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O tratamento extra-hospitalar em saúde mental na perspectiva do paciente reinternado

Tratamiento fuera del hospital, en vista del paciente con reinternación psiquiátrica

The treatment outside the psychiatric hospital from readmitted patient´s perspective

Resumos

Este estudo teve por objetivo investigar o relato das experiências vividas por pacientes reinternados em relação aos serviços substitutivos de saúde mental. Utilizou-se abordagem qualitativa com entrevistas semiestruturadas a 22 pacientes com histórico de reinternação psiquiátrica. A interpretação dos dados foi fundamentada no paradigma emergente da Atenção Psicossocial. Os participantes, embora tenham reconhecido a qualidade do atendimento prestado nos serviços substitutivos de saúde mental, relataram limitações nesses serviços, como não funcionarem dia e noite, não proporcionarem atendimento à crise, longos intervalos entre retornos, brevidade das consultas, ausência de escuta e atendimento restrito ao controle da medicação. Os participantes também sugeriram intervenções que poderiam evitar ou substituir a internação. Nota-se que a insuficiência das respostas dos serviços substitutivos cria lacunas na assistência à saúde mental que acabam sendo preenchidas forçadamente pela internação. A reinternação psiquiátrica desvela o momento de transição entre o modelo centrado médico-hospitalar e o modo de atenção psicossocial.

Hospitalização psiquiátrica; atenção psicossocial; saúde mental; serviços substitutivos


Este estudio tuvo como objetivo investigar las narrativas de las experiencias de los pacientes reinternantes respecto a los servicios de salud mental sustitutivos. Se utilizó un enfoque cualitativo con entrevistas semiestructuradas a 22 pacientes con reinternación psiquiátrica. Interpretación de los datos se basó en el paradigma emergente de Atención Psicosocial. Los participantes, a pesar de que reconoció la calidad de los servicios sustitutivos/alternativos recibidos en general, informaron las mismas limitaciones, como el no funcionamiento durante las 24 horas del servicio, no proporcionar respuesta a la crisis, largos intervalos entre las consultas, la brevedad de la consulta, la falta de escucha, la asistencia limita al control de la medicación. Los participantes también sugirieron intervenciones que podrían prevenir o reemplazar la hospitalización. La falta de respuesta de los servicios sustitutivos crea lagunas en la atención de la salud mental, que es llenado por el internamiento forzoso. La nueva hospitalización psiquiátrica presenta el momento de transición entre el modelo centrado en los hospitales y el modelo de Atención Psicosocial.

Hospitalización psiquiátrica; atención psicosocial; salud mental; servicios alternativos


This study aimed to investigate the narratives of the experiences of patients with psychiatric readmission regarding substitutive outpatient services for mental health. A qualitative approach was used with semistructured interviews applied to 22 patients with psychiatric readmission history. Data interpretation was based on the emerging paradigm of Psychosocial Care. Although the respondents recognized the quality of care provided by substitutive outpatient services for mental health, the participants reported limitations in these services, such as non-operating 24 hours, not to provide assistance during periods of crisis, long intervals between the returns to medical queries, the brevity of the consultation, lack of listening and limited attendance to control of the medication. The participants also suggested interventions that could prevent or replace hospitalization. Therefore, it was evident that the lack of answers from substitutive/alternative services leaves a gap in mental health care, which ends up being filled by forced hospitalization. The psychiatric readmission unveils the moment of transition between the medical-hospital centered model and the model of Psychosocial Care.

Psychiatric hospitalization; psychosocial care; mental health; alternative services


ARTIGOS

O tratamento extra-hospitalar em saúde mental na perspectiva do paciente reinternado

The treatment outside the psychiatric hospital from readmitted patient´s perspective

Tratamiento fuera del hospital, en vista del paciente con reinternación psiquiátrica

Vanessa MachadoI; Manoel Antônio dos SantosII

IDoutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

IIProfessor associado da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil. Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Vanessa Machado Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicologia da Saúde - LEPPS Departamento de Psicologia Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, n. 3900 CEP 14.040-901, Ribeirão Preto-SP E-mail: vanesmachado@bol.com.br

RESUMO

Este estudo teve por objetivo investigar o relato das experiências vividas por pacientes reinternados em relação aos serviços substitutivos de saúde mental. Utilizou-se abordagem qualitativa com entrevistas semiestruturadas a 22 pacientes com histórico de reinternação psiquiátrica. A interpretação dos dados foi fundamentada no paradigma emergente da Atenção Psicossocial. Os participantes, embora tenham reconhecido a qualidade do atendimento prestado nos serviços substitutivos de saúde mental, relataram limitações nesses serviços, como não funcionarem dia e noite, não proporcionarem atendimento à crise, longos intervalos entre retornos, brevidade das consultas, ausência de escuta e atendimento restrito ao controle da medicação. Os participantes também sugeriram intervenções que poderiam evitar ou substituir a internação. Nota-se que a insuficiência das respostas dos serviços substitutivos cria lacunas na assistência à saúde mental que acabam sendo preenchidas forçadamente pela internação. A reinternação psiquiátrica desvela o momento de transição entre o modelo centrado médico-hospitalar e o modo de atenção psicossocial.

Palavras-chave: Hospitalização psiquiátrica; atenção psicossocial; saúde mental; serviços substitutivos.

ABSTRACT

This study aimed to investigate the narratives of the experiences of patients with psychiatric readmission regarding substitutive outpatient services for mental health. A qualitative approach was used with semistructured interviews applied to 22 patients with psychiatric readmission history. Data interpretation was based on the emerging paradigm of Psychosocial Care. Although the respondents recognized the quality of care provided by substitutive outpatient services for mental health, the participants reported limitations in these services, such as non-operating 24 hours, not to provide assistance during periods of crisis, long intervals between the returns to medical queries, the brevity of the consultation, lack of listening and limited attendance to control of the medication. The participants also suggested interventions that could prevent or replace hospitalization. Therefore, it was evident that the lack of answers from substitutive/alternative services leaves a gap in mental health care, which ends up being filled by forced hospitalization. The psychiatric readmission unveils the moment of transition between the medical-hospital centered model and the model of Psychosocial Care.

Key words: Psychiatric hospitalization, psychosocial care, mental health, alternative services.

RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo investigar las narrativas de las experiencias de los pacientes reinternantes respecto a los servicios de salud mental sustitutivos. Se utilizó un enfoque cualitativo con entrevistas semiestructuradas a 22 pacientes con reinternación psiquiátrica. Interpretación de los datos se basó en el paradigma emergente de Atención Psicosocial. Los participantes, a pesar de que reconoció la calidad de los servicios sustitutivos/alternativos recibidos en general, informaron las mismas limitaciones, como el no funcionamiento durante las 24 horas del servicio, no proporcionar respuesta a la crisis, largos intervalos entre las consultas, la brevedad de la consulta, la falta de escucha, la asistencia limita al control de la medicación. Los participantes también sugirieron intervenciones que podrían prevenir o reemplazar la hospitalización. La falta de respuesta de los servicios sustitutivos crea lagunas en la atención de la salud mental, que es llenado por el internamiento forzoso. La nueva hospitalización psiquiátrica presenta el momento de transición entre el modelo centrado en los hospitales y el modelo de Atención Psicosocial.

Palabras-clave: Hospitalización psiquiátrica, atención psicosocial, salud mental, servicios alternativos.

Vive-se atualmente um cenário de intensas transformações no campo da assistência à saúde mental, que passou a priorizar o modelo de atenção comunitária em oposição ao modelo hospitalocêntrico. Neste contexto, a internação breve ainda é um recurso utilizado, previsto pela Lei n.º 10216/2001 para os casos em que a terapêutica extra-hospitalar se mostre insuficiente. Nestes casos a internação deve durar o menor tempo possível e encerrar-se tão logo o quadro tenha se estabilizado, para que o usuário do serviço possa dar continuidade ao tratamento em um serviço substitutivo (Brasil, 2004).

Não obstante, o fenômeno da reinternação psiquiátrica aponta que, embora os pacientes não estejam mais submetidos à internação de longa permanência, há casos em que se verifica a evolução de uma nova configuração de institucionalização: os "novos crônicos" (Mello & Furegato, 2007; Passos, 2009). No novo cenário assistencial, o paciente é submetido a recorrentes internações de duração mais ou menos breve. Nesse contexto, a taxa de reinternação tem sido utilizada como um dos indicadores da qualidade da assistência à saúde mental, uma vez que reflete, além das condições do paciente, fatores sociofamiliares, bem como características da organização da rede de serviços de saúde mental no que se refere às condições de sustentar uma assistência eficiente, inclusive nas situações de crise do paciente, advindo daí a necessidade de essas variáveis serem analisadas em conjunto (Castro, Furegato & Santos, 2010; Machado & Santos, 2011).

No contexto contemporâneo de mudança paradigmática na saúde mental, considera-se relevante investigar como o cenário assistencial reverbera no fenômeno da reinternação psiquiátrica. Somando-se a esses aspectos, consideram-se os resultados de um estudo anterior em que se evidenciou que, entre os anos de 2000 e 2009, a taxa de reinternação manteve-se acima de 50% (Machado & Santos, 2011).

No cenário atual assiste-se à emergência do paradigma da Atenção Psicossocial, aqui entendida como corpo teórico-prático e ético. Essa perspectiva surge no contexto da transição paradigmática deflagrada pela crise da racionalidade científica, e foi incorporada como política pública pelo Estado brasileiro, passando a orientar as práticas construídas no campo da saúde mental em todo o território nacional (Costa-Rosa, 2000; Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003; Luzio, 2010; Santos, 2000).

Como novo paradigma, a Atenção Psicossocial é constituída de duas esferas distintas e indissociáveis: a político-ideológica e a teórico-técnica. Na primeira esfera, a finalidade é construir um lugar social para a loucura diferente daquele da exclusão e segregação social, em que a loucura foi alocada por meio da articulação de conceitos como anormalidade, periculosidade, incapacidade e defeito. Na esfera teórico-técnica, busca-se a elaboração de novas teorias e práticas capazes de viabilizar os objetivos visados pela primeira esfera, tendo-se como princípio o respeito às diferenças e aos direitos humanos.

A despeito dos avanços produzidos por essas novas diretrizes, pouca atenção tem sido dada a essas questões na perspectiva do paciente reinternado. Como se preconiza o empoderamento dos usuários dos serviços, é importante dar voz aos protagonistas da reinternação, que, historicamente, têm sido silenciados e estigmatizados como indivíduos incapazes de sustentar um discurso autônomo, coerente e organizado. Nessa vertente, este estudo teve por objetivo investigar o relato das experiências vividas por pacientes reinternados em relação aos serviços substitutivos de saúde mental.

MÉTODO

Para atender aos objetivos propostos, optou-se por um estudo exploratório de abordagem qualitativa. Participaram vinte e dois pacientes, dos quais doze eram homens e dez eram mulheres, todos com idades entre 17 e 58 anos e reinternados em um hospital psiquiátrico público de uma cidade do Interior do Estado de São Paulo. Como não há consenso na literatura quanto à definição operacional de "reinternação psiquiátrica", no presente estudo foram considerados pacientes reinternados aqueles que, ao longo de sua vida, apresentaram mais de uma internação no hospital psiquiátrico no qual se desenvolveu a coleta de dados.

Os critérios de inclusão foram: apresentar, no mínimo, duas internações psiquiátricas no hospital no qual se realizou a investigação; estar em vias de receber alta médica no período de coleta de dados; ser acompanhado por serviço extra-hospitalar da rede substitutiva ao hospital psiquiátrico; ser residente no município onde se localiza a instituição psiquiátrica.

A amostra de conveniência foi selecionada a partir de uma série consecutiva de pacientes que haviam recebido alta hospitalar no período de outubro a dezembro de 2008 e preenchiam os demais critérios de inclusão. Para a coleta dos dados foi utilizado um roteiro temático de entrevista semiestruturada, elaborado a partir da literatura da área, associada aos interesses da pesquisa e à experiência dos pesquisadores. O roteiro foi composto por temas norteadores que analisavam o cenário assistencial e sociofamiliar e o envolvimento dos pacientes com os serviços, assim como seu tratamento e sua rede sociofamiliar.

As entrevistas foram audiogravadas e realizadas face a face, em sala reservada da instituição. O material coletado foi transcrito literalmente e na íntegra.

Para análise das entrevistas foi utilizado o método de análise de conteúdo na modalidade temática. Seguindo as orientações propostas por Minayo (2008), a análise foi desenvolvida gradativamente, mediante as seguintes condições: 1) leitura exaustiva dos relatos transcritos das entrevistas, que permitiu apreender as ideias centrais e os momentos-chave em relação ao tema investigado; 2) constituição de um ou mais corpus de comunicação; (3) leitura transversal de cada corpus, com recortes das denominadas "unidades de registro", que deram origem aos temas; (4) agregação dos dados mais relevantes em categorias centrais; e (5) articulação entre corpo teórico e dados obtidos. A partir da inferência de interpretações fundamentadas no quadro teórico, chegou-se à análise final. Os resultados foram analisados com base em uma reflexão teórico-conceitual fundamentada no paradigma da Atenção Psicossocial.

O presente estudo foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da instituição universitária (protocolo n.º 229/2008).

DISCUSSÃO E RESULTADOS

A seguir serão apresentadas as categorias temáticas, as quais abrangem o relato das experiências vividas pelos participantes acerca do tratamento extra-hospitalar. Essas experiências são marcadas por vivências, sentimentos e impressões acumuladas, especialmente nos momentos de agudização do sofrimento psíquico, que leva à busca dos serviços de saúde mental. Os relatos obtidos permitiram desvelar como são vivenciadas as experiências dos entrevistados em relação às características dos serviços de saúde mental e, em especial, a coerência e consistência dessas experiências com a proposta da Atenção Psicossocial.

Emergiram as categorias de análise: (1) Insuficiência dos serviços oferecidos ante a complexidade do sofrimento mental; (2) As falhas na organização que refletem os limites do modelo biomédico; e (3) Vislumbrando alternativas possíveis de atendimento.

"Não está sendo suficiente": Insuficiência dos serviços oferecidos ante a complexidade do sofrimento mental

O município do estudo, que tem cerca de 600 mil habitantes, conta com uma rede de serviços ambulatoriais composta por um CAPS II, um CAPS ad, um CAPS III, um Ambulatório de Saúde Mental e um Núcleo de Saúde Mental. A rede de serviços hospitalares, que atende a região do município, conta com uma Unidade de Urgência/Emergência, vinte e quatro leitos psiquiátricos em hospital geral e oitenta e seis leitos em hospital psiquiátrico.

Alguns participantes reconheceram que o serviço substitutivo dispõe de atendimento de qualidade, porém este não está ajudando muito, pois sentem que não atendem a todas as suas necessidades. Sem saberem explicar exatamente por que motivos, faltaram às consultas agendadas e abandonaram o tratamento. Vejamos as seguintes falas: "Eu fiquei muito tempo lá, depois parei. Num sei bem por que eu parei... é de mim mesmo... porque os profissionais de lá são excelentes, todos ali... tudo..." (E2)

Tem terapia ocupacional, atividades educativas, filme... bastante coisa... conversa com psiquiatra. Eu gosto muito... tem muitos amigos lá, mas tem dia que eu falto. Falto porque fico na rua... lá atende minhas necessidades; mais num tô sentindo que tão me ajudando muito... não tá sendo suficiente... eu preciso pelo menos de alguma coisa pra eu sair da rua. (E1)

O participante E1, embora tenha listado uma série de atividades oferecidas pelo serviço, sugeriu que este é insuficiente para ajudá-lo em suas necessidades. No excerto de fala de E2 também emerge a inconstância e a falta de adesão ao plano terapêutico. Este participante tentou apontar razões que pudessem justificar o abandono do tratamento, mas não conseguiu explicitá-las, ou melhor, chegou a hipotetizar que a "causa" da descontinuidade do tratamento seria ele próprio, e não a insuficiência da assistência especializada. Outros participantes delimitaram os momentos de bem-estar que vivenciaram no serviço substitutivo, porém apontaram a continuidade do sofrimento e até mesmo a impossibilidade da cura, embora, do ponto de vista desses pacientes, os equipamentos existentes sejam acolhedores e ofereçam um serviço de qualidade.

Eu fazia acompanhamento lá... todos os dias ia lá. As pessoas lá me tratam com muito carinho; mas quando eu saio lá de dentro, já começa vim aqueles pensamento... Eu já começo pensar negativo, pensar coisas que num devo... Lá dentro eu tô bem. (E3)

Outro participante mencionou seu inconformismo com o fato de sua "doença" ser refratária à melhora: "...tem psicólogo, médico... Eu gosto, ajuda a melhorar, mas a minha doença mesmo ninguém tira e eu quero sarar da doença que eu tenho" (E4). Algumas pessoas entrevistadas relataram que desejavam o fim de seu sofrimento, o que para elas equivale a "sarar" do transtorno mental, embora acreditassem que nem o serviço nem o profissional poderiam atendê-las completamente em seus anseios. A percepção da cronicidade do transtorno mental e das limitações do tratamento - que, na visão dos pacientes, deixa a desejar em termos de sua resolubilidade, parecem ser os fatores responsáveis pela descontinuidade do tratamento.

Isso impõe um claro limite à atuação dos profissionais de saúde mental, que muitas vezes se depararam com a falta de motivação dos pacientes para cumprirem o plano terapêutico. O tratamento para os transtornos mentais, por regra, é prolongado; produz efeitos adversos e pode ser atravessado por recrudescimento dos sintomas (recaídas). De fato, muitas vezes a terapêutica não é capaz de promover melhora substancial do quadro clínico, embora possa incrementar o bem-estar e a qualidade de vida. Estudos anteriores (Rosa, 2011; Merhy, 2007) evidenciaram que, ao se depararem com essas dificuldades inerentes à condição crônica, os profissionais do serviço podem "desistir" ou se desobrigar do trato do paciente "difícil", supostamente refratário ou "não responsivo" à terapêutica. Isso sugere uma apressada conclusão de que a instituição pouco pode fazer diante do não enquadramento do usuário ao modelo de intervenção oferecido (Merhy, 2007). Em alguns momentos parece haver um esforço no sentido de ajustar o paciente ao serviço, e não o contrário, como seria desejável (Rosa, 2011).

Os participantes contam que os serviços disponíveis na rede extra-hospitalar não atendem plenamente às suas necessidades, provavelmente porque "medem todos na mesma cama" - tal como no mito do leito de Procusto - em uma proposta tácita de normatização. Assim, ao oferecer as mesmas modalidades de tratamento padronizado, "estica-se" ou "corta-se" alguma coisa de todos, o que significa desconsiderar aquilo que é próprio de cada um.

Uma possível alternativa seria que essa limitação do serviço, uma vez reconhecida de forma responsável, lance o desafio de se inventar algo que alivie o sofrimento insuportável e que possibilite que o (con)viver com o transtorno mental também seja uma forma de existência (Dimenstein & Liberato, 2009). Neste sentido, o cuidado em saúde mental não mais equivaleria à busca de soluções e de cura do transtorno mental, que tradicionalmente se dá mediante a normatização do sujeito. Aqueles que passaram ou passam pela experiência da loucura podem ter uma recaída, que por vezes exige que eles sejam reinternados durante o período da crise.

Na perspectiva da Atenção Psicossocial, a radical diferença imposta pelo sofrimento mental não deve ser extirpada, mas considerada como possibilidade de existência. Nas palavras de Yasui (2006), cuidar em saúde significa

pensar em uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento com o outro. Para olhar e ouvir é preciso reconhecê-lo ... como um sujeito, não como uma entidade, um objeto, uma doença ... As estratégias de intervenção daí decorrentes ampliam-se para a construção de projetos marcados pela diversidade. Cuidar é montar, tecer projetos de vida (p. 108).

Diante da falência do antigo modelo asilar, sustentado pelo binômio doença-cura, impõe-se a necessidade de se reconhecer a falta de uma intervenção ideal, já pronta, que possibilite à equipe multiprofissional, em parceria com o usuário do serviço, negociar e construir uma nova proposta de intervenção (Merhy, 2007). Muitas vezes uma intervenção efetiva em saúde mental não se inscreve na abordagem circunscrita pelo próprio serviço, demandando que se aumente a amplitude da articulação necessária com outros setores, tal como aponta a proposta psicossocial prevista na Reforma Psiquiátrica. Nesse sentido, a intersetorialidade é um pressuposto fundamental do modo de Atenção Psicossocial, sendo utilizada para dinamizar o atendimento às necessidades do usuário. No relato dos participantes deste estudo, em nenhum momento aparecem indícios claros de que a intersetorialidade seja um elemento integrante do plano terapêutico. A articulação entre serviços parece ser algo distante da percepção desses usuários dos serviços substitutivos.

Apesar de se mostrarem satisfeitos com o atendimento recebido, os participantes identificaram algumas limitações dos serviços extra-hospitalares, que acabam por influenciar a continuidade do tratamento. A relação profissional-paciente aparece como um dos pontos mais frágeis da assistência:

Eu disse que tava com muita vontade de tirá minha vida. Eu falei: "Doutor... hoje meu plano é me matá". Aí, quando eu falei assim, ele me encaminhou direto pra cá. Eu fico pior ainda da minha cabeça, eu fiquei até com raiva do médico... ele não deixô eu conversá mais, nem quis mais me ouvir, já foi logo me encaminhando pra cá. Eu acho que se ele me ouvisse melhorava a minha mente. (E3)

Essa participante deixou transparecer que experimentou um impasse no contato com seu médico, por não se sentir compreendida e atendida em suas necessidades subjetivas. Ela se posiciona a favor da importância da escuta do sofrimento psíquico e chega a concluir que, embora relatasse ideias suicidas, o que mais desejava era ser ouvida. A participante lança uma questão espinhosa para os trabalhadores de saúde: o que fazer diante do desvelamento de planos de morte de um usuário com antecedentes de risco suicida? Como proceder, de maneira prudente e acolhedora, porém sem recair em uma postura de eventual distanciamento do contato? Como evitar a tentação de burocratizar uma prática de cuidado? Até que ponto a tomada de decisão no sentido da internação, como medida preventiva de possíveis atos autodestrutivos de uma pessoa em situação de vulnerabilidade, pode sobrepor-se à responsabilidade de acolher o paciente em seu sofrimento, no aqui-e-agora de uma consulta? Por outro lado, é preciso colocar em discussão as questões do cuidado, do acolhimento e da escuta, que são lacunas cruciais no saber médico. Não se trata, então, de apontar apenas que a subjetividade do paciente não é levada em conta no processo de cuidado. Talvez isso tenha menos a ver com este ou aquele serviço, e mais com a própria constituição do campo da medicina (Clavreul, 1983).

O modelo implantado no Centro de Atenção Psicossocial - CAPS III, especialmente no que diz respeito ao atendimento à crise e à hospitalidade 24 horas, responde exatamente a circunstâncias de urgências subjetivas, que demandam acolhimento imediato e integral (Amarante, 2007; Luzio, 2010); contudo, no caso da referida participante (E3), o tratamento era realizado em um serviço que não funcionava no período noturno e que contava com uma equipe reduzida e pouco diversificada. Em situações como esta, há demanda explícita e imediata por uma escuta ativa do sofrimento, que muitas vezes, além de doloroso para quem o experimenta, torna-se também insuportável para aquele que o ouve. Isso muitas vezes conduz ao encaminhamento precipitado para a internação, principalmente quando faltam os recursos estruturais e humanos necessários para o atendimento à crise.

Um participante apontou que, embora conte com os mesmos profissionais que compõem o quadro funcional do hospital, na verdade o serviço não funciona 24 horas, o que, segundo ele, justificaria sua necessidade de internação.

Aqui no hospital é um jeito de eu ter onde ficar à noite. Quando eu num tô bom, lá no CAPS tem os profissionais que nem aqui, mas lá é semi-internação só à noite quando eu tô assim ruim eu num tenho pra onde ir. (E5)

Esse relato retrata uma situação muito frequente na atualidade, uma vez que a carência de serviços públicos de saúde mental com funcionamento ininterrupto (os CAPSs III) está provavelmente relacionada ao movimento de procura e encaminhamentos às emergências psiquiátricas e, por consequência, à produção da (re)internação, o que vem reforçar o modelo hospitalocêntrico de assistência (Vianna & Barros, 2004).

"O serviço não atende muito bem": As falhas na organização refletem os limites do modelo biomédico

Essa categoria diz respeito à relação médico-paciente e ao acolhimento do serviço, que é precário e feito nos moldes do paradigma biomédico - o que deveria ser revisto no atual contexto da atenção psicossocial, mas que ainda acaba sendo mantido. Alguns participantes relataram insatisfação com o serviço no qual realizavam o seguimento extra-hospitalar, localizando seu descontentamento em pontos específicos do esquema de acompanhamento, como o longo intervalo entre os retornos às consultas:

Eu volto de mês em mês pras consulta... Eu acho que precisava de um pouco mais. Sei que eles têm agenda cheia, mais tem a medicação, precisa vê se a medicação tá fazendo efeito ou não, pra fazê uma avaliação legal. (E6)

Eles têm um prazo muito longo pra atender, de seis em seis meses. É muito longo o retorno e eu acho que eu tinha que passá todo mês". (E7)

Em vista da constante sobrecarga da agenda do médico psiquiatra, além do longo intervalo fixado entre as consultas, no decorrer destas o tempo dedicado pelo profissional é curto, o que, na visão dos participantes, pode comprometer a qualidade do atendimento e da atenção oferecida. De fato, os participantes se queixaram, especialmente, da ausência de escuta durante os atendimentos, que, em sua maioria, restringem-se exclusivamente ao controle da medicação, o que é característico de um modelo de atendimento ambulatorial incompatível com os princípios da Atenção Psicossocial.

Um dos participantes diz: "Com o médico a gente não conversa, só de passá o remédio. É muito rápido as consulta. Eu num queria que eu fosse internada, queria um tratamento psicológico fora do hospital mesmo." (E7)

Outro participante afirma:

Acho melhor dizê o que sinto pro psicólogo do que tomá remédio. Nunca senti calor humano da psiquiatria, fiquei louco de tanto psiquiatra falá que minha doença era essa, que tinha que tomá esse comprimido... Parecia que fazia lavagem cerebral... (E8)

O serviço num atende muito bem, queria um atendimento bom. Lá eu num passo com psicóloga, é isso que eu preciso; só manda com psiquiatra pra tomá remédio... (E9)

Além da ênfase exclusiva na terapêutica medicamentosa, da falta de diálogo e de as consultas serem muito espaçadas, os participantes se queixaram de não se sentirem ouvidos durante os raros encontros que mantinham com os psiquiatras. Esse aspecto remete novamente à questão da importância da qualidade do vínculo estabelecido entre paciente e profissional na condução do tratamento. Diante de tal cenário, questiona-se: como é possível estabelecer um vínculo terapêutico quando paciente e profissional se encontram uma vez por mês ou a cada seis meses? Como estabelecer a confiança necessária para que o usuário acredite que aquela prescrição ou intervenção é a melhor ou a mais indicada para ele? Como favorecer a participação do usuário no seu processo de tratamento quando as consultas são realizadas, com frequência, em cerca de dez minutos?

Pode-se concluir que a falta de investimento na qualificação dos recursos humanos e na adequação dos recursos materiais nos serviços de saúde mental contribui para a manutenção de um cenário no qual, inevitavelmente, predomina o modelo biomédico-ambulatorial, especialmente por meio de um número ínfimo de consultas e farto apelo à medicalização. Parece claro que, se a proposta é trabalhar a partir dos pressupostos do acolhimento e do vínculo (Caçapava, 2008), é preciso despender mais tempo nas consultas. Isso pode favorecer maior adesão ao plano terapêutico definido e, consequentemente, a menor reincidência dos sintomas, e ainda, menor gasto dos fundos públicos com despesas desnecessárias, como as decorrentes de internações e concessões de benefícios. Para tanto, a primeira indicação é que exista um número suficiente de profissionais responsáveis pela atenção à população e que estes sejam qualificados para trabalhar segundo as diretrizes do modelo de Atenção Psicossocial.

Somada à queixa reiterada de que há pouco acolhimento nos serviços, em consequência do número e variedade insuficientes de profissionais - e também da oferta restrita de atividades terapêuticas - , dois participantes comentaram a ociosidade vivida no período em que se encontram nos serviços. Vejamos um deles: "Vou todo dia, mais tem pouca atividade. Fico o dia inteiro fazendo nada... deitada... Num gosto disso, queria participá de mais atividade; mais num tem vaga." (E10)

Como se nota no relato do participante, fica patente a queixa da falta de uma rotina de atividades estruturadas que contribuam para organizar o cotidiano nos serviços - atividades das quais os entrevistados gostariam de participar, como atendimento psicológico, oficinas terapêuticas e de geração de renda, reconhecendo a relevância dessas intervenções para sua recuperação. Essa carência, que remete à falta de oferta de atendimentos psicossociais - o que é inconsistente com a própria proposta do CAPS - muitas vezes é reconhecida pelo usuário como aspecto que contribui para a perda de interesse pelo tratamento e, consequentemente pode levar o paciente a abandoná-lo (Castro, 2009).

Por outro lado, segundo Koda (2003), em alguns casos a assistência tem se caracterizado pelo atendimento à emergência, pelo excesso de atendimentos ambulatoriais e ausência de atividades para oferecer aos usuários em atenção diurna, o que acaba culminando na ociosidade. Com isso, limita-se o campo de ações possíveis. A restrição das atividades terapêuticas ao espaço da instituição e a desarticulação dessas práticas com a rede sociofamiliar conduzem a um círculo vicioso de sucessivas crises e, consequentemente, a um aumento das situações de emergência.

Além da carência de atividades, um dos entrevistados revelou sua percepção da situação que experimenta no serviço: os pacientes fingem que são tratados e os funcionários fingem que trabalham. O comentário ácido desse participante desvela um triste cenário de conluio tácito nos serviços e denuncia o mal-estar que ele sente por ser tratado como um autômato, um ser destituído de vontade própria, que supostamente nada saiba e nada possa:

Lá no serviço que eu trato eles num trabalham, eles num ensinam trabalhá. Eles põe lá os paciente pra ficá comendo e bebendo... dormindo... e o dinheiro deles tudo mês vem na conta. O salário dos paciente vem na conta deles, que é o benefício; o dinheiro dos funcionário vem na conta deles... é igual aquele ditado que fala: "eles finge que trabalha e eles fingem que são tratados"... É, eles tratam que nem robozinho.... eu pego o cartão... o doutor prescreve a receita... pego meu remédio - meu tratamento é esse. (E8)

Essa objetivação a que o participante faz referência em seu relato parece advir de um tratamento que se restringe a uma sequência aleatória de atividades padronizadas - aliás, estereotipadas, como sugere sua descrição do tratamento recebido. A função de entretenimento ou de se "manter dentro" (Saraceno, 2001, p. 18), representada pelas atividades repetitivas oferecidas na rotina dos serviços, também ficou implícita nos achados de Salles e Barros (2007). Esse tipo de relato remete às atividades que visam meramente a preencher o tempo e a justificar e legitimar o vazio e o ócio não criativo estimulados pela própria instituição, em oposição à proposta de que as atividades sejam um meio de promover a socialização e mediação entre tratamento e vida - uma vida a ser reconstruída; ou ainda, um meio de gerar renda e reconhecimento social (Rosa, 2011). Com isso, à medida que é nulificado em sua condição de sujeito de direito e de desejo, sendo reduzido à condição de autômato ("robozinho"), o usuário é desapropriado de sua subjetividade e assim se legitima sua transformação em objeto.

Uma participante expressou seu desagrado com a forma como os pacientes são recebidos no serviço, comparando-a, inclusive, com características semelhantes às que experimentava quando estava internada.

O que num gosto de lá é o mesmo que acontece aqui. As pessoas lá nem teriam que ficá no banco esperando... teriam que tê prioridade, porque são pessoas que tá ali com o acompanhante. É uma fase ruim, grave, então você vê que fica o dia todo ali; é um encaixe, chega a ser desumano a pessoa tá doente e passando por aquilo. (E11)

Essa participante fez uma avaliação do atendimento prestado a uma paciente em crise, depois de observar a rotina do serviço no qual faz tratamento, relacionando-o ao hospital psiquiátrico. Remeteu, assim, à questão da prontidão e da qualidade do atendimento. De forma precisa, a entrevistada afirmou que deveria haver tratamento diferenciado para aqueles que se encontrem em condições psíquicas mais comprometidas. Essa observação pertinente parece apontar a importância da humanização das relações no contexto da assistência à saúde mental, de modo que o espaço do serviço se consolide como um lugar no qual o paciente possa encontrar acolhimento para seu desconforto, ou seja, um solo firme e seguro para a expressão de sua subjetividade (Caçapava, 2008). O adjetivo "desumano", utilizado pela entrevistada E11 para descrever o que presenciava regularmente no serviço, assinala que a simples "abertura" dos serviços de saúde mental não garante, por si só, o exercício de cuidado acolhedor e humanizado, uma vez que certas práticas ambulatoriais tendem a reproduzir a lógica manicomial, centrada no médico.

"Eu gostaria de ser tratada de outro jeito": Vislumbrando alternativas possíveis de atendimento

Alguns participantes expressaram o desejo de ser tratados com uma estratégia alternativa à internação psiquiátrica, sugerindo, inclusive, intervenções que em sua opinião poderiam contribuir para evitar as hospitalizações frequentes, como visitas domiciliares e busca ativa por parte do serviço ambulatorial, ou até mesmo substituição da internação pelo cuidado intensivo oferecido nos CAPSs.

Um participante comenta: "Quando eu num tô boa eu queria recebê visita domiciliar, acho que isso me ajudaria; quando eu tô quase internando, quando eu tô sumida do serviço, acho que isso poderia evitá que eu fosse internada, eles deveriam vê isso... (E10). Um outro relato diz o seguinte: "Eu gostaria de sê tratada de outro jeito, sem precisá ser internada, meu esposo falô que tem o... CAPS... três?" (E11)

As alternativas vislumbradas pelos participantes, como, por exemplo, a visita domiciliar, não são, em rigor, novidades ou mesmo alternativas, pois são atividades prescritas na política pública, embora talvez não sejam cumpridas pelos serviços. Por outro lado, ao demandarem atividades assistenciais que ultrapassam a tradicional consulta médica, os participantes reconhecem a insuficiência das prescrições médicas e do uso exclusivo de uma ferramenta única, o que condiz com a proposta de redefinição do modelo biomédico consagrado, preconizada pela Reforma Psiquiátrica (Merhy & Franco, 1999).

Conforme aponta Leão (2010), a visita domiciliar é adotada nos CAPSs como estratégia territorial que fortalece o vínculo entre o profissional de saúde e o usuário, viabilizando o acesso ao contexto de vida das pessoas que se encontram em situação de sofrimento; porém essa intervenção requer um número maior de trabalhadores e disponibilização de meios de locomoção para eles, o que nem sempre é factível nos serviços de saúde (Leão, 2010).

No campo da saúde mental, a atenção eficiente é a psicossocial, por meio da qual se pode lograr transcender a exclusiva medicalização da doença e oferecer aos pacientes espaços de escuta, acolhimento, interação e laço social. Diante da importância da abordagem psicossocial na atenção à pessoa com sofrimento mental grave e persistente, admite-se que os CAPSs constituem o principal eixo da Política Nacional de Saúde Mental; mas a extensão da cobertura dos serviços de saúde mental ainda é limitada em muitos municípios, por ser insuficiente o número de equipamentos e de recursos humanos. Isso acaba por sobrecarregar os serviços já implantados, prejudicando a qualidade do vínculo estabelecido e do atendimento (Barros, 2008; Castro, 2009; Conselho Regional de Psicologia, 2009; Bezerra & Dimenstein, 2011).

Por outro lado, ainda há serviços com déficit de recursos humanos, que funcionam sem uma equipe com número de profissionais suficiente para atender a uma demanda populacional crescente, que muitas vezes ultrapassa a preconizada pelas normas vigentes (Luzio, 2010). Assim, conforme os relatos dos participantes, muitos serviços se veem obrigados a trabalhar com foco na consulta médica, geralmente agendada com longos intervalos.

Os CAPSs têm desenvolvido uma prática muito mais ambulatorial do que de atenção integral e diária, o que inviabiliza que o serviço desempenhe um papel efetivo e substitutivo à internação (Conselho Regional de Psicologia, 2009). Essa distorção é retratada nos relatos dos participantes, uma vez que, quando se considera o serviço no qual são atendidos, percebe-se que não há diferenças quanto às descrições da assistência prestada nos CAPSs e nos serviços ambulatoriais. Ratifica-se, assim, que a existência de um CAPS, por si só, não garante a oferta de serviços para atender à população, sendo necessário haver uma equipe multidisciplinar constituída de profissionais em número e diversidade suficientes e capacitada a oferecer esse serviço.

Como afirmam Merhy e Franco (1999), o fato de haver práticas multiprofissionais não garante a ruptura com a dinâmica medicocentrada. Para alguns autores, a equipe multidisciplinar, ao concentrar suas decisões e ações na figura do médico, legitima a centralidade do poder e do saber médico, e assim perpetua a lógica medicocentrada, que se sobrepõe às estratégias de Atenção Psicossocial (Costa, 2007; Costa-Rosa, 2000; Luzio, 2010; Passos, 2009). Neste sentido, a prática pode estar atravessada pelo discurso da psiquiatria clássica e da medicina higienista sobre transtorno mental (Guareschi, Reis, Oliven & Hüning, 2008). No contexto atual - de transição entre os modelos hospitalocêntrico e da Atenção Psicossocial, é comum notar a proeminência ou, no mínimo, os resquícios de saberes e práticas medicocentradas, marcadas por dinâmicas de processo de trabalho polarizado e desintegrado (Pinho, Hernández & Kantorski, 2010).

Somando-se aos aspectos mencionados, como adverte Luzio (2010), embora os serviços de saúde mental se proponham realizar uma Atenção Psicossocial extremamente complexa e diversificada, a maior parte deles funciona apenas durante o período diurno e de segunda a sexta-feira. Diante dessa configuração restrita, é esperado que os atendimentos, na prática, tendam a ser, basicamente, do tipo consulta no regime ambulatorial, como descrevem os relatos dos participantes, e não atendimento psicossocial integral, territorial e intensivo, conforme preconiza a Atenção Psicossocial. Com isso, torna-se pouco provável que, de fato, sejam esgotadas todas as possibilidades de tratamento extra-hospitalar antes que se imponha a necessidade de internação integral, tal como prevê a Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei nº 10.216, 2001 (Brasil, 2004).

Esse contexto, adverso à efetivação dos princípios e diretrizes do modo de Atenção Psicossocial, cria dificuldades significativas para a efetivação da proposta de que os serviços extra-hospitalares sejam realmente substitutivos ao modelo hospitalar, uma vez que, tendo em vista sua deficiência em termos de recursos humanos e período de funcionamento, funcionam como uma alternativa terapêutica limitada e circunscrita (Luzio, 2010). Para ser de fato substitutivo, é necessário que o serviço tenha uma atuação territorializada, ou seja, que assuma completa responsabilidade no que diz respeito à atenção ao sofrimento mental dos sujeitos que circulam dentro do seu território de ação. Isso equivale a dizer que a responsabilidade não pode ser interrompida quando se supõe que tenham se esgotado os recursos existentes para determinado usuário.

No presente estudo, os relatos dos participantes não permitem inferir que existam práticas territoriais nos serviços nos quais eles são atendidos; ao contrário, a falta de qualquer referência dos entrevistados a esse tipo de prática inovadora m mostra sua incipiência. Em outras palavras, o "modelo" é novo, porém ainda convivemos com práticas arcaicas, que já deveriam ter sido superadas.

A partir da análise das entrevistas, na perspectiva proposta por Saraceno (1999) no tocante ao serviço como variável que determina o curso do processo de reabilitação psicossocial, pode-se apreender que os serviços, como estão descritos pelos entrevistados, constituem-se de práticas padronizadas e pouco diversificadas, marcadas essencialmente pela atenção medicocentrada e baixa articulação com os demais serviços. Diante desse cenário, a eficácia das práticas reabilitadoras fica prejudicada, especialmente daquelas que deveriam ser direcionadas aos usuários que apresentam longo curso de sofrimento mental acompanhado de seguidas reinternações, como é o caso das pessoas incluídas neste estudo.

Considerando-se os componentes mínimos que devem caracterizar os novos dispositivos em saúde mental como substitutivos ao hospital psiquiátrico (Kinoshita, 1996), a análise dos relatos permite inferir que os serviços nos quais os pacientes realizavam seu seguimento não atendem à crise. Em síntese, constatou-se que esses serviços não apresentam algumas das condições básicas para a prática da Atenção Psicossocial propriamente dita, como recursos humanos em número e diversidade suficientes, horário de funcionamento ampliado, trabalho genuinamente inter e transdisciplinar, articulação com os demais serviços, intersetorialidade, práticas territoriais e atendimento à crise.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora alguns participantes tenham manifestado satisfação quanto à forma com que eram acolhidos nos serviços substitutivos, ficaram evidentes nos relatos algumas insatisfações e queixas em relação ao atendimento oferecido. A partir da análise dos dados, nota-se a insuficiência dos serviços substitutivos e a ineficiência da assistência, que resultam, entre outros problemas, no fenômeno da reinternação psiquiátrica.

Articuladas as três categorias temáticas elaboradas, pode-se afirmar que alguns participantes referem que o serviço, embora seja bom, "não está sendo suficiente". Se, por um lado, existe a percepção de que o modelo assistencial oferecido "não funciona satisfatoriamente" quanto ao atendimento às suas necessidades, por outro o usuário conjectura que "não tem para onde ir". Alguns participantes consideram que "o serviço não atende muito bem", pois tem falhas, omissões e inadequações. Ademais, também existem aqueles usuários que "gostariam de ser tratados de outro jeito" e que "vislumbram modalidades alternativas de atendimento".

Os dados obtidos sugerem que o enfrentamento do sofrimento mental persistente implica em algo que vai além dos limites do serviço substitutivo, remetendo ao cotidiano de vida do sujeito. Daí os entrevistados colocarem em si mesmos a causa da insuficiência que percebem na frequentação das atividades oferecidas pelo serviço, na medida em que não conseguem formular o que faltaria na assistência especializada, embora na terceira categoria apareçam indicações de possibilidades nesse sentido.

Não se pode negar que deficiências no vínculo usuário-profissional comprometem o acolhimento do sofrimento mental e que as falhas na organização dos serviços refletem os limites do modelo biomédico ainda arraigado e impregnado nas práticas estabelecidas. Por outro lado, é promissor constatar que alguns participantes são capazes de reconhecer a possibilidade de se construírem novos caminhos no cuidado.

As intervenções terapêuticas parecem não empregar práticas territoriais no conjunto das ações propostas; pelo contrário, centram-se em rotinas ambulatoriais do tipo consulta, caracterizadas por longo hiato temporal entre os retornos, brevidade dos atendimentos, predomínio ou exclusividade da terapêutica medicamentosa, não funcionamento 24 horas e falta de escuta e de atenção particularizada. Sendo assim, em oposição à proposta da Atenção Psicossocial, a intervenção é baseada na mera remissão sintomática, privilegiando o uso de psicofármacos, e não em ações psicossociais voltadas ao fortalecimento de projetos de vida e de sociabilidade. As ações de saúde carregam ainda as marcas de uma prática médica centrada na remissão sintomática, alcançada por meio da terapêutica medicamentosa.

Algumas dificuldades práticas parecem contribuir para as deficiências percebidas nos serviços de saúde mental, entre elas o número insuficiente de equipamentos, que leva os existentes a se sobrecarregarem com uma área de abrangência superior àquela com a qual sua capacidade operacional permite trabalhar e o reduzido número e a escassa variedade de profissionais, que limitam as possibilidades de articulação de ações múltiplas e criativas. Em decorrência dessas deficiências, a que muitas vezes se soma a total inadequação da estrutura física, os serviços ficam fragilizados e, assim, impossibilitados de promover ações territoriais e integrais de cuidado, como acolhimento à crise, envolvimento da família no tratamento e estratégias de reabilitação psicossocial.

Assim, os serviços nos quais os participantes deste estudo são atendidos parecem não oferecer intervenções que propiciem possibilidades de construir saídas para o estado de retraimento social em que se encontra a pessoa em sofrimento mental. Esse cenário favorece o isolamento social e contribui para que, nos momentos de crise, não havendo possibilidade de acolhida do sofrimento no serviço, o hospital seja o recurso mais utilizado pelo paciente para conter seu sofrimento. Esse é um ponto crítico, se entendemos que, no novo paradigma da Atenção Psicossocial, almeja-se prescindir da estrutura hospitalar psiquiátrica, daí o uso do termo "serviços substitutivos".

Intimamente ligados às categorias de análise e, possivelmente, condição para o aparecimento dessas categorias, são os problemas relacionados à precariedade material e humana da rede substitutiva e da organização dos serviços, que certamente contribuem para o limite da assistência oferecida e acaba por manter a estratégia de reinternação. Isso dificulta a mudança de paradigma no exercício da prática profissional medicocentrada.

Os relatos possibilitaram entrever o cenário atual como um momento de transição, marcado pela coexistência de dois modelos antagônicos. Essa concomitância produz um novo fenômeno, que, apesar de ser novo, reproduz o instituído: a reinternação psiquiátrica. É preciso estar atento para que ela não seja a reedição disfarçada da institucionalização. Por conseguinte, a reinternação psiquiátrica, como fenômeno atual, desvela o processo ainda inconcluso e não consolidado da Reforma Psiquiátrica e confirma que a efetiva desinstitucionalização só ocorrerá com a devida substituição do modelo hospitalocêntrico pela Atenção Psicossocial. Apenas com a superação do antigo modelo é que esta poderá advir com toda a sua potencialidade. Ao mesmo tempo, é na Atenção Psicossocial que se encontram substratos teórico-assistenciais e éticos que possibilitam a construção de um novo modelo, em substituição ao anterior. Nesse sentido, no horizonte da política pública espera-se que a Atenção Psicossocial venha a se consolidar, a ponto de se tornar senso comum. Em relação às limitações do estudo, não foram feitas relações entre o tempo de seguimento do usuário pela rede substitutiva e reinternações. Essa é uma lacuna a ser preenchida em futuras pesquisas.

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Recebido em 05/04/2013

Aceito em 28/11/2013

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  • Endereço para correspondência:
    Vanessa Machado
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2013

    Histórico

    • Recebido
      05 Abr 2013
    • Aceito
      28 Nov 2013
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