RESUMO.
De sintoma à experiência, a significação da audição de vozes vem se transformando ao longo da história. No entanto, ainda hoje, quando o usuário relata ouvir vozes, é aligeiradamente diagnosticado com algum transtorno mental e encaminhado para o tratamento que, em sua maioria, é medicamentoso. Subjetividade, conteúdo das vozes e suas interfaces com aspectos socioculturais não costumam fazer parte da assistência aos ouvidores de vozes. Diante disso, objetivou-se analisar a presença dos valores e estereótipos social e culturalmente estabelecidos para mulheres e homens no conteúdo das vozes de usuárias(os) de um Centro de Atenção Psicossocial II mediante a leitura de 389 prontuários ativos. Os resultados demonstram que os enunciados presentes nos conteúdos das vozes foram influenciados pelos valores e estereótipos sociais e culturais, como as violências, os papéis de homens e mulheres na sociedade e a formação do sujeito feminino a partir da estética do corpo. A incorporação do marcador de gênero em pesquisas sobre os ouvidores de vozes promove uma análise sócio-histórica dessa experiência, ultrapassando as limitações que a psiquiatria a impôs. Além de empoderar os sujeitos, considerar a história de vida das pessoas que ouvem vozes e o que a voz enuncia por intermédio do seu conteúdo permite a criação de estratégias para o desenvolvimento de uma boa convivência com elas, repercutindo na saúde mental e na produção de vida desses sujeitos.
Palavras-chave:
Alucinações auditivas; gênero; prontuários
RESUMEN.
Desde los síntomas hasta la experiencia, el significado de escuchar voces ha cambiado a lo largo de la historia. Sin embargo, incluso hoy, cuando el usuario informa que escucha voces, le diagnostican rápidamente algún trastorno mental y se lo conduce a tratamiento, que, en su mayor parte, consiste en el uso de medicamentos. La subjetividad, el contenido de las voces y sus interfaces con los aspectos socioculturales no suelen ser parte de la asistencia a los oyentes. Por lo tanto, el objetivo era analizar la presencia de valores y estereotipos social y culturalmente establecidos para mujeres y hombres en el contenido de las voces de los usuarios de un Centro de Atención Psicosocial II, leyendo 389 historias clínicas activas. Los resultados demuestran que las declaraciones presentes en los contenidos de las voces fueron influenciadas por los valores y estereotipos sociales y culturales, como la violencia, los roles de hombres y mujeres en la sociedad y la formación del sujeto femenino a partir de la estética del cuerpo. La incorporación del marcador de género en la investigación sobre oyentes de voz promueve un análisis sociohistórico de esta experiencia, superando las limitaciones que la psiquiatría ha impuesto. Además de empoderar a los sujetos, considerando la historia de vida de las personas que escuchan voces y lo que la voz enuncia a través de su contenido, permite la creación de estrategias para el desarrollo de una buena relación con ellos, reflexionando sobre la salud mental y la producción de vida de estos sujetos.
Palabras clave:
Alucinaciones auditivas; género; registros médicos
ABSTRACT.
From symptom to experience, the meaning of hearing voices hás been changing through out history. However, even today, when the user reports hearing voices, He is lightly diagnosed with some mental disorder and referred for treatment, which, for the most part, is medication. Subjectivity, the content of voices and their interfaces with socio-cultural aspects are not usually part of assistance to voice-hearers. Therefore, the aim was to analyze the presence of socially and culturally established values and stereotypes for women and men in the content of the users’ voices of a Centro de Atenção Psicossocial II - CAPS II (Psychosocial Care Center II), by reading 389 active medical records. The results demonstrate that the statements present in the content of the voices were some how influenced by social and cultural values and stereotypes, such as violence, the roles of men and women in society and the formation of the female subject from the aesthetics of the body. Incorporating the gender marker in research on voice-hearers promotes a socio-historical analysis of this experience, overcoming the limitations that Psychiatry hás imposed. Besides empowering subjects, considering the life story of people who hear voices and what the voice enunciates through its content, allows the creation of strategies for the development of good coexistence with them, reflecting on the mental health and the live production of these subjects.
Keywords:
Auditory hallucinations; gender; medical records.
Introdução
A experiência de ouvir vozes que outras pessoas não ouvem vem sendo estigmatizada desde que a psiquiatria passou a vinculá-la a um sintoma psiquiátrico. Contudo, uma nova compreensão sobre essa experiência vem crescendo no campo da saúde mental, a qual entende que ouvir vozes faz parte da subjetividade humana, indo de encontro à visão biomédica tradicional da psiquiatria (Kantorski et al., 2018aKantorski, L. P., Machado, R. A., Alves, P. F., Pinheiro, G. E. W., & Borges, L. R. (2018a). Ouvidores de vozes: características e relações com as vozes.Journal of Nursing and Health ,8(n. esp.), e188430. doi: 10.15210/JONAH.V8I0.14119
https://doi.org/10.15210/JONAH.V8I0.1411...
).
Tem-se como preceito na formação dos profissionais da saúde, sobretudo os da saúde mental, diante do relato da audição de vozes, o desencorajamento do diálogo sobre elas com o (a) ouvidor (a) em virtude da crença de que falar sobre elas pode estimular delírios, alucinações e emoções que poderão ficar fora de controle. O relato sobre a experiência de ouvir vozes frequentemente leva o (a) profissional a enquadrar o (a) ouvidor (a) dentro de um diagnóstico e, consequentemente, um tratamento medicamentoso com a finalidade de suprimir as vozes (Rodrigues, Mourão, Almeida, & Oliveira, 2016Rodrigues, W. O., Mourão, L. C., Almeida, A. C. V., & Oliveira, G. S. (2016). Os limites do ensino teórico-prático da saúde mental na formação do profissional de saúde.Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 4(esp.), 107-114. doi: 10.19131/rpesm.0149
https://doi.org/10.19131/rpesm.0149...
).
Contudo, o paradigma criado pelo Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes no final da década de 1980 busca dar sentido ao conteúdo das vozes, para gerar outras abordagens de tratamento e de significação dessa experiência pelo viés do (a) ouvidor (a). Uma pesquisa apontou que 70% das pessoas que ouvem vozes e estão inseridas em serviços de saúde mental, assim como 50% de ouvidores (as) de vozes que não estão inseridos (as) nessas instituições, relacionam o início da experiência de ouvir vozes com prováveis eventos ameaçadores ou traumáticos (Romme & Escher, 1989Romme, M. A., & Escher, A. D. (1989). Hearing voices.Schizophrenia Bulletin, 15(2), 209-216. doi: 10.1093/schbul/15.2.209
https://doi.org/10.1093/schbul/15.2.209...
).
Nesse sentido, é importante que os/as profissionais da saúde desenvolvam uma escuta acolhedora para que possam compreender o que as vozes enunciam sobre a história de vida dos (as) ouvidores (as).
Estudos de prevalência demonstram que a maioria das pessoas que ouve vozes são mulheres (Tien, 1991Tien, A. Y. (1991). Distribution of hallucinations in the population. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 26(6), 287-292. doi: 10.1007/bf00789221
https://doi.org/10.1007/bf00789221...
; Shevlin, Murphy, Dorahy, & Adamson, 2007Shevlin, M., Murphy, J., Dorahy, M., & Adamson, L. (2007). The distribution of positive psychosis-like symptoms in the population: a latent class analysis of the National Comorbidity Survey. Schizophrenia Research, 89(1-3),101-109.doi:10.1016/j.schres.2006.09.014
https://doi.org/10.1016/j.schres.2006.09...
). Do mesmo modo, são elas que acessam, com maior regularidade, os serviços de saúde mental e, consequentemente, são mais medicalizadas do que os homens (Souza et al., 2017Souza, L. P. S., Barbosa, B. B. S., Carla, S. O., Souza, A. G., Ferreira, T. N., & Siqueira, L. G. (2017). Prevalência de transtornos mentais comuns em adultos no contexto da Atenção Primária à Saúde.Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, (18), 59-66. doi: 10.19131/rpesm.0193
https://doi.org/10.19131/rpesm.0193...
).
De acordo com Zanello, Fiuza e Costa (2015Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S. (2015). Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico.Fractal: Revista de Psicologia,27(3), 238-246. doi: 10.1590/1984-0292/1483
https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483...
), o sofrimento psíquico é gendrado conforme o gênero que o (a) sujeito (a) apresenta, repercutindo na forma como mulheres e homens são escutadas/os, acolhidas/os, diagnosticadas/os e tratadas/os nos serviços de saúde, sobretudo os de saúde mental.
Os papéis de gênero correspondem à atribuição cultural dada às pessoas conforme seu sexo/gênero no desempenho de atividades sociais, econômicas e políticas. De acordo com Couto-Oliveira (2007Couto-Oliveira, V. (2007). Vida de mulher: gênero, pobreza, saúde mental e resiliência (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF.), o estabelecimento de papéis, padrões atribuídos a mulheres e homens resulta na desigualdade entre os dois sexos, repercutindo nos diferentes aspectos da vida individual e social, abrangendo o desenvolvimento e o funcionamento físico e psicológico.
Pesquisas na área da saúde mental, que consideram o gênero como uma categoria analítica, proporcionam discussão sobre como as relações de gênero contribuem para o engendramento do sofrimento psíquico. Dessa maneira, o adoecimento psíquico dos sujeitos segue um padrão engendrado no qual o sofrimento mental das mulheres possui raízes relacionadas à maternidade e aos afazeres domésticos e, ainda, pelo lugar de silenciamento ocupado por elas, enquanto o sofrimento mental dos homens está relacionado às questões de não conseguir prover a família e a dificuldade em manter uma sexualidade ativa (Botton & Strey, 2015Botton, A., & Strey, M. N. (2015). O gendramento da infância através dos livros infantis: possíveis consequências em meninos e meninas. Perspectiva, 33(3), 915-932. doi: 10.5007/2175-795X.2015v33n3p915
https://doi.org/10.5007/2175-795X.2015v3...
; Zanello et al., 2015Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S. (2015). Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico.Fractal: Revista de Psicologia,27(3), 238-246. doi: 10.1590/1984-0292/1483
https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483...
; Beard & Portocarrero, 2018Beard, M., & Portocarrero, C. (2018). Mulheres e poder: um manifesto. São Paulo, SP Planeta do Brasil.).
Este estudo pretende analisar a presença dos valores e estereótipos social e culturalmente estabelecidos para mulheres e homens no conteúdo das vozes das usuários (as) de um CAPS II no sul do Brasil.
Método
Esta pesquisa provém da análise de registros de prontuários de usuárias e usuários de um Centro de Atenção Psicossocial II (CAPS) localizado no município de Pelotas. Trata-se de um recorte de um estudo maior realizado a partir da coleta dos registros de todos os usuários (as) ativos (as) no CAPS no momento da coleta dos dados, que ocorreu no período de setembro de 2017 a maio de 2018. Logo, foram analisados 389 prontuários dos quais se retiraram os dados secundários para o preenchimento de um questionário quantitativo, que continha uma questão qualitativa, a saber: ‘Há registro de ouvir vozes?’. Se o (a) coletador (a) dos dados encontrasse esse registro, realizava a cópia do que havia sido escrito sobre as vozes. Esses dados foram coletados de 181 usuários com registro de audição de vozes.
A análise e a interpretação dos dados foram realizadas após a leitura do material, a partir da qual emergiram categorias analisadas sob a perspectiva do conceito de gênero baseado nas autoras feministas pós-estruturalistas Joan Scott e Judith Butler. Ambas as autoras são fortemente inspiradas por Foucault, sob uma perspectiva construcionista social, que compreende o sexo e o gênero como formas de saber em relação aos corpos dos sujeitos sexuados. As autoras consideram o sexo e o gênero como conceitos históricos, ou seja, ambos possuem uma genealogia que permite mudanças no tempo e no espaço. Torna-se, sendo saberes, complexa a distinção entre eles, porém, ambas as autoras compreendem o gênero por meio de um olhar cultural construído no/pelo discurso, que o constitui como um conceito político acerca das relações de poder, que produzem hierarquias e dominações entre os diferentes gêneros e, assim, contribuem para a organização social entre os sujeitos (Scott, 1990; Butler & Aguiar, 2018).
O estudo seguiu os preceitos éticos conforme a resolução 466/2012. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas sob parecer nº 2.201.138 de 2017. Para preservar a identidade dos (as) usuários (as), serão utilizados nomes fictícios.
Resultados e discussão
Enquanto categoria de análise, o Gênero será compreendido, neste trabalho, como um marcador que traz para a discussão o processo histórico no qual os sujeitos foram enquadrados discursivamente pelas suas diferenças biológicas, por meio do discurso/saber científico, resultando na naturalização dos corpos biologicamente distintos (Foucault & Remalhete, 1987Foucault, M., & Remalhete, R. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis, RJ: Vozes.; Scott 1990Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade...
; Butler & Aguiar, 2018Butler, J. P., & Aguiar, R. (2018). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (16a ed). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.).
Segundo Scott (1990Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade...
), a utilização do marcador Gênero permite a compreensão de como as desigualdades sociais entre homens e mulheres foram constituídas a partir das diferenças sexuais, refletindo no campo da saúde mental, uma vez que o ato de diagnosticar nunca é neutro, pois é um trabalho de interpretação e julgamento em relação aos valores e ideais de gênero que estão presentes na subjetividade do médico (a) e dos (as) demais profissionais de saúde (Zanello, 2017Zanello, V.. (2017). Saúde mental, gênero e interseccionalidades. In: M. O. Pereira & R. G. Passos. Luta antimanicomial e feminismo: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasileira ( p. 52-69). Rio de Janeiro, RJ: Autografia.).
Do material analisado, emergiram três categorias: I - O que o corpo silencia, as vozes anunciam: violência estética no conteúdo das vozes; II - O papel da mulher na família, na casa, na sociedade e a interface com o conteúdo das vozes; e III - As marcas da violência no conteúdo das vozes e na saúde mental. Será possível evidenciar que a terceira categoria possui um número maior de registros analisados em relação à primeira e à segunda.
É importante chamar a atenção para este dado, pois ele dá indícios de que as vozes que remetem à violência doméstica ainda são mais prevalentes do que as outras. Contudo, mesmo tendo menos registros que contemplassem as outras questões relacionadas ao gênero e ao conteúdo das vozes, como o papel social de mulheres e homens e os ideais de beleza feminino, optou-se por abordar esses assuntos em categorias diferentes em função da relevância desses temas na sociedade contemporânea.
O que o corpo silencia, as vozes anunciam: violência estética no conteúdo das vozes
O padrão de beleza imposto pelas tecnologias de gênero (tecnologias que constroem determinadas imagens de ‘mulheres’ e de ‘homens’, atuando na produção do feminino e do masculino), como o cinema, as novelas e a publicidade, é colocado como algo acessível a todas as mulheres. Assim, aquelas que não conseguem atingi-lo são consideradas ‘menos mulher’, ‘menos feminina’, ‘menos desejada’ (Lauretis, 1994Lauretis, T. (1994). A tecnologia do gênero. In H. Hollanda (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (p. 206-241). Rio de Janeiro: Rocco.).
Em busca desse padrão, algumas mulheres sujeitam seus corpos às práticas disciplinares de comportamento autogerado e autorregulado que engendram o modo de ser e de viver para alcançar ‘o corpo belo, atraente e dócil’, como se isso fosse uma escolha própria e não um assujeitamento (Foucault & Remalhete, 1987Foucault, M., & Remalhete, R. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis, RJ: Vozes.).
Dessa forma, ser magra tornou-se o objetivo das mulheres que foram capturadas pela ditadura da beleza, que compreende o sobrepeso e a obesidade como uma expressão de desleixo com o corpo/falta de vaidade, resultando em comportamentos e enunciados gordofóbicos, disfarçado de uma falsa preocupação com a saúde, em que a gordura passa a ser considerada sinônimo de doença, apoiada pelo e no discurso biomédico (Wolf, 2018Wolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.).
A insistência para emagrecer pode ser um fator de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares ou sofrimento psíquico. No registro, a seguir, é possível observar que a ouvidora 1 começou a ouvir vozes logo após ter iniciado um tratamento medicamentoso para emagrecer.
Fez o uso de medicação para conseguir emagrecer (Dieltilpropiona) e então começaram os sintomas psicóticos, ouvia muitas vozes. Permanece escutando vozes que dizem que a casa está suja, que não vale nada. Alucinações visuais e auditivas constantes. As vozes dizem para ela se matar, que ela não vale nada. É voz de homem (Ouvidora 1).
Pesquisas têm demonstrado que pessoas com transtornos alimentares referem ouvir as ‘vozes do transtorno’, conhecidas também como vozes anoréxicas, que funcionam como um fator de manutenção na anorexia nervosa. Essas vozes, frequentemente, possuem conteúdos negativos, de comando e depreciativos (Pugh & Waller, 2016Pugh, M., & Waller. G. (2016). The anorexic voice and severity of eating pathology in anorexia nervosa. International Journal of Eating Disorders, 49(6), 622-625. doi: 10.1002/eat.22499
https://doi.org/10.1002/eat.22499...
), como a voz relatada no registro acima. Em sociedades que privilegiam a aparência, corpos gordos são considerados feios, desagradáveis e degenerados, tornam-se corpos abjetos, que fogem da matriz hegemônica que constrói o corpo aceitável (Bruschi, 2016Bruschi, M. P. (2016). Stop gordofobia: y las panzas subversas. Tenerife, ES: Zambra/Baladre.).
Um estudo realizado com 15 usuários (as) de um centro de atenção psicossocial de Brasília (08 homens e 07 mulheres) identificou que 57,1% das mulheres sofriam por não se enquadrarem em um ideal estético, reverberando, inclusive, na sua vida sexual, pois se consideravam privadas de ocupar um lugar de agente de desejo por não estarem magras, sendo a obesidade um fator de sofrimento para essas mulheres (Zanello et al., 2015Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S. (2015). Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico.Fractal: Revista de Psicologia,27(3), 238-246. doi: 10.1590/1984-0292/1483
https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483...
).
O xingamento utilizado pela voz masculina, quando diz que a ouvidora 1 não ‘vale nada’, funciona como um potente meio de controle e marcador de espaço social da mulher e do homem na sociedade. Um estudo realizado com adolescentes apontou que os xingamentos mais expressivos atribuídos às meninas estavam associados ao comportamento sexual passivo e aos traços de caráter relacionais (Zanello, Bukowitz, & Coelho, 2011Zanello, V., & Bukowitz, B. (2011). Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados. Revista Labrys Estudos Feministas (20-21). Recuperado de: https://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/valeska.htm
https://www.labrys.net.br/labrys20/brasi...
). A voz masculina, ao xingar a ouvidora 1, produz uma espécie de microfísica do poder (Foucault & Machado, 2017Foucault, M., & Machado, R. (Org.). (2017). Microfísica do poder. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.), pois, no seu conteúdo, localiza e estabelece a posição social e o papel da ouvidora como mulher.
Pesquisa realizada por Zanello e Romero (2012Zanello, V., & Romero, A. C. (2012). “Vagabundo” ou “vagabunda”? Xingamentos e relações de gênero. Revista Labrys Estudos Feministas (22). Recuperado dehttps://www.labrys.net.br/labrys22/libre/valeskapt.htm
https://www.labrys.net.br/labrys22/libre...
) identificou que as mulheres são valorizadas, na cultura ocidental, dentro de três estruturas principais: renúncia sexual, traços de caráter relacional e beleza estética, sendo a última marcada, principalmente, por um padrão lipofóbico. Essas estruturas prescrevem o papel social da mulher, destinando-as a serem: ’belas, recatadas e do lar’.
Com isso, muitas mulheres acabam desenvolvendo o comportamento de autoexigência para estarem sempre bonitas, uma vez que ser bela eleva a possibilidade de serem escolhidas por um ‘homem’ para casar e formar uma família, comportamento esperado para uma sociedade heteronormativa como a brasileira. Essa autoexigência pode se manifestar, inclusive, no conteúdo das vozes de algumas mulheres que ouvem vozes que outras pessoas não ouvem, como verificado no relato seguinte.
Pensam que são vozes dos vizinhos falando mal dela. São vozes que falam que ela pode estar sendo traída pelo namorado e que ela está feia. Não identifica essa voz, não sabe dizer se é feminina ou masculina, mas associa a suas vizinhas. Sente-se incomodada com elas (Ouvidora 2).
Para Pereira e Passos (2017Pereira, M. O., & Passos, R. G. (2017). Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira. Rio de Janeiro, RJ: Saraiva.), a função materna e amorosa faz parte de uma construção cultural que surgiu no século XVIII, a qual foi incorporada nas e pelas mulheres. Essa construção coloca as mulheres no papel de cuidadoras dos outros, independentemente de sua vontade, além da dedicação às atividades domésticas. Segundo Zanello (2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba, PR: Appris.), foi a partir do século XX que as mulheres passaram a ser consideradas como bons partidos para o casamento por seus atributos pessoais e não mais pelo dote. Dentre esses atributos, estavam a “[...] capacidade física, estética, intelectual, artística e doméstica de despertar o interesse e o amor dos homens” (Maia, 2011Maia, C. (2011). A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral. Florianópolis, SC: Mulheres., p. 127).
Assim, encontrar um marido passava a ser uma questão de mérito pessoal, de fracasso ou de sucesso, ao passo que o adultério masculino deixava de ser visto como algo constitutivo do próprio casamento, passando ao status de traição (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba, PR: Appris.). Contudo, essa traição não representava um fracasso masculino, mas feminino, visto que era responsabilidade da mulher a manutenção do casamento. “Para isso, era preciso manter-se bela, saudável e praticar a arte de agradar, de encantar, mantendo-se sempre próximas ao ideal de amizade amorosa” (Del Priore, 2011Del Priore, M. (2011). História de amor no Brasil. São Paulo: Contexto., p. 254).
Nessa perspectiva, pode-se pensar nas vozes da ouvidora 2 como um reflexo desses papéis femininos instituídos historicamente, fazendo com que ela se sinta julgada pelas vizinhas por não ter os atributos pessoais necessários para manter seu relacionamento. Uma pesquisa realizada em 2011 em um hospital psiquiátrico evidenciou que o sofrimento psíquico das mulheres se concentra nas queixas amorosas e relacionais e é mediado pelo ideal de beleza (Zanello & Bukowitz, 2011Zanello, V., Bukowitz, B, & Coelho, E. (2011). Xingamentos entre adolescentes em Brasília: linguagem gênero e poder. Interacções, 7(17), 151-169. Recuperado de: http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/viewFile/451/405
http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/art...
). Observa-se que o corpo, especialmente o das mulheres, está se tornando um dos mais relevantes indicadores de posição social e, por essa razão, as práticas de idolatria ao corpo vêm sendo expostas como verdades sobre a construção dos sujeitos, alicerçadas pelos discursos médicos e estéticos e propagadas pelo discurso midiático (Figueiredo, Nascimento, & Rodrigues, 2017Figueiredo, D. C., Nascimento, F. S., & Rodrigues, M. E. (2017). Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.Linguagem em (Dis)curso,17(1), 67-88. doi: 10.1590/1982-4017-170104-2916
https://doi.org/10.1590/1982-4017-170104...
).
Esses discursos operam na lógica do biopoder a partir de enunciados disfarçados de preocupação com a saúde, quando, na verdade, o que se pretende é a normatização do corpo dentro do padrão estético lipofóbico. O desejo do sujeito de construir seu corpo da maneira que bem entende foi capturado pelo saber científico, que funciona como importante instrumento de poder e controle sobre os corpos (Foucault & Albuquerque, 2014Foucault, M., & Albuquerque, M. T. C(2014). História da sexualiadade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.; Butler & Aguiar, 2018Butler, J. P., & Aguiar, R. (2018). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (16a ed). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.). Pode-se citar como exemplo o corpo das mulheres trans que, durante seu processo de transição, é majoritariamente construído dentro dos estereótipos do corpo feminino cisgênero e padrão para que possam ser identificadas e aceitas como mulheres na sociedade, que ainda é fortemente machista, sexista, misógina e LGBT fóbica.
Diante disso, o corpo da mulher e tudo o que ele representa socialmente passa a determinar a sua posição e o seu valor social, assim como a sua constituição como sujeito. Toda aquela que não se enquadrar nesses preceitos social e cultural, como no exemplo das Ouvidoras 1 e 2, acaba absorvendo, replicando e sentindo esse estigma que, no caso delas, se expressa por meio do conteúdo das vozes.
O discurso científico produzido pela psiquiatria, que foi capaz de apontar grupos específicos como passíveis de serem disciplinados por esse saber, está presente, da mesma forma, nos discursos médicos e estéticos que capturam os sujeitos dentro de uma relação disciplinar sutil que funciona como norma, uma vez que ele estabelece condições de saúde/doença, normal/anormal, as quais são internalizadas pela subjetivação como normas (Foucault & Remalhete, 1987Foucault, M., & Remalhete, R. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petropólis, RJ: Vozes.; Foucault & Albuquerque, 2014).
O papel da mulher na família, na casa, na sociedade e a interface com o conteúdo das vozes
Segundo Zanello e Andrade (2014Zanello, V, & Andrade, A. P. M. (2014). Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade. Curitiba, PR: Appris.), a constituição do sujeito dá-se nas relações de gênero e, a partir disso, pode-se inferir a relação da saúde mental e gênero em que valores, estereótipos e ideais influenciam a formação de sintomas. Pode-se identificar, neste estudo, que o conteúdo das vozes remete ao papel social da mulher relacionado ao cuidado dos outros e das atividades da vida diária, ao padrão de beleza, à fidelidade para com o homem, como esposa e mãe.
No estudo de McCarthy-Jones et al. (2015)Mccarthy-Jones, S., Romero, M. C., Mccarthy-Jones, R., Dillon, J., Cooper-Rompato, C., Kieran, K., … Blackman, L. (2015). Hearing the unheard: an interdisciplinary, mixed methodology study of women’s experiences of hearing voices (auditory verbal hallucinations). Frontiers in Psychiatry, 6, 181. doi: 10.3389/fpsyt.2015.00181
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2015.00181...
, realizado com mulheres sobre a experiência de ouvir vozes, obteve-se, entre os resultados encontrados, a descrição das vozes como hostis, críticas e irritadas, o que tornava a experiência chocante e angustiante, pois as vozes usavam linguagem abusiva, perturbadora, com violência interpessoal, desrespeito, ameaças veladas e enfraquecimento psicológico ou desvalorização. Os relatos das mulheres mostraram que o conteúdo das vozes é moldado pela cultura, revelando atitudes patriarcais presentes em algumas delas, bem como os dispositivos utilizados pelas mesmas para dominar e controlar as ouvintes.
As consequências descritas pelas participantes foram, em sua maioria, negativas, graves e duradouras para diferentes aspectos de suas vidas, principalmente pelo fato de ouvirem vozes no contexto de uma cultura patologizante. “Elas consideraram os efeitos sociais em sua vida pessoal como sendo muito prejudiciais nos domínios material, psicológico, emocional e relacional” (McCarthy-Jones et al., 2015Mccarthy-Jones, S., Romero, M. C., Mccarthy-Jones, R., Dillon, J., Cooper-Rompato, C., Kieran, K., … Blackman, L. (2015). Hearing the unheard: an interdisciplinary, mixed methodology study of women’s experiences of hearing voices (auditory verbal hallucinations). Frontiers in Psychiatry, 6, 181. doi: 10.3389/fpsyt.2015.00181
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2015.00181...
, p. 8).
Outro aspecto identificado nos registros desta pesquisa foi a tentativa de silenciamento de uma das ouvidoras, o qual tem sido predominante na vida das mulheres ao longo da história, em que era excluído seu poder de decisão por serem sujeitas às ordens e costumes do pai, marido, da igreja e da sociedade (Beard & Portocarrero, 2018Beard, M., & Portocarrero, C. (2018). Mulheres e poder: um manifesto. São Paulo, SP Planeta do Brasil.).
Para McCarthy-Jones et al. (2015)Mccarthy-Jones, S., Romero, M. C., Mccarthy-Jones, R., Dillon, J., Cooper-Rompato, C., Kieran, K., … Blackman, L. (2015). Hearing the unheard: an interdisciplinary, mixed methodology study of women’s experiences of hearing voices (auditory verbal hallucinations). Frontiers in Psychiatry, 6, 181. doi: 10.3389/fpsyt.2015.00181
https://doi.org/10.3389/fpsyt.2015.00181...
, as mulheres foram duplamente silenciadas ao longo da história por discursos e atitudes, por serem mulheres e por terem, na sua história de vida, a experiência da audição de vozes.
Escuta vozes dizendo: ‘Abre a porta, fecha a porta, fecha a boca [...]’. Também ouve o cachorro dizer questionar se ela vai sair de novo. Escuta outras vozes: ‘(Nome da ouvidora) morre’. Também ouve a voz de seu irmão dizer essa frase (Ouvidora 3, grifo nosso).
Esses registros vão ao encontro de antigos discursos construídos historicamente, definidores dos papéis sociais de mulher e homem, que limitavam o papel da mulher como de esposa, de mãe e de cuidadora e que deram base para sua submissão e silenciamento (Zanello et al., 2015Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S. (2015). Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico.Fractal: Revista de Psicologia,27(3), 238-246. doi: 10.1590/1984-0292/1483
https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483...
).
Para Silva et al. (2005Silva, G. C. C., Santos, L. M., Teixeira, L. A., Lustosa, M. A., Couto, S. C. R., Vicente, T. A., & Pagotto, V. P. F. (2005). A mulher e sua posição na sociedade: da antiguidade aos dias atuais. Revista. SBPH, 8(2),65-76. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2/v8n2a06.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2...
), desde a colonização do Brasil, a função da mulher passou por várias interpretações às vezes exóticas, ora degradantes e até desumanas. Ela foi admirada, temida como representantes de Satã e reduzida a objeto de domínio e submissão por receber um conceito de não função, tendo sua real influência na evolução do ser humano, marginalizada e até aniquilada.
Para os autores, ainda hoje existe um ‘inconsciente coletivo’ que define os lugares de ocupação da mulher tanto na família como na sociedade e que muitas vezes são próximos aos ocupados na antiguidade.
Além dos referidos atributos pessoais discutidos anteriormente, ainda há uma função que deveria ser cumprida como meta do próprio casamento, que é a maternidade (Brasil & Costa, 2018Brasil, M. V., & Costa, A. B. (2018). Psicanálise, feminismo e os caminhos para a maternidade: diálogos possíveis?Psicologia Clínica,30(3), 427-446. doi:10.33208/PC1980-5438v0030n03A02.
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v003...
). A partir do fim do século XIX e início do XX, a ciência passou a intervir na configuração do ideal materno, afirmando que cultivar o instinto materno protegeria a saúde das mulheres, tanto física como mental, além de garantir sentimentos de realização e felicidade.
Foucault e Albuquerque (2014Foucault, M., & Albuquerque, M. T. C(2014). História da sexualiadade: a vontade de saber. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.) relataram que a psiquiatria, a partir do seu saber, opera na manutenção do projeto patriarcal do controle dos corpos femininos, reduzindo-os à sua condição biológica. Isso se justificava pelo fato de a medicina acreditar que as doenças femininas, como a própria loucura, eram causadas por males uterinos e que somente o casamento e a maternidade poderiam acalmar, ou seja, esses seriam os principais recursos terapêuticos para as ‘doenças’ femininas (Swain, 2013Swain, T. N. (2013). Mulheres indômitas e malditas: a loucura da ração. In S. T. Muchail, M. A. Fonseca & A. Veiga-Neto (Org.), O mesmo e o outro: 50 anos de história da loucura. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.).
Na fala a seguir, pode-se observar o relato da Ouvidora 4, que relaciona a morte do marido com o início das vozes, as quais comandavam que ela matasse as filhas e tirasse a própria vida.
Medos, ouve vozes. A voz dizia para ela matar suas filhas e ela própria. Com alucinações contínuas devido vozes. Ouve vozes e elas dizem que ela fez coisas que ela não fez. Refere muitas coisas sobre as vozes, elas aparecem quando o marido faleceu. E ela teve que mudar toda a sua vida (Ouvidora 4).
Com a apresentação deste registro, não se tem a intenção de fazer interpretações, que mais seriam pressuposições, a respeito da vida da Ouvidora 4, mas apenas de mostrar como determinados conteúdos com raízes históricas podem estar presentes nas vozes que as pessoas escutam, e que, frequentemente, as caracterizam como loucas. No caso dessa ouvidora, ao contrário do que se acreditava no século XX, a maternidade não garantiu sua felicidade nem a ausência de sofrimento psíquico, mostrando que o casamento e a maternidade como garantias de saúde e felicidade femininas são construções históricas, que tinham como objetivo contribuir não com o bem-estar das mulheres, mas com a manutenção de uma sociedade patriarcal em que o homem é o detentor do poder e da liberdade de ir e vir (Brasil & Costa, 2018Brasil, M. V., & Costa, A. B. (2018). Psicanálise, feminismo e os caminhos para a maternidade: diálogos possíveis?Psicologia Clínica,30(3), 427-446. doi:10.33208/PC1980-5438v0030n03A02.
https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v003...
). Mesmo que o século XXI representa o momento de maior empoderamento feminino, essas verdades ainda perpassam o ‘inconsciente coletivo’ e se manifestam das mais diferentes formas (Silva et al., 2005Silva, G. C. C., Santos, L. M., Teixeira, L. A., Lustosa, M. A., Couto, S. C. R., Vicente, T. A., & Pagotto, V. P. F. (2005). A mulher e sua posição na sociedade: da antiguidade aos dias atuais. Revista. SBPH, 8(2),65-76. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2/v8n2a06.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2...
).
Nesse sentido, enquanto as mulheres tinham seu valor determinado por atributos pessoais relacionados à beleza, saúde e capacidade de gestar, os homens tinham, na virilidade sexual e laborativa, seus atributos sociais.
Segundo Zanello (2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba, PR: Appris.), muitos valores viris, como a valentia para lutar em guerras e mesmo morrer em combate, foram se enfraquecendo e dando lugar a outra forma de honra masculina caracterizada por duelos simbólicos e materiais constituintes do mundo do trabalho de um sistema capitalista do século XXI.
Dessa forma, o homem conquista sua honra na atividade laboral e na paternidade com o compromisso de ser o provedor da família e exemplo para os (as) filhos (as). Além desses deveres, o homem ainda precisa ter uma vida sexual ativa, sendo o dono da ereção e da performance enquanto ‘penetrador’ na relação (Zanello, 2018Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba, PR: Appris.). Não dar conta de todos esses deveres masculinos pode fazer com que os homens tenham a autoestima diminuída e o sentimento de que não possuem mais valor.
Ouve vozes chamando por ele. Por vezes, tem alucinações visuais e auditivas. Ouve vozes de comando. Queixas de alucinações auditivas. Diminuição das alucinações auditivas. Por vezes, tem vozes que o elogiam e outras vezes mandam que se mate, ‘pois não tem mais valor neste mundo’ (Ouvidor 1, grifo nosso).
As marcas sociais e culturais nos papéis das mulheres e dos homens geram sofrimento naquelas e naqueles que, como nos casos evidenciados, não as apresentam e acabam sendo referenciadas nos conteúdos das vozes. Essas vozes, por sua vez, agridem as ouvidoras e os ouvidores, os quais já sofrem cotidianamente com outros tipos de agressão resultantes de diferentes tipos de violências.
As marcas da violência no conteúdo das vozes e na saúde mental
A violência no ambiente doméstico geralmente está associada à violência de gênero. Ao abordar este termo, assume-se que os atos violentos ocorrem entre as pessoas, em um sistema de relações sociais e históricas que foram produzidas de maneira desigual, sendo que as ações violentas tendem a incidir sobre as mulheres, seja em um ambiente familiar e privado, como em espaços públicos. O termo gênero desatrela a violência do sexo biológico - da feminilidade e submissão e da masculinidade - e a liga à questão histórica (Bandeira, 2014Bandeira, L. M. (2014). Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação.Sociedade e Estado,29(2), 449-469. doi: 10.1590/S0102-69922014000200008
https://doi.org/10.1590/S0102-6992201400...
). Nesse sentido, é preciso atentar-se para as questões de saúde das mulheres vítimas de violência, uma vez que já existem pesquisas que relacionam a violência com o adoecimento mental.
Neste estudo, os registros demonstram que as vozes possuem conteúdos que visam à proteção da mulher que as ouvem, mas também há vozes com conteúdo de comando, que ordenam ações de auto e interagressão para algumas mulheres. Em ambos os casos, há uma figura masculina da qual a voz quer proteger a ouvidora e que sugere que houve uma agressão à mesma ou um papel masculino acusatório e depreciativo, que incentiva a autoagressão feminina, como pode ser verificado abaixo.
Relata escutar voz do pai que manda se matar. Sempre que está mal volta a ter alucinações auditivas de conteúdo acusatório de seu pai dizendo que ela merece estar passando por isso, etc. (Ouvidora 6).
Nos últimos três meses, tem alucinações visuais e auditivas (voz masculina que diz para pegar uma faca para se matar, homem de preto) (Ouvidora 7).
Refere hoje que talvez as vozes lhe mandavam sair para que se protegesse já que não confiava nos homens, pai ou mais tarde companheiro. Pensa que quando as vozes lhe mandavam ficar na rua, era porque dentro de casa sentia-se muito insegura (Ouvidora 5).
O aparecimento das vozes pode estar associado a algum evento traumático, assim os seus conteúdos podem ser um indicativo de demandas emocionais do (a) ouvidor (a). Conforme a resolução ou a elaboração dessas necessidades, o (a) ouvidor (a) pode, inclusive, deixar de ouvir as vozes ou aprender a lidar com elas de uma maneira saudável, mas, para isso, é preciso estar atento (a) às características das vozes, como sexo, idade, tom da voz, uma vez que ela pode simbolizar a idade do ouvidor (a) quando experienciou o trauma (Kantorski et al., 2018bKantorski, L. P., Cardano M., Couto, M. L. O., Silva, M. S. S. J., & Santos, C. G. (2018b). Situações de vida relacionadas ao aparecimento das vozes: com a palavra os ouvidores de vozes.Journal of Nursing and Health ,8(n. esp.), e188416. doi: 10.15210/JONAH.V8I0.14096
https://doi.org/10.15210/JONAH.V8I0.1409...
).
Os registros nos prontuários das usuárias do CAPS que ouvem vozes que outras pessoas não ouvem revelam, ainda, que a violência pode influenciar o início da audição, como também estar presente no conteúdo das vozes de diferentes maneiras.
Ela viu matar seu pai, pois tinha uma venda, um armazém lá fora, no interior de Canguçu. Foi separar uma briga e desceram uma facada nele, sendo que ela viu esta briga e quando mataram o pai, daí em diante, nunca mais ficou ‘normal’. Os amigos [vozes] querem que se mate, pois mandam que fique no cemitério dia e noite, atravessar a rua, tomar toda a caixa de remédio, isso tudo para ficar com eles. Na verdade, fala com seu pai desde os 15 anos. Ele está no meio dos mortos. Só que tem medo do seu pai porque ele era muito ruim (batia nela, na mãe e no irmão) (Ouvidora 10, grifo nosso).
A violência social ou urbana revelada pelo homicídio gera reflexos na saúde mental e, de acordo com Gonçalves, Queiroz e Delgado (2017Gonçalves, H. C. B., Queiroz, M. R., & Delgado, P. G. G. (2017). Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda? Fractal: Revista de Psicologia, 29(1), 17-23. doi: 10.22409/1984-0292/v29i1/1256
https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1...
), a violência pode ser considerada como um agravo psicopatológico a pessoas expostas a um ou mais episódios violentos, fato que pode ser averiguado no registro da Ouvidora 10, a qual relatou ao profissional que, após presenciar o homicídio do seu pai, não voltou a ser ‘normal’ e começou a conviver com as vozes. No mesmo registro, verifica-se, também, a violência doméstica que a usuária sofria do pai quando criança.
Em todas elas, há um prejuízo para a saúde dos sujeitos, física e mental, levando em conta a intencionalidade do ato produzido independentemente do resultado. Nesse sentido, mesmo que a ouvidora não venha a praticar a ação que a voz enuncia, como no caso do suicídio, ela estará sofrendo com a violência exercida pela voz.
Por fim, pôde-se averiguar que a violência permeia a história de vida dos (as) ouvidores (as) deste estudo, manifestando-se no conteúdo das vozes, fato que abre espaço para a necessidade de mais estudos a partir das relações de gênero, o qual, além de ser um determinante social, é de suma importância para o entendimento do adoecimento mental.
Considerações finais
Analisar o conteúdo das vozes e considerar o gênero dos (as) participantes da pesquisa a partir do marcador social, gênero, permitiram compreender que as performances comportamentais de homens e mulheres, que foram identificadas pelo enunciado das vozes, são atravessadas pelo gênero e o quanto sua participação é usada para fundamentar certos sintomas.
Por meio da análise do registro do conteúdo das vozes das usuárias e usuários do CAPS II, foi possível identificar o quanto os valores e estereótipos sociais e culturais estão presentes no conteúdo das vozes, afetando e repercutindo, de forma distinta, na saúde mental dos participantes da pesquisa conforme o gênero.
Os resultados desta pesquisa demonstram que os enunciados presentes nos conteúdos das vozes foram, de alguma forma, influenciados pelos valores e estereótipos sociais e culturais, como a formação do sujeito feminino a partir da estética do corpo, os papéis de homens e mulheres na sociedade e as violências.
Incorporar o marcador de gênero em pesquisas com pessoas que têm, na sua história de vida, a experiência de ouvir vozes que outras pessoas não ouvem possibilita uma análise sócio-histórica dessa experiência, ultrapassando as limitações que a psiquiatria impôs a essa variação humana.
Acredita-se que a incorporação de outros marcadores, como classe social, raça/cor, gerações e sexualidade, bem como considerar a história de vida das pessoas que ouvem vozes e o que a voz enuncia por intermédio do seu conteúdo, permite a criação de estratégias para o desenvolvimento de uma boa convivência com elas, empoderando os sujeitos para a quebra de paradigmas e barreiras que estão em torno da compreensão sobre esse fenômeno, que repercute na sua saúde mental e na produção de vida desses sujeitos, sobretudo, na vida das mulheres, que historicamente foram assujeitadas pela cultura patriarcal, a qual se concretiza pela e na reprodução dos papéis sociais de acordo com o sexo e, posteriormente, ao gênero.
Referências
- Bandeira, L. M. (2014). Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação.Sociedade e Estado,29(2), 449-469. doi: 10.1590/S0102-69922014000200008
» https://doi.org/10.1590/S0102-69922014000200008 - Beard, M., & Portocarrero, C. (2018). Mulheres e poder: um manifesto São Paulo, SP Planeta do Brasil.
- Botton, A., & Strey, M. N. (2015). O gendramento da infância através dos livros infantis: possíveis consequências em meninos e meninas. Perspectiva, 33(3), 915-932. doi: 10.5007/2175-795X.2015v33n3p915
» https://doi.org/10.5007/2175-795X.2015v33n3p915 - Brasil, M. V., & Costa, A. B. (2018). Psicanálise, feminismo e os caminhos para a maternidade: diálogos possíveis?Psicologia Clínica,30(3), 427-446. doi:10.33208/PC1980-5438v0030n03A02.
» https://doi.org/10.33208/PC1980-5438v0030n03A02 - Bruschi, M. P. (2016). Stop gordofobia: y las panzas subversas Tenerife, ES: Zambra/Baladre.
- Butler, J. P., & Aguiar, R. (2018). Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade (16a ed). Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.
- Couto-Oliveira, V. (2007). Vida de mulher: gênero, pobreza, saúde mental e resiliência (Dissertação de Mestrado). Universidade de Brasília, Brasília, DF.
- Del Priore, M. (2011). História de amor no Brasil São Paulo: Contexto.
- Figueiredo, D. C., Nascimento, F. S., & Rodrigues, M. E. (2017). Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras.Linguagem em (Dis)curso,17(1), 67-88. doi: 10.1590/1982-4017-170104-2916
» https://doi.org/10.1590/1982-4017-170104-2916 - Foucault, M., & Albuquerque, M. T. C(2014). História da sexualiadade: a vontade de saber Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
- Foucault, M., & Machado, R. (Org.). (2017). Microfísica do poder Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
- Foucault, M., & Remalhete, R. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão Petropólis, RJ: Vozes.
- Gonçalves, H. C. B., Queiroz, M. R., & Delgado, P. G. G. (2017). Violência urbana e saúde mental: desafios de uma nova agenda? Fractal: Revista de Psicologia, 29(1), 17-23. doi: 10.22409/1984-0292/v29i1/1256
» https://doi.org/10.22409/1984-0292/v29i1/1256 - Kantorski, L. P., Machado, R. A., Alves, P. F., Pinheiro, G. E. W., & Borges, L. R. (2018a). Ouvidores de vozes: características e relações com as vozes.Journal of Nursing and Health ,8(n. esp.), e188430. doi: 10.15210/JONAH.V8I0.14119
» https://doi.org/10.15210/JONAH.V8I0.14119 - Kantorski, L. P., Cardano M., Couto, M. L. O., Silva, M. S. S. J., & Santos, C. G. (2018b). Situações de vida relacionadas ao aparecimento das vozes: com a palavra os ouvidores de vozes.Journal of Nursing and Health ,8(n. esp.), e188416. doi: 10.15210/JONAH.V8I0.14096
» https://doi.org/10.15210/JONAH.V8I0.14096 - Lauretis, T. (1994). A tecnologia do gênero. In H. Hollanda (Org.), Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (p. 206-241). Rio de Janeiro: Rocco.
- Maia, C. (2011). A invenção da solteirona: conjugalidade moderna e terror moral Florianópolis, SC: Mulheres.
- Mccarthy-Jones, S., Romero, M. C., Mccarthy-Jones, R., Dillon, J., Cooper-Rompato, C., Kieran, K., … Blackman, L. (2015). Hearing the unheard: an interdisciplinary, mixed methodology study of women’s experiences of hearing voices (auditory verbal hallucinations). Frontiers in Psychiatry, 6, 181. doi: 10.3389/fpsyt.2015.00181
» https://doi.org/10.3389/fpsyt.2015.00181 - Pereira, M. O., & Passos, R. G. (2017). Luta antimanicomial e feminismos: discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira Rio de Janeiro, RJ: Saraiva.
- Pugh, M., & Waller. G. (2016). The anorexic voice and severity of eating pathology in anorexia nervosa. International Journal of Eating Disorders, 49(6), 622-625. doi: 10.1002/eat.22499
» https://doi.org/10.1002/eat.22499 - Rodrigues, W. O., Mourão, L. C., Almeida, A. C. V., & Oliveira, G. S. (2016). Os limites do ensino teórico-prático da saúde mental na formação do profissional de saúde.Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, 4(esp.), 107-114. doi: 10.19131/rpesm.0149
» https://doi.org/10.19131/rpesm.0149 - Romme, M. A., & Escher, A. D. (1989). Hearing voices.Schizophrenia Bulletin, 15(2), 209-216. doi: 10.1093/schbul/15.2.209
» https://doi.org/10.1093/schbul/15.2.209 - Scott, J. (1990). Gênero: uma categoria útil para análise histórica. Educação & Realidade, 20(2), 71-99. Recuperado de:https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667
» https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667 - Shevlin, M., Murphy, J., Dorahy, M., & Adamson, L. (2007). The distribution of positive psychosis-like symptoms in the population: a latent class analysis of the National Comorbidity Survey. Schizophrenia Research, 89(1-3),101-109.doi:10.1016/j.schres.2006.09.014
» https://doi.org/10.1016/j.schres.2006.09.014 - Silva, G. C. C., Santos, L. M., Teixeira, L. A., Lustosa, M. A., Couto, S. C. R., Vicente, T. A., & Pagotto, V. P. F. (2005). A mulher e sua posição na sociedade: da antiguidade aos dias atuais. Revista. SBPH, 8(2),65-76. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2/v8n2a06.pdf
» http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rsbph/v8n2/v8n2a06.pdf - Souza, L. P. S., Barbosa, B. B. S., Carla, S. O., Souza, A. G., Ferreira, T. N., & Siqueira, L. G. (2017). Prevalência de transtornos mentais comuns em adultos no contexto da Atenção Primária à Saúde.Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental, (18), 59-66. doi: 10.19131/rpesm.0193
» https://doi.org/10.19131/rpesm.0193 - Swain, T. N. (2013). Mulheres indômitas e malditas: a loucura da ração. In S. T. Muchail, M. A. Fonseca & A. Veiga-Neto (Org.), O mesmo e o outro: 50 anos de história da loucura Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora.
- Tien, A. Y. (1991). Distribution of hallucinations in the population. Social Psychiatry and Psychiatric Epidemiology, 26(6), 287-292. doi: 10.1007/bf00789221
» https://doi.org/10.1007/bf00789221 - Wolf, N. (2018). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres Rio de Janeiro, RJ: Rosa dos Tempos.
- Zanello, V.. (2017). Saúde mental, gênero e interseccionalidades. In: M. O. Pereira & R. G. Passos. Luta antimanicomial e feminismo: discussões de gênero, raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasileira ( p. 52-69). Rio de Janeiro, RJ: Autografia.
- Zanello, V. (2018). Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação Curitiba, PR: Appris.
- Zanello, V, & Andrade, A. P. M. (2014). Saúde mental e gênero: diálogos, práticas e interdisciplinaridade Curitiba, PR: Appris.
- Zanello, V., & Bukowitz, B. (2011). Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados. Revista Labrys Estudos Feministas (20-21). Recuperado de: https://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/valeska.htm
» https://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/valeska.htm - Zanello, V., & Romero, A. C. (2012). “Vagabundo” ou “vagabunda”? Xingamentos e relações de gênero. Revista Labrys Estudos Feministas (22). Recuperado dehttps://www.labrys.net.br/labrys22/libre/valeskapt.htm
» https://www.labrys.net.br/labrys22/libre/valeskapt.htm - Zanello, V., Bukowitz, B, & Coelho, E. (2011). Xingamentos entre adolescentes em Brasília: linguagem gênero e poder. Interacções, 7(17), 151-169. Recuperado de: http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/viewFile/451/405
» http://revistas.rcaap.pt/interaccoes/article/viewFile/451/405 - Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S. (2015). Saúde mental e gênero: facetas gendradas do sofrimento psíquico.Fractal: Revista de Psicologia,27(3), 238-246. doi: 10.1590/1984-0292/1483
» https://doi.org/10.1590/1984-0292/1483
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Nov 2020 -
Data do Fascículo
2020
Histórico
-
Recebido
15 Set 2019 -
Aceito
04 Maio 2020