RESUMO.
Este artigo visa a fornecer alguns subsídios à determinação do lugar da psicanálise no mundo do trabalho do século XX mediante uma incursão histórica centrada sobre as duas principais vertentes dessa psicanálise aplicada: a anglo-americana e a francesa. No mundo anglo-americano do entreguerras, verificamos a emergência de um uso pragmático, quando não instrumental, da teoria psicanalítica. Já no mundo francófono da segunda metade do século XX, assistimos ao recurso à psicanálise com o fito de elaborar tanto uma crítica às formas de gestão do trabalho quanto uma reflexão sobre o trabalhar. Visto que os principais debates do século XX gravitaram sobre o trabalho e que ele continua sendo polo das questões mais relevantes da realidade social, nomeadamente as precarizações em vários níveis, o artigo defende que uma problemática dessa espécie é crucial e que a vertente crítica da psicanálise aplicada ao mundo laboral indicou possibilidades de transformação da organização do trabalho valiosas à psicologia do trabalho.
Palavras-chave: Psicanálise; trabalho; emancipação
RESUMEN.
El presente artículo tiene por objeto determinar el lugar que ocupa el psicoanálisis en el mundo laboral del siglo XX mediante una incursión histórica centrada en las dos vertientes principales de este psicoanálisis aplicado: el angloamericano y el francés. En el mundo angloamericano, entre la primera y la segunda mitad del siglo XX, vemos surgir un uso pragmático de la teoría psicoanalítica. En el mundo francófono de la segunda mitad de ese siglo, esta teoría se movilizó con el objetivo de elaborar tanto una crítica de las formas de gestión del trabajo como una reflexión sobre el trabajo. Dado que los principales debates del siglo XX gravitaron en torno al trabajo y que éste sigue estando en el centro de las cuestiones más relevantes de la realidad social, a saber, la precarización en varios niveles, el artículo sostiene que dicha problemática es crucial y que la vertiente crítica del psicoanálisis aplicada al trabajo ha indicado posibilidades de transformación de la organización del trabajo que son valiosas para la psicología del trabajo.
Palabras clave: Psicoanálisis; trabajo; emancipación
ABSTRACT.
This article aimed to provide some support for determining the place of psychoanalysis in the world of work in the 20th century through a historical overview focused on the two main strands of this applied psychoanalysis: the Anglo-American and the French. In the Anglo-American world between the wars, we see the emergence of a pragmatic, if not instrumental, use of psychoanalytic theory. In the French-speaking world of the second half of the 20th century, we see the use of psychoanalysis to develop both a critique of forms of work management and a reflection on work. Since the principal debates of the 20th century revolved around work, and it continues to be the center of the most relevant issues in social reality, namely precariousness at various levels, the article argues that a problem of this kind is crucial. The critical strand of psychoanalysis applied to the world of work indicated possibilities for transforming work organization valuable to work psychology.
Keywords: Psychoanalysis; work; emancipation
Introdução
Desde o início de sua difusão, no final da primeira década do século XX, a psicanálise vem mostrando suas possíveis contribuições à cultura e às práticas contemporâneas. O próprio Freud foi um dos primeiros a mapear tal extensão em O interesse da psicanálise, artigo em que ele divisa, de maneira inaudita em sua obra até então, as descobertas psicanalíticas que poderiam servir a outros saberes, como a psicologia, a filosofia, a pedagogia, a biologia e a sociologia. Ainda que, por vezes, ele tenha manifestado receios em relação ao rigor de extensões como essas, a possibilidade delas então o deixava eufórico (Gay, 1989). E mesmo mais de uma década após esse momento, mantinha-se convicto da importância de tal empresa, conforme atesta sua confissão ao socialista Hendrik de Man: “Sempre fui da opinião de que as aplicações extramédicas da psicanálise são tão significativas quanto as médicas, e, na verdade, que aquelas talvez possam ter uma influência maior sobre a orientação mental da humanidade” (Freud apud Gay, 1989, p. 290).
O êxito desses esforços deu lugar, contudo, a um dilema que, de acordo com o historiador Eli Zaretski (2006), repercutiu na geografia da história da psicanálise. Esse dilema foi expresso pelo autor nos seguintes termos: absorção versus marginalidade. Isto é, ou a psicanálise tornava seu anseio de legitimação realidade e adotava uma postura pragmática, arriscando ser absorvida pelo establishment, ou reafirmava seus impulsos utópicos e enfatizava as idiossincráticas e disruptivas dimensões da psiquê - o inconsciente, a sexualidade, os impulsos. O resultado seria, num caso, participar do controle social, incorporando as massas à nova ordem industrial e organizando o conhecimento de forma a servir a tais objetivos, e, noutro, manter sua dimensão crítica e seu interesse característico pelas singularidades. Efetivamente, esse horizonte bifronte se materializou, ‘grosso modo’, nas apropriações geográficas da psicanálise: ao passo que, em seu continente natal, ela manteve, em geral, seu originário gume crítico, já que seu nascimento foi marcado pela insurgência contra a moral sexual europeia, nos Estados Unidos ela foi reorientada pelos ideais de autogerenciamento e autoaperfeiçoamento característicos daquele país.
Este artigo busca mostrar como essa geografia bífida se reflete no que diz respeito especificamente às formas de aplicação do saber psicanalítico ao mundo do trabalho. Dessa forma, procede-se a uma reconstrução de caráter histórico, a qual deve ser feita, em primeiro lugar, a fim de que se tenha um panorama das grandes diferenças ético-políticas e ideológicas entre as formas de aplicação desse saber ao aspecto mais notável da vida social do século XX. Conforme salientou Bendassolli (2009), esse século assistiu à institucionalização do trabalho nos planos social, político e econômico, de forma que os principais debates contemporâneos - sobre cidadania, inserção social, liberdade, identidade, autonomia, ‘qualidade de vida’ - passaram pela categoria do trabalho. Em razão disso, de acordo com o autor, o século XX merece a designação de ‘século do trabalho’. Bendassolli (2009, p. 37) mostra, ainda, que a “[...] apropriação psicológica do trabalho [...]” se deu daquela mesma forma bífida - mais especificamente, ora a serviço da garantia da produtividade, ora em busca da conquista da emancipação. Todavia, como observam Malone e Friedman (2015), o enorme sucesso cultural da psicanálise e, por outro lado, os aspectos radicais que dela foram obliterados por sua apropriação instrumental pela medicina e pelo capital, não nos autorizam a tomá-la como uma prática psicológica qualquer. Por todos esses motivos, tal panorama parece tão fundamental.
Ainda, tal tarefa se mostra crucial porque o trabalho continua tendo importância central à vida social hoje. Como Maciel (2021, p. 21) ressalta, “[...] o aumento gradativo e inevitável do trabalho precário e indigno em todo mundo é uma das questões mais relevantes da realidade social contemporânea”. Além disso, conforme explicam Seligmann-Silva, Bernardo, Maeno e Kato (2010), a precarização se generalizou, de forma que vivenciam insegurança e competição mesmo aqueles em situação aparentemente privilegiada, além de estarem ameaçados pela série de transtornos mentais em ascensão, tais como o Burnout, as adições, as disfunções musculoesqueléticas e os acidentes de trabalho. Tais fenômenos impõem-se à clínica contemporânea e indicam o quão importante é a consideração da dimensão do trabalhar para a compreensão da subjetividade e do sofrimento na contemporaneidade
A reconstrução histórica ora proposta abaixo mostra, primeiramente, que, no mundo anglo-americano do entreguerras, verificamos a emergência de um uso pragmático da teoria psicanalítica - depois empregada de forma francamente instrumental nos EUA. Em seguida, busca-se indicar que, no mundo francófono da segunda metade do século XX, assistimos ao recurso à psicanálise com o fito de elaborar tanto uma crítica às formas de gestão do trabalho quanto uma reflexão sobre o trabalhar. Essa incursão atesta que o uso da psicanálise oscilou, portanto, entre um polo regulatório, em que ela se transmutou em instrumento do controle social, e um polo emancipatório, no qual ela almejou se tornar ferramenta da autonomia mediante o enfoque dos processos que levam à mudança. Por fim, é feita uma reflexão acerca da importância do potencial crítico da psicanálise à compreensão da realidade social contemporânea, assolada pelas precarizações múltiplas do mundo do trabalho. Esse potencial poderia contribuir às investigações da psicologia social do trabalho, cuja posição frente ao saber psicanalítico parece indicar reservas.
A recepção de Freud no Novo Mundo e a psicanálise anglo-americana aplicada ao trabalho: pragmatismo, eficácia e instrumentalização
Ao refletir sobre as conferências na Universidade de Clark em 1909 - a porta de entrada da psicanálise nos EUA, de onde ela se irradiou pelo Ocidente, reconfigurando a cultura e a maneira segundo a qual os indivíduos passaram enxergar a si mesmos (Zaretski, 2006; Ilouz, 2011) -, Freud (1952, p. 78) conclui, 16 anos depois, em sua Apresentação autobiográfica: “[...] a psicanálise não era mais uma formação delirante [Wahngebilde]: ela havia se tornado uma parte valiosa da realidade [Realität]”. De produção imaginária e quase alucinatória de um só homem - o qual, quando muito, pôde compartilhá-la apenas com seletos jovens interessados até então, formando o que seria conhecido como a Sociedade das Quartas-Feiras -, a psicanálise teria passado a se tornar parte integrante da realidade cultural e científica do século XX. Daí o sentimento de “[...] realização [Verwirklichung] de um incrível devaneio” (Freud, 1952, p. 78) de seu criador.
Não obstante, Freud logo viu que seu desejo conflitaria com a maneira como esse pertencimento se faria numa cultura considerada puritana e pragmática como a norte-americana. À época de sua autobiografia, já podia atestar a ‘diluição’ da psicanálise nos EUA e os ‘vários abusos’ feitos em nome dela (Freud, 1952). Ele então externava moderadamente a preocupação, expressa em sua correspondência privada, acerca da “[...] receptividade impulsiva dos americanos, a par, como parecia, de uma falta de rigor extremamente prejudicial e de um medo não menos prejudicial da sexualidade, para não mencionar um igualitarismo contraproducente” (Gay, 1989, p. 513). Com efeito, o caricatural antiamericanismo, nutrido por Freud, era tão intenso que chega a ser irônico o fato de sua criação intelectual ter tido tanta acolhida numa nação pela qual ele cultivava tamanho desprezo (Gay, 1989).
Como mostrou Hale (1971), os norte-americanos frisaram, sob o influxo das características do tempo em que viviam, alguns elementos presentes naquelas conferências de Clark. O destaque à eficácia terapêutica, a deflação da hereditariedade e a convicção na resolução do conflito neurótico são traços que despontam nelas, transcritas na forma das célebres Cinco lições de psicanálise, assim como a denúncia do caráter patogênico da moral vitoriana e do obscurantismo. É preciso lembrar, ainda, que a conformação da cultura científica e popular americana, a qual ora orbitava em torno do pragmatismo e do behaviorismo, foi determinante naquele modo como a psicanálise foi incorporada nos EUA.
A psicologia aplicada ao trabalho no país, porém, fez-se bem distante da psicanálise. Como revela o estudo seminal de Baritz (1960), o que se via então no mundo do trabalho era o uso de uma psicologia dos instintos, desenvolvida por William McDougall, e de uma psicologia diferencial, cujas bases haviam sido lançadas por Francis Galton e James McKeen Cattel. Ao passo que a primeira patrocinava a inauguração da psicologia aplicada na área do advertising, cujo início remonta aos trabalhos de Walter Dill Scott, a segunda informava a nascente psicologia industrial, cujo primeiro esboço sistemático se deve a Hugo Münsterberg. Tanto Scott quanto Münsterberg se mostraram céticos em relação à psicanálise, oriundos da psicologia acadêmica que eram, de forma que o impacto de Freud não se fez ver nesses enfoques psicológicos que estreavam no mundo da produção.
Todavia, cerca de uma década mais tarde, nos anos 1920, Freud impactou o mundo dos negócios, conquanto de modo indireto, por meio dos trabalhos de seu sobrinho Edward Bernays. Este formatou a cultura do consumo do início do século passado ao demonstrar aos grandes setores da economia que o consumo deveria apelar para o lado não racional, mas irracional dos indivíduos, assentando-se sobre o campo ilimitado dos desejos - e não à fatia restrita das necessidades -, a criação de notícia e a busca por formadores de opinião (Fontenelle, 2017)3. Daí o interesse de Bernays em psicologias das massas como a freudiana, que haviam mostrado a forte relação entre líder e grupo e a influência deste sobre o indivíduo, tão marcante que se fazia ver remotamente. Criador das relações públicas, por meio das quais realizou uma ‘engenharia do consentimento’, Bernays enxergava-se, candidamente, como um libertador, segundo Justman (1994), uma espécie de Freud pragmático, com a missão de mostrar ao público como se expressar e se emancipar das constrições do passado. Porém, embora certo espírito iluminista pudesse aproximá-los, além dos laços de sangue, sobrinho e tio não podiam estar mais distantes: o hedonismo igualitário de feições utilitaristas, o condão da manipulação, a preocupação com o ajustamento, a visão da sociedade como uma acomodação de interesses (Justman, 1994) - eis alguns dos traços que opõem Bernays e Freud. Por outro lado, se considerarmos que um dos pressupostos da compreensão norte-americana psicanalítica era o de que a domesticação do inconsciente implicava a obtenção de uma “[...] nova e poderosa fonte de sucesso e felicidade” (Hale, 1971, p. 408), então é preciso reconhecer a continuidade entre essa psicanálise e a do criador das relações públicas.
É preciso lembrar, ainda, que o ‘lado irracional’ dos indivíduos também era então objeto de investigação das relações de trabalho pelos próceres da denominada Escola das Relações Humanas, conforme observou a socióloga Eva Illouz (2011), mas é preciso asseverar que, contrariamente ao que ela sugere, tal investigação não indica ter-se dado propriamente sob o patrocínio intelectual da psicanálise. Illouz destaca o papel de Elton Mayo na introdução não apenas de uma linguagem dos afetos e de categorias terapêuticas no âmbito empresarial como também da “[...] imaginação ‘psicanalítica’ no local de trabalho” (Illouz, 2011, p. 23, grifo nosso). Contudo, como mostrou a investigação detida de Hsueh (2002), Mayo extraiu sua abordagem terapêutica dos trabalhos de Pierre Janet, cuja influência sobre os norte-americanos era então maior do que a de Freud, e do método clínico de Jean Piaget em especial. Na verdade, ainda que Mayo tenha mantido algum interesse pela psicanálise durante certo tempo, ele foi se tornando progressivamente crítico “[...] dos argumentos especulativos de Freud” (Hsueh, 2002, p. 173), supondo que estes careciam de base empírica. Assim, os pressupostos de que partiram as intervenções de Mayo, as quais mostraram considerar o que a racionalidade taylorista e behaviorista da época preferia ignorar, não eram derivados da psicanálise de Freud, e sim de autores um tanto distantes dela.
Não obstante, aqueles célebres experimentos de Hawthorne dos quais Mayo fez parte foram capazes de mostrar a importância da investigação dos processos grupais para a eficácia do funcionamento organizacional - aspecto que representou a condição da entrada da psicanálise em outro contexto. Hawthorne representa um passo decisivo em direção à compreensão e à superação das formas coletivas de oposição à lógica da eficiência empresarial. Ali foram identificados aspectos que seriam explorados posteriormente na Inglaterra, mais especificamente no Tavistock Institute of Human Relations (TIHR), onde a psicanálise iria despontar como uma das ferramentas privilegiadas na tentativa de domesticação da oposição à gestão (Miller & Rose, 1988). Em Hawthorne, em contrapartida, as referências teóricas eram outras: além da abordagem terapêutica apontada acima, ancorada em Piaget e Janet, uma sociologia das organizações inspirada em autores como Durkheim.
Na verdade, a psicanálise então não tinha mesmo nada a oferecer no que diz respeito à investigação sistemática dos processos grupais. As pesquisas psicanalíticas sobre eles ainda não haviam ocorrido. Como afirmou um dos grandes estudiosos de tais processos, René Kaës (2017), os psicanalistas logo começariam a entender que a psicanálise não poderia abordar grupos e instituições partindo apenas dos ‘pressupostos especulativos de Freud’: seria preciso inventar um método e elaborar hipóteses que pudessem ser postas à prova. Ainda que seminais e axiais, as conclusões de Freud em textos como Psicologia das massas e análise do eu eram apenas indicações. Mais do que determinar a função do grupo na estrutura psíquica do indivíduo, mostrando a centralidade da identificação, era necessário compreender como o “[...] modelo endopsíquico do grupo é capaz de organizar os processos psicossociais implementados na grupalidade” (Kaës, 2017, p. 41) - isto é, compreender os processos que ocorrem ‘no próprio grupo’ e as realidades fantasmáticas que ‘ele’ cria. Daí por que Bernays, aliás, interessado justamente em explorar (economicamente sobretudo) a identificação entre líder e massa, pôde fazer algum uso da psicanálise freudiana.
Foi após a Segunda Guerra, do outro lado do Atlântico, que essa compreensão se verificou e foi estendida às organizações. As transformações requeridas por esse processo, que gravitou em torno da Tavistock Clinic (TC), fundada em 1920, e do TIHR, criado a partir daquela em 1946, na Inglaterra, foram expostas por Miller e Rose (1988). Eles nos mostram que tais transformações se consolidaram ao cabo de três momentos marcantes: o movimento de higiene mental dos anos 1920 e 1930, a emergência de uma expertise psicológica durante a Segunda Guerra, e o estabelecimento de relações entre produtividade industrial, processos grupais e saúde mental no pós-guerra.
Da Primeira Guerra ao entreguerras, os princípios psicodinâmicos foram empregados nos tratamentos mentais, mas sem ser dada qualquer prioridade à psicanálise. Porém, nesse período ocorreu, com o movimento da higiene mental, algo fundamental (e, poderíamos acrescentar, que se mostraria crucial para a abertura das instituições à abordagem psicanalítica): o vínculo entre a precariedade da saúde doméstica e uma série de problemas sociais (de transtornos mentais a crimes e ineficiência organizacional). Esse acontecimento trouxe à tona a enorme importância da gestão das relações familiares e do desenvolvimento infantil. Depois da Segunda Guerra, enfim, com o advento de uma política de saúde mental - que, portanto, fez a preocupação com os transtornos psíquicos transcender os muros asilares - e a partir da invenção de modos de intervenção feitas no período - respeitantes à seleção, ao treinamento, à manutenção do moral grupal e formas de tratamento psíquico -, a eficiência organizacional passou a ser vinculada à administração dos vínculos entre os membros de um grupo. Tais transformações, que ocorreram exemplarmente na TC e TIHR, marcaram, sempre segundo os autores em questão, a “[...] emergência de uma nova expertise e [uma nova] linguagem para o governo da subjetividade e da vida social” (Miller & Rose, 1988, p. 177).
É nesse contexto que se assiste ao advento da psicanálise anglófila aplicada ao mundo do trabalho. Segundo Arnaud (2004), foi na TC e na TIHR que se assistiu ao nascimento da primeira teoria psicanalítica organizacional e da primeira metodologia de intervenção nesse domínio. Tendo inauguradas as derivações teóricas e clínicas decisivas das intuições freudianas acerca dos processos grupais inconscientes e, sobretudo, das considerações kleinianas acerca dos processos defensivos dos indivíduos advindos do contato com angústias arcaicas, os pesquisadores ingleses finalmente puderam realizar uma investigação sistemática dos grupos.
Dentre eles, destaca-se Wilfred Bion, pioneiro na elaboração de uma interpretação psicanalítica dos processos grupais. Tendo feito parte da equipe de Tavistock e de hospitais militares como o de Northfield, em Londres, o psiquiatra de origem indiana pôde adquirir larga experiência terapêutica com grupos, as quais o permitiram intuir duas modalidades de funcionamento paralelo, uma denominada ‘grupo de trabalho’ (work group) ou ‘grupo sofisticado’, norteado pela consecução de uma tarefa específica, e um ‘grupo de base’ (basic-assumption group), guiado por medos e pressupostos de natureza inconsciente ou ‘proto-mental’ compartilhados (Bion, 2004). O modelo bioniano pôde indicar um campo de causas dos desarranjos que afetavam o funcionamento dos mais variados grupos e provocou um profundo impacto no campo então nascente da dinâmica de grupo.
Logo depois, seguindo a senda aberta por Bion e também partindo de Melanie Klein, o médico e psicólogo canadense Elliott Jaques elaborou a sua abordagem denominada ‘socioanalítica’ a partir de uma intervenção organizacional de inauditas proporções. Tendo em vista a retirada do Reino Unido do estado lastimável em que a economia se encontrava após a guerra, o governo britânico, em 1948, resolveu formar o Comitê de Produtividade Industrial e destinar verbas para pesquisa visando ao aumento da produtividade mediante a melhora da cooperação entre gestores e trabalhadores (Trist & Murray, 1990). A empresa que se tornou objeto da pesquisa foi a Glacier Metal Company, metalúrgica londrina que empregava cerca de 1.500 pessoas. Jaques liderou a pesquisa, com a tarefa de reduzir os conflitos que ali ocorriam e de promover mudanças na organização e na cultura da empresa, tendo relatado todo o processo, três anos depois, no livro A mudança de cultura de uma fábrica (Changing culture of a factory), que acabou sendo a primeira grande publicação do Instituto no pós-guerra e tendo sucessivas impressões (Trist & Murray, 1990). Cabe salientar, de acordo com Arnaud (2004, p. 40), que a experiência de Jaques nessa firma “[...] constitui, ainda hoje, a intervenção organizacional de inspiração psicanalítica mais ambiciosa jamais realizada [...]”, o que a transformou numa referência maior para numerosos pesquisadores e interventores.
O que nos interessa nessa experiência são as inovações dela derivadas no que diz respeito à aplicação da teoria psicanalítica, publicadas por Jaques (1978) num trabalho que também se tornou referência. Nele, o canadense enuncia sua tese de que um dos elementos primários da coesão entre os indivíduos em instituições é a defesa contra a ansiedade - especialmente, a de tipo paranoide e depressivo. Na teoria kleiniana, tais ansiedades vinculam-se a modalidades fundamentais do indivíduo se relacionar com o mundo (agrupadas em psicanálise sob a denominação ‘relações de objeto’) erigidas na mais remota infância: trata-se das ‘posições’ (termo que Klein prefere ao termo ‘fases’, já que compreendem angústias e modalidades de relação que retornam ao longo da vida, sob certas condições) esquizo-paranoide e depressiva (Laplanche & Pontalis, 1973). Resumidamente, na primeira, vivem-se angústias intensas de natureza persecutória, que desencadeiam os mecanismos mais arcaicos de defesa (aqueles que implicam a clivagem [splitting] do objeto em ‘bom’ e ‘mau’), ao passo que, na última, vivem-se angústias depressivas combatidas por diferentes mecanismos de defesa menos arcaicos (maníacos ou mais adequados, como a reparação e a inibição) (Laplanche & Pontalis, 1973). Jaques leu a dinâmica organizacional através dessa grade conceitual kleiniana e buscou ilustrá-la com exemplos, como o das ansiedades paranoides no caso paradigmático de um capitão de um navio visto como objeto ‘bom’ e idealizado e seu imediato visto como ‘mau’. O que havia de operativo nessa leitura, porém, é revelado no estudo de caso da Glacier, o qual indica que os conflitos fantasmáticos entre gerência e operariado puderam ser elaborados (working-through) a partir da promoção de encontros entre os representantes das partes, nos quais foram se construindo mecanismos inconscientes para lidar com as ansiedades paranoides e depressivas que estavam em jogo (Jaques, 1978)4.
De acordo com Miller e Rose (1988), intervenções promovidas no âmbito do TIHR como essa da Glacier marcaram mudanças fundamentais na maneira de encarar os problemas industriais e sociais. Longe de serem apenas respostas funcionais para problemas organizacionais, elas representaram uma “[...] nova grade conceitual para compreender a vida econômica” (Miller & Rose, 1988, p. 184), que mobilizava não apenas os conhecimentos psicanalíticos como também psiquiátricos, antropológicos, sociológicos e organizacionais para compreender uma ampla gama de problemas da vida industrial. A tais disciplinas se somavam, ainda, os saberes da Teoria do Campo, do psicólogo gestaltista Kurt Lewin, e a análise dos sistemas sociotécnicos, avançada por pioneiros do instituto como Eric Trist e Fred Emery. Subjacente a todos esses conhecimentos e conferindo-lhe unidade, estava a noção central de ‘grupo’, condição para a compreensão do trabalho nas organizações e que fazia da “[...] ‘vida relacional da empresa’” (Miller & Rose, 1988, p. 184, grifo do autor) o principal foco teórico da abordagem de Tavistock. Essa nova grade conceitual centrada nos processos grupais permitia abrir todo um campo de análise e intervenção que equiparava saúde psíquica e eficiência gerencial, de modo que “[...] o grupo proveu os meios para a criação de técnicas mediante as quais a subjetividade do indivíduo poderia ser integrada aos objetivos da organização” (Miller & Rose, 1988, p. 186).
A psicanálise tornava-se, assim, peça importante nesse projeto regulatório. Secundária até então, entre as teorias psicológicas aplicadas no mundo industrial americano, ela agora ganhava destaque em solo britânico, onde, tendo mostrado sua relevância durante a Segunda Guerra e saído dela representando “[...] o corpo mais avançado do conhecimento psicológico então disponível” (Trist & Murray, 1990, p. 6), logrou ainda equiparar em importância saúde fantasmática e saúde financeira da empresa.
Deve-se notar que, embora regulatória, essa empreitada britânica não pode ser equiparada, no quesito instrumentalidade, à norte-americana. Ainda que não tenha sido uma referência teórica maior ao mundo norte-americano do trabalho, a psicanálise, como lembra Zaretsky (2006), teve papel basal na construção da indústria cultural dos EUA. O denominado freudismo fez as vezes de artifício necessário ao giro das engrenagens do fordismo, já que contrabalançou a moral pesada, uniforme e racional fordista com o destaque ao papel das fantasias, das singularidades e do irracional. Assim, “[...] o fordismo precisava do freudismo porque este articulava os anseios íntimos do trabalhador” (Zaretsky, 2006, p. 136) - anseios estes de que alguém como Bernays soube muito bem haurir valor, como se viu acima.
Além disso, o potencial operativo da psicanálise não passou despercebido aos norte-americanos por muito tempo: nos anos 1960, eles engendraram uma forma autóctone e eclética de psicodinâmica aplicada ao mundo do trabalho, a ‘psicodinâmica da liderança’ (psychodynamics of leadership). Fundada pelos professores de Harvard Harry Levinson e Abraham Zaleznik, ela se centra sobre a relação entre liderança e disfunções organizacionais partindo de uma abordagem heterodoxa (que vai desde Freud até a análise culturalista e a psicologia analítica) e avançando uma tipologia de líderes, os efeitos dos estilos de liderança patológicos sobre a organização e os conluios fantasmáticos (Arnaud, 2004). Este último aspecto foi explorado especialmente por Manfred Kets de Vries, um dos que mais se aprofundou na abordagem propriamente psicanalítica, e que evidenciou que o objetivo da investigação de aspectos como esse é ensinar a reconhecer e a manejar esses comportamentos disfuncionais. Assim, a marca dessa abordagem é a utilização da psicanálise em nível francamente instrumental, às vezes até caricata - o que é expresso em títulos como O guia do executivo para entender pessoas: como a teoria freudiana pode transformar bons executivos em melhores líderes, de Zaleznik.
A empreitada britânica, por outro lado, mostrou-se séria, e serviu de inspiração à tradição crítica da psicossociologia francesa, cujo importante papel se verá mais abaixo. Um de seus grandes representantes, André Lévy (2001), destaca, por exemplo, a influência da abordagem sociotécnica e dos trabalhos de Jaques especialmente sobre certo grupo de tal tradição - que será identificado a seguir - preocupado com a promoção de intervenções em locais de trabalho. Todavia, Lévy (2001, p. 49) reconhece o claro intento regulatório num trabalho como o de Jaques, ao apontar que ele “[...] inscreve-se, ao mesmo tempo, no registro da organização produtiva e no da exploração de conflitos e de fantasmas inconscientes”.
Contudo, para que pudéssemos identificar um verdadeiro intento emancipatório, a empreitada britânica deveria abandonar esse ‘registro da organização produtiva’ - que, no entanto, era central como se viu, e do qual a psicossociologia conseguiu guardar distância, conforme se verificará. Assim, por mais que se distinga dos norte-americanos, a aplicação que os britânicos fizeram da psicanálise ao mundo do trabalho não podia esconder seu fito regulatório.
A psicanálise francesa aplicada ao trabalho: crítica, mudança e emancipação
Em meados do século passado, a doutrina freudiana, num plano ideológico, sofria rejeição na França em razão de ser considerada reacionária. De acordo com Roudinesco (1988, p. r27), os comunistas franceses empreenderam uma “[...] guerra antipsicanalítica [...]” que, efetivamente, indicava pouco conhecimento daquela doutrina, amalgamando-a ora a um antiamericanismo, ora ao nazismo, e opondo-lhe o materialismo de psicologias como as inspiradas em Pavlov. Com efeito, a grande nêmese do grupo era a psicanálise à moda norte-americana, julgada adaptativa, conservadora e imperialista. A expressão dessa posição que acabou por ter ampla repercussão foi publicada na célebre revista La Nouvelle Critique em 1949: trata-se do famigerado artigo Autocrítica: a psicanálise, ideologia reacionária, assinado por oito psiquiatras importantes, como Louis Le Guillant e Lucien Bonnafé, e que assinalava o caráter mistificador da teoria psicanalítica, sua concepção idealista das relações entre indivíduo e sociedade e a concepção esotérica de sua técnica. Artigos como esse mostram um antifreudismo que só iria amainar em meados dos anos 1950, quando se começou a assistir ao “[...] abandono da cruzada” (Roudinesco, 1998, p. 206), nessa importante revista e em outras, como a La Raison, de Henri Wallon.
Já num plano doutrinário, a psicanálise era deixada de lado por boa parte dos médicos que buscavam superar a crise em que se encontrava a psiquiatria francesa. A história dessa busca, ricamente narrada por Isabelle Billiard (2001), iniciou-se com um duplo movimento: de um lado, a intervenção no debate psiquiátrico das teses psicogenética e sociogenética a respeito da etiologia das doenças mentais - isto é, da defesa, por parte de autores como Lacan, de uma causalidade puramente psíquica, e, por parte de autores como Bonnafé, de uma causalidade do meio na ocorrência da enfermidade psíquica - a partir das Jornadas de Bonneval, em 1946; de outro, a emergência de uma preocupação de caráter humanista, centrada no resgate das dimensões do humano fundamentais, mas até então esquecidas - deste como “[...] um ser de linguagem, de relações e de liberdade, que se transforma no tempo [dans la durée], dotado de capacidades imaginárias e simbólicas [...]” (Billiard, 2001, p. 98). Além desse movimento desestabilizador, estava em curso uma revisão radical das práticas hospitalares durante a Segunda Guerra, quando se ensaiaram experiências de psicoterapia coletiva e ergoterapia as quais acabaram por promover uma aproximação inaudita entre loucura e trabalho, e a uma reflexão acerca do lugar da psiquiatria na sociedade, que redundou no advento de uma psiquiatria social e nas formulações iniciais de uma psicopatologia do trabalho. A vertente sociogenética, avessa ao referencial psicanalítico, despontou nesse movimento de reorganização psiquiátrica.
Curiosamente, porém, essa vertente, assim como as formulações iniciais da psicopatologia do trabalho, trouxe contribuições determinantes para as feições da psicanálise aplicada ao mundo trabalho na França. Dos três instituidores da ‘primeira fundação’, Le Guillant, Paul Sivadon e Claude Veil, dois foram cruciais para a constituição de tais feições: Veil, por um lado, pelo conteúdo de suas reflexões psicopatológicas inspiradas na psicanálise; e Le Guillant, pelo estilo de suas reflexões, as quais, porém, fizeram-se bem longe do freudismo, visto apoiarem-se numa visão sociogenética. Ambos os autores viriam a ser importantes a essa psicanálise aplicada: Veil, pela elaboração de uma ‘clínica do sujeito’, em que se evidenciava o influxo do freudismo num enfoque da relação entre a dinâmica psíquica e as normas do meio laboral; Le Guillant, por ter fundado uma ‘clínica das situações’ preocupada com a investigação do caráter patogênico de certos tipos de tarefas (Billiard, 2001).
Na esteira de uma ‘clínica sujeito’, reflexões cruciais de extração psicanalítica em psicopatologia do trabalho começaram a ser feitas nos anos 1960. Seguindo as tendências das armadas anglo-americanas, o médico-coronel André Missenard procedeu a uma análise vocacional dos pilotos da aeronáutica por meio do instrumental psicanalítico, centrado nas estratégias defensivas e no conflito edípico dos candidatos. Fazendo referência aos trabalhos de Tavistock, Jean Ochonisky publicou, na segunda metade da década, um artigo importante em que eleva o trabalho à condição de terapêutica da angústia, em razão de seu caráter sublimatório. À mesma época, por fim, a fim de estudar a fadiga nervosa e o desgaste entre os condutores de trem franceses, Jean-Jacques Moscovitz desenvolveu uma pesquisa com eles à luz do arcabouço analítico, na qual se veem inovações metodológicas fundamentais, como análise de demanda e entrevistas em grupo que lhe davam os ‘movimentos transferenciais’ dos ferroviários (Billiard, 2001).
De outra parte, a esta altura, já se mostrava bem mais maduro e operativo o influxo da psicanálise sobre o importante campo da denominada psicossociologia francesa. Dentre as suas principais correntes, figuravam então a psicanálise aplicada de Didier Anzieu e de René Kaës, as investigações de Max Pagès, Guy Palmade, André Levy, Jean-Claude Rouchy e Jacqueline Barus-Michel no âmbito da ARIP (Association pour la Recherche et l’Intervention Psychossociologiques), a sociologia clínica de Eugène Enriquez, a sociopsicanálise de Gerard Mendel. De fato, pode-se identificar uma enorme variedade de subsídios teóricos e práticos nas investigações psicossociológicas, como indicam seus próprios autores (Barrus-Michel, Enriquez, & Lévy, 2016). Todavia, como atesta Lévy (2001, p. 43), “[...] a psicanálise representa uma referência inevitável [...]” a eles, fornecendo-lhes subsídios críticos basais. Foi ela que promoveu, de um lado, o distanciamento necessário à psicologia social de Lewin e, de outro, “[...] mais ainda que as teorias marxistas ou neomarxistas [...]”, a denúncia do caráter ideológico da redução dos conflitos a problemas de comunicação (Lévy, 2001, p. 44).
Não obstante, nem todos desse grupo variado de autores mantinham-se rentes à realidade social. Conforme ressalta Lévy (2001), era possível identificar, dentre eles, duas orientações bem distintas quanto a esse aspecto: uma, representada especialmente por Anzieu, mas também Rouchy, propunha um trabalho clínico grupal que não levava “[...] em consideração a especificidade dos processos e das estruturas sociais [...]” (Lévy, 2001, p. 48); outra, representada por autores como Enriquez e o próprio Lévy, caracterizava-se pelo “[...] maior interesse em facilitar evoluções em situações reais - empresas, coletividades locais, hospitais [...]” (p. 48). Dessa forma, sem dúvida, são os autores dessa segunda orientação os que mais merecem destaque, considerando-se o presente intento de resgate da psicanálise aplicada ao mundo do trabalho. Contudo, conforme salienta Lhuillier, (2013, p. 15), “[...] deve-se reconhecer que a psicossociologia não conferiu um lugar central necessariamente ao trabalho, às atividades do sujeito sobre e no mundo, nem mesmo às práticas concretas [...]”. Assim, por mais robusta que a presença da psicanálise se tenha mostrado nesse grupo, uma reflexão ‘sobre o trabalho’, psicanaliticamente orientada, ainda estava por se fazer.
De todo modo, com tais autores, finalmente ganhava corpo uma perspectiva bem captada por Lévy (2001, p. 49, grifo nosso)
Sua mais importante contribuição [da psicanálise à psicossociologia], entretanto, nos parece, é de ter definido e ilustrado uma ‘problemática da mudança,’ levando a consideração particular dos processos psíquicos, tanto individuais quanto coletivos. Definindo a mudança como um ‘processo contínuo’, e não como um resultado causalmente determinado - logo, não findo e não programável - a perspectiva psicanalítica marcou uma ‘ruptura’ com os modos de pensamento anteriores. Mais do que determinar as causas suscetíveis de levar a certo estado procurado, e os meios de agir sobre elas de maneira mais rápida e mais eficaz possível, os clínicos se interessarão pelo próprio processo, pela maneira como este muda, a fim de encontrar, por um ‘paciente trabalho’, no qual o tempo não é medido, os elementos de uma ‘história esquecida’, e de reatar o fio perdido. [...]. Da mesma forma, a ‘mudança de que se fala aqui é sempre vivida no conflito entre forças opostas’, das quais nenhuma tem certeza de vencer; ela nunca é adquirida de uma vez por todas: as situações humanas estão sempre em equilíbrio instável, são mais ou menos duráveis, suscetíveis, a cada instante, de cair no sem forma.
Tem-se, nesse excerto, o atestado de uma mudança não apenas de caráter epistemológico como também ético-político. Por um lado, ao invés da procura apressada por causas, a espera paciente pelo decurso do ‘processo de mudança’, das ‘histórias esquecidas’, do ‘fio perdido’. Por outro lado, ao invés de uma atuação que visa a eficácia, uma ação que aguarda a compreensão. Por conseguinte, tal ação jamais pode ser reduzida a uma técnica: ela é política, pois seu âmbito é do conflito, reino por excelência do ‘equilíbrio instável’, do ‘sem forma’.
Vinte anos depois, a partir dos anos 1980, Christophe Dejours supriu a carência de uma reflexão detida acerca do trabalho e do trabalhar psicanaliticamente orientada. Ele, contudo, de início não explicitou sua dívida para com a psicanálise. Oriundo não da tradição psicossociológica - embora, em alguma medida, sob o influxo ela -, e sim da psicopatologia do trabalho, e fortemente influenciado pela ergonomia de Alan Wiesner, Dejours quis marcar, antes, uma diferença relativamente ao saber psicanalítico. Foi apenas quando batizou sua disciplina com o nome pelo qual a conhecemos - psicodinâmica do trabalho -, que o peso da visão antropológica da psicanálise foi ressaltado pelo próprio autor. A atenção passou a gravitar então não mais sobre a patologia, mas sobre a normalidade, entendida como um equilíbrio dinâmico, situado entre o sofrimento e o prazer. Tal abordagem trazia ao primeiro plano os componentes libidinais do vínculo estabelecido entre ser humano e trabalho, os quais poderiam se desenvolver seguindo uma via sublimatória, rumo à saúde, ou uma via defensiva, em direção à patologia (Ferretti, 2020).
A partir do final da década de 1990, Dejours se serviu de sua teoria para tentar compreender as raízes da dominação e para pensar caminhos possíveis em direção à emancipação. Por um lado, em A banalização da injustiça social, o autor se debruça sobre as “[...] motivações subjetivas” (Dejours, 2007, p. 17) da dominação, investigação que o conduz à detecção de uma relação analógica e homológica, a um só tempo, entre a virada neoliberal e a máquina nazista, ambos sustentados pela mobilização total do trabalho do medo. O que estaria em causa nos dois fenômenos não seria a ausência de pensamento, como supunham reflexões célebres como as de Hannah Arendt, e sim a existência de uma colaboração maciça sob o aguilhão do sofrimento. Por outro lado, em Trabalho vivo, ele se dedica a pensar o que denomina uma ‘política do trabalho’, a qual implica defender que “[...] a organização do trabalho é um problema político por inteiro, que não é redutível a nenhuma dimensão política” (Dejours, 2012, v. 2, p. 209). Noutros termos, defende uma apropriação da organização do trabalho por todos, não apenas a fim de intervir sobre o enorme problema das doenças relacionadas ao trabalho, mas, sobretudo, com vistas à reconstrução das relações de solidariedade e da aprendizagem do ‘viver junto’, destruída especialmente com a virada neoliberal. Para tanto, seria preciso elaborar “[...] uma doutrina do trabalho apoiada na reavaliação sistemática das relações entre o trabalho e a polis, entre o trabalho e a violência ou a civilização [...] entre o trabalho e a cultura, entre o trabalho e a democracia” (Dejours, 2012, v. 2, p. 204).
A esta altura, já se pode constatar que esse percurso da psicanálise francesa aplicada ao trabalho, brevemente retomado acima, evidencia uma preocupação crítica. Embora talvez se justificasse a suspeição a respeito do saber psicanalítico até os anos 1950, seja em razão de sua aplicação instrumental especialmente nos EUA ou de seu elitismo de maneira geral, as décadas seguintes deram provas de um esforço crítico insuspeito. À diferença de suas antecessoras, essa psicanálise aplicada demonstrou objetivos emancipatórios claros.
Considerações finais
O que esse panorama histórico das duas grandes tradições de psicanálise aplicada ao mundo trabalho - anglo-americana e francesa - procurou mostrar foi a distinção entre duas espécies de usos do referencial analítico, um regulatório, outro emancipatório. Por mais que as abordagens francesas tenham se inspirado nas anteriores de alguma forma, seus caminhos foram diferentes pelas razões contextuais. Não se deve, portanto, reduzir as direções tomadas à determinação por algo como um ‘espírito nacional’, como o fez Freud: foram sobretudo condicionantes históricos que propeliram essas abordagens.
Tal constatação é importante, pois é preciso, antes, atentar para o ‘espírito do tempo’. Em nossa época, pródiga em formas de neoliberalismos, sustentar uma visão crítica e propor intervenções emancipatórias no mundo do trabalho parece uma tarefa cada vez mais árdua. Nesse sentido, talvez seja paradigmática a aplicação da teoria lacaniana verificada em certa linha de estudos organizacionais, encabeçada por autores como Gilles Arnaud, a qual acaba por despojar essa teoria de sua originária vocação crítica (Moncayo, 2018). Noutros termos, trata-se de uma apropriação francesa da psicanálise a qual, porém, mostra-se regulatória.
Por outro lado, a constatação a respeito de nosso ‘espírito do tempo’ deve mostrar a importância ainda maior de uma abordagem crítica hoje, sobretudo considerando-se nossa realidade nacional. Leituras refinadas da subjetividade laboral contemporânea e intervenções de caráter emancipatório são urgentes no Brasil. Não apenas porque somos um dos países em que as doenças relacionadas ao trabalho e os acidentes laborais mais se agravam (Seligmann-Silva et al., 2010) como ainda porque, aqui, a precarização do trabalho é estrutural, e não apenas conjuntural, como na Europa e nos EUA (Maciel, 2021).
Apesar de a teoria dejouriana ter assistido a uma acolhida extraordinária em nosso país (Ferretti, 2020), a psicologia do trabalho nacional não revela o mesmo destaque à psicanálise. É verdade, como aponta Sampaio (1998), que tal psicologia se mostra em perfeita consonância com os preceitos evidenciados por Lévy no excerto reproduzido mais acima. Isto é, nessa psicologia que se diferencia radicalmente de suas predecessoras, a industrial e a organizacional, passou a haver, finalmente, “[...] lugar para se vislumbrar o homem com ser desejante [...]”, de forma que “[...] uma aproximação com a psicanálise é inevitável” (Sampaio, 1998, p. 27). Contudo, tal aproximação não parece tão efetiva em nosso país. Em obras mais críticas, como as de Coutinho, Bernardo e Sato (2017), identificam-se como principais fontes da ‘psicologia social do trabalho’ o campo da saúde do trabalhador e da economia solidária, preceitos como os da medicina social latino-americana e do ‘Movimento Operário Italiano’ e autores como Paulo Freire e Peter Spink. Já em obras menos críticas, como a de Zanelli, Borges-Andrade e Bastos (2014), a psicanálise é mencionada por suas contribuições nas teorias sobre motivação e liderança. Por fim, em trabalhos como o de Bendassolli (2009), que buscam uma sistematização do campo, dentre as cinco ‘vias de apropriação psicológica do trabalho’ (a dos ‘construtos da psicologia organizacional’, a das ‘teorias da psicologia social do trabalho’, a das ‘perspectivas clínicas sobre o trabalho’, a dos ‘construtos sobre significado e função psicológica do trabalho’), apenas a das clínicas do trabalho - e, nomeadamente, a de Dejours - parece abrigar alguma importância à psicanálise.
Essa relativa ausência da psicanálise parece indicar reservas a ela. Essa posição é mais clara em Coutinho et al. (2017), que iniciam seu livro denunciando a atitude distante dos estudantes quinto-anistas de psicologia da década de 1980 em relação à psicologia do trabalho, mais preocupados em tratar de questões de uma elite do que encarar uma realidade social dura, então caracterizada por recordes de acidentes de trabalho, ditadura e carência de recursos à saúde pública. Nos outros dois trabalhos citados, verifica-se certo predomínio de uma visão cognitivista - um tanto justificadamente, pois, como mostrou Bendassolli (2009, p. 32), a psicologia do trabalho foi muito marcada pelo “[...] giro cognitivista”.
Espera-se que a reconstrução histórica feita neste artigo tenha mostrado aos estudiosos da psicologia do trabalho, sobretudo aqueles que apresentam reservas à psicanálise, o quanto o decurso da aplicação desta ao mundo do trabalho transladou de um polo regulatório a outro emancipatório e, com este, como possibilidades de transformação da organização do trabalho foram indicadas. Ainda, é preciso pedir que atentem para o afinco com que boa parte da reflexão psicanalítica brasileira tem se dedicado a temas candentes da realidade nacional, como racismo, feminismo, democracia, clínicas públicas, cuidado em situações de catástrofes ambientais e sociais. Por fim, a eles se deve lembrar que Freud afirmava ser a vocação originária da psicanálise permitir ao sujeito amar e trabalhar, o que indica o quanto ela, em tempos de patologias em aumento, precarização e sofrimento social agudo, deveria, por coerência, distanciar-se polo regulatório e pender para o polo crítico.
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Vários foram seus trabalhos, mas um deles acabou se tornando paradigmático, no qual vemos os feitos mencionados se entrelaçarem: com a tarefa de difundir o hábito de fumar entre as mulheres e aconselhado pelo psicanalista A. A. Brill, que externou o caráter do fálico dos cigarros, Bernays criou notícia e dispôs mulheres elegantes acendendo-os como se fossem ‘tochas da liberdade’ em meio a um desfile de Ação de Graças em 1929, época em que o desejo de emancipação feminina mostrava-se em ascensão (Fontenelle, 2017). A empreitada foi um absoluto sucesso.
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Na trilha seguida por Jaques, inserem-se os trabalhos importantes de Isabel Menzies Lyth, também de Tavistock, com destaque ao artigo pioneiro sobre a ansiedade das enfermeiras diante da morte e do sofrimento, as técnicas defensivas e outros aspectos testemunhados no serviço de enfermagem.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
05 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
22 Set 2020 -
Aceito
16 Maio 2022