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Os exercícios de resistência no contemporâneo: entre fabulações e contágios

Résistance exercises in the contemporary society: between fabulations and contagions

Los ejercicios de resistencia en contemporáneo: entre fábulas y contagios

Resumos

O artigo destaca as contribuições de Michel Foucault no que tange à noção de resistência. Os exercícios de resistência desnaturalizam as evidências que compõem nossa vida cotidiana. São práticas anônimas e impessoais que provocam fissuras nos modos de existência instituídos e fazem emergir novos problemas. Objetivou-se ressaltar a positividade dos exercícios de resistência, diferenciando-os daquelas concepções que os abordam exclusivamente como oposição ou reação a um processo instituído. As resistências são imprevisíveis, esboçam outros modos de ação coletiva e desprezam os limites instituídos, imprimindo novos contornos nas formas de luta e nas práticas que se insinuam em meio aos processos de sujeição que aviltam a vida. Com base nos debates desenvolvidos por Foucault apontamos que as resistências são linhas desobedientes que problematizam os princípios de ordenação e conservação da vida. Os exercícios de resistência fazem mutações nos modos de existência, de organização e sentido da participação política, de usos da cidade, das formas de organização do trabalho, de produção do conhecimento e das redes de sociabilidade.

Resistência; poder; política


The article highlights the contributions of Michel Foucault regarding the notion of résistance. Résistance exercises denaturalize the evidence that make up our everyday lives. They are anonymous and impersonal practices that cause cracks in the modes of established existence and introduce new problems. The objective was to highlight the positivity of résistance exercises, differing from those notions that deals exclusively as opposition or reaction to a set up process. The resistances are unpredictable and outlines other modes of collective action, fray the limits imposed by printing new characteristics in the forms of struggle and in the practices that insinuate themselves amidst the clamping processes that degrade life. From the discussions made by Foucault, we say those resistances are disobedient lines to problematize the principles of ordering and preservation of life. Résistance exercises perform changes in the modes of existence, of organization and of direction of political participation, of uses of the city, of forms of work organization, of production of knowledge and of sociability networks.

Résistance; power; politics


El artículo destaca las contribuciones de Michel Foucault sobre la noción de resistencia. El ejercicio de resistencia disnaturalize pruebas que conforman nuestra vida cotidiana. Se se introducen prácticas anónimas e impersonales que causan grietas en los modos de existencia y nuevos problemas. El objetivo era destacar la positividad de los ejercicios de resistencia , a diferencia de las concepciones que tienen que ver exclusivamente como oposición o reacción a un procedimiento establecido. Las resistencias son impredecibles y describen otras formas de acción colectiva, esgaçam los límites impuestos por la impresión de los nuevos contornos de las formas de lucha y prácticas que se insinúan en medio de los procesos de fijación que degradan la vida. De los debates realizados por Foucault señaló que las líneas de resistencia son desobedientes a problematizar los principios de ordenación y conservación de la vida. El ejercicio de resistencia efectuar cambios en los modos de existencia , organización y dirección de la participación política , utiliza la ciudad , las formas de organización del trabajo , la producción de conocimiento y las redes de sociabilidad.

Resistencia; poder; politica


ARTIGOS TEMÁTICOS

Os exercícios de resistência no contemporâneo: entre fabulações e contágios1 1 Apoio e financiamento: Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

Résistance exercises in the contemporary society: between fabulations and contagions

Los ejercicios de resistencia en contemporáneo: entre fábulas y contagios

Ana Lucia Coelho Heckert

Professora associada do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rua Moacir Avidos, 63/401, bloco B. , Praia do Canto, CEP 29. 055-350 – Vitória-ES. E-mail: anaheckert@uol.com.br

RESUMO

O artigo destaca as contribuições de Michel Foucault no que tange à noção de resistência. Os exercícios de resistência desnaturalizam as evidências que compõem nossa vida cotidiana. São práticas anônimas e impessoais que provocam fissuras nos modos de existência instituídos e fazem emergir novos problemas. Objetivou-se ressaltar a positividade dos exercícios de resistência, diferenciando-os daquelas concepções que os abordam exclusivamente como oposição ou reação a um processo instituído. As resistências são imprevisíveis, esboçam outros modos de ação coletiva e desprezam os limites instituídos, imprimindo novos contornos nas formas de luta e nas práticas que se insinuam em meio aos processos de sujeição que aviltam a vida. Com base nos debates desenvolvidos por Foucault apontamos que as resistências são linhas desobedientes que problematizam os princípios de ordenação e conservação da vida. Os exercícios de resistência fazem mutações nos modos de existência, de organização e sentido da participação política, de usos da cidade, das formas de organização do trabalho, de produção do conhecimento e das redes de sociabilidade.

Palavras-chave: Resistência; poder; política.

ABSTRACT

The article highlights the contributions of Michel Foucault regarding the notion of résistance. Résistance exercises denaturalize the evidence that make up our everyday lives. They are anonymous and impersonal practices that cause cracks in the modes of established existence and introduce new problems. The objective was to highlight the positivity of résistance exercises, differing from those notions that deals exclusively as opposition or reaction to a set up process. The resistances are unpredictable and outlines other modes of collective action, fray the limits imposed by printing new characteristics in the forms of struggle and in the practices that insinuate themselves amidst the clamping processes that degrade life. From the discussions made by Foucault, we say those resistances are disobedient lines to problematize the principles of ordering and preservation of life. Résistance exercises perform changes in the modes of existence, of organization and of direction of political participation, of uses of the city, of forms of work organization, of production of knowledge and of sociability networks.

Key words: Résistance; power; politics.

RESUMEN

El artículo destaca las contribuciones de Michel Foucault sobre la noción de resistencia. El ejercicio de resistencia disnaturalize pruebas que conforman nuestra vida cotidiana. Se se introducen prácticas anónimas e impersonales que causan grietas en los modos de existencia y nuevos problemas. El objetivo era destacar la positividad de los ejercicios de resistencia , a diferencia de las concepciones que tienen que ver exclusivamente como oposición o reacción a un procedimiento establecido. Las resistencias son impredecibles y describen otras formas de acción colectiva, esgaçam los límites impuestos por la impresión de los nuevos contornos de las formas de lucha y prácticas que se insinúan en medio de los procesos de fijación que degradan la vida. De los debates realizados por Foucault señaló que las líneas de resistencia son desobedientes a problematizar los principios de ordenación y conservación de la vida. El ejercicio de resistencia efectuar cambios en los modos de existencia , organización y dirección de la participación política , utiliza la ciudad , las formas de organización del trabajo , la producción de conocimiento y las redes de sociabilidad.

Palabras-clave: Resistencia; poder; politica.

Os últimos protestos ocorridos no Brasil a partir de junho de 2013 levaram a revisitar os debates efetuados por Foucault acerca das resistências, acreditando que as contribuições deste autor permanecem atuais para analisar o que se passa em nosso presente. Neste caminho, o presente artigo visa, a partir das interlocuções com as contribuições deste autor, ressaltar a positividade dos exercícios de resistência.

As práticas de resistência são aquelas que não atendem ao prescrito, ao designado, ao já esperado, mas esboçam outros modos de ação coletiva. Tais modos, muitas vezes imprevisíveis e de impossível programação, funcionam como foco irradiador que se conecta a outras práticas. Assim, quando se reitera que na vida cotidiana predominam a impotência, a submissão e a repetição de processos instituídos, totalizam-se alguns processos como se eles dissessem tudo sobre o que se passa em nosso dia a dia.

Quando insistimos nas práticas de resistência queremos indicar a importância de estarmos atentos, conforme disse Foucault (1983, p. 269) a "ouvir o ronco surdo da batalha"; e para captar este “ronco surdo das batalhas” que pode se insinuar no fazer cotidiano dos trabalhadores dos equipamentos estatais que, neste fazer, reinventam as suas práticas, é necessária uma atenção redobrada ao seu modo de produção. Cotidiano aqui é compreendido como campo de forças em luta, portanto não se constitui apenas como espaço de repetição e conservação de práticas naturalizadas (Lefebvre, 1991) - ao contrário, no cotidiano também são tecidos processos instituintes afirmadores de outros modos de existência que rechaçam indiferenças e segregações.

Neste sentido, ouvir o ronco da batalha implica ainda em desnaturalizar as evidências que balizam a nossa existência e os objetos-instituições que a delineiam. Os objetos não têm uma natureza, não são um já dado, um “desde-sempre-do-mesmo-modo”, e apreender a complexidade das práticas sociais requer que desloquemos nossas análises dos objetos tornados naturais - o CRAS, a escola, a vulnerabilidade social, a família desestruturada, a criança incapaz, o aluno carente e fracassado, ou ainda a escola anacrônica e fracassada, o drogadicto violento - para compreender o caráter heterogêneo e histórico das práticas que produziram esses objetos.

Conforme indica Veyne (1998), com base em uma das teses de Foucault, não se trata de explicar ou entender o fazer tomando como ponto de partida da análise o feito - ao contrário, é o fazer que poderia explicar o que é feito. A prática não é uma resposta ao já dado, a um objeto preexistente. Neste sentido, o desvio dos objetos naturais, como propõe Veyne, tem o sentido de estar atento às raridades, às formas inusitadas tecidas neste fazer histórico, para perceber que outras práticas são possíveis, como também que práticas diversas coexistem. Explica o autor:

A intuição inicial de Foucault não é a estrutura, nem o corte, nem o discurso: é a raridade, no sentido latino dessa palavra; os fatos humanos são raros, não estão instalados na plenitude da razão, há um vazio em torno deles para outros fatos que o nosso saber nem imagina; pois o que é poderia ser diferente; os fatos humanos são arbitrários, no sentido de Mauss, não são óbvios (Veyne, 1998, pp. 239-240).

As práticas sociais são constituídas por um conjunto de forças, ou seja, as formas que assumem expressam um composto de relações de força. As relações históricas são contingenciais, processos tendenciais, uma vez que se constituem de uma diversidade ilimitada de combinações. Dizer que cada momento histórico, ou mesmo uma dada situação, tem certa configuração, uma forma peculiar, implica analisar as combinações de forças que produziram estas formas e suas variações. Ademais, não se trata apenas de um processo descritivo que atentará para a caracterização das forças que compõem uma determinada prática, vislumbrando seu desenho final. O que importa não é apenas o que tais práticas instituem, mas como elassão engendradas e as condições de sua produção. Nosso interesse reside no modocomo as lutas sociais são engendradas e em suas condições de produção, pois entendemos que deter-se exclusivamente nas formas constituídas não abarca sua complexidade de fabricação. Por isso consideramos necessário discutir as forças em luta e sua expressão em certa forma, num dado momento.

As forças sempre implicam ação. Esta ação nunca se exerce sobre um objeto ou uma matéria inerte e preexistente, mas sempre sobre outra força, já que os objetos são efeito no embate de forças. Essa ideia de força que aqui está sendo utilizada foi tecida por Nietzsche a partir de elementos da física. Para Nietzsche (1992; 2009), toda força atuante pode ser definida como vontade de poder. Isto não significa que a vontade queira o poder ou deseje dominar. A vontade de poder em Nietzsche não significa querer subjugar, mas querer criar, afirmar. é apenas quando o niilismo tem o primado que a vontade de poder se separa da criação e, então, deseja dominar.

As relações de forças são sempre plurais, uma vez que a força é sempre uma multiplicidade de forças. Ressaltamos, não obstante, que a noção de multiplicidade não está sendo entendida neste artigo como variedade, diversidade ou abundância. Deleuze e Guattari (1996/2012) apontam que a multiplicidade é substantiva, e não adjetiva; não deriva de algo, seja este algo o sujeito ou o objeto. A multiplicidade não tem forma, é variação nela mesma e comporta elementos atuais e virtuais. O que ela põe em cena é a diferença em constante processo de diferenciação, é sua plasticidade inventiva.

A tendência desta multiplicidade de forças é exercer-se sempre, apropriar-se, efetuar-se como um acúmulo de forças e intensificação da potência. Assim, não é possível atribuir à força nenhuma teleologia ou intencionalidade, uma vez que ela não tem finalidades a efetuar nem objetivos específicos e prévios a alcançar. Essa ideia de forças em ação supõe batalha, luta entre dois tipos de força: as ativas e as reativas. é esta expressão de diferença de quantidade que é designada por Nietzsche como ativo e reativo. Isso não significa que uma força reativa tenha menos força que as forças ativas ou que funcione como uma espécie de resposta à ação das forças ativas, tampouco se trata aí de um somatório de forças. é necessário advertir também que seu sucesso ou fracasso não resulta de uma luta de forças que permita determinar se umas são ativas e outras reativas. As forças ativas são forças que vão até o limite de sua potência, esgarçam esse limite e fazem dessa potência um objeto de afirmação; já as forças reativas são forças de adaptação que separam, desagregam as forças ativas de sua potência de afirmação e limitam sua ação (Deleuze, s. n, p. 100).

Esta breve incursão no pensamento de Nietzsche (2009) tem o propósito de ressaltar que as formas são provisórias, elas não esgotam as forças em luta que se apoderam de um fenômeno, de um objeto. As formas seriam apenas indícios, vestígios das forças que se impuseram em determinadas formas. Estas ferramentas conceituais acentuam o privilégio da atividade, da ação como afirmação, e não da adaptação como conservação das formas já constituídas. Colocar em primeiro plano a adaptação ou a reatividade esvanece num segundo plano a atividade que precede a adaptação.

PODER: BATALHAS E MANOBRAS

Foucault (1983; 2010a), partindo de Nietzsche e de sua noção sobre relações de forças, analisa as relações de poder buscando compreender os processos por meio dos quais as relações de poder se produzem, como se constituem e se diferenciam. Nestas análises seu foco não era o poder ou a elaboração de uma nova teoria do poder, mas sim "... criar uma história dos diferentes modos pelos quais, em nossa cultura, os seres humanos tornaram-se sujeitos. " (Foucault, 2011, p. 231). Do seu ponto de vista, visar os modos de funcionamento das relações de poder permitirá compreender os processos de objetivação do sujeito.

Explicita-se aí uma concepção de poder que abandona os postulados de propriedade e localização, acentuando sua condição estratégica e de combate. A metáfora utilizada pelo autor para designar as relações de poder é a da luta, confronto, batalha, manobra tática, exercício. Ao nos chamar a atentar para o caráter difuso do exercício das relações de poder, buscou acentuar seu funcionamento em rede e sua dinâmica estratégica - portanto não passível de totalização em um indivíduo. As relações de poder não são etéreas, não são um fantasma que nos ronde, uma vez que elas se materializam nas práticas dos sujeitos.

Ora, se as relações de poder são configuradas como uma batalha, como dizer que há um polo detentor de poder e outro destituído dele? Nestas lutas perde-se e ganha-se, mas sempre de forma contingencial. O poder não é algo de que nos apropriemos em dadas circunstâncias, nem está restrito ao aparelho de Estado, pois o próprio aparelho de Estado é efeito das práticas políticas, das relações de poder. Operando ainda um deslocamento com relação à hipótese repressiva do poder, Foucault (2010b) insiste que o poder não conseguiria efetivar sua eficácia se somente atuasse pela repressão. As relações de poder incitam, fabricam corpos, produzem realidades.

Foucault (2010b) procurou escapar de um entendimento do poder como pura dominação ou submissão: os indivíduos não são alvos passivos de relações de poder, “Jamais eles são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre seus intermediários. ” (Foucault, 2010b, p. 35). A dominação e a submissão nunca são absolutas. A insubmissão é condição do exercício do poder, ela instiga à ação. Este exercício apenas se opera quando, de algum modo, sua possibilidade de reversão está garantida. é neste sentido que poder e violência não podem ser tomados como equivalentes, não têm a mesma natureza, pois o exercício do poder se configura como ação sobre ação, eventuais ou atuais, por isso supõe sujeitos ativos; já a violência é uma ação que opera direta ou indiretamente sobre objetos e corpos, visando impedir a ação do outro e, não incitá-la:

Uma relação de violência age sobre um corpo, sobre as coisas; ela força, ela submete, ela quebra, ela destrói; ela fecha todas as possibilidades; não tem, portanto, junto de si, outro polo senão aquele da passividade; e, se encontra uma resistência, a única escolha é tentar reduzi-la. Uma relação de poder, ao contrário, se articula sobre dois elementos que lhe são indispensáveis .... que o outro, aquele sobre o qual ela se exerce seja reconhecido e mantido até o fim como sujeito da ação; e que se abra, diante da relação de poder, todo um campo de respostas, reações, efeitos, invenções possíveis (Foucault, 2011, p. 243).

Foucault se insurge contra qualquer concepção absoluta de poder, situando o poder como exercício que opera num campo de possibilidades que não é da ordem do consentimento, do consenso, da delegação de poder a alguém. Seria, então, da ordem do governo: "Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros. ” (Foucault, 2011, p. 244). O tema do poder se conecta com a questão da liberdade, entendida pelo autor como processo constante de invenção de si. Para ele, construir práticas de liberdade implica abandonar a crença em uma liberdade teleológica ou platônica a alcançar, enquanto para Deleuze (2002) a liberdade a entende como exercício ético em/de uma vida impessoal e indefinida.

REEXISTIR: A QUE SERá QUE SE DESTINA...

é com este entendimento sobre relações de poder e exercício da liberdade que gostaríamos de incluir a temática da resistência. Da mesma forma que o exercício de poder não suporia a intenção ou decisão de um sujeito consciente, as resistências também se fabricariam e se expressariam deste modo. Desconhecer as resistências como imanentes às relações de poder seria negar o caráter relacional do exercício de poder. Em toda rede de poder há pontos de resistência. Aliás, é importante colocar que são os múltiplos pontos de resistência que provocam as relações de poder.

As resistências não estariam em posição de exterioridade no que diz respeito às relações de poder, ao contrário, incitariam seu exercício. Assim como ele pluraliza o poder abordando-o como relações de força, também o faz com as resistências (Foucault, 2011). Deste modo, não é a partir das relações de poder que será possível acompanhar os exercícios de resistência, mas o inverso, uma vez que as resistências têm como foco as formas de exercício do poder. Essa fabricação conceitual nos ajuda a compreender que não haveria um polo em que a dominação e a submissão seriam absolutas e outro que a ele se contraporia como polo exclusivo de resistência, pois poder e liberdade não se excluem nem se antagonizam. As resistências se fabricam no plural e são constitutivas nos modos de invenção de si; são

... possíveis, necessárias, improváveis, espontâneas, selvagens, solitárias, planejadas, arrastadas, violentas, irreconciliáveis, prontas ao compromisso, interessadas ou fadadas ao sacrifício; por definição, não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder. Mas isso não quer dizer que sejam sub-produto das mesmas,.... Também são, portanto, distribuídas de modo irregular: os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento. (Foucault, 2010a, p. 91).

Os processos de resistência podem se efetuar localmente e vêm de onde menos se espera. Têm a potência de atravessar instituições e organizações, interrogando seus modos de funcionamento ou fabricando outros sentidos. As resistências são linhas desobedientes que problematizam os princípios de ordenação e conservação da vida. é importante deixar claro que o campo em que está sendo aqui situada a noção de resistência não a compreende como oposição entre termos que se bloqueariam para conseguir mudanças em um momento posterior. Como os processos de resistência não estariam em relação de exterioridade ao exercício do poder, é neste exercício que as forças de resistência se afirmam, inaugurando outros campos de possibilidade de ação. Por outro lado, da mesma forma que o poder não teria, para Foucault, um sentido global ou absoluto, o mesmo pode-se afirmar quanto às forças de resistência. Segundo Castro (2009), alguns críticos apontaram que os estudos de Foucault maximizaram o caráter difuso do poder e, com isso, deixaram pouco espaço para os processos de resistência; todavia, recuperando análises de Foucault acerca das noções de poder e resistência, no verbete do tema resistência Castro afirma que a noção de resistência em Foucault “... não é essencialmente da ordem da denúncia moral ou da reivindicação de um direito determinado, mas da ordem estratégica e da luta. ” (Castro, 2009, p. 387).

Com base na contribuição de alguns autores (Deleuze, 1991; Proust, 1988) afirmamos que no jogo de forças das relações de poder as forças de resistência são primeiras, porquanto são constitutivas das relações de poder. São primeiras não como fundamento, um sistema hierárquico ou temporal, mas porque afirmam a variação, a errância dos processos de produção social da existência. As resistências seriam as centelhas de instabilidade neste jogo de forças, que fazem vazar as forças intensivas do fora. Aliás, importa ressaltar que Deleuze (1991), discutindo esta construção de Foucault, assinalará que a resistência é o fora.

O fora não seria o desdobramento do dentro ou a exterioridade de uma interioridade já constituída a priori. Não se trata de um dualismo binário que oporia o dentro ao fora como instâncias separadas dicotomicamente. é o fora que quando se dobra constitui uma interioridade; ele seria uma exterioridade aberta, uma multiplicidade de linhas não formadas (Deleuze, 1991), pontos de singularidade dispersos, nos quais estas linhas se chocam permanentemente. Mesmo que estas linhas possam se estabilizar em figuras e formas, esta estabilização é sempre provisória e contingente, pois estas formas dizem respeito apenas a uma parte destas forças que se atualizaram. Assim, nas formas coexistem as forças diversas em luta que têm a potência de desmanchar as formas estabelecidas, provocando a emergência de tantas outras. As diferentes forças, em suas conexões, engendram figuras como os desenhos, que a ação do vento esboça com o lenço. Como o lenço assume diferentes formas de acordo com a velocidade e direção do vento, desenho será sempre ilimitado, em vista das diversas combinações possíveis a serem forjadas.

Deste modo, constatar as composições que se cristalizaram em formas é se ater a apenas a um dos modos de atualização das ilimitadas possibilidades que se forjaram, uma vez que "é evidente que toda forma é precária, pois depende das relações de forças e de suas mutações". (Deleuze, 1991, p. 139). De acordo com Deleuze (1991) haveria linhas que não cessam de variar e que se movimentam desmanchando os arranjos já estabelecidos. é neste sentido que o autor destaca a noção de diagrama utilizada por Foucault, mostrando que o diagrama é o mapa das relações de forças, um mapa sempre instável, pois "... jamais esgota a força, que pode entrar em outras relações e dentro de outras composições. " (Deleuze, 1991, p. 96). No lugar de priorizar a história das formas e nelas se deixar encarcerar, Deleuze e Foucault, seguindo a trilha de Nietzsche, acentuam o devir das forças. Este mapa não é o retrato estático que representa uma realidade, pois, como diz respeito à multiplicidade de forças em ação, ele não representa, mas sim, cria realidades. Explica o autor:

E, de um diagrama a outro, novos mapas são traçados. Por isso não existe diagrama que não comporte, ao lado dos pontos que conecta, pontos relativamente livres ou desligados, pontos de criatividade, de mutação, de resistência; e é deles, talvez, que será preciso partir para se compreender o conjunto. é a partir das 'lutas' de cada época, do estilo das lutas, que se pode compreender a sucessão de diagramas ou seu re-encadeamento por sobre as descontinuidades. (Deleuze, 1991, p. 53).

As resistências constituem-se como uma linha anônima que não emerge dos sujeitos, ela é tecida ao acaso; mas os afeta, arrasta, atravessa, e também os constitui, delineando movimentos não previstos e inusitados. é neste sentido que Foucault afirmava que as resistências/revoltas não podiam ser concebidas como ações de heróis, que as ações revolucionárias não são autoria de personagens ilustres que a história factual dignifica; ao contrário, elas são efeito de práticas anônimas, de existências desqualificadas e ordinárias que afrontaram poderes constituídos, colocando em xeque os regimes de opressão. Proust (1988), seguindo as contribuições de Foucault e Deleuze, assinala que a linha de resistência não pode ser pensada apenas como movimento, velocidade, mobilidade, pois ela pode se expressar simultaneamente como imobilidade, lentidão, prudência.

Os processos de resistência não ganham visibilidade apenas na formulação e oficialização de uma proposta política ou nas cartas de intenção partidárias e sindicais; eles inscrevem-se e fazem incisões nas margens destas proposições, insinuam-se por meio dos personagens anônimos que interrogam as proposições oficiais e alteram as rotas dos programas e propostas formulados utilizando-se de estratégias extremamente inusitadas. Apreender os processos de resistência requer atenção não apenas aos resultados de um determinado processo, mas, principalmente, à maneira pela qual, neste mesmo processo, engendram-se as práticas sociais.

Assim, não se trata aqui de resistências que se localizariam em algum ponto privilegiado ou que poderiam ser hierarquizadas. Tampouco as resistências se configuram como um subproduto das relações de poder, o polo negativo que se opõe passivamente aos processos de dominação; nem emergem como uma promessa futura de transformação. São pontos móveis e transitórios que se deslocam e atravessam indivíduos e estratificações sociais:

... os pontos, os nós, os focos de resistência disseminam-se com mais ou menos densidade no tempo e no espaço, às vezes provocando o levante de grupos ou indivíduos de maneira definitiva, inflamando certos pontos do corpo, certos momentos da vida, certos tipos de comportamento (Foucault, 2010a, p. 91).

Como funcionam os vetores de resistência na atualidade? Da mesma forma que estão sendo engendradas novas formas de governo da vida, não estariam sendo inventadas novas modalidades de luta? Como essas lutas estão sendo fabricadas? Quais outros sentidos de vida estão afirmando?

Na discussão sobre os processos produtores de rupturas há uma tendência a privilegiar programas, projetos e formas de expressão das ações coletivas que já se institucionalizaram, buscando captar as transformações que provocam; mas mesmo concordando com a importância deste eixo de análise, podemos apreender estes processos de ruptura focalizando movimentos, ações, práticas, lutas ou outros nomes que queiramos utilizar, que se situam nas fronteiras destas ações institucionalizadas. é esse o desafio em nosso presente: tentar captar os processos de resistência que insurgem nas margens das propostas institucionalizadas, na intensidade das memórias das lutas que fagulham modos imprevisíveis de agir.

Marx, ao analisar as lutas de classes na França, mais especificamente o 13 de junho de 1849, já nos deu essa pista ao utilizar uma imagem extremamente rica e sugestiva para o objeto de nossa discussão. Dizia Marx (1986) que a Assembleia constituinte assemelhava-se

... ao funcionário chileno que se empenhava em fixar, com a ajuda de uma medição cadastral, os limites da propriedade territorial no instante preciso em que os ruídos subterrâneos anunciavam a erupção vulcânica que faria saltar o solo sob os seus próprios pés. (p. 84).

Esta imagem expressa o que ainda é um desafio para todos nós no que se refere às reflexões acerca das práticas sociais e das lutas na contemporaneidade: como apreender estas mutações forjando análises que não se assemelhem às tentativas do funcionário chileno se quando assim procedemos temos dificuldades em atentar para as larvas que irrompem e que alteram a paisagem permanentemente? A análise dos processos de resistência e das mutações que operam convoca-nos a interrogar as linearidades das explicações deterministas, presas nas relações causa e efeito, como também as teleologias que postulam transformações a serem alcançadas num momento futuro, a partir de ações deliberadas previamente. Como os processos de mutação são diversos, eles precisam ser compreendidos na heterogênese dos movimentos que os delineiam.

Muitas de nossas matrizes conceituais dificultam a análise destes movimentos de ruptura, pois partem de procedimentos conceituais e metodológicos que não consideram aqueles movimentos que desobedecem às prescrições e regulações do que vêm a ser luta política e movimento organizado. Deste modo, acabam por julgá-los como tentativas incipientes que se perderiam ou teriam pouca eficácia, por não estarem vinculados, necessariamente, às ações deliberadas e a uma forma de militância programática que deveria ser exercitada no partido político, nos sindicatos e nos movimentos sociais organizados. Embora as ações programáticas e deliberadas sejam importantes, como também ainda o é a militância no sindicato e nos movimentos sociais organizados, parece que não podemos desprezar um olhar atento aos processos insurgentes que se fabricam em meio às margens dessas instâncias já formalizadas e constituídas. Muitas vezes estes processos são o alimento e condição de não burocratização das lutas sociais. Os protestos ocorridos no Brasil a partir de junho de 2013 nos mostraram o caráter local, fragmentário e transversal das lutas atuais (Rolnik, 2013). Quais conexões esses processos impetuosos e descontínuos mantêm com lutas e utopias anônimas que foram silenciadas em outros tempos?

Benjamin (2012a) nos ofereceu algumas pistas neste sentido ao afirmar que as lutas silenciadas num passado não se esgotam e não são destruídas de forma absoluta, mas quando silenciadas, elas irrompem, não se fazem como repetição ou rememoração do que já foi. Neste caso, o que se repete é a intensidade destas lutas, e não seu conteúdo ou forma de expressão, estilhaços que insistem em se expressar. Nas palavras de Benjamin (2012a, p. 224), "... articular historicamente o passado não significa conhecê-lo 'como ele de fato foi'. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo".

Embora nosso interesse seja destacar aqueles processos de resistência que ampliam os espaços de liberdade e o desbaratamento dos processos de sujeição efetuados pela ordem capitalista que se hegemonizou, não é demais acentuar que nem sempre as mutações mais amplas e as rupturas moleculares estão entrelaçadas a princípios ético-políticos que forjem espaços de liberdade. Esta ressalva é importante para que não nos perfilemos ao lado de uma ode equivocada às resistências locais e descontínuas ou da exclusiva validade das ações programáticas que postulam mudanças amplas e globais, sem atenção ao autoritarismo e às cristalizações que podem atravessá-las.

Quando nos interrogamos acerca dos processos que estariam produzindo rupturas na contemporaneidade corremos o risco de elencar uma série de ocorrências que acreditamos serem expressão ou impulso destas mudanças. Neste caminho defrontamo-nos com o perigo de hierarquizar e, assim, privilegiar alguns acontecimentos como verdadeiramente portadores de uma ação de ruptura e, deste modo, revolucionários; mas se seguimos Foucault, podemos perceber que as formas expressam apenas uma parte das forças em luta neste processo de atualização, ou seja, teríamos uma série de forças que não se atualizaram nem ganharam forma.

Deste modo, a contemporaneidade é este campo pleno de possíveis que ainda não se atualizou, ainda não ganhou forma e está em luta e tensão permanente com as formas já constituídas. As formas da contemporaneidade podem ser pensadas não como um processo inexorável, mas como forma instituída sempre provisória. Isto significa que nenhum fatalismo ou inexorabilidade pode ser reivindicado no que diz respeito aos processos sociais. Diferenciando a criação de possível da escolha entre possibilidades existentes, Zourabichvili (2000) apontou que o possível não diz respeito aos projetos a serem realizados no futuro ou a um campo de possibilidades previamente traçado, não se tem o possível “antes de tê-lo criado” (p. 335). O campo de possíveis não se confunde com o que é realizável numa dada sociedade em certo momento; há sempre um conjunto de potencialidades a efetuar.

A discussão acerca dos processos de resistência produtores de rupturas remete-nos a processos marcados pela imprevisibilidade e variabilidade, na sua forma de expressão e nos efeitos que produzem. Os acontecimentos que fabricam rupturas não guardam uma relação de causa e efeito com a realidade que os provocou, eles emergem em um processo complexo que nos impede de diagnosticar qual foi o fator preponderante em sua irrupção e prognosticar as ressonâncias que podem espraiar. Ainda que possamos assinalar os processos que se gestam num acontecimento, nossa análise sempre será parcial e provisória, não nos possibilitando fazer generalizações ou transposições. Se concordarmos que estes acontecimentos são únicos e singulares, de uma ordem tal de intempestividade, não é possível controlá-los de forma absoluta.

Deste modo, focalizar apenas as formas que um processo engendrou não ajuda a avançar em nossas análises se não atentamos para o modo como estes acontecimentos foram tecidos. Por isso entendemos que nosso desafio é compreender quais fissuras esses exercícios de resistência provocam nas formas hegemônicas de existência, como esses efeitos de contágio se fabricam, adensando os acontecimentos, sem que uma ação prévia os tenha formulado.

Neste sentido, muitos são os acontecimentos que podemos referir aqui no Brasil que nos dão indícios destes contágios: a onda de quebra-quebra de trens nos subúrbios nos anos 70; os chamados novos movimentos sociais que emergiram ao final dos anos 70 e início dos anos 80; os movimentos de ocupação efetuados pelos movimentos de moradia e de trabalhadores sem terra nos anos 90; os protestos dos jovens contra as formas de globalização hegemônicas ao final dos anos 90; as greves dos trabalhadores das instituições públicas de ensino em 2010 e 2011; os protestos que irromperam pelo país a partir de junho de 2013 - e muitos outros.

As reflexões de Foucault (1984; 2013) sobre o presente e a atitude crítica com relação às nossas práticas nos dão pistas para compreendermos o engendramento desses contágios. Seguindo as indagações de Kant sobre a atualidade, Foucault destacou o modo como aquele filósofo tratou o acontecimento e a revolução como acontecimento.

De acordo com a análise de Foucault, (2013), Kant procurou assinalar o acontecimento não por sua dimensão formal e grandiosa ou pelas atitudes heroicas que nele se destacam, e sim, pela simpatia e entusiasmo que provoca. Isto significa que a importância da revolução não está nela em si mesma, nos efeitos que ganham visibilidade, mas naqueles processos que emergem e são gestados em suas margens. A questão mais importante, de acordo com Foucault, não é o êxito ou o fracasso de uma revolução, mas os movimentos que ela suscita. O que desejamos focalizar aqui quanto ao acontecimento é seu efeito irruptivo e ao mesmo tempo de contágio. De acordo com Foucault (2013), o acontecimento não designa, necessariamente, apenas um grande feito, mas também pequenos movimentos que, ao produzir simpatias e contagiar - uma vez que expressam projetos coletivos que se comunicam -, fazem uma reviravolta e alteram o curso dos processos.

Nosso desafio é intenso, pois estas contribuições e as de muitos outros autores nos indicam um alto grau de complexidade na formulação de qualquer análise sobre os processos de resistência engendrados na contemporaneidade. Situar-se nas margens - ou nas fronteiras, como preferia Foucault (2013) - não requer hoje apenas o rompimento com alguns paradigmas. O trabalho de análise das lutas na atualidade demanda que ultrapassemos aquilo que hoje nos é dado como campo do possível, compartilhando o que nos inquieta e produzindo estranhamentos, no lugar de reafirmarmos o que já se tornou instituído. Parece fundamental acentuar os movimentos singulares, particulares, contingentes, imprevisíveis e descontínuos, que se expressam de forma local, buscando compreender suas interseções e conexões com lutas de tempos e lugares diversos.

Analisar as mutações na contemporaneidade implica tornar visíveis as contingências dos processos que forjam nossa existência e também nossas análises, a fim de problematizar as evidências do nosso presente, em que os fatalismos têm gritado mais alto que os processos de invenção que desestabilizam estes decretos tão previsíveis. Em nossas análises ressaltamos com tal ênfase o processo de mortificação no qual estamos imersos que muitas vezes acabamos por silenciar uns e desautorizar outros nas batalhas cotidianas que instalam fissuras nos processos instituídos.

Por vezes, querendo apreender as mudanças que se operaram em um determinado campo, olhamos apenas os processos constituídos e, ao final, concluímos que nada mudou. Então, parece ser nessas fissuras que precisamos nos instalar, pois elas abrem um campo de possíveis que não quer dizer a suposição de alternativas já dadas ou de projetos realizáveis. As fissuras instauram limiares que estranham os modos de existência instituídos e afirmam outras sensibilidades, outras possibilidades de vida (Domingues, 2011). Significam, sim, ultrapassar os limites de uma dada configuração, esgotando-os, e criar outros possíveis que ainda não tenham sido formulados. Fissuras são engendradas quando diante das possibilidades já formuladas, não se adere a nenhuma delas de forma absoluta e, de modo surpreendente, inventa-se um desvio impensável que produz abalos. O que nos move é: como ampliar a ressonância desses abalos?

RESISTÊNCIA COMO INVENÇÃO

O exercício de resistência é afirmação da potência de ação que constitui o vivo. Diz respeito a processos anônimos e imprevisíveis, centelhas de instabilidade que tecem outros modos de existência. Resistir, como reexistência, é criar modos de agir que afirmem a inesgotável potência de criação que compõe o vivo. Buscamos ressaltar a positividade dos exercícios de resistência, diferenciando-os daquelas concepções que os abordam como oposição ou reação a um processo já conformado, muito embora opor-se a uma dada situação seja uma estratégia de luta importante, já que às vezes nas margens de uma oposição configuram-se movimentos que alteram o curso dos processos instituídos.

Não se trata também de entender as resistências somente como tentativas de impedir a continuidade de um movimento, mesmo que as barricadas sejam instrumentos importantes em algumas lutas. Os processos de resistência significam não apenas oposição a uma dada situação, mas criação - portanto, afirmação - de práticas sociais diversas e polifônicas, capazes de tecer outras formas de vida que ajam em vez de apenas re-agir. Estas fabricações implicam mutações dos modos de existência, dos modos de organização e sentido da participação política, dos modos de uso da cidade, das formas de organização do trabalho, da produção do conhecimento e das diversas redes de sociabilidade. Os exercícios de resistência são cantos que atraem e inquietam, afastam-nos das ordens e concepções naturalizadas; são uma abertura infinita a sinalizar que nas formas há porosidades pelas quais os processos de resistência escorrem e que estes muitas vezes estilhaçam; contudo, não pretendemos eleger os movimentos disruptores das práticas instituídas como modelo a ser perseguido ou copiado - até porque, em algumas situações, essas invenções cotidianas podem cristalizar-se em práticas rígidas e modelares.

Consideramos necessário problematizar as políticas de veludo que tentam fazer dos sinais das ruas barulhos a serem silenciados, moralizados, criminalizados. Vale ressaltar que as políticas de veludo e os sinais da rua são tomados de empréstimo a Walter Benjamin (2012b, pp. 266-267) e às análises efetuadas por Baptista (2009). Em Benjamin o vidro é inimigo do secreto, nele nada se fixa; já o veludo detém os vestígios de quem o tocou, mantém os rastros. O vidro, por não fixar os rastros, desfaz a propriedade das coisas, enquanto o veludo as realimenta, pois guarda os vestígios de quem passou por ali. Habitar o veludo impõe seguir os vestígios e manter a ordem, pois nada há a procurar ou encontrar. A reinvenção da existência é feita principalmente destes sinais perturbadores de uma ordem que pretende instituir-se como forma hegemônica na contemporaneidade e que atravessam políticas de veludo e a vida cotidiana. Nos sinais da rua há cantos disformes que entoam proposições que podem ressoar e contaminar. No lugar do confinamento asséptico, do empreendedorismo eficaz da vida, tais proposições nos convidam às misturas fortalecedoras de práticas éticas. Não se trata, de forma alguma, da apologia das misturas ecléticas pós-modernas que advogam a diversidade como princípio, mas ao final das contas mantêm as coisas como estão: trata-se, sim, da transmutação e estilhaçamento daquelas práticas que impedem o exercício cotidiano da partilha da vida em comum.

Neste sentido, torna-se estratégica a indicação de Benjamin (2012a) de que precisamos escovar a história a contrapelo, desentranhando diversos movimentos de uma tradição iluminista e liberalizante que silencia e desqualifica lutas dissidentes das matrizes reguladoras fundadas nesta tradição. A potência de resistência pode ser constrangida ou neutralizada, mas jamais estancada. A política é invenção permanente, campo de forças em luta; portanto, mesmo os projetos constrangidos persistem na memória intensiva das lutas, produzindo fissuras naquelas políticas que silenciam e tornam opacas as lutas cotidianas.

A noção de memória das lutas aqui utilizada não diz respeito à lembrança dos fatos conservados em suas formas para recompor um passado e restaurar uma suposta verdade, mantendo o presente sem saídas, em compasso de espera, estancado e enterrado no que já foi. Essa memória das lutas diz respeito a fluxos descontínuos e intensivos de memória que arranham o presente, provocando entranhamentos no presente e no passado. O passado, paradoxalmente, coexiste com o presente que ele foi; ele insiste na intensidade de virtualidades que não se desdobraram em formas. Passado e futuro são dimensões do presente, e é por isso que "... a cicatriz é o signo, não da ferida passada, mas do fato de ter havido uma ferida" (Deleuze, 1988, p. 139). A expressão memória das lutas, formulada por Michel Foucault, é utilizada por Rodrigues (2002) quando, nos estudos que empreende a respeito da história oral, discute o caráter indomado da memória, delineando-a como insurreição de saberes desqualificados e silenciados.

A memória intensiva das lutas por não obedecer às limitações espaciais e temporais faz ressoarem seus gritos e invenções, muitas vezes surpreendendo as análises instituídas referentes às nossas possibilidades de criação. Acentuar essas memórias como dispositivo de interpelação do presente pode provocar fissuras nos discursos únicos e fechados que, ao prescreverem a ineficácia das lutas, intensificam práticas de servidão como a única possibilidade de sobrevivência. Não se trata de buscar lembrar-se de lutas ocorridas nas décadas passadas para, ao final, concluir que na atualidade produziu-se um tempo destituído de combates, de criações. As lutas são inventivas, mudam de forma.

AS LUTAS ESGARÇANDO LIMITES INSTITUCIONALIZADOS

Diante das sutilezas dos processos de resistência é necessário criar instrumentos de análise que nos permitam vislumbrá-los, e neste sentido, é necessário abrir mão de concepções apriorísticas e essencialistas, assim como de maniqueísmos que fixam as práticas e os processos sociais de forma dicotômica. A análise das lutas não pode ser circunscrita a uma análise macropolítica descolada de sua coexistência com processos moleculares que produzem os rastros, os roncos e vestígios das lutas em sua potência disruptiva e produtora de singularização. Trabalhamos aqui com as noções de macro e micropolítica, molar e molecular, conforme entendidas por Deleuze e Guattari (1996/2012). Ao se privilegiar o estado de coisas visível, a realidade já constituída (macropolítica), obstaculiza-se a possibilidade de apreender o engendramento dos processos em suas porosidades (micropolítica). é na coexistência desses processos – macro e micropolíticos – que as lutas têm sua insurgência, por isso é preciso estar atento para os gritos ditos infames e insignificantes que, esgarçando os limites instituídos, imprimem novos contornos nas formas de luta e nas práticas que se insinuam em meio aos processos de sujeição que aviltam a vida, desvitalizando-a.

A emergência de um acontecimento produz rupturas e interroga práticas instituídas, fazendo ressoar outras temporalidades com intensidades distintas "Em que o tempo é a textura dessa concretização" (Negri, 2002, p. 281). Destarte, as lutas emergem numa temporalidade que aglutina durações diversas, em que as experiências dos projetos constrangidos podem ser compartilhadas. Com isso não estamos defendendo que essas lutas sejam a repetição do mesmo, ao contrário, elas afirmam a repetição da diferença, a repetição da radical vontade de potência.

Na perspectiva foucaultiana, as lutas não são subprodutos das ações do capitalismo e da máquina de Estado, nem se dão apenas provocadas por ele. O processo caminharia por uma via reversa. As lutas engendradas na potência constituinte (Negri, 2002) provocam desarranjos no funcionamento capitalista e na máquina estatal – máquina que alarga seus domínios em aliança com o funcionamento do capitalismo; mas cabe ressaltar que essas lutas não podem ser avaliadas por aquilo em que sua ação resulta. Como já indicamos antes, o que importa são os contágios que disparam e os novos problemas que enunciam.

As resistências esgarçam os limites institucionalizados, desenhando outras paisagens. Como afirmado em um grafite feito por estudantes na parede de uma escola em Belém do Pará: “ Minha poesia está escrita em paredes feridas pelo tempo. No muro dos meus olhos não há limites. ”

Recebido em 28/10/2013

Aceito em 21/09/2014

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Nov 2014
    • Data do Fascículo
      Set 2014

    Histórico

    • Aceito
      21 Set 2014
    • Recebido
      28 Out 2013
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