensam neles. Já vêm com pinto duro, já querendo eh eh eh. Não, gente, pelo amor de Deus, né? Mulher nenhuma funciona desse jeito. Funciona?
O segundo tema foi ‘Divisão desigual emocional/econômica da relação’. Nesse tema apareceram falas que apontam para uma discrepância no cuidado com a relação e no investimento emocional, assim como também uma divisão de contas e responsabilidades materiais assumidas no relacionamento. As mulheres, pelo dispositivo amoroso, se colocam na relação como aquelas responsáveis pelo bem estar do outro, motivo pelo qual seus próprios desejos e necessidades ficam em segundo plano em relação aos do parceiro (Rosenkrantz & Mark, 2018; Zanello, 2018).
Olívia descreve como é o seu relacionamento desde o namoro. “Não me tratava com carinho, não pegava na minha mão no shopping, ele ia na frente e eu atrás. Assim, nosso relacionamento é assim, porque ele é assim, aprendi a conviver assim”. Sílvia queixa-se da falta de participação do marido no orçamento doméstico. Ele, não obstante ter recursos financeiros equivalentes ao dela, utiliza-os apenas com seus gastos pessoais.
Eu reclamo porque ele é desorganizado financeiramente. Ele não pensa que tem que pagar uma faculdade, tem que pagar o colégio do menino, né? Nunca foi de comprar uma roupa pros meninos, nunca foi de [...] de nada, do cabelo, tudo eu que dou pra eles.
O posicionamento de estar a serviço do outro pode implicar em que as preferências das mulheres durante o ato sexual não sejam priorizadas, resultando em uma relação menos estimulante e atraente para elas. Cátia fala sobre como a sua disposição de cuidar do marido se reflete também na vida sexual.
Nesses dez anos que se passaram, eu me coloquei na posição de tá sempre agradando ele, de tá fazendo tudo que ele quer, tipo, sei lá vamos dizer assim, no sexo ele tinha fantasia, não pra minha vontade, mas por querer agradar, por sempre tá levando ele na melhor posição.
Alice conta da sua surpresa, quando o parceiro atual lhe perguntou sobre as suas preferências no sexo.
No início, a minha primeira reação era, era me dedicar ao prazer do outro. Por isso que a pergunta: ‘o que você gosta?’ me causou tanto impacto, que eu não sabia nem [...] por onde começar. Eu não sabia a posição que eu gostava, a fantasia, nunca tinha parado [...] por que que isso era importante, afinal, né?
Mesmo sem interesse no ato em si, as mulheres se sentem responsáveis por manter uma frequência sexual que mantenha a harmonia entre o casal, gerenciando o desejo do marido, e performando o sexo sem ter vontade (Heilborn & Cabral, 2013), condição citada como causa e consequência de disfunções sexuais (McCool-Myers et al., 2018). Esta atitude, denominada por Cachionni (2015) de labour of love, demonstra o labor sexual como parte do labor afetivo, pelo qual a mulher é naturalizada como responsável, sendo o mesmo, a ela imposto na divisão de tarefas dentro de um relacionamento heterossexual. Este esforço é perceptível na declaração de Cátia. “Parece que eu sinto assim aquele compromisso, às vezes fico pensando, já tem uma, duas semanas que a gente num transa e [...] eu tenho que transar porque ele é meu marido e tenho esse compromisso com o casamento”.
Helena revela porque faz sexo sem vontade. “Aí eu morro de medo, fico pensando assim: ‘nem compareço muito ali, vai que ele começa a sentir falta e procurar fora’”.
Neste tema, percebe-se o heterocentramento das mulheres e o seu empenho em manter relacionamentos, mesmo marcados por tanta assimetria. Essa manutenção, muitas vezes, é construída a partir do seu silêncio sobre as insatisfações e conformidade em relação à falta de afeto, carinho e qualidade da relação sexual. Esses descontentamentos, contudo, podem se revelar na forma de expressar o seu desejo sexual, podendo implicar em muitos casos, na sua diminuição ou até mesmo, ausência.
O terceiro tema trata de ‘Lealdade/fidelidade’. Algumas mulheres - Olívia, Dolores, Sílvia, Elvira - revelaram que, apesar de terem contratos sexuais monogâmicos, estes foram rompidos em algum ou alguns momento da relação. Na nossa cultura, a moral defende a monogamia para as mulheres e a poligamia consentida para os homens. Nestes últimos, subjetivados no dispositivo da eficácia sexual, quanto maior a quantidade de experiências sexuais com o maior número de parceiras, maior a valorização na ‘Casa dos homens’ (Zanelllo, 2018). No Brasil, os valores tradicionais reforçam a crença do sexo como necessidade física para os homens, e a supremacia do desejo masculino, sendo este considerado irrefreável (Heilborn, 2006).
Olívia, cujo pai defende que a mulher tem que aceitar a traição do marido, o questionou durante uma conversa. “Se meu marido me traísse você ia gostar? Ele disse que ‘faz parte, ele é homem, tem que ter várias mesmo’”. O fato de os maridos serem infiéis, apesar de deixar ressentimentos, é justificado pelas próprias mulheres pela convicção cultural de que a sexualidade masculina é algo incontrolável e animal (Castro, 2009). “A maioria dos homens é assim, não existe homem santo, que vai falar assim ‘ah, eu sou fiel à minha mulher’, não existe isso, né, porque o homem parece que ele tem necessidade disso, né?” (Dolores).
As infidelidades do parceiro, iniciadas desde o período do noivado, foram progressivamente afetando o seu desejo, segundo Dolores. “Porque a gente não é burra, né? A gente tem visão, né? Então eu percebia algumas coisas, né, algumas situações [...] que eu falava assim, tá me traindo com essa. E isso também vai te esfriando, né?” Sílvia, que tem várias suspeitas a respeito do envolvimento do marido com outras mulheres, conta como isso afetou o seu desejo.
Porque criou uma barreira, né ? Criou uma barreira. Porque, queira ou não queira, porque assim, você (o marido) não tá suprindo a casa (financeiramente), né? Cê me traiu, assim, diz que não, mas pra mim foi uma traição [...] então é uma coisa assim, talvez inconscientemente eu retraio, entendeu?
O conformismo com a infidelidade dos maridos, além de favorecido pelas crenças culturais da nossa sociedade sexista, se pauta também pela necessidade de manutenção do casamento. O status de estar casada atende ao ideal societário de um padrão hegemônico de normalidade e felicidade (Peixoto & Heilborn, 2016). Segundo Zanello (2018), pelo dispositivo amoroso, muitas mulheres acabam por se casar com o próprio casamento, independente de quão satisfeitas estejam nele. Sílvia informa que já pensou em separação, mas mudou de ideia, revelando a posição do homem como troféu disputado. “Já pensei, esse ano mesmo eu pensei nisso. Aí falei pô, joguei minha juventude, assim, fora [...] no bom sentido, né, é o melhor tempo da minha vida [...] com ele, né? E aí agora vou [...] assim, entregar de bandeja?”. Dolores demonstra a falta de esperança de encontrar outro parceiro que seja fiel. “Às vezes falo assim, pra que que eu vou separar dele, se o outro vai ser a mesma coisa, entendeu? Então a gente já tá acostumado, né, então a gente já fica”.
A partir destes três temas pode-se demonstrar o quanto esta categoria está pautada pela diferença entre os modos de subjetivação de homens e mulheres na nossa cultura. Segundo Zanello (2018), as mulheres se subjetivam no dispositivo amoroso e materno, pautado em um heterocentramento. Para muitas mulheres, manter uma relação tem o papel de uma reafirmação identitária, e a elas é solicitado então esse investimento, de serem as mantenedoras dos relacionamentos, independente da satisfação que obtenham deles. Já os homens, pelo egocentramento que os caracterizam, lucram com o dispositivo amoroso das mulheres. Culturalmente privilegiados, têm os seus desejos priorizados, enquanto os anseios das suas parceiras tornam-se invizibilizados.
A terceira categoria, ‘Dilemas da maternidade’, evidencia o quanto a maternidade foi um fator impactante na história de vida dessas mulheres e da sua vida sexual. Atuou piorando um desejo anterior que já era exíguo, em alguns casos e, em outros, trouxe um novo fator, colocando em xeque, ou deteriorando, um desejo que antes existia. Dentro desta categoria foram elencados os seguintes temas: ‘Exacerbação da concentração de tarefas advindas a partir da chegada dos filhos’, ‘Decepção com o marido na função de pai’, e ‘Subsumissão da mulher ao papel de mãe’, ou seja, após o vir a ser mãe, deixou de se sentir mulher.
A maternidade foi descrita como um marco, um divisor de águas que influenciou negativamente o desejo em todas as dez mulheres entrevistadas que tinham filhos, como percebe-se nas narrativas seguintes.
Porque a nossa relação tem o seguinte, tem uma divisão no tempo, até eu ter meus filhos e depois de ter meus filhos. Depois que eu tive meu último filho, mudou muito o sexo, eu senti, mudou o desejo (Olívia). Assim, eu nunca fui muito ativa pro sexo, mas, assim, eu percebo que eu era muito mais animada, vamos dizer assim, antes de ter os meninos. Acho que na hora de ter o primeiro filho eu comparecia mais lá com o maridão (Helena). Então nessa época do início do casamento era legal, assim, aquela coisa bem excitante, digamos, né? Aí, logo em seguida, vêm os filhos, meu filho maior eu tinha já com 23 anos, com 25 eu já tinha os dois, né. Mas realmente, sexualmente nunca foi, sexo nunca foi uma área bem resolvida na minha vida, nunca foi […] (Telma).
O primeiro tema, ‘Exacerbação da concentração de tarefas advindas a partir da chegada dos filhos’, reflete a sobrecarga de atribuições, principalmente para as mulheres, característica da divisão de funções gendrada na nossa sociedade (Zanello, 2018). As relações conjugais nas quais predominam uma divisão fortemente especializada e desigual dos encargos entre os gêneros sofrem maior impacto na sua vida sexual (Bozon, 2003). As mulheres precisam de tempo e energia para expressar o seu desejo sexual, o que não é possível dentro de uma rotina estafante, na qual se sentem muito cansadas para se interessarem pelo sexo (Candib, 2001).
O acúmulo de tarefas pode representar mais cansaço, menos tempo para lazer, descanso e intimidade entre o casal. Olívia exemplifica como desviou a atenção para os filhos, que antes beneficiava o marido e a vida sexual.
Não sobra tempo pra pensar nisso. Eu tô com eles [os filhos] o tempo todo. Sexo é segunda opção. Antes de ter os filhos, até a barba dele eu fazia. Até hoje eu que corto as unhas dele, tudo sou eu. Então, quando os meninos começaram a vir, não sobrou tempo pra cuidar dele. Ele se sentiu jogado de lado; eu trabalhava fora, quando eu chegava os meninos só me queriam, ficavam muito colado, não eram muito apegados ao pai, tudo era a mãe, então não tinha tempo e espaço. Até no carro eu sentava lá atrás e ele na frente, só.
Sílvia rememora o que aconteceu após o nascimento do segundo filho. “Então, assim, depois desse filho a gente não teve mais tempo, assim, de se curtir. Aí a gente não tinha coragem de viajar, deixar eles sozinhos, né? E aí ficamos. Mas nós nunca viajamos sozinhos”.
O segundo tema é ‘Decepção com o marido na função de pai’, que retrata o desapontamento das mulheres no desempenho do marido na função paterna e na divisão dos cuidados com o filho, podendo ser outro motivo para distanciamento afetivo das mulheres em relação aos parceiros. Fabiana conta como se sentiu quando a filha nasceu.
Porque mudou muito pra mim, como mãe, e não tanto pra ele como pai. Tanto que os dois primeiros anos é como se não tivesse o marido e o pai, né, ficou muito ausente. E aí acabou esfriando, né, o relacionamento. Uma época eu até pensei em separar, porque eu falei ‘uai, se eu não tô tendo um companheiro, né, qual que é a […]’
O marido de Elvira não participou dos cuidados do filho com necessidades especiais, durante os seus primeiros anos de vida. “Eu achava que ele não era um bom pai para o Guilherme, que era muito nas minhas costas. ‘Tô muito cansada, não sobra tempo para você porque você deixa tudo nas minhas costas’”. Com o tempo, usou da sua habilidade para envolvê-lo nestes cuidados que, na sua visão, permanece aquém da ideal. “Ele acha que ele é o melhor pai do mundo, porque todo mundo que vê acha que ele é um pai superparticipativo, e não é. E hoje ele acredita que ele é […] eu deixo”.
O terceiro tema é ‘Subsumissão da mulher no papel materno’. Muitas mulheres têm dificuldade de conciliar o exercício da maternidade com o papel de mulher que deseja e é desejada sexualmente. As características culturalmente associadas a ‘ser mãe’ podem resultar em ainda menos legitimidade às mulheres para viver o erotismo na sua vida sexual, e pode significar, para elas, deixar de ‘ser mulher’. Cumprir o estereótipo da mãe, sempre dedicada, abnegada, altruísta, subserviente, dócil, é incompatível com a manutenção da individualidade, esta última, pedra angular do desejo (Perel, 2009; Zanello, 2018). O antagonismo existente entre o papel parental e conjugal, para as mulheres, é um fator que implica em discrepância dos desejos masculino e feminino, acentuada após o nascimento dos filhos, e faz declinar a importância da sexualidade na relação entre os cônjuges (Bozon, 2003).
Helena avalia o porquê do seu desejo ter diminuído.
Também, assim, não sei se tem a ver com religião, sou católica, então acho que veio também muito esse lado de sair de esposa para mãe, entendeu? Agora eu não sou mais [...] né, embora eu saiba que […] inconscientemente eu saiba que esposa é esposa, e mãe é mãe, mas assim, acho que na misturada lá, deu a entender assim: eu era esposa, agora eu sou mãe, entendeu?
Renata reforça essa percepção de dicotomia dos papéis de mãe e mulher quando fala do seu constrangimento em comprar lubrificante e preservativo na farmácia. “Era um parto, eu suava. Me sinto assim, uma mãe. Uma mãe dentro do negócio [...] como se a mãe não pudesse, né [...] brincar. Acho que sim, acho que tem a ver com a maternidade. De achar inapropriado, né […]”. Fabiana reflete sobre os motivos da sua vida sexual ter piorado.
Porque eu me sinto muito realizada como mãe, sabe? Não que a maternidade tenha atrapalhado, né, mas como a gente foca muito, principalmente eu, foquei muito na maternidade, que eu queria ser aquela super mãe, assim, super presente, então eu tinha dificuldade.. por exemplo, eu não pedia ajuda.
Helena considera que a maternidade lhe deixa afetivamente satisfeita, ocupando o espaço que antes cabia ao marido.
Não sei não, acho que pode ter mudado um pouco a minha visão e, assim, preenchido de outra forma, assim, os carinhos que eu precisasse, mas, assim, eu acabo que eu sinto falta de, da relação, tanto que a gente continua tendo, tanto que se tivesse ocupado todo o lugar, acho que nem sei se ia ter mais casamento.
Algumas vezes a maternidade implicou em redução da liberdade e do repertório sexual do casal, como conta Renata falando de sexo oral. “Antes de ter as meninas, a gente fazia. Eu adorava, ele também gostava. Mas hoje eu não tenho coragem; depois que eu tive as meninas, eu não quero mais. Porque foi parto normal e eu tenho algum bloqueio, entendeu?”
Helena, que havia experimentado várias posições do Kama Sutra, mudou após o nascimento dos filhos. “Agora é só ‘papai e mamãe’. Sexo oral eu recebia e fazia, mas agora, sei lá, eu bloqueei isso, não estou conseguindo mais”. Olívia não se sente mais com privacidade para o sexo na sua casa.
O menino dormia muito com a gente, até hoje, ele tá com 11 anos, ele tinha muita liberdade no nosso quarto e a gente tinha medo, entendeu? De tá naquela hora e ele entrar. Eu fico tensa, então isso também prejudica muito.
Depreende-se a partir dos três temas acima expostos, como a maternidade afetou desfavoravelmente a vida sexual dos casais. O dispositivo materno se mostrou tão identitário para algumas mulheres, que a relação com o parceiro perdeu importância e deixou de ser investida. Além disso, também se mostrou como uma experiência que explicita para as mulheres um envolvimento/investimento desigual na família e o quanto sobra para elas o papel desse cuidado. Na nossa cultura, na qual as mulheres se subjetivam no dispositivo materno e são naturalizadas no cuidar do outro, podem subsistir poucas possibilidades e espaço para a existência do próprio desejo e erotismo.
Considerações finais
Nos discursos analisados, percebe-se a internalização por parte das entrevistadas de uma cultura na qual homens e mulheres têm papéis gendrados e bem demarcados. Essa diferenciação implica em que desde cedo muitas mulheres não se sintam legitimadas no seu desejo sexual, incorporando valores negativos em relação ao exercício da sexualidade. Também não se reconhecem como sujeitos ativos nesse processo, e apenas objeto do desejo do outro. Dentro do contexto das relações, tendem a valorizar os aspectos afetivos, considerando a sexualidade de menor importância, frequentemente mais um trabalho a ser realizado por elas, dentro do seu papel de responsáveis pelo relacionamento e distante do erotismo.
Existe um descompasso de expectativas relacionadas ao ato sexual, no qual as mulheres esperam receber afeto, carinho, romance, enquanto os homens tendem a ser mais diretamente ligados à genitalidade; as mulheres esperam mais qualidade, os homens, maior quantidade. Essa discrepância de interesses e consequente frustração pode justificar a falta de vontade das mulheres de performar um ato sexual que resulta insatisfatório para elas.
O impacto negativo da maternidade na vida sexual foi unanimidade nas mulheres entrevistadas que eram mães. Da forma como vista na nossa cultura, na qual uma mãe é alguém sempre a serviço do outro, altruísta, infatigável, perfeita e assexuada; implicada na responsabilidade quase completa pelo bem-estar dos filhos; não é difícil compreender a dificuldade dessas mulheres de conciliarem o papel materno com o de uma mulher com direito a ter desejo e prazer sexual.
A cultura sexista, com os papéis sexuais bem marcados pelo gênero, se mostra como um influenciador negativo do desejo. A gestão do desejo pelas mulheres, a ausência de educação sexual, a manutenção de crenças conservadoras, impactam negativamente o desejo desde o início da vida sexual. Os relacionamentos marcados por assimetria, nos quais o afeto é escasso, os desejos da mulher de um sexo com mais carinho e envolvimento são desconsiderados, e nos quais a poligamia é suportada, apresentaram-se como fatores para a piora do desejo sexual no decorrer dos relacionamentos. E, finalmente, a maternidade, com a sua carga de aumento do trabalho, possiblidade de realização da mulher por outra via e decepção em relação ao companheiro como pai, pioraram o desejo das mulheres entrevistadas. Ou seja, os fatores psicossociais mostraram-se como fortemente implicados no desejo afetado.
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz, é infeliz à sua maneira” (Tolstoi, 2005, p. 17). Nesta pesquisa, as categorias impactaram diferentemente cada entrevistada, já que a relação da falta de desejo foi predominantemente ligada à educação, parceria ou maternidade, de forma distinta entre elas. No entanto, tiveram em comum a cultura, baseada em papéis bem diferenciados de gênero, como a maior mediadora da falta de desejo sexual, atuando na formação de valores e na maneira de se relacionar - e manter a relação - com os seus parceiros. Isso implicou em um distanciamento da possibilidade dessas mulheres de exercerem a sua sexualidade de forma plena e de se apropriarem do seu desejo e prazer.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
11 Jan 2021 -
Aceito
18 Nov 2021