RESUMO
O presente artigo apresenta um recorte dos dados coletados em entrevistas durante pesquisa etnográfica on-line acerca da exposição das vivências de vítimas de violência sexual em grupo no Facebook intitulado ‘Luta contra o abuso sexual infantil’. Entendemos que os relatos funcionam como uma possibilidade de quebra do pacto de silêncio e se constituem como o início da elaboração do trauma psíquico. As interações no grupo foram registradas em diário de campo durante o período de quatro meses de acompanhamento e os dados aprofundados em dez entrevistas semiestruturadas com participantes contactadas por meio de convite postado no grupo. As entrevistas aconteceram por vídeochamada e perguntavam sobre o sentido que elas produzem ao utilizar o grupo, refletindo sobre a possibilidade de ultrapassar a condição de vítimas. Verifica-se que o uso da plataforma surge como uma possibilidade de fazer algo que ajude outras vítimas, seja por meio do compartilhamento de histórias ou do fornecimento de informações que auxiliem a romper com o ciclo abusivo. Observa-se que cada vítima lida de forma única com o evento traumático, enfrentando impactos psíquicos da agressão e do momento de revelação permeado pela dinâmica familiar e pela assimetria de poder. Desta forma, fica evidenciada a necessidade de uma escuta qualificada que viabilize a reconstrução subjetiva facilitada por um processo de elaboração do ocorrido.
Palavras-chave:
Etnografia on-line; Facebook; abuso sexual infantil
RESUMEN.
El presente artículo presenta una compilación de los datos recolectados durante la investigación etnográfica online realizada acerca de la exposición de las vivencias de víctimas de violencia sexual en el grupo de Facebook intitulado ‘Lucha contra el abuso infantil’. Entendemos que los relatos funcionan como una posibilidad de romper el pacto de silencio y constituyen el inicio de la elaboración del trauma psíquico. Las interacciones en el grupo se registraron en un diario de campo durante el período de cuatro meses de seguimiento y los datos se profundizaron en diez entrevistas semiestructuradas con participantes contactados a través de una invitación publicada en el grupo. Las entrevistas se realizaron mediante videollamada y se preguntaron sobre el sentido que producen al utilizar el grupo, reflexionando sobre la posibilidad de superar la condición de víctimas. Verifícase que el uso de la plataforma surge como una posibilidad para hacer algo que ayude a otras víctimas, sea por medio de compartir historias o a través del suministro de informaciones que auxilien a romper el ciclo abusivo. Obsérvase que cada víctima lida de forma única con el evento traumático, enfrentando impactos psíquicos de agresión y del momento de revelación permeado por la dinámica familiar y por la asimetría de poder. De esta manera, se evidencia la necesidad de una escucha cualificada que posibilite una reconstrucción subjetiva facilitada por un proceso de elaboración de lo ocurrido.
Palabras clave:
Etnografía on-line; Facebook; abuso sexual infantil
ABSTRACT
This article presents an excerpt of the data collected in interviews during online ethnographic research about the disclosure of the experiences of victims of sexual violence in a Facebook group entitled ‘Fight against child sexual abuse’. This study considered the research’s understanding that the reports function as a possible way of breaking the pact of silence and become the basis for the beginning of the psychic trauma elaboration. Interactions in the group were recorded in a field diary during the four-month follow-up period. The data were further analyzed in ten semi-structured interviews with participants contacted through an invitation posted in the group. The interviews were conducted by video call and asked about the meaning they produce when using the group, reflecting on the possibility of overcoming the condition of victims. The use of the platform emerges as a possibility to do something that helps other victims, either by sharing stories or providing information that helps break the abusive cycle. It is observed that each victim deals uniquely with the traumatic event, facing the psychic impacts of the aggression and the moment of disclosure permeated by the family dynamics and power asymmetry. Thus, the need for qualified listening is evident, which enables a subjective reconstruction facilitated by elaborating on what happened.
Keywords:
Ethnography online; Facebook; child sexual abuse
Introdução: Compreendendo o abuso sexual infantil
A compreensão do abuso sexual infantil perpassa por diferentes esferas que devem considerar a relevância de uma escuta eficaz em tentar construir intervenções viáveis que respeitem as necessidades dos envolvidos em uma situação de violência. Manifestado de diferentes formas, o abuso sexual inclui desde atos em que não há contato físico (assédio, ‘voyeurismo’, exibicionismo), aos diferentes atos com contato mas sem penetração (sexo oral, intercurso interfemural) ou ainda aqueles com penetração (digital, com objetos, genital ou anal) (Habigzang, Azevedo, Koller, & Machado, 2006Habigzang, L. F., Azevedo, G. A., Koller, S. H., & Machado, P. X. (2006). Fatores de risco e de proteção na rede de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Psicologia: Reflexão e Crítica, 19(3), 379-386. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722006000300006
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).
Tal violência caracteriza-se, segundo Florentino (2015Florentino, B. R. B. (2015). As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Fractal: Revista de Psicologia, 27(2), 139-144. https://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/805
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, p. 139) por “[...] qualquer ação de interesse sexual de um ou mais adultos em relação a uma criança ou adolescente, podendo ocorrer tanto no âmbito intrafamiliar - entre pessoas que tenham laços afetivos, quanto no âmbito extrafamiliar - entre pessoas que não possuem parentesco”. No âmbito intrafamiliar, esta configura-se enquanto um ato sexual incestuoso que, comumente, “[...] dura um longo período e pode ser praticado com o conhecimento e cobertura de outros membros da família” (Florentino, 2015Florentino, B. R. B. (2015). As possíveis consequências do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes. Fractal: Revista de Psicologia, 27(2), 139-144. https://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/805
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, p. 139) .
É a partir dela, a princípio, que os sujeitos terão acesso à educação e à internalização de valores. Participantes desse processo dinâmico, as crianças se inserem em um contexto em que papéis sociais são desempenhados, construindo assim uma identidade. Destarte, a experiência do incesto caracteriza a desorganização das funções familiares, impactando significativamente na dinâmica psíquica e na vida das pessoas envolvidas nesse contexto (Faleiros, 2005Faleiros, V. P. (2005). Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde, 2(1), 5-82. Recuperado de:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441
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).
Além das inúmeras consequências negativas para o desenvolvimento cognitivo, afetivo, psíquico e social das vítimas, a violência sexual contra crianças e adolescentes vem se constituindo enquanto um grave problema de saúde pública. Dados do Ministério dos Direitos Humanos (2018)Ministério dos Direitos Humanos. (2018). Balanço anual da ouvidoria disque 100 - 2017. Brasília, DF: Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos. Recuperado de:https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/ouvidoria/dados-disque-100/relatorio-balanco-digital.pdf
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, órgão governamental responsável pelas ações de combate ao abuso sexual infantil e a outros tipos de violência, afirmam que só em 2017 mais de 20 mil denúncias foram registradas no Disque 100, serviço de utilidade pública que recebe as demandas acerca de tais violações.
Dados do Anuário de Segurança Pública, divulgado em 2020, informam que, em 2019, foram registrados 66.123 estupros no país, sendo 85.7% contra mulheres. A maioria das vítimas (57.9%) são do sexo feminino até 19 anos e os autores (80%) são pessoas próximas, familiares ou pessoas que convivem no mesmo ambiente. Foram 25.984 casos de estupro contra crianças e adolescentes (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020Fórum Brasileiro de Segurança Pública. (2020). 14° Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo, SP. Recuperado de: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/
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).
Diante desse cenário, observa-se a necessidade de falar sobre o tema do abuso infantil, desvelando o silêncio que o acompanha em distintas gerações. Entretanto, que vias essa fala encontra para ecoar nos dias atuais?
Acompanhando as transformações sociais da contemporaneidade, favorecidas pelo advento das tecnologias de informação e comunicação, o texto apresentado é composto pela análise dos conteúdos compartilhados em uma comunidade on-line no Facebook e por relatos de voluntárias, aqui nomeadas por elas mesmas na referida comunidade como sobreviventes e, por isso, mantemos a expressão em todo o texto ao nos referirmos ao grupo ou às participantes. Embora a pesquisa tenha consistido na imersão na comunidade, neste texto analisamos os discursos nas entrevistas com o objetivo de investigar se os relatos da experiência sofrida na infância e/ou adolescência, ao serem compartilhados em um grupo na rede social, podem funcionar como quebra do pacto de silêncio, a fim de possibilitar a elaboração do trauma psíquico. Parte-se do princípio de que o advento destas tecnologias trouxe consigo um novo formato de interação social.
As redes sociais virtuais surgem nessa conjuntura para ilustrar facetas comunicativas da sociedade contemporânea, e fazer emergir nessas plataformas uma possibilidade de tornar as angústias visíveis e construir uma identidade de pertencimento capaz de contribuir para a reconstrução subjetiva (Silva, 2018Silva, C. M. (2018). Intimidade on-line: diários íntimos na contemporaneidade. Curitiba, PR: Appris.).
Método: A etnografia on-line
Os impactos sociais e culturais das novas tecnologias instituem novos paradigmas, cabendo à psicologia acompanhar e problematizar estes, a fim de refletir sobre as mudanças culturais, sociais e psíquicas provocadas pelo uso intensificado das tecnologias de informação e comunicação.
Dessa forma, a proposta do presente artigo configura-se em um estudo etnográfico on-line - compreendido aqui enquanto uma análise qualitativa em determinada comunidade virtual (Ferraz & Alvez, 2017Ferraz, C. P., & Alves, A. A. (2017). Da enografia virtual à etnografia online: deslocamentos dos estudos qualitativos em rede digital. In Anais do 41º Encontro Anual ANPOCS (p. 2-24). Caxambu, PR. Recuperado de:https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/spg-4/spg10-4/10962-da-enografia-virtual-a-etnografia-online-deslocamentos-dos-estudos-qualitativos-em-rede-digital/file
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). O método apresenta profunda transformação no campo da antropologia, que passa a levar em consideração as caracteristicas dos ambientes virtuais e da comunicação mediada por tecnologias de informação e comunicação.
De acordo com Ferraz e Alvez (2017Ferraz, C. P., & Alves, A. A. (2017). Da enografia virtual à etnografia online: deslocamentos dos estudos qualitativos em rede digital. In Anais do 41º Encontro Anual ANPOCS (p. 2-24). Caxambu, PR. Recuperado de:https://www.anpocs.com/index.php/papers-40-encontro-2/spg-4/spg10-4/10962-da-enografia-virtual-a-etnografia-online-deslocamentos-dos-estudos-qualitativos-em-rede-digital/file
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, p. 22), o processo etnográfico deve abarcar “[...] as descrições, reflexões e as histórias dos participantes dentro de uma perspectiva objetiva. Focando deste modo as estâncias onde as categorias analíticas convergem, dispondo de reflexão e autorreflexão na construção do conhecimento da prática da pesquisa e do objeto estudado”.
Segundo Hine (2015Hine, C. (2015). Por uma etnografia para internet: transformações e novos desafios. Entrevista por Bruno Campanella. Revista Matrizes, 9(2), 167-173.), os procedimentos da etnografia on-line devem primar pela combinação de observação e participação, além de um determinado período de engajamento na comunidade estudada, implicando em imersão neste ambiente.
Diante desse contexto, o exercício de uma prática etnográfica on-line segue a premissa básica, proposta pela etnografia tradicional, em que cabe ao etnógrafo descrever densamente as práticas sociais, cujo objetivo é explicar como as experiências e dinâmicas sociais constituem teias de significado (Geertz, 1989Geertz, C. (1989). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, RJ: LTC.).
É fundamental nessa proposta “[...] investigar como as pessoas se apropriam das tecnologias e dão sentido ao seu uso” (Mitsuishi, 2007 apud Polivanov, 2013Polivanov, B. B. (2013). Etnografia virtual, netnografia ou apenas etnografia? Implicações dos conceitos. Esferas, 2(3), 61-71. http://dx.doi.org/10.19174/esf.v1i3.4621
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, p. 62). A descrição das interações on-line registradas em diário de campo orientou as discussões ora apresentadas e incitou o problema proposto: como relatar experiências no grupo pode auxiliar na elaboração da violência sexual? Neste artigo, optou-se por um recorte nos dados levantados selecionando a análise das entrevistas com as participantes da comunidade on-line.
Refletindo sobre as transformações sociais inauguradas pelo contemporâneo e nas possibilidades que as tecnologias, e os usos da internet, criam, observa-se o brado de alguns sobreviventes do abuso sexual infantil na criação de grupos na rede social do Facebook.
Ao pensar na proposta da pesquisa em questão, buscou-se a autorização dos moderadores para acompanhar páginas+ e grupos relacionados ao tema, realizando um convite, publicado nas páginas dos grupos, com prévio consentimento dos administradores para entrevistar dez usuárias da plataforma que estivessem dispostas a falar acerca de suas percepções sobre o uso do dispositivo em sua trajetória de enfrentamento da experiência de violência sofrida. A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Católica de Petrópolis sob o parecer número 2.743.488.
O trabalho foi acolhido pelo grupo ‘Luta contra o abuso sexual infantil’ criado em 26 de maio de 2012. Enfatizando a publicação de informações relacionadas à proteção de crianças e adolescentes, o grupo ressalta em sua apresentação que “[...] nem todos possuem a sorte de viver em um universo saudável e que as estatísticas não revelam a realidade dos fatos sobre a violência sexual” (Luta contra o abuso sexual infantil, 2018Luta contra o abuso sexual infantil. (2018). Recuperado de: https://www.facebook.com/groups/244523108980453
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).
Possuindo caráter público, qualquer pessoa pode encontrá-lo ao pesquisar na rede social pelas palavras ‘luta e abuso sexual infantil’.
Entretanto, em 14 de junho de 2018, as publicações e visualizações se restringiram aos membros em decorrência de algumas solicitações de participantes que pontuaram a seriedade do assunto e das exposições das vítimas. Dessa forma, as publicações realizadas durante o registro do diário de campo - desenvolvido entre junho e setembro de 2018, com observações duas vezes na semana - detiveram-se às postagens de membros adicionados pelos 11 moderadores responsáveis.
Constituído de 5.973 membros até o término do levantamento de dados em setembro de 2018, é vedada a publicação de mensagens comerciais, políticas e racistas, bem como quaisquer outras que não se relacionem ao tema discutido. Em grande parte, o conteúdo se resume em reportagens sobre casos de pedofilia e de abuso sexual infantil, denunciando a impunidade de alguns agressores e as falhas de um Sistema Judiciário frágil e despreparado para enfrentar essa configuração de crime.
O criador da página, um escritor e palestrante motivacional, sofreu com o abuso de seu padrasto aos seis anos de idade e, em suas publicações, enfatiza a importância do apoio mútuo e do esclarecimento para enfrentar a violência sexual.
Muitas pessoas, entre homens e mulheres, realizam o compartilhamento de sua história de sobrevivência à violação sexual, obtendo apoio e incentivo dos outros membros nas respostas por mensagens e disponibilizando o contato telefônico em casos de solicitação de ajuda em caráter emergencial. Os depoimentos falam das dificuldades de encontrar auxílio e informações, principalmente quando a vítima ainda é menor de idade. As palavras de incentivo denotam tons de compreensão e empatia como “Força anjo, não desanime não!” “Procure o Conselho Tutelar da sua cidade, caso tenha dificuldades peça a escola para acionar ou conte a uma professora de sua confiança ou outro adulto. Estamos aqui para te ajudar”. Os comentários seguem se desdobrando e muitas pessoas compartilham suas histórias enquanto vítimas, estabelecendo com o grupo um sentimento de pertença.
As entrevistas com as sobreviventes foram realizadas entre 19 de agosto e 08 de setembro de 2018, por chamadas de vídeo pelo Facebook Messenger (programa desenvolvido pelo Facebook Inc., criado em 2011, objetivando conversas rápidas entre usuários conectados à rede social) e pelo Whatsapp (aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones), além da troca de mensagens escritas e por áudio - destacando que, em função dos dados estatísticos obtidos, os informantes foram mulheres maiores de idade que responderam ao convite.
O roteiro de entrevista semiestruturada foi organizado com 14 perguntas sendo as três primeiras para coletar os dados pessoais: idade, escolaridade e cidade onde residia a participante; e as demais para compreender como se deu a entrada e participação no grupo on-line: idade que tinha quando aconteceu a violência sexual, quem foi o perpetrador, como encontrou o grupo, o que a motivou a participar do grupo, o que a motivou a contar o que aconteceu, o que mudou quando relatou, se houve repercussão do relato e de que forma, se recorreu à psicoterapia e por quais razões, se recorreu ao judiciário e por quais razões, e quais os impactos sentiu após essas buscas em caso delas terem sido realizadas. Importante destacar que o roteiro se constituiu em orientação para a condução das entrevistas que aconteceram em forma de conversa, com espaço para as participantes conduzirem os relatos.
As entrevistas foram finalizadas com a oferta de escuta para a participante acrescentar o que considerasse relevante a respeito da sua história de vida enquanto sobrevivente de uma violência sexual e sua relação com o grupo on-line. Em todas foi oferecido contato posterior com as pesquisadoras e encaminhamento para acompanhamento psicológico, caso algum mal-estar acontecesse posterior as entrevistas.
No decorrer do texto serão apresentadas suas falas com o intuito de descrever as vivências que tiveram quanto ao tema. Ressalta-se que, para resguardar a identidade das sobreviventes, seus nomes próprios foram alterados por nomes de flores raras que sobrevivem em condições inóspitas, seguindo a sugestão de uma das entrevistadas que afirmou o quanto esse gesto a recordava de que era forte e do que havia enfrentado para sobreviver.
Compartilhando histórias na rede social: a reveleção como busca por acolhida e pertencimento
Partindo das considerações de Saffioti (1989Saffioti, H. (1989). A síndrome do pequeno poder. In M. A. Azevedo, & V. N. A. Guerra (Orgs.), Crianças vítimizadas: a síndrome do pequeno poder (p. 13-21). São Paulo, SP: Iglu .), pode-se afirmar que o desmoronamento do patriarcado seria capaz de coibir os abusos cometidos contra as categorias enxergadas como subalternas - mulheres, negras, pobres e crianças - na medida em que promoveria a igualdade social. A autora defende que a natureza de tais abusos é social e não individual. Nesse sentido, a autora apresenta a ideia de que a família possui um caráter imaculado e que a assunção de uma violência em seu seio colocaria em risco essa concepção, uma vez que “[...] dada a sacralidade da instituição familiar, a sociedade estigmatiza e marginaliza aqueles que apontam suas mazelas” (Saffioti, 1989Saffioti, H. (1989). A síndrome do pequeno poder. In M. A. Azevedo, & V. N. A. Guerra (Orgs.), Crianças vítimizadas: a síndrome do pequeno poder (p. 13-21). São Paulo, SP: Iglu ., p. 13).
Deste modo, os adultos tendem a ocultar os conflitos que ocorrem no âmbito familiar, uma vez que o silêncio permite que a estrutura familiar não se desfaça, contribuindo para a negação da realidade imposta pelo segredo estabelecido com o intuito de proteger a família do julgamento do meio social e da sua desarmonia. Uma das sobreviventes, identificada aqui como Orquídea, pontuou em entrevista às pesquisadoras: “Minha mãe quis encobrir, não quis render esse assunto”. Outra descreve a reação que a família teve quando o companheiro contou sobre o crime do tio/padrinho:
Ele (o companheiro) ter contado não me ajudou em nada, fui taxada como mentirosa, destruidora de lares e falavam que era invenção minha, que eu era igual minha mãe, vagabunda. Isso me prejudicou muito, engordei e fui para 200 quilos, nunca tive prazer em relação nenhuma e até hoje não suporto ser tocada (Silene, em entrevista às pesquisadoras).
O segredo familiar é reforçado ainda pela percepção do sujeito a respeito do perpetrador, com quem, muitas vezes, se tem uma relação de afetividade e confiança. Ao estabelecer com o adulto um pacto de silêncio sobre a transgressão sofrida, a criança tem a palavra aprisionada à satisfação dos interesses deste.
Fui estuprada pelo meu pai biológico dos seis aos catorze anos de idade. Só contei após o divórcio dele e da mãe. E eu não sei os motivos dele, é complicado, é meu pai... Fui atrás de conhecimento para tentar entender a cabeça dele [...] Tudo indica que ele também tenha sofrido abuso. A raiva que eu tinha dele acabou, eu perdoei sabe... Sou louca pra saber da onde veio essa atitude dele, porque ele fez isso comigo. Na minha cabeça era normal o que ele fazia comigo. Quando fui crescendo, nove, dez anos, a mãe começou a conversar com a gente, falar o que ia acontecer porque a gente era menina, eu vi que tinha alguma coisa que ‘tava’ errada e fui falar com ele [...] daí começaram as ameaças. Ele falava que ia começar matando a mãe, minhas irmãs e por último me matava. Como ele já batia muito na minha mãe, ‘pra’ ele foi fácil me calar nesse sentido, ‘pra’ ele fazer qualquer loucura era ‘pra’ já (Kadupul, em entrevista às pesquisadoras).
As implicações decorrentes da agressão caracterizam a possibilidade de inscrevê-la como um evento traumático que ganhará dimensões variadas dependendo da forma como cada vítima o constituiu. Embora seja necessário ponderar a relatividade do traumatismo frente à tolerância de cada sujeito, associada à sua história e organização psíquica, é notório que o abuso sexual incestuoso intensifica a dificuldade de elaboração da vítima.
Infelizmente, nenhum médico ou psicólogo conseguiu fazer eu ter desejo sexual ou algum prazer, mas apesar de tudo sou feliz. Tenho uma filha e acredito em tudo o que ela fala e espero que isso não aconteça com o filho de ninguém porque eu até tentei suicídio com doze anos, mas Deus não deixou nada acontecer comigo (Silene, em entrevista às pesquisadoras).
Perdurando no restante da vida da vítima, com maior ou menor intensidade, as dimensões do traumatismo podem se elucidar em sentimentos como “[...] raiva, nojo, sofrimento, depressão e comportamentos marcados por desleixo, evasão, agressão, ansiedade, medo, iniciativas sexuais frente a outras crianças” (Faleiros, 2005Faleiros, V. P. (2005). Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde, 2(1), 5-82. Recuperado de:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441
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, p. 71).
Índices do Ministério da Saúde (2017bMinistério da Saúde. (2017b). Boletim epidemiológico 30. Brasília, DF: Secretaria de Vigilância em Saúde. Recuperado de:http://portalarquivos.saude.gov.br/images/pdf/2017/setembro/21/2017-025-Perfil-epidemiologico-das-tentativas-e-obitos-por-suicidio-no-Brasil-e-a-rede-de-atencao-a-saude.pdf
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) revelam que o abuso sexual e a depressão relacionada ao histórico de ter sido vitimizada determinam fortes fatores de risco para a ideação suicida e para a sua concretização entre muitas mulheres. Os relatos que seguem colocam em evidência a problemática: “Eu tenho transtornos, me auto-mutilo todo dia várias vezes, por todos esses anos sem parar. Eu tentei suicídio quando não recebi apoio da minha mãe” (Orquídea, em entrevista às pesquisadoras).
Na verdade é isso. Decorrente disso fui uma criança extremamente infeliz e sofro impactos até hoje, obesidade me acompanha desde muito nova, não tenho memórias de coisas boas, me recordo das ruins. Não tenho muita amizade, não confio em ninguém, não tenho muito intimidade afetiva com minha mãe, mesmo não a culpando, eu prefiro não pensar onde foi erro dela e onde foi o meu também ‘pra’ tudo isso acontecer, tudo o que eu permiti por tantos e tantos anos. Aprendi a ser sozinha, sempre sozinha, aguentar tudo sozinha e calada (Hydnora, em entrevista às pesquisadoras).
Tenho pesadelos terríveis, quase não durmo, tomo um monte de remédios e já tentei me matar algumas vezes. Sigo tentando ajudar as pessoas pra ver se eu me sinto melhor (Rosa Arco-Íris, em entrevista às pesquisadoras).
Azevedo e Guerra (1989Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo, SP: Iglu.) entendem que o processo de vitimização se produz por crianças em ‘estado de sítio’:
A vítima tem restringida não apenas sua atividade de ação e reação como também sua palavra é cassada e passa a viver sob o signo do medo: medo da coação, medo da revelação […] Como a vitimização não é um fenômeno isolado mas sim um processo que se prolonga às vezes por anos, a vítima passa a viver uma situação típica de um estado de sítio, em que sua liberdade - enquanto autonomia pessoal - é inteiramente cerceada e da qual só se resgatará, via de regra, recuperando o poder da própria palavra, isto é, tornando pública a violência privada de que foi vítima (Azevedo & Guerra, 1989Azevedo, M. A., & Guerra, V. N. A. (1989). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. São Paulo, SP: Iglu., p. 35).
França (2017França, C. P. (2017). Ecos do silêncio - reverberações do traumatismo sexual. São Paulo, SP: Bluche .) frisa que somente quando o traumático é colocado em palavras há a possibilidade de uma reconstrução subjetiva. O processo de revelação, deste modo, é realizado de maneira complexa, entretanto, ao ser alcançado possibilita o início da representação do trauma psíquico e a ruptura com a relação violenta que se mantinha.
Tal processo pode se dar de forma intencional, quando as vítimas decidem quando e para quem relatar, ou, ainda, de maneira acidental, quando algum contexto desencadeador sugere a possibilidade de alguma interação abusiva (Paine & Hansen 2002 apud Baía, Veloso, Magalhães, & Dell’Aglio, 2013Baía, P. A. D., Veloso, M. M. X., Magalhães, C. M. C., & Dell’Aglio, D. D. (2013). Caracterização da revelação do abuso sexual de crianças e adolescentes: negação, retratação e fatores associados. Temas em Psicologia, 21(1), 193-202. Recuperado de: https://dx.doi.org/10.9788/TP2013.1-14
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)
Eu comecei a psicoterapia há um ano e pouco. Comecei porque eu tive crises de ansiedade, choros na sala de aula até. Eu me vi obrigada a contar pra uma professora, porque eu tentei suicídio e tal e uma colega me incentivou a contar (Jade, em entrevista às pesquisadoras).
Nos grupos de apoio, a credibilidade à palavra da vítima faz diferença para romper o silêncio, já que no âmbito judicial, quando ocorre a notificação da suspeita do abuso, a ausência de provas materiais dificulta o processo e nem sempre os laudos psicológicos recebem o devido valor. A falta de reconhecimento das tentativas de comunicação da vítima causam um segundo choque, o da negação, sendo que “[...] cada choque causa uma cisão, uma divisão no Eu que rompe o sentimento anterior de uma identidade estabelecida” (Dal Molin, 2017Dal Molin, E. C. (2017). Trauma, silêncio e comunicação. In C. P. França. Ecos do silêncio - reverberações do traumatismo sexual. São Paulo, SP: Bluche., p. 79).
Staller e Nelson-Gardell (2005 apud Santos & Dell’Aglio 2010Santos, S. S., & Dell'Aglio, D. D. (2010). Quando o silêncio é rompido: o processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil. Psicologia & Sociedade, 22(2), 328-335. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822010000200013
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) certificam a ideia de que a dificuldade em revelar a agressão sexual sofrida reflete o sistema dinâmico familiar. A esse aspecto são acrescidos os medos de não ter o relato acolhido, de ser desacreditado, rejeitado e culpabilizado. Para os autores, a revelação possui três diferentes estágios que se compõem pelas expectativas antes do momento de revelar, incluindo os sentimentos e sensações de prazer experimentadas; a revelação em si, facilitada pelas reações do confidente quanto ao que se ouve, e as consequências que se seguirão ao relato. Para Faleiros (2005Faleiros, V. P. (2005). Abuso sexual de crianças e adolescentes: trama, drama e trauma. Serviço Social e Saúde, 2(1), 5-82. Recuperado de:https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/sss/article/view/8636441
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), a superação se torna possível diante da acolhida da palavra da vítima que, ao desfazer o segredo, ganha possibilidades de enfrentamento.
A realidade vivenciada pelas sobreviventes entrevistadas assume um lugar diferente do ideal mencionado. Muitos relatos demarcaram a falta de credibilidade à palavra da vítima, comprovando o não reconhecimento familiar como outra forma de violência:
Quando contei aos meus pais, minha mãe não esboçou nenhuma preocupação, apenas disse que morávamos no interior e que ele poderia estar querendo brincar comigo. Já o meu pai se trancou com ele (o abusador) no quarto e após essa conversa, ele nunca mais me abusou sexualmente, porém, a violência física permaneceu por anos. A minha adolescência foi uma etapa horrível, por vezes eu tinha pensamentos suicidas, mas resolvi me erguer como uma fênix e me dar uma chance. Resolvi reconstruir minha vida através dos estudos, que aliás, desde a infância, eram o meu subterfúgio (Youtan, em entrevista às pesquisadoras).
Aos dezoito anos ia me casar e quis contar toda verdade para minha mãe que, por ser muito religiosa, não acreditou no que eu estava dizendo. Eu insisti que estava falando a verdade e ela então me disse que se tinha acontecido, eu devia ter provocado. Assim, decidi procurar pessoas que tivessem passado pela situação que eu passei e que pudessem me ouvir sem me chamar de mentirosa (Lotus, em entrevista às pesquisadoras).
Tem uma coisa importante que queria contar que percebi. É que as pessoas compartilham que depois que contam fica muito difícil de morar, ‘né’, ficar na casa. Por isso acho que as pessoas não contam quando são mais novas. Que nem eu. Eu mesma, só contei com dezoito anos, quando meus pais estavam se separando. Daí eu tive mais coragem de contar e mesmo assim foi muito difícil porque todo mundo achou que era uma história que eu inventei porque meus pais estavam se divorciando. Eu tive que sair de casa porque minha mãe ficou meio assim. Eu morava com a minha avó paterna e minha mãe. Então a minha avó paterna já começou a me tratar muito mal né, daí ficou impossível. Era eu ou era ela dentro de casa [...] (Videira, em entrevista às pesquisadoras).
Para Dal Molin (2017Dal Molin, E. C. (2017). Trauma, silêncio e comunicação. In C. P. França. Ecos do silêncio - reverberações do traumatismo sexual. São Paulo, SP: Bluche., p. 82), há um isolamento, uma percepção da vítima de que não há com quem possa contar, aspecto que funciona como “[...] uma pedra angular do trauma, e interrompe as tentativas de comunicação e posterior elaboração de sentido”.
No dia seguinte contei para minha mãe e meu padrasto e ninguém acreditou em mim, por isso eu falo que não devia ter falado. Simplesmente minha família que é pequena, somos poucos, nos afastamos por causa disso [...] Eles se afastaram totalmente da nossa família. São pessoas que eu amava e eu sinto muita falta, sinto muito pelo o que aconteceu e por ter falado, eu acho que eu não deveria ter falado. No princípio ninguém acreditou, minha mãe foi acreditar em mim mesmo, de verdade, no ano passado porque todo esse trauma eu trouxe pra dentro do casamento. E enquanto existe o trauma sua vida sexual não vai pra frente, nem seu casamento (Rafflesia, em entrevista às pesquisadoras).
Diante da dificuldade de escutar a realidade e torná-la pública, o recurso encontrado pelas sobreviventes foi a busca por um grupo no âmbito virtual, para que, mesmo desconhecendo suas identidades, pudessem partilhar vivências e histórias similares, o que facilitaria a superação do trauma. Quando perguntadas sobre como encontraram o grupo e quais razões as levaram a participar dele e contar o que aconteceu, algumas entrevistadas responderam:
Encontrei pesquisando mesmo, porque queria saber ao mesmo tempo de mais pessoas e tal, mais por curiosidade mesmo e achei bem legal. Eu queria saber mais, me motivou a falar mais, porque uma vez dito eu senti um alívio, eu queria contar pro mundo inteiro. Sei lá, uma sensação de liberdade, foi bem interessante, então eu contei (Jade, em entrevista às pesquisadoras).
Outras sobreviventes encontraram na escrita um recurso de expor seus dramas:
Eu fiz um blog que eu sou programadora sobre combate à pedofilia. Daí eu estava procurando páginas ‘pra’ me ajudar com matérias e aí eu descobri esse grupo. Foi para procurar as matérias e também para compartilhar minha história e mostrar para quem precisa de ajuda e informar, acho que é o mais importante (Videira, em entrevista às pesquisadoras).
Bisbilhotando no face no começo do ano, é um assunto que me chama a atenção, eu até publiquei um livro recentemente falando sobre a minha experiência né e eu comecei ir em busca do assunto no começo do ano e descobri as páginas e os grupos (Kadupul, em entrevista às pesquisadoras).
O grupo ajuda a construir um sentido para o que aconteceu por meio da luta e do enfrentamento. Alguns relatos indicaram que a troca de experiências e sentimentos inicia uma elaboração, isto é, vai ocorrendo uma produção de sentido:
Eu li um relato, não me lembro ao certo como foi, mas sempre gosto de ler a respeito, porque muitas vezes não percebemos do mal que estamos sofrendo. Hoje eu compartilho a minha história para servir de alerta para muitas mães. Às vezes, a filha tem comportamentos estranhos mas a gente fecha os olhos ‘pra’ isso (Hydnora, em entrevista às pesquisadoras).
Eu queria saber sobre histórias de superação, de recomeços, para me fortalecer nessa jornada e ajudar a outras pessoas com a minha história (Youtan, em entrevista às pesquisadoras).
A voz das sobreviventes do abuso sexual infantil: entre o alívio e a luta
Posto que a violência repercute ao longo da vida da vítima, é necessário criar uma perspectiva que veja no sujeito possibilidades de se reconstruir, rompendo com o estigma de vítima. A superação de tal condição enfrenta impactos na saúde, dentre os quais se destacam, pelas entrevistadas, os distúrbios do sono, a depressão e o medo, configurado muitas das vezes pela dificuldade de se relacionarem com pessoas do mesmo sexo que o abusador, mantendo sempre uma desconfiança presente. A descrição a seguir ilustra algumas consequências:
Eu sei que eu preciso conversar com o psicólogo porque são demônios que aparecem de vez em quando. Quando eles aparecem às vezes, perguntando para uma amiga, para um vizinho, eles falam, esquece isso, isso é passado e não adianta falar, gente não é... Até hoje se eu vejo uma criança sentando no colo de um pai, não consigo achar aquilo bonito, eu não consigo achar aquilo atraente, eu não consigo ver uma criança sozinha com um pai e confiar naquele pai. Mesmo que esteja no passado, repercutem no futuro e na terapia eu consigo raciocinar, pensar e vou treinando formas de lidar com isso (Lotus, em entrevista às pesquisadoras).
Para que haja possibilidade de uma reconstrução subjetiva é necessário que a vítima consiga, portanto, vislumbrar-se para além da condição que lhe foi infligida. O trauma precisa ser posto em palavras, entretanto, o que se evidencia na etnografia realizada é a necessidade de uma ‘escuta atenta e continente’, como identifica França (2017França, C. P. (2017). Ecos do silêncio - reverberações do traumatismo sexual. São Paulo, SP: Bluche .). A autora enfatiza que é preciso uma perlaboração nesses casos, ou seja, um processo analítico que, por meio do acolhimento da palavra pelo psicoterapeuta, possa conduzir o sujeito a uma organização de novas formas de significar o trauma.
A perspectiva de uma qualificação que prepare o futuro psicólogo para atuar em contextos de abuso sexual exige uma formação que integre teoria e prática. O Ministério da Educação (2017aMinistério da Educação. (2017a). Proposta de diretrizes curriculares para o curso de graduação em psicologia. Brasília, DF: MEC. Recuperado de:http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/psicologia.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
) propõe nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de psicologia uma formação que capacite os discentes a atuarem em diferentes contextos, utilizando de seu domínio técnico para contribuir com conhecimentos científicos, garantindo uma postura ética e cidadã e uma visão mais compreensiva e integrada dos processos psicológicos e sociais.
Os relatos das sobreviventes elucidaram a necessidade de refletir sobre as dificuldades que elas identificaram ao buscar ajuda psicológica. Quando perguntadas se haviam recorrido à psicoterapia, algumas somente mencionaram “Sim, mas não consegui a ajuda que eu esperava. Desisti.”; “Fiz um ano, só que não funcionou muito porque eu não estava disposta” (Silene e Kadupul, em entrevista às pesquisadoras).
É indispensável, enquanto estudantes e profissionais da área, refletir sobre o porquê a psicoterapia não conseguiu auxiliar algumas sobreviventes. Costa e Lima (2008Costa, L. F., & Lima, H. G. D. (Orgs.). (2008). Abuso sexual: a justiça interrompe a violência(p.19-32). Brasília, DF: Líber Livro Editora.) reforçam que ao conhecer as questões da sociedade e da violência, os psicólogos ampliam seu olhar e podem buscar romper com naturalizações, sendo sensíveis às problemáticas sociais e ao sofrimento das outras pessoas.
Há uma dimensão subjetiva em cada sujeito que deve ser o campo de intervenção da psicologia, que exige um contato crítico e reflexivo, comprometido com as necessidades sociais.
Faiman (2004Faiman, C. J. S. (2004). Abuso sexual em família: a violência do incesto à luz da psicanálise. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo., p. 16) discorre sobre a atuação profissional com base no referencial psicanalítico, afirmando que mantendo uma “[...] postura não diretiva, com uma escuta disponível e treinada para captar os movimentos de natureza emocional que se produzem na sessão, a fim de favorecer o processo de elaboração dos conteúdos psíquicos que, dessa forma podem ser percebidos e verbalizados [...]”, o psicólogo poderá desempenhar seu papel comprometido com a promoção da integração e do desenvolvimento psicológicos.
Compreende-se por escuta treinada aquela que busca uma qualificação profissional embasada em estudos teóricos, acompanhamento analítico e atendimento clínico sob supervisão. Para tanto, deve-se ter compreendido que esse processo só é viável pelo estabelecimento de um vínculo que pressupõe um posicionamento profissional isento de julgamentos morais. Em determinados relatos é possível perceber a concretização dessa concepção:
[...] a cicatriz ainda persiste em meu coração e acho que minha história de certa forma encoraja as pessoas a contar e procurar ajuda psicológica porque a gente acha sempre que a culpa é nossa e nunca é nossa culpa. Eu achava que eu era culpada porque tinha corpo de mocinha desde os nove anos, mas hoje vejo que eles é que são os monstros [...] (Silene, em entrevista às pesquisadoras).
Eu tive vários problemas de saúde, tive infecção urinária, a minha médica falou que isso era psicológico, tive úlcera, tive problema no meu rim, daí a minha médica falou que eu tinha que buscar um tratamento psicológico. Tive problemas com a menstruação e depois fui descobrindo que era tudo psicológico e a psicóloga ajudou bastante (Videira, em entrevista às pesquisadoras).
Desenvolvi o TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo). A terapia me ajudou porque eu consegui identificar os gatilhos. Além de ler muito eu desenvolvi o talento de escrever porque me ajuda a colocar pra fora. Mas é a terapia que me ajuda muito (Jade, em entrevista às pesquisadoras).
Vale salientar que, dentre as dez entrevistadas, somente três fizeram a denúncia e a notificação judicial. Ressalta-se que uma delas sofreu um estupro coletivo na comunidade onde morava além do histórico de incesto. Seu relato revela a fragilidade comumente apontada pelas vítimas, o despreparo das instâncias legais responsáveis por lidar com esse público: “Como não fui bem acolhida na delegacia, as pessoas acharam que eu provoquei e mereci porque saí pra me drogar e eu também acabei acreditando nisso e não levei à frente” (Rosa Arco-Íris, em entrevista às pesquisadoras).
Ressalta-se que quando a vítima chega a buscar ajuda neste âmbito ela está lidando com o processo de revelação e com as marcas indeléveis da violência. Por essa razão, parece correto afirmar que sobreviver, persistir apesar do que ocorreu, constitui-se numa incessante reconstrução subjetiva que se dá em meio a muitas dificuldades. Nas palavras de uma das flores raras entrevistadas:
Não me sinto uma sobrevivente, o que sobrou de mim é só a casca. Tento muito me reinventar, mas tem dia que é bem difícil e agora em relação à minha filha não sei como agir ou o que fazer. Preciso voltar a procurar um tratamento psicológico (Rosa Arco-Íris, em entrevista às pesquisadoras).
Considerações finais
A etnografia on-line do abuso sexual infantil conduzida nesta pesquisa viabilizou compreender a difícil temática. Em seu desenvolvimento, destaca-se que a entrada no grupo do Facebook se efetivou sem nenhum direcionamento prévio, com o intuito de observar se o relato realizado nesse espaço pode facilitar o processo de elaboração do trauma psíquico. Trata-se de uma investigação das possibilidades de enfrentamento do abuso sexual infantil em grupo on-line, e os resultados sugerem que há efeitos terapêuticos nestas interações, especialmente no que tange à quebra do pacto de silêncio.
O grupo auxilia ao dar credibilidade e acolhida aos relatos das sobreviventes. Por meio de palavras de incentivo, cria-se uma rede de apoio e divulgam-se informações sobre onde buscar ajuda para denúncias formais. Nesse sentido, o dispositivo auxiliou algumas pessoas na ruptura do segredo familiar, mantido às vezes por anos e gerações, permeado pelo medo, culpa e vergonha de desarmonizar a família ideal.
As sobreviventes entrevistadas engajaram-se no grupo objetivando ajudar às outras sobreviventes, a fim de demonstrar que a plataforma pode ser concebida como um passo importante no processo de reconstrução subjetiva, auxiliando-as a se perceberem para além do que essa condição impõe. Identificadas enquanto sobreviventes que há, assim, uma busca em dar significado para o que sofreram, por meio da luta, do enfrentamento e do apoio aos outros. Entretanto, é frequente que, ao ler outros relatos de casos, as lembranças sejam reativadas e muitas dificuldades reaparecem em forma de sintomas como insônia, depressão, medo e culpa.
Poderíamos afirmar que o atendimento psicológico é imprescindível, mas as participantes reconhecem neste pouca eficácia. Parece que nem o judiciário, nem a psicologia, apesar do investimento atual na temática, conseguem escutar o que é demandado por essas mulheres e traçar estratégias de intervenção percebidas como de ajuda.
Ao afirmarem que o atendimento psicológico recebido não as auxiliou incitam reflexões acerca das práticas psicológicas em situações de violência sexual que devem ser desenvolvidas em estudos futuros. Possibilidades de atuação nesse campo, com intervenções que precisam de uma escuta acolhedora, desprovida de julgamentos morais e que contemple a dinâmica familiar e as relações de assimetria de poder estabelecidas em seu núcleo, devem ser vislumbradas, bem como as idealizações construídas a respeito dos papéis sociais que envolvem a família como instituição social.
No que tange ao Judiciário, os resultados apontam para o medo das sobreviventes em denunciar seus agressores e não terem credibilidade. Somente três entre as dez entrevistadas fizeram a denúncia formal. Elas relatam o despreparo dos profissionais no atendimento e a exigência de provas materiais. A pouca eficácia apontada pelas sobreviventes que buscaram esse recurso revela uma inclinação dos profissionais da instituição em culpabilizar a vítima.
Os resultados não podem ser tomados como conclusivos pelas limitações do estudo, que em seu caráter exploratório, visa ampliar o conhecimento acerca do fenômeno, e por contar com uma amostra reduzida, característica de estudos qualitativos. Faz-se necessário outras análises tanto dos efeitos terapêuticos dos grupos on-line, quanto das questões supracitadas acerca das práticas institucionais e profissionais desenvolvidas para o atendimento do abuso sexual infantil.
Diante dos desafios que a temática exige, é fundamental superar o temor de abordar o assunto com as crianças. A orientação profissional pautada em referenciais teóricos pode promover uma educação sexual capaz de construir um cenário adequado para dialogar sobre a sexualidade de forma apropriada. Julga-se necessário que os profissionais da área de psicologia se apropriem do tema, a fim de vislumbrar suas diversas facetas e considerando a importância de intervenções que visem uma abordagem interdisciplinar capaz de olhar para a problemática a partir de ângulos diferentes e, portanto, de forma mais abrangente.
Ressalta-se que as pessoas se reinventam a partir das experiências que vivenciam e das associações que estabelecem. Dessa maneira, ainda que os estudos apontem o uso das redes sociais para exposição do cotidiano de maneira banalizada, encontram-se nesses espaços ações potentes capazes de permitir desdobramentos positivos.
Quais motivações conduzem à exposição de tal experiência em uma rede social? Que impactos psíquicos são percebidos e experienciados por essas vítimas? É possível uma reconstrução subjetiva, superando o evento traumático? Muitos questionamentos devem ser realizados, salientando a urgência da produção de outras pesquisas que viabilizem a reflexão sobre o tema.
Esse estudo almeja contribuir para a concepção de que a psicologia, enquanto ciência e profissão, atrelada ao compromisso ético de atuar em defesa dos Direitos Humanos, deve abordar os tabus sociais, como a violência sexual, na tentativa de contribuir para o seu enfrentamento e prevenção, haja vista que o tema é um problema de saúde pública e de violação de direitos no Brasil.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
07 Nov 2022 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
20 Dez 2019 -
Aceito
29 Mar 2021