Open-access GÊNERO, SEXUALIDADE E O SEXUAL: O SUJEITO ENTRE BUTLER, FOUCAULT E LAPLANCHE 1

GÉNERO, SEXUALIDAD Y LO SEXUAL: EL SUJETO ENTRE BUTLER, FOUCAULT Y LAPLANCHE

RESUMO

Neste trabalho, articulamos um debate crítico entre Butler, Foucault e Laplanche para pensar a constituição do sujeito a partir das categorias centrais utilizadas por esses pensadores: o gênero, a sexualidade e o sexual. Primeiro, desenvolvemos a ideia de jogos libidinais de poder: os jogos de poder foucaultianos não se sustentam sem um suporte libidinal subjetivo. Em seguida, após introduzir as leiturasde Butler e Laplanche, tentamos abrir caminho para uma releitura laplancheana sobre um mal-estar na teoria butleriana da performatividade de gênero. Para isso, aproximamos a performatividade, como repetição citacional de uma norma sem fundamento ontológico, aos conceitos laplancheanos de código tradutivos e mensagens enigmáticas. Como pano de fundo do debate, concebemos que a verdade recalcada dos arranjos normativos de gênero é o sexual, que desafia as tentativas de cristalizar, de forma clara e distinta, o binário tradicional homem-mulher. Do ponto de vista da constituição do sujeito, concluímos apontando a possibilidade de pensar em tratamentos menos mortíferos e menos rígidos para opulsional.

Palavras-chave: Gênero; sexualidade; inconsciente; performatividade

RESUMEN

En este estudio, articulamos un debate entre Butler, Foucault y Laplanche para pensar la constitución del sujeto a partir de las categorías centrales utilizadas por esos pensadores: el género, la sexualidad, lo sexual. Primero, desarrollamos la idea de juegos libidinales de poder: los juegos de poder foucaultianos no se sustentan sin un suporte libidinal subjetivo. Después de introducir las teorías de Butler y Laplanche, intentamos abrir camino a una relectura laplancheana de la teoría butleriana de la performatividad de género. Para eso, acercamos la performatividad, como repetición citacional de una norma sin estatuto ontológico, a los conceptos laplancheanos de mensajes enigmáticos y códigos traductivos. Como paño de fondo del debate, concebimos la verdad recalcada de arreglos normativos de género como siendo lo sexual, que desafía los intentos de cristalizar, de una forma clara y distinta, el binario tradicional hombre-mujer. Del punto de vista de la constitución del sujeto, concluimos apuntando la posibilidad de pensar en tratamientos menos mortíferos y menos rígidos para lo pulsional.

Palabras clave: Género; sexualidad; inconsciente; performatividad

ABSTRACT

In this study, we articulate a debate between Butler, Foucault, and Laplanche to think the constitution of the subject through central categories used by these thinkers: gender, sexuality, and the sexual. First, we develop the notion of libidinal games of power, in that power games only sustain themselves with a libidinal subjective support. Then, after introducing Butler’s and Laplanche’s theories, we sought to open the way for a Laplanchean re-reading of Butler’s theory of gender performativity. Thus, we approximate performativity, as the citational repetition of a norm that has no ontological status, to the Laplanchean concepts of translational codes and enigmatic messages. As the background of this debate, we conceive the repressed truth of normative arrangements of gender as the sexual, which defies the attempts to crystalize, in a clear and distinct way, the traditional binary man-woman. From the point of view of the subject’s constitution, we conclude by pointing the possibility of thinking about less-deathly and less-rigid treatments for the drive.

Keywords: Gender; sexuality; unconscious; performativity

Introdução

Neste trabalho, procuramos realizar um debate crítico entre algumas das contribuições de Jean Laplanche, Michel Foucault e Judith Butler, no intuito de pensar articulações teóricas que tenham como saldo um avanço na leitura da constituição subjetiva, a partir das categorias centrais com as quais cada um desses pensadores teoriza o sujeito: Butler, com o gênero; Foucault, com a sexualidade; Laplanche, com o sexual. Temos em mente que as teorias desses autores não estão em continuidade umas com as outras. Há entre elas, pelo contrário, várias zonas de tensões e embates epistêmicos. No entanto, acreditamos ser possível fazer trabalhar alguns pontos de convergência entre elas, com o objetivo de pensar os avanços teórico-clínicos trazidos pelo conceito laplancheano de sexual, em tensionamento com algumas das críticas e propostas de Butler e Foucault. Como resultado, tentaremos abrir caminho para uma releitura da teoria butleriana da performatividade de gênero, servindo-nos das contribuições de Laplanche.

Para isso, tomamos como pressuposto uma elaboração a ser feita sobre a díade foucaultiana discurso-poder, incluindo aí um terceiro termo: a libido. A nosso ver, a díade original - que entrelaça as práticas discursivas a relações de poder para formar complexos de saber-poder - não é sem um suplemento, um suporte, uma contrapartida libidinal, que assenta as condições psíquicas para a sustentação dos processos de subjetivação. Nesse sentido, propomos que os jogos de poder narrados por Foucault precisam ser concebidos como jogos 'libidinais' de poder, possibilitando a construção da tríade discurso-poder-libido, elementos que se entrelaçam na formação-produção do sujeito.

Vale observar que essa ideia também pode ser encontrada, de maneira embrionária, em A vida psíquica do poder, livro em que Butler (2017, p. 10) coloca a seguinte questão: “{...} qual é a forma psíquica que o poder adota?”. Tal pergunta, segundo Butler, requer “{...} que a teoria do poder seja pensada junto de uma teoria da psique {...}”, tarefa evitada tanto pela ortodoxia psicanalítica quanto pela ortodoxia foucaultiana. Dessa maneira, a autora propõe considerar a sujeição como decorrente da própria formação do sujeito, na medida em que este jamais se forma sem o apego apaixonado, de ordem libidinal, a quem o subordina, às pessoas de quem depende fundamentalmente (Butler, 2017, p. 73). Começaremos, então, por uma leitura laplancheana do Foucault de História da sexualidade I; em seguida, esboçaremos alguns entrelaçamentos possíveis com as teorias de gênero de Butler.

As relações de poder e a libido

Em seus trabalhos da década de 70, Foucault inaugura uma maneira singular de pensar o poder: para além de suas tradicionais concepções repressivas, interditivas, negativas, cumpre interrogar um poder positivo, produtivo, que constrói as realidades e os objetos que ele próprio virá a regular. No entanto, esse não é um poder substantivo, estático, ontológico, tal como o concebiam os pensadores clássicos. Em Foucault (2015, p. 102), o poder só pode ser tomado no nível das relações; ele não é algo que se tem, mas algo que se exerce, “{...} a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e móveis”.

O poder, aqui, é concebido como “{...} a multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização” (Foucault, 2015, p. 100). Isto é, o poder como luta, embate, situação, conjunto de estratégias, deslocamento de blocos táticos, uma verdadeira distribuição de forças no campo social, sem um ponto central, sem um foco único de soberania, sem um gênio maligno para fazer sua administração. De maneira que o poder “{...} é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadeamento que se apoia em cada uma delas e, em troca, procura fixá-las” (Foucault, 2015, p. 101).

Assim, as relações de poder tornam-se, “{...} ao mesmo tempo, intencionais e não subjetivas” (Foucault, 2015, p. 103). Isso quer dizer que o poder só se exerce atravessado por um cálculo, com uma série de miras e objetivos, embora não resulte da escolha ou da decisão de um sujeito individualmente. Pelo contrário, a racionalidade do poder se desenvolve a partir de táticas locais que esboçam finalmente dispositivos de conjunto, sem transparecer alguém que as tenha concebido ou formulado, garantindo, desse modo, “{...} grandes estratégias anônimas” (Foucault, 2015, p. 103) de sustentação das relações de poder.

A partir de nossa leitura, num viés entre Laplanche e Butler, acrescentamos: se o poder, em Foucault, é intencional, ele o é a favor de algum tratamento da libido; e, se o poder é não subjetivo, isso se dá pela força de um 'murmúrio anônimo' do discurso (Deleuze, 1988), mas que aponta posições para sujeitos possíveis. De maneira que as montagens do poder indicam suportes libidinais nos quais os sujeitos possam escoar o pulsional, vias facilitadas para tratar o excesso intraduzível que os habita. A nosso ver, as relações de poder indicam lugares produzidos para o escoamento da libido, de maneira que as ficções identitárias veiculadas pelo discurso, como ser um homem ou uma mulher 'de verdade', organizam para os sujeitos maneiras facilitadas de lidar com o pulsional, vinculando práticas libidinais de poder a essas ficções.

Judith Butler e a performatividade de gênero

Na esteira do pensamento foucaultiano, Judith Butler (2015) concebe os gêneros como engendrados no seio de relações de poder. Em seu texto intitulado 'Inversões sexuais', Butler (2009) retoma a leitura de Foucault sobre a invenção moderna da sexualidade, defendendo que a novidade e o escândalo trazidos pela modernidade foram um rompimento entre “{...} um regime sociopolítico em que o sexo existia como um atributo, uma atividade, uma dimensão da vida humana, e um regime mais recente em que o sexo foi estabelecido como uma identidade” (Butler, 2009, p. 91). Para a filósofa, essa foi a primeira vez em que o sexo, para além de mero aspecto contingente ou arbitrário da identidade, torna-se aí um elemento central, e mesmo uma condição de inteligibilidade dos sujeitos.

A partir desse momento histórico, o sexo passou a constituir nossas identidades com um poder radical, de modo que, mais do que ter um sexo, nós passamos a 'ser' nosso sexo. De modo que, ao enunciar que um corpo é de um ou de outro sexo, o que se está produzindo não é uma descrição neutra e objetiva sobre a materialidade corporal; essa própria descrição faz emergir os corpos dentro de uma série de dispositivos de regulação, com uma demanda discursiva de que esses corpos sejam produzidos dentro de uma matriz heterossexual compulsória. A categorização binária, macho-fêmea, homem-mulher, faz com que os corpos se tornem produzidos de acordo com princípios de coerência e integridade, promovendo uma pretensa exigência de continuidade a elementos que seriam, de outro modo, descontínuos.

Assim, somos confrontados a uma matriz heterossexual que cria a oposição binária entre sexos, compreendidos como regimes de regulação corporal que ficcionam as unidades dos gêneros a partir de uma heterossexualidade oposicional e supostamente complementar, natural, macho-fêmea, já devedora de relações de poder consolidadas historicamente no Ocidente. Em decorrência disso, alguém “{...} não apenas é o seu sexo, mas alguém tem sexo, e, tendo-o, deve mostrar o sexo que ‘é’” (Butler, 2009, p. 91, grifo da autora). Isso exige que os sujeitos se conformem a matrizes identitárias ontologicamente vazias, produzindo, por meio da performatividade de gênero, a 'ilusão óptica' retroativa de que há uma substância por trás daquela identidade, substância que seria apenas expressa, refletida nos gêneros (Butler, 2015).

No entanto, o gênero atua como um mecanismo que esconde sua própria gênese; a repetição performativa de suas normas tenta apagar a contingência de suas convenções e faz surgir a aparência de uma necessidade, de uma naturalidade, de um encontro natural, normativo e desejável entre os dois sexos. Assim, para Butler (2015, p. 69), o gênero “{...} é a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural de ser”. O gênero, para a filósofa, não é pensável sem o conceito de performatividade: uma série de atos, gestos, estilizações corporais e outros elementos do discurso que, pela sua repetição citacional, engendram a ilusão óptica de que ali haveria alguma fixidez interior e anterior, uma fixidez coerente, substancial, unitária e necessária. De maneira tal que todos os performativos e performances de gênero parodiam um original que não tem estatuto ontológico, citam uma norma que não existe fora de sua própria aplicação. Os performativos e as performances fazem a paródia de um original inexistente, sem tornar isso visível aos sujeitos.

Em 'O gênero, o sexo e o sexual', Jean Laplanche (2015a) argumenta que, no livro Bodies that matter (1993), constituindo uma 'revisão profunda' de Gender trouble (2015), Butler teria recaído num desvio biologizante, reintroduzindo imediatamente “{...} o ‘biológico’ do ‘sexo’ e suas ‘determinações’” (p. 160, grifo do autor) em sua teoria. Laplanche pode ter feito aqui uma leitura apressada: além de não ser uma crítica muito esclarecedora, uma vez que recorre a pouquíssimos elementos textuais, não nos parece ser essa a proposta da filósofa. A nosso ver, o que Butler(1993) pretende ali é pôr em relevo a ideia de que qualquer materialização do sexo só se dá dentro de normas regulatórias; a tese nunca foi a de “{...} que ‘tudo é discursivamente construído’” (p. 8, grifo do autor, tradução nossa)4, mas a de que o sexo é produzido, isto é, demarcado, circulado, diferenciado e percebido como binário apenas no seio de relações de poder.

Construir o sexo é sempre fazê-lo em meio a um “{...} constrangimento constitutivo” (Butler, 1993, p. xi, tradução nossa)5: sua materialização (do sexo) só se dá por meio da repetição e reiteração forçada de normas regulatórias, produzindo, com o tempo, um processo que se estabiliza, gerando o efeito de fixidez e superfície que denominamos de matéria, ou seja, o sexo anatômico lido enquanto um binário dado e oposicional. Por isso, defendemos que Butler, aqui, não recai em determinismos biológicos, permanecendo, ao menos em parte, afinada com a leitura empreendida pelo psicanalista francês, cuja contribuição (que apresentaremos a seguir) poderia ser pensada em termos do estatuto libidinal dessa própria materialização do corpo nos cuidados originários do outro recebidos pela criança. Afinal, a demarcação-delimitação corporal de que fala Butler não ocorre sem a dimensão inconsciente de estimulação das zonas erógenas do infans por parte dos adultos, de forma que essa materialização do sexo só pode acontecer de forma libidinal, para que a assunção fantasmática do 'sexo' pelo sujeito seja possível a posteriori.

Jean Laplanche e o gênero como mensagens enigmáticas

ParaLaplanche (1992), um adulto nunca pode abrir mão de seu inconsciente quando cuida de uma criança. Pelo contrário, os cuidados dos bebês são lugares privilegiados para recolocar em movimento uma série de fantasias inconscientes que habitam o adulto à sua revelia e sob seu desconhecimento. Desse modo, no trato com um infante, um adulto invariavelmente transmite, além de sua esfera conservativa, algo do que ele carrega de sexual, isto é, de sua sexualidade infantil recalcada. Essa carga sexual, seduzindo a criança, implanta nela uma série de excitações que irão constituir sua própria sexualidade infantil, pulsional, perversa e polimorfa.

Acontece que essas excitações não são totalmente simbolizáveis pela criança, na medida em que trazem uma opacidade até mesmo para o adulto, que não percebe o caráter comprometido de suas mensagens com seu inconsciente: para além da consciência do adulto, há uma série de elementos inconscientes que se infiltram nos cuidados originários com os bebês, endereçando a eles um conjunto de mensagens enigmáticas que farão sinal para serem traduzidas. No entanto, sempre haverá um resto traumático intraduzível nessas mensagens, haja vista que o próprio adulto ignora seu conteúdo inconsciente, comprometido com o sexual infantil.

Com o tempo, o que Laplanche percebeu foi que essas mensagens enigmáticas são também generificadas, constituindo para o infante um enigma que continuará a ressoar ao longo de sua vida como ser sexuado. É o que escreve Butler (2014, p. 124, tradução nossa)6 em seu artigo sobre a leitura laplancheana dos gêneros: “{...} quando nós falamos sobre essas mensagens adultas enigmáticas que atravessam o infante e que transmitem o desejo adulto, nós também estamos falando, invariavelmente, sobre gênero”. Isso se dá a partir da condição inicial de passividade da criança, em seu desamparo radical. Estando nessa posição, ela é alvo do que Laplanche (2015a) nomeou 'identificação por' e Ribeiro (2010) chama de 'identificação passiva': uma identificação realizada não pelo sujeito, mas pelo socius que gira em torno do infante, ou seja, um conjunto de designações realizadas pelos pais, irmãos, avós ou outros cuidadores próximos, designações perante as quais o infante é inicialmente passivo.

Assim, na medida em que se tem no colo um bebê identificado 'pelo adulto' como menino, os tratamentos, desejos e fantasias endereçados a ele serão radicalmente diferentes daqueles dados a um bebê identificado como menina, pelo valor fantasmático que cada gênero ganha na cultura. Dessa maneira, as mensagens do socius, sendo elas principalmente “{...} mensagens de designação do gênero” (Laplanche, 2015a, p. 169), irão portar, necessariamente, “{...} muitos ‘ruídos’, todos aqueles trazidos pelos adultos próximos - pais, avós, irmãos -, suas fantasias, suas expectativas inconscientes ou pré-conscientes” (Laplanche, 2015a, p. 169, grifo do autor). Com isso, a criança será bombardeada com uma série de mensagens verdadeiramente 'prescritivas' muito mais do que descritivas, tal como também o lê Butler (2014):

Ser chamado de um gênero é ser dado um significante enigmático e esmagador; é também ser incitado em maneiras que permanecem em parte inconscientes. Ser designado como de um gênero é ser sujeito a certa demanda, certo impacto e sedução, e não saber inteiramente quais podem ser os termos dessa demanda (Butler, 2014, p. 123, tradução nossa)7.

Mas “o ‘significante’ não é determinante por si só. A designação é um conjunto complexo de atos que se prolongam na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno” (Laplanche, 2015a, p. 166, grifo do autor). Isso tudo porque, para o próprio adulto, alguns de seus desejos se tornaram traduzidos e assimilados, mas outra parte teve sua tradução recusada e foi, por isso, recalcada (Butler, 2014). São esses elementos traumáticos para o adulto que irão fazer ruído no trato com a criança, nas suas designações prescritivas de gênero, constituindo também para a criança um núcleo de trauma sexual: aprender a lidar com um desejo que é, desde o início, um desejo do outro 'do' outro, um desejo pertencente a uma outra coisa que habita o cuidador originário, um desejo que é outro para o próprio cuidador e que, no entanto, implantará uma sexualidade pulsional na criança.

Laplanche (2015c, p. 169) dá o exemplo de um pai que pode “{...} designar conscientemente o gênero masculino ao filho, mas pode ter esperado uma filha ou mesmo desejar inconscientemente penetrar uma filha”. Butler (2014, p. 127, grifo da autora, tradução nossa8)9 também ilustra formas de designar identidades à criança: “‘Você será a garota que eu nunca fui’; ‘Você será o homem que meu marido recusa ser’; ‘Você será a garota quando eu precisar que você o seja, e então o garoto quando eu precisar que você o seja’”. Assim, o gênero opera como parte fundamental da sedução generalizada, compondo um enigma que será reiterado durante toda a vida do sujeito. Enigma esse que nunca será suficientemente traduzido, relançando os sujeitos em recorrentes tentativas de simbolizar, de dar sentido a esse núcleo traumático.

Então, a questão posta pela criança não é a “{...} de que gênero eu sou?”, mas, antes, “{...} o que o gênero quer de mim?”. Ou mesmo: “{...} de quem é o desejo que está sendo transmitido pela designação de gênero que recebi e como posso responder a isso?” (Butler, 2014, p. 129, tradução nossa)10. Ou ainda: “{...} o que meus pais querem de mim quando eles me chamam de uma garota?”; “{...} o que é esse 'ruído' perpétuo que chamamos de gênero, uma demanda sobre mim que eu não posso saber e perante a qual eu nunca tenho chance de responder adequadamente?” (p. 130, grifo da autora, tradução nossa)11. Assim, para tratar esse estrangeiro interior, a criança disporá de alguns recursos transmitidos pela cultura: os códigos e esquemas narrativos (Laplanche, 2015c).

Bombardeada pela série de mensagens enigmáticas envolvendo o gênero, a criança terá de dar conta desses elementos de alguma maneira; para tanto, ela terá certos recursos facilitados - propostos ou mesmo impostos - pelo seu socius, recursos que a ajudarão a recalcar-simbolizar os enigmas do gênero. Eles constituirão uma verdadeira 'ajuda à tradução' (Laplanche, 2015b) do pulsional para a criança, formando esquemas narrativos, isto é, “{...} roteiros mais ou menos ricos, populares, flexíveis” (Laplanche, 2015c, p. 286), veiculados pela cultura, no sentido de orientar a criança para “{...} ordenar, para historizar seu destino” (Laplanche, 2015b, p. 202). A nosso ver, os gêneros binários, tal como os vimos construindo, operam como códigos tradutivos, ao fornecerem uma 'forma narrativa' (Laplanche, 2015c) para as mensagens sexuais veiculadas pelos adultos à sua revelia e sob seu desconhecimento.

Assim, os grandes esquemas narrativos dos gêneros ajudam a criança a tentar tratar o pulsional disruptivo, sendo reiterados ao longo de sua vida. Essa narratividade se compõe de elementos relativamente fixos, designados continuamente ao sujeito pelo socius, na direção de auxiliar a tradução dos ruídos inconscientes que envolvem as montagens dos gêneros. A título de exemplo, já começamos com a divisão das cores na montagem dos enxovais: azul para os meninos, rosa para as meninas; desde a infância, os meninos brincarão de carrinhos, de bonecos com representações viris de força, e as meninas, de bonecas, bonecas bebês, de utensílios da casa em miniatura etc. Essa separação acaba por reiterar a designação binária traumática que confere lugares sociais diferentes a cada gênero, o que é ainda reforçado em piadas estereotípicas que redesenham continuamente as posições sociais para os grupos minoritários, considerados algo menos que humano, da ordem do abjeto.

Essa produção-reiteração das categorias de virilidade e feminilidade ocorre de forma inevitavelmente sintomática, por depender de sua repetida afirmação dentro de esquemas narrativos para se sustentar, uma vez que o sexual, difuso e disruptivo, é a verdade recalcada do gênero organizado de forma clara e distinta em seu binário tradicional. Por isso, o discurso normativo só pode dar um encaminhamento para a libido de maneiras insatisfatórias, pois essas tentativas rígidas de tratamento do pulsional ignoram seu deslocamento fluido e subversivo. Nessa direção, o sexual aparece como conceito-chave em Laplanche para promover um descolamento em relação às concepções biológicas da sexualidade que vigoravam até então na medicina do século XIX, concepções com as quais a invenção de Freud produzirá uma ruptura decisiva, ainda que de forma ambivalente, oscilante (cf. Laplanche, 1992).

Na narrativa de Foucault em História da sexualidade I, o que ele parece criticar é a ficção normativa, gestada em torno do século XIX, de que haveria algo como uma 'sexualidade' a brotar do biológico do 'sexo'; em coextensão a essa ficção, toda uma rede de poderes-saberes (na qual ele inclui a psicanálise) foi organizada para policiar as incorreções, anormalidades e desvios de um suposto instinto que deveria guiar o sujeito. Foucault (2016, p. 387) chega a afirmar que a descoberta de Freud não é a sexualidade, a etiologia ou o segredo sexual das neuroses (algo que já pululava na medicina e na psiquiatria da época), mas, antes, uma 'lógica do inconsciente', a partir da qual a sexualidade já “{...} não é mais o que ela era no início {...}”, desembocando em algo totalmente diferente. De forma que o ponto forte da psicanálise não seria “{...} os Três ensaios sobre a sexualidade, mas a Traumdeutung (Interpretação dos sonhos)” (p. 387).

No entanto, seguindo a leitura laplancheana, sabemos como o texto dos Três ensaios, em suas sucessivas reedições, acabou por deixar em segundo plano a descoberta principal da psicanálise, nomeada como o sexual. A própria 'lógica do inconsciente' aludida por Foucault pode ser considerada, com Laplanche, secundária em comparação com a sexualidade caótica com que Freud originalmente depara. Num rompimento radical com o campo do instinto (Instinkt), Laplanche (1992) valoriza em Freud o uso do conceito de pulsão (Trieb), que sustenta uma diferença irredutível com todo programa biológico da sexualidade tal como se enunciava na medicina do século XIX. Se o instinto partiria de uma busca pelo alívio de tensão, com um objeto fixo, pré-programado pela espécie e heterossexualmente orientado para a reprodução, a pulsão, diferentemente, teria apenas uma solda com seu objeto, que é um objeto da fantasia inconsciente, variável de acordo com a história libidinal do sujeito, e cuja satisfação visa ao aumento de tensão a partir não dos genitais, mas das zonas erógenas e dos objetos parciais.

Assim, o pulsional (que é um dos nomes do sexual infantil, perverso-polimorfo, em sua multiplicidade caótica) marca uma distância inconfundível em relação a toda determinação biológica do 'sexo', da 'reprodução sexuada', das ficções normativas da 'sexualidade'. No entanto, essa dimensão do sexual corre o risco de ser a todo instante apagada, por seu caráter muitas vezes insuportável para o sujeito. A aposta de Laplanche (2015a, p. 162) é que a introdução do gênero em psicanálise pode ser um meio de paradoxalmente reafirmar o conceito do sexual, “{...} inimigo íntimo do gênero”. Afinal, se o gênero interpela o sexo binário para produzir um recalque-simbolização do sexual, há aí um conflito, uma antinomia entre o gênero e o sexual.

Fazendo trabalhar, então, Laplanche com Butler, sustentamos que o arranjo dos gêneros tradicionais, heterossexualizados e organizados de forma clara e distinta, só poderia se ancorar numa noção silenciosa, tácita, pressuposta, de um instinto biológico, reprodutivo, coerente, unitário, que, ao enfatizar a atração genital entre os dois sexos, deixa de lado precisamente o sexual difuso e disruptivo. Nesse sentido, consideramos que o sexual é a verdade recalcada do gênero. Acreditamos que essa elaboração laplancheana do conceito de sexual nos permitirá reler as construções de Butler sobre a performatividade de gênero à luz da psicanálise. Para isso, na próxima seção, tentaremos fazer aparecer um mal-estar que subjaz à teoria da performatividade, de forma a apresentar possíveis contribuições de Laplanche aos problemas de gênero.

Mal-estar na teoria da performatividade

Quando tomamos em perspectiva o desenrolar da obra de Butler ao longo dos anos 90, percebemos que a filósofa vai complexificando sua concepção sobre a performatividade. Ao considerar as performances de gênero, a autora de Gender trouble parece avisada da importância de levar em conta o estatuto libidinal da vida psíquica como contrapartida fundamental dos processos de sujeição. Pois a teoria da performance, se fosse tomada apenas como uma repetição estilizada de atos e gestos corporais, acarretaria um déficit libidinal para sua teoria, por recair numa espécie de mecanicismo indesejável que ela mesma critica em Foucault. Esse panorama é o que a leva, desde o começo, a buscar um suplemento psicanalítico para a teoria da performatividade, que dê conta da dimensão inconsciente e libidinal da assunção de um gênero.

A solução de Butler para considerar a ambivalência implicada no gênero é sua releitura do conceito freudiano de melancolia, produzindo sua ideia da melancolia de gênero já desde Gender trouble e desdobrando-a nos livros subsequentes, Bodies that matter e A vida psíquica do poder. No entanto, se observamos a progressão desses três livros, encontramos duas diferentes formas de a autora conceber a performatividade: de um lado, sob a égide da performance e, de outro, sob o apelo da citacionalidade. Se, do ponto de vista da performance, sua grade conceitual envolve considerar o gênero como resultante da incorporação melancólica no eu de objetos de amor perdidos e não reconhecidos enquanto tais, juntamente com a recusa de certas identificações no terreno edipiano, conferindo uma dimensão inconsciente ao gênero, outro cenário pode ser desenhado do ponto de vista da citacionalidade.

De fato, se a teoria da performance se articula com a teoria da melancolia de gênero, podemos considerar que a teoria da citacionalidade, elaborada em Bodies that matter, abre uma via diferente para pensar o gênero na obra da autora. Isso na medida em que se trata, na citacionalidade, da repetição ritualizada de performativos no próprio discurso, pela reiteração-citação de normas que derivativamente produzem a materialização do 'sexo', tomado não enquanto um dado, mas enquanto um resultado de procedimentos específicos do poder. Ainda que a filósofa, lendo Lacan, articule uma proposta acerca da assunção do fantasma normativo do 'sexo' como forma de sustentar algo do libidinal nesse momento de sua teoria, tal cenário ainda mantém os processos de materialização do sexo e citação da norma esvaziados de libido, no que eles parecem se tornar procedimentos específicos do poder produtivo.

A partir dessa tensão, acreditamos que a reelaboração da performatividade como citacionalidade em Bodies that matter nos permite avançar outra leitura sobre o gênero, numa via situada entre Butler e Laplanche. Essa reelaboração nos serve para pensar um horizonte mais amplo para uma teoria do gênero como performativo, a partir de um quadro teórico que vai além da articulação butleriana entre performance-melancolia, restrita a um paradigma edipiano que deixa de lado elementos centrais para a constituição do sujeito, tal como elaborados por Laplanche (1992) em sua teoria da sedução generalizada. Esse suplemento teórico nos permitirá situar a proposta butleriana da performance-melancolia num momento segundo em relação ao tempo originário da sedução e dos performativos de gênero advindos do adulto.

Numa metodologia laplancheana, parece-nos fundamental pensar essa pré-história da constituição do sujeito, sustentando uma divisão terminológica entre o originário e o a posteriori, e que localizaremos entre os performativos da sedução e a performance do sujeito, tomada enquanto resposta subjetiva, elaborada a partir da situação antropológica originária do bebê. Essa manobra nos permite, ao menos em termos teóricos, não perder de vista a pré-história do sujeito anterior à formação do eu, mesmo que em termos práticos esses elementos possam se confundir. Afinal, a assunção fantasmática do 'sexo' e a melancolia de gênero, por pressuporem a dialética entre escolha de objeto e identificação (que é uma identificação 'com'), só podem acontecer de forma a posteriori em relação à sedução originária, que envolve uma identificação 'por'.

Se Laplanche (2015c) considera o Édipo como um código-esquema narrativo, secundário em relação à sedução, trata-se de extrair suas consequências para pensar a teoria da performance em Butler. Na medida em que a autora toma o gênero pelo paradigma da melancolia, ela tem em mente as ambivalências 'da criança' em relação ao mundo adulto, o que configuraria, para Laplanche, uma leitura ptolomaica12 do gênero, que acaba por tomar o indivíduo como centro do cenário. Mas, numa virada copernicana da psicanálise, o fundamental está nas ambivalências 'do próprio mundo adulto' como situação originária da criança, de modo que o Édipo (e, por extensão, a melancolia) surge só depois como forma narrativa que a criança encontra para traduzir as mensagens enigmáticas do outro, anteriores aos conflitos edípicos.

Os performativos e seus ruídos

Se o Édipo pode ser considerado a paisagem secundária do gênero13, em relação ao tempo originário em que as designações originárias do outro invadem o bebê antes de sua própria formação enquanto sujeito, parece-nos produtivo aproximar o performativo como citação às mensagens dos adultos e seus códigos tradutivos. Se, desde seu nascimento, o sujeito humano é confrontado com um mundo generificado, com cuidadores que já performam seus gêneros desde o começo, podemos supor que as mensagens conscientes-pré-conscientes dos adultos às crianças conterão também as reiterações, citações, designações de gênero (comprometidas com o inconsciente dos adultos), o que pode operar como suporte discursivo-libidinal para as mensagens enigmáticas. Assim, a performatividade se torna assombrada pelos ruídos inconscientes que cada adulto carrega consigo e transmite em suas mensagens à criança. Se esses elementos performativos tentam promover uma aparência de substância, de uma matriz ontológica anterior-interior que eles apenas expressariam, encontramos aí uma das raízes do enigma do sexual para as crianças, que persiste no mundo adulto.

Mesmo em Freud (1996), podemos deduzir, já é essa própria divisão binária traumática dos seres humanos que faz enigma: com a hipótese da visita à Terra de um ser puramente pensante, despojado de existência corpórea, talvez o mais interessante para tal visitante, argumenta Freud, fosse a pretensa existência de dois 'sexos' - que podem significar também os dois 'gêneros’, já que para ambos os termos só há, no alemão, a palavra Geschlecht - entre os seres humanos, que, “{...} embora tão semelhantes em outros aspectos, assinalam suas diferenças com sinais externos muito óbvios” (Freud, 1996, p. 193). Uma das questões que esse ser pensante se colocaria poderia ser relativa ao porquê dessa divisãoperformativa binária entre os sujeitos de cada sexo/gênero, fabricada com tanta rigidez e policiamento em torno da norma heterossexual.

Ademais, os próprios performativos podem se infiltrar nos códigos tradutivos, fornecendo à criança um regime de normatividades que lhe garantem meios para recalcar-simbolizar o sexual infantil, fluido, perverso e polimorfo. Pode ser que, na própria oferta dos códigos de tradução, ocorra a citação da norma. Afinal, a criança não traduz de qualquer modo; existe uma transmissão cultural, um regime normativo, que suporta e veicula o pulsional em vias de escoamento mais facilitadas pela cultura do que outras. Seguimos aqui a ideia de que quem cuida dos bebês funciona como um 'duplo comutador' (Bleichmar, 1994), isto é, a um só tempo excita e transmite mensagens enigmáticas, mas também fornece elementos tradutivos que auxiliarão o sujeito em vias de constituição a traduzir aquelas mensagens.

Nesse caso, é na própria sedução originária que se pode operar a materialização do 'sexo' binário nos cuidados corporais engendrados pelos adultos.Na sedução, ocorre a estimulação inconsciente das zonas erógenas do infans, cujo corpo se torna erotizado pela pulsão do outro já constituído. Assim, o 'sexo' dual, organizado pelo gênero tradicional, vem servir como apoio tradutivo que orienta os cuidados do adulto, a partir do constrangimento da norma reiterada pelo socius, que cita essas normas no próprio trato com a criança. Assim, após essa implantação da sexualidade, que delimita os contornos corporais da criança, a assunção do fantasma normativo do 'sexo' pode se orquestrar a posteriori, como forma de organizar o sexual difuso e disruptivo, num momento de retomada ativa da criança em relação a esse tempo originário da sedução. Se os performativos (designações, citações, reiterações) de gênero estarão atrelados à sedução originária (com as mensagens e cuidados corporais do adulto que orientam a materialização do 'sexo' da criança), por sua vez, a performance de gênero acontecerá num só-depois, como resposta subjetiva pelas traduções realizadas sobre as mensagens enigmáticas, engendrando assim a melancolia e o Édipo.

Dessa maneira, o narcisismo da criança e seu eu serão formados a partir da erotização originária inconsciente e dos códigos de tradução que lhe advêm do adulto, algo a que a criança se apega em face de seu desamparo perante o pulsional. Isso gera o apego apaixonado às normas, à sujeição, aos códigos que orientam as traduções constitutivas do sujeito, que permitem seu aparecimento. Butler (2015) afirma que a significação dos gêneros, por depender de uma performance repetida, funciona apenas na órbita da compulsão à repetição. Os arranjos recalcantes de gênero precisam, portanto, ser repetidos, tentando novamente - e de forma falhada - traduzir, dar sentido aos restos intraduzíveis das mensagens enigmáticas veiculadas pelo socius, restos que insistem por tradução, sem nunca alcançá-la devidamente. Com Laplanche (2015a), sustentamos: esses restos são a estranha presença do sexual no sujeito.

A nosso ver, os elementos de descontinuidade que Butler (2015) aponta não serem esgotáveis pelas exigências de coerência e unidade dos gêneros, - esses elementos descontínuos, incoerentes, não unitários, são aquilo que não permite a harmonia planejada pelos gêneros, denunciando seu processo de naturalização e apontando para o que não engana: esse excesso irredutível nos sujeitos humanos que é propriamente o sexual, marca singular que habita cada sujeito à sua maneira. Se a teoria da performatividade acaba perdendo de vista algo desse pulsional, sustentamos que é justamente ele que reaparece quando Butler percebe os elementos de descontinuidade na sexualidade. Com Laplanche, avançamos que esses “{...} atos internamente descontínuos” (Butler, 2015, p. 242) que fazem falhar os performativos de gênero podem ser tomados como o caráter rebelde do sexual, que não permite nenhuma espécie bem sucedida de domesticação completa no eu do sujeito, ao se infiltrar nas brechas desses performativos.

Por isso, o sexual é definido como o “{...} resíduo inconsciente do recalque-simbolização do gênero pelo sexo” (Laplanche, 2015a, p. 155), o que indica que o gênero se apoia na dimensão discursiva de um sexo binário para recalcar-simbolizar o sexual perverso-polimorfo. Uma vez que o ideal normativo de sexo que temos na cultura ocidental é dual, o gênero também se apresenta dessa maneira, mas poderia ser produzido de modos mais plurais. Mas Laplanche acaba reificando o construto do sexo, ao afirmar que o sexo é dual “'pela reprodução sexuada' e também por sua simbolização humana, que fixa e engessa 'a dualidade' em presença/ausência, fálico/castrado” (Laplanche, 2015a, p. 155, grifo nosso), numa afirmação que pressupõe uma dualidade inicial que será apenas engessada pela simbolização humana. Isso faz perder de vista os aspectos políticos da produção de um sexo binário a partir da modernidade e seus jogos libidinais de poder, que materializam o sexo dessa maneira dual, opositiva, reprodutiva.

Se Butler deixa escapar uma parte do sexual, Laplanche, por sua vez, não dá conta de apontar suficientemente as relações libidinais de poder responsáveis por essa simbolização, fazendo parecer, talvez, que haveria um corpo puro, dual, macho-fêmea, sendo simbolizado dentro desses arranjos recalcantes com o par fálico/castrado. Não obstante, concordamos com Laplanche (2015a, p. 168) quando diz que “{...} o gênero precede o sexo”. Mas temos de fazer uma ressalva à segunda parte de sua formulação, a de que o gênero, ao invés de organizar o sexo, “{...} é organizado por ele” (p. 168). Laplanche parece não perceber as relações de poder que organizaram a percepção de um sexo binário. É o próprio gênero que, pautado numa matriz heterossexual, produz discursivamente um sexo binário e depois se alimenta desse construto - que ele mesmo produziu - para se legitimar como binário.

Laplanche prossegue sua argumentação tentando diferenciar a psicanálise das posições naturalistas tradicionais. Ele ressalta que, nesse assunto, o apelo freudiano não é ao biológico, mas à anatomia. No entanto, não se trataria da anatomia científica, que, a seu ver, “{...} pode ser puramente descritiva14” (Laplanche, 2015a, p. 170). Antes, o sexo que é simbolizado nas relações humanas seria o de uma 'anatomia popular' (Laplanche, 2015a), fantasiada, perceptiva e mesmo ilusória. Isso porque, com a passagem dos seres humanos para a posição ereta, no curso da evolução, o órgão genital feminino teria se tornado inacessível à percepção visual, de modo que a diferença dos sexos se tornaria 'diferença de sexo'.

Essa conjuntura facilitaria a tradução dos sexos dentro da lógica fálica (presença e ausência, fálico e castrado), com o homem concebido correntemente nos termos da presença e do fálico, e a mulher, nos termos da ausência e do castrado15. Laplanche, aqui, parece recorrer a uma anatomia fantasiada - que poderíamos conceber como um desvio 'anatomizante' -, mas perdendo de vista o conjunto de relações libidinais de poder que permitiram a construção da categoria 'homem' do lado do fálico/presença e a construção da categoria 'mulher' do lado do castrado/ausência, como se tais montagens dessem conta de esgotar a esfera do sexual. Uma lógica que reitera a norma identitária heterossexual a cada vez que funciona como código tradutivo ou esquema narrativo para a sexualidade infantil inconsciente.

Considerações finais

Como saldo da discussão, notamos que Butler se mostra mais radical em um ponto: o problema do sexo. Ao passo que Laplanche é mais radical em outro: a questão do sexual. Ademais, ambos trazem um terceiro termo para a díade gênero-sexo, no intuito de contornar pontos de vista naturalizantes pautados na biologia: Laplanche, por meio do sexual; Butler, por meio das relações de poder, com a norma heterossexual. Em nossa leitura, parece-nos ter sido possível propor um espaço de metabolização dessas diferenças, em que possamos pensar como o sexual se imiscui em relações libidinais de poder.

Desse modo, entendemos que a norma heterossexual e os performativosde gênero funcionam não apenas como pura 'ajuda à tradução' (Laplanche, 2015b), mas também, mais incisivamente, como uma modalidade de constrangimento constitutivo (Butler, 1993). A heterossexualidade compulsória é, a nosso ver, um código de tradução ou, ainda mais, um 'constrangimento tradutivo' que, apesar de poder ser organizador para vários sujeitos, não consegue silenciar seus ruídos inconscientes, fazendo enigma para o sujeito em constituição.

Indo mais além de Butler e Foucault, alcançamos,com Laplanche, uma concepção de sujeito psíquico que depende fundamentalmente dos conceitos de tradução e de fantasia inconsciente, de maneira que a norma, em seu processo de incorporação, é parasitada pelos ruídos sexuais de quem transmite uma de suas versões. Dessa forma, o próprio performativo é parasitado pelo sexual inconsciente, que responde por sua falha: a mensagem consciente-pré-consciente dos adultos é o suporte para a reiteração performativa das normas; mas essa própria repetição comporta os ruídos inconscientes dos adultos. Assim, as reiterações da norma e suas falhas ficam à mercê dos processos tradutivos realizados por cada sujeito, levando em conta os atravessamentos libidinais das relações de poder nessas questões.

Dessa forma, com os Novos fundamentos para a psicanálise, Laplanche (1992) descola o sexual de toda referência essencialista ou biológica, na medida em que sua concepção da pulsão, que ele resgata da obra de Freud, é oposta a toda noção médico-psiquiátrica de instinto. A pulsão, tal como vista por Laplanche, tem origem na contingência do encontro com o outro, com os cuidadores da criança, parasitados por seu inconsciente, na situação antropológica fundamental. Essa proposta coaduna com as leituras de Butler (2017), ao sustentar que o desejo só se articula a partir da história libidinal de um sujeito. Essa origem histórica, tanto para Butler quanto para Laplanche, é fundamental para caminharmos na direção de um antiessencialismo no que tange às nossas concepções de desejo.

Acreditamos, portanto, acompanhando Laplanche (2015a, p. 171), que é possível encontrar “{...} modelos de simbolização mais flexíveis, mais múltiplos, mais ambivalentes {...}”, que sejam menos recalcantes e menos comprometidos com os aspectos mortíferos do inconsciente, modelos que gerem menor sofrimento psíquico para os sujeitos e lhes permitam um trânsito menos rígido entre categorias de identidade, além de jogos mais fluidos entre relações de poder. Afinal, o sexual, difuso e disruptivo, é aquilo que faz ruído nos performativos de gênero, os quais se pretendem claros e distintos como forma de tentar ofuscar a opacidade que assombra o sujeito.

Referências

  • Bleichmar, S. (1994). A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
  • Butler, J. (2015). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (9a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.Trabalho original publicado em 1990.
  • Butler, J. (1993). Bodies that matter: on the discursive limits of “sex” New York, NY: Routledge.
  • Butler, J. (2009). Inversõessexuais. In I. C. F. Passos(Org.), Poder, normalização e violência: incursões foucaultianas para a atualidade (p. 91-108). Belo Horizonte, MG: Autêntica.Trabalho original publicado em 1996.
  • Butler, J. (2017). A vida psíquica do poder: teorias da sujeição Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.Trabalho original publicado em 1997.
  • Butler, J. (2014). Seduction, gender and the drive. In: J. Fletcher & N. Ray (Orgs.), Seductions and enigmas: Laplanche, theory, culture (p. 118-133). London, UK: Lawrence &Wishart Ltd. Recuperado de: https://www.lwbooks.co.uk/sites/default/files/free-chapter/FletcherRay_Butler.pdf
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  • Foucault, M. (2015). História da sexualidade 1: a vontade de saber (3a ed.). São Paulo, SP: Paz & Terra.Trabalho original publicado em 1976.
  • Foucault, M. (2016). Sobre a história da sexualidade. In: M. Foucault. Microfísica do poder (4a ed., p. 363-406). Rio de Janeiro, RJ: Paz & Terra.Trabalho original publicado em 1977.
  • Freud, S. (1996). Sobre as teorias sexuais infantis. In: S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. IX, p. 191-204). Rio de Janeiro, RJ: Imago.Trabalho original publicado em 1908.
  • Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a psicanálise São Paulo, SP: Martins Fontes.
  • Laplanche, J. (2015a). O gênero, o sexo e o sexual. In:Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006 (p. 154-189). Porto Alegre, RS: Dublinense.Trabalho original publicado em 2003.
  • Laplanche, J. (2015b). Três acepções da palavra “inconsciente” no âmbito da teoria da sedução generalizada. In: Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006 (p. 190-206). Porto Alegre, RS: Dublinense . Trabalho original publicado em 2003.
  • Laplanche, J. (2015c). Castração e Édipo como códigos e esquemas narrativos. In:Sexual: a sexualidade ampliada no sentido freudiano 2000-2006 (p. 280-287). Porto Alegre, RS: Dublinense . Trabalho original publicado em 2006.
  • Ribeiro, P. de C. (2010). Identificação passiva e a teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche. Revista Percurso , ( 44). Recuperado de: http://revistapercurso.uol.com.br/index.php?apg=artigo_view&ida=103&ori=autor&letra=R
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  • 1
    Apoio e financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
  • 4
    “'everything is discursively constructed’”.
  • 5
    “[...] a constitutive constraint”.
  • 6
    “When we talk about these enigmatic adult messages that cross the infant and transmit the adult desire, we are also invariably talking about gender”.
  • 7
    “To be called a gender is to be given an enigmatic and overwhelming signifier; it is also to be incited in ways that remain in part unconscious. To be assigned a gender is to be subject to a certain demand, a certain impingement and seduction, and not to know fully what the terms of that demand might be”.
  • 8
    “‘You be the girl I never was’; ‘You be the man my husband refuses to be’; ‘You be the girl when I need you to be, and then the boy when I need you to be’”.
  • 9
    Essas contingências da tradução, a partir da metabolização que a criança fará das mensagens enigmáticas do adulto, podem ser tomadas como aquilo que responde pelo fracasso da norma. O caráter imprevisível do destino que será dado pelo sujeito à ambivalência dos desejos e fantasias inconscientes do outro nos abre uma interessante via clínica para pensar, por exemplo, os motivos pelos quais alguém assumiria uma identificação/posição socialmente abjeta. Essa questão, que não perpassa tanto as preocupações de Butler (mais voltadas para a constituição do sujeito dentro da norma), pode ser uma contribuição fundamental de Laplanche para uma leitura psicanalítica das transexualidades.
  • 10
    “’So the question may well not be, ‘what gender am I?’ but rather, ‘what does gender want of me?’ or even, ‘whose desire is being carried through the assignation of gender that I have received and how can I possibly respond?’’’.
  • 11
    “[…] ‘what do my parents want from me when they call me a girl?’ […] ‘what is this perpetual ‘noise’ that we call gender, a demand upon me I cannot know and to which I stand no chance of ever responding adequately?’”.
  • 12
    Laplanche (1992) se serve metaforicamente da oposição entre Ptolomeu e Copérnico para propor o descentramento radical que deve advir das consequências de algo que não pode se limitar a uma mudança de centro, da Terra para o Sol, nas teorias astronômicas. A revolução copernicana abre parcialmente a possibilidade de uma ausência de centro; mas ela está sempre sob risco de recair num novo centramento, numa reedição da teoria ptolomaica. Com essa metáfora, Laplanche afirma a importância e a dificuldade de sustentar o descentramento subjetivo implicado no conceito de inconsciente, sempre ameaçado de retornar com outras formas de recentramento ptolomaico, como é aquela que talvez encontremos nas primeiras leituras de Butler sobre o gênero, por deixar de lado o inconsciente sexual do outro adulto, anterior à criança. A guinada ética posterior de sua obra em direção à alteridade, contemporânea a seu encontro com os textos de Laplanche, permite recuperar ao menos em parte essa dimensão do outro que não foi suficientemente enfatizada no começo da década de 1990.
  • 13
    Como consequência, a perda do apego homossexual que Butler considera originário também é deslocado a um lugar secundário. Numa perspectiva laplancheana, essa perda homossexual só pode funcionar como uma elaboração posterior, que assume uma forma narrativa-normativa na cultura para traduzir a invasão caótica do pulsional no bebê. Assim, a produção cultural do perigo enigmático da homossexualidade funcionaria como um enganoso código de tradução para o sexual difuso e disruptivo, pois não há, na origem, um conteúdo claro e distinto como a homossexualidade que pudesse ser delimitado como perda do sujeito, mas apenas um resto intraduzível das mensagens enigmáticas.
  • 14
    Suspeitamos, juntamente com Butler (2009), de que as descrições anatômicas possam ser neutras ou objetivas, pois sempre há a implicação de relações libidinais de poder no campo do saber.
  • 15
    Vale lembrar que Ribeiro (2010) já levantou suspeitas quanto a essas proposições, centrando sua argumentação na tese do caráter insuportável da passividade originária para o sujeito, articulada com o recalcamento do orificial e das fantasias de ser penetrado. Nossa via argumentativa não é incompatível com a sua, mas conferimos maior ênfase à dimensão histórica das relações libidinais de poder, na medida em que a própria matéria dos corpos não é dissociável de normas que regulam sua materialização (Butler, 1993).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2018
  • Aceito
    28 Set 2018
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