RESUMO
O câncer infantil apresenta 70% de chance de cura se diagnosticado precocemente, embora seja uma doença rara, e pode resultar na morte. A associação entre o câncer e a morte passa a ser conhecida pelas crianças, de alguma forma, desde o momento do diagnóstico, esse encontro é constante. Nesta pesquisa buscou-se desvelar se o tema da morte de si mesma ou de outras crianças com câncer são abordados por meio dos desenhos-estórias. A pesquisa foi desenvolvida em uma associação que presta assistência psicossocial, hospedagem, alimentação e transporte às crianças e aos acompanhantes durante o tratamento oncológico. Colaboraram com a pesquisa cinco crianças que estavam em tratamento oncológico e hospedadas na casa, sendo quatro do sexo feminino e uma do sexo masculino. Como instrumento para coleta dos dados foi utilizado entrevista semiestruturada com os responsáveis, objetivando identificar informações gerais a respeito das crianças. Posteriormente, com as crianças, foi executado o procedimento de desenho-estória, por meio de desenhos e associações verbais, introduzido por Walter Trinca, em 1972. Para análise e compreensão dos dados coletados, utilizou-se o modelo de Amedeo Giorgi. Posteriormente foram construídos dois eixos temáticos: as diversas perdas no adoecer e a morte de si e de seus companheiros de enfermaria. Os resultados desvelam que a criança busca compressão do que ocorre consigo e com o ambiente onde se encontra, lidam com a incerteza em relação ao futuro, podendo sentir a proximidade da morte e expressar seus sentimentos e emoções.
Palavras-chave:
Câncer infantil; desvelar significados; morte
RESUMEN
El cáncer infantil, presenta un 70% de probabilidad de curación si se diagnostica precozmente, aunque es una enfermedad rara, puede resultar en la muerte. La asociación entre el cáncer y la muerte pasa a ser conocida por los niños, de alguna forma, desde el momento del diagnóstico, ese encuentro es constante. En esta investigación se buscó desvelar si el tema de la muerte de sí misma o de otros niños con el cáncer son abordados por medios de los dibujos historias. Se desarrolló la investigación en una asociación que ayuda a la asistencia psicosocial, alojamiento, alimentación y transporte a los niños y acompañantes durante el tratamiento oncológico. Colaboraron con la investigación, cinco niños que estaban en tratamiento oncológico y hospedados en la casa, siendo cuatro del sexo femenino y una del sexo masculino. Como instrumento para la recolección de datos se utilizó una entrevista semiestructurada con los responsables, con el objetivo de identificar informaciones generales sobre el niño. Posteriormente con los niños, se ejecutó el procedimiento de dibujo historia, por medio de dibujos y asociaciones verbales, introducido por Walter Trinca, en 1972. Para el análisis y la comprensión de los datos recolectados, se utilizó el modelo de Amadeo Giorgi. Posteriormente se construyeron dos ejes temáticos: las diversas pérdidas en el enfermar y la muerte de sí y de sus compañeros de enfermería. Los resultados desvelan que el niño busca comprensión de lo que ocurre con él y con el ambiente en que se encuentra, se ocupa de la incertidumbre con respecto al futuro, pudiendo sentir la proximidad de la muerte y expresar sus sentimientos y emociones.
Palabras clave:
Cáncer infantil; desvelar significados; muerte
ABSTRACT
Childhood Cancer presents 70% chance of cure if diagnosed early, although it is a rare disease, it can result in death. The association between cancer and death becomes known to children, somehow, from the moment of diagnosis, this encounter is constant. This study sought to reveal if the subject of the death of itself or of other children with cancer are approached through the drawings stories. The research was developed in an association that provides psychosocial assistance, lodging, food and transportation to children and companions during cancer treatment. Collaborated with the research, five children who were on cancer treatment and hosted in the house, four girls and one boy, collaborated with the research. As a tool for data collection, a semi-structured interview was applied with those responsible for the children, aiming to identify general information about the child. Later, with the children, the drawing-and-story procedure was applied, by means of drawings and verbal associations, introduced by Walter Trinca, in 1972. For analysis and understanding of the information collected, we used the model of Amedeo Giorgi. Later, two thematic axes were constructed: the various losses when getting sick and the death of oneself and the ward mates. The results reveal that the child seeks to understand what happens to it and the environment, deals with uncertainty about the future, being able to feel the proximity of death and express its feelings and emotions.
Keywords:
Childhood cancer; unveiling meanings; death
Introdução
O câncer infantil, se diagnosticado precocemente, apesar da realidade otimista tem 70% de chance de cura, é uma doença rara e pode resultar na morte de crianças e adolescentes. Só no Brasil foram 2.800 óbitos, na faixa etária de 0 a 19 anos, em 2013. Esses dados expressivos e alarmantes colocam as neoplasias infantis na segunda posição de óbitos, ficando abaixo somente das mortes por causas externas (Instituto Nacional do Câncer no Brasil [INCA], 2015Instituto Nacional do Câncer Brasil. (2015). Estimativa 2016: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: INCA.) reafirmando o quanto a morte está presente.
A criança com câncer depara-se com a morte iminente a todo tempo. Quando tem a percepção que algo grave está lhe acontecendo, devido às mudanças em seu próprio corpo ou diante da morte de outras crianças, companheiros de tratamento: alguns não reagem da forma esperada aos tratamentos disponíveis, aqueles cuja doença evolui independentemente das perspectivas de curas existentes. Outras em determinado momento do tratamento apresentam problemas decorrentes do próprio, não resistindo aos efeitos tóxicos das drogas quimioterápicas. Algumas apresentam recaídas no decorrer do tratamento, outras apresentam após seu término, e a doença retorna e torna-se mais difícil tratar. E também, há crianças cujo prognóstico é negativo desde o momento do diagnóstico, dado o tipo e/ou extensão do câncer que a acomete (Françoso, 2002Françoso, L. P.C. (2002). Vivências de crianças com câncer no grupo de apoio psicológico: um estudo fenomenológico (Tese de Doutorado), Faculdade de Filosofia, Ciências e letras de Ribeirão Preto,Ribeirão Preto. Recuperado de: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/59/59137/tde-03102005.../FRANCOSO_LPC.pdf
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).
Kovács (2008Kovács, M. J. (2008). Representações da morte. In M. J. Kovács(Coord.), Morte e desenvolvimento humano (5a ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.) refere que nessa trajetória as crianças passam a desenvolver sentimentos e pensamentos sobre a morte e quando são permitidas as expressões sobre o assunto, de maneira explícita ou não, o tema da morte pode vir a surgir em brincadeiras, desenhos, histórias e questionamentos. Valle (2001Valle, E. R. M. (2001). Psico oncologia pediátrica. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .) considera que o conceito de morte se integra no desenvolvimento da criança sendo influenciado pelo saber, pelo imaginário da sociedade em que vive e pela experiência com o tema, semelhantes a outros conceitos constitutivos do psiquismo humano.
E em meio a todas essas adversidades, as crianças vivem suas perdas profundas e significativas, tais como mudança na vida e na família, onde o novo e desconhecido universo passa a ser representado não apenas pela ausência de saúde, como também pelo distanciamento e isolamento social (perda da escola) e familiar, pela perda de autonomia, pois a criança fica resignada aos horários e intervenções da equipe de saúde, as restrições de visitas, vestimenta, o convívio com desconhecidos, entre tantas outras situações (Schliemann, 2014Schliemann, A. L. (2014). A vivência do luto da infância e na adolescência. In F.S. Santos (Org.), Tratado brasileiro sobre perdas e luto (p. 225-229). São Paulo, SP: Atheneu .).
Em geral é pensado que as crianças não estão emocionalmente preparadas para lidar com um assunto tão amedrontador quanto este, considerando-as imaturas para receberem esse tipo de informação, por isso tudo que lhe é associado, torna-se prejudicial. Paralelamente temos uma sociedade que opta por manter a morte em silêncio ou conversando por meio de metáforas, acreditando assim que as crianças estarão protegidas (Kubler-Ross, 2003Kubler-Ross, E. (2003). O túnel e a luz: reflexões essenciais sobre a vida e a morte. Campinas, SP: Versus.; Kovács, 2008Kovács, M. J. (2008). Representações da morte. In M. J. Kovács(Coord.), Morte e desenvolvimento humano (5a ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).
A partir dessa concepção, surgem as mentiras e/ou ideias fantasiosas; com o objetivo de proteção, o adulto acaba prejudicando a criança, afastando-a da realidade. E no momento em que a morte for evidente para ela, esta poderá ser vista como algo realmente aterrorizante, misterioso, traumático (Aberastury, 1984Aberastury, A. (1984). A percepção da morte nas crianças (M. N. Folberg, trad.). In Aberastury, A. (Org.), A percepção da morte na criança e outros escritos (p. 128-139). Porto Alegre, RS: Artes Médicas. Original publicado em 1978.; Kubler-Ross, 1998Kubler-Ross, E. (1998). Sobre a morte e o morrer. São Paulo, SP: Martins Fontes.). Para Kovács (2003Kovács, M. J. (2003). Bioética nas questões da vida e da morte. Psicologia USP, 2(14), 115-167. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/pusp/v14n2/a08v14n2.pdf
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), a morte deveria ser abordada desde a infância, durante toda a existência e não apenas no final da vida.
As investigações sobre a compreensão da morte, pela criança, começaram em 1934 e continuam ao longo desses anos, diferenciando-se entre as que questionam sobre a idade na qual as crianças compreendem a morte, e aquelas que procuram investigar se a compreensão de cada componente está relacionada com o nível de desenvolvimento global. Torres (2008Torres, W. C. (2008). A criança diante da morte: desafios. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo ., p. 54) destaca quatro conceitos que favorecem o entendimento sobre a evolução do conceito de morte para as crianças:
Irreversibilidade - refere-se à compreensão de que um ser com vida, quando morre não pode tornar a viver. Está vinculada a ideia de morte como algo final, inalterável e permanente.
Não funcionalidade - compreensão de que todas as funções definidoras da vida cessam com a morte.
Universalidade - tudo que é vivo morre, ou seja, a morte é um acontecimento inevitável.
Causalidade - envolve a compreensão do por que a morte ocorreu.
Ainda, segundo esta autora, os estudos realizados evidenciam que a criança que vivencia uma situação relacionada à morte, seja a possibilidade de sua própria morte, ou mesmo a perda da pessoa querida, mantém impressa em seu psiquismo registros e emoções a esse respeito. A maneira como ela organiza e expressa sua compreensão e seus sentimentos está relacionada ao seu desenvolvimento cognitivo (Torres, 2008Torres, W. C. (2008). A criança diante da morte: desafios. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo .).
A morte se ocupa também da infância, sendo necessário reconhecê-la, desmitificá-la, compreendendo que o sofrimento e a morte são partes da existência e acometem crianças e adultos. Portanto, é necessário escutar o que têm as crianças a dizer a respeito da morte, principalmente quando essas são acometidas por doenças que representam riscos às suas vidas. Neste estudo busca-se desvelar se o tema da morte de si mesma ou de outras crianças é abordado por meio dos desenhos-estórias produzidos por elas próprias.
Método
Trata-se de um estudo qualitativo, do tipo exploratório, descritivo, com ênfase no sentido e a intencionalidade dos fenômenos humanos, considerando os significados atribuídos pelas crianças em tratamento oncológico. A pesquisa foi realizada em casa-hospedaria, que presta assistência psicossocial, hospedagem, alimentação e transporte às crianças e aos acompanhantes durante o tratamento, localizada na região Norte do Brasil.
Participantes
Participaram cinco crianças, sendo quatro do sexo feminino e uma do sexo masculino, em tratamento do câncer, em idades entre seis e 11 anos. A inclusão dos participantes no estudo foi feita a partir dos critérios de inclusão, primeiramente com os responsáveis: ser pai, mãe ou outro responsável pela criança; maior que 18 anos e aceitar participar do estudo. Posteriormente, com as crianças: ter o diagnóstico de câncer já confirmado; ser hóspede da casa; ter idade igual ou superior a seis anos e que seu responsável concorde livremente com a participação e assine o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE.
Instrumentos
Inicialmente foi utilizada a entrevista semiestruturada, na qual participou a mãe, pai ou outro responsável pela criança. Nesta etapa tratou-se de identificar informações gerais a respeito da criança tais como, idade, lugar de origem, escolaridade, diagnóstico, tempo tratamento, entre outras, assim como das reações da criança quando do diagnóstico, ao tratamento e inserção na casa-hospedaria.
Em relação à criança, o instrumento eleito para coleta de dados consistiu na execução do procedimento de desenho-estória, por meio de desenhos e associações verbais, introduzido por Walter Trinca, em 1972. Estes foram desenvolvidos, a fim de favorecer uma ampliação de conhecimento a respeito dos conteúdos pouco acessíveis verbalmente.
Procedimentos
Para a realização desse estudo se seguiram as recomendações da resolução 446 (Brasil, 2012Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. (2013, 13 de junho). Resolução nº 466 , de 12 de dezembro de 2012. Aprova as diretrizes para análise ética de projetos de pesquisa que envolvam armazenamento de material biológico humano ou uso de material armazenado em pesquisas anteriores. Diário Oficial da União, p. 59.) que dispõe sobre pesquisa envolvendo seres humanos no Brasil. A coleta foi iniciada somente após autorização deste projeto junto ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob parecer número: 1622337.
Atividades referentes à coleta de dados com a mãe ou responsável ocorreram a partir da realização da entrevista com a mãe, pai ou outro responsável. Posteriormente, com a criança, com aplicação do procedimento desenho-estória ocorrendo em cinco fases, de acordo com Trinca (1997Trinca, W. (1997). Formas de investigação clínica em Psicologia: procedimento de desenho-estórias e procedimento de desenhos de família com estórias. São Paulo, SP: Vetor.): primeiro, coloca-se uma folha de papel na posição horizontal e solicita- se que a criança faça um desenho-livre, a partir da seguinte instrução: ‘Você tem essa folha em branco e pode fazer o desenho que quiser e como quiser’. Aguarda-se a conclusão do primeiro desenho; Ao final de cada produção a criança é solicitada a contar uma estória sobre o desenho. ‘Agora, olhando o desenho, você pode inventar uma estória, dizendo o que acontece’; Posteriormente realiza-se o ‘inquérito’ sobre quaisquer esclarecimentos necessários à compreensão e à interpretação do material que foi produzido, tanto no desenho quanto na estória. E por fim, ainda com o desenho diante do examinando, pede-se o título da estória.
Para análise e compreensão dos dados coletados, utilizou-se o modelo de Amedeo Giorgi seguindo quatro passos, (Andrade & Holanda, 2010Andrade, C. C., & Holanda, A. F. (2010). Apontamentos sobre pesquisa qualitativa e pesquisa empírico-fenomenológica. Estudo de Psicologia, 259-268. Recuperado de: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2010000200013
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): sentido do todo; discriminação de unidades significativas; transformações das expressões cotidianas do sujeito em linguagem psicológica e síntese da estrutura da experiência.
Resultados e discussão
As crianças e suas histórias
Tristeza: menina, nove anos de idade. Encontra-se há dois meses na casa-hospedaria. Natural do Estado do Pará, reside no município de Augusto Correa, em companhia dos pais e de seus sete irmãos. Cursa a terceira série do ensino fundamental quando de seu ingresso na casa. Está sob responsabilidade e cuidados de sua tia (materna), devido seu pai ser o mantenedor da família como lavrador, e sua mãe estar com o filho recém-nascido. A tia por sua vez, por ser viúva e já ter seus filhos adultos, se prontificou em cuidar de Tristeza. Ela tem câncer de ovário (Figura 1).
Sabedoria: menina, oito anos de idade. Natural do Maranhão, cursa terceira série do fundamental, no município de Palestina do Pará, onde mora com sua família, composta de pais e mais três irmãos. Tem como principal cuidadora a sua genitora, que veio acompanhar a criança em seu tratamento, que já dura três anos, enquanto seu pai, mantenedor da família como auxiliar administrativo, ficou cuidando dos outros filhos. Sabedoria tem sarcoma (Figura 2).
Força: menina, seis anos de idade, filha única. Natural do Estado do Pará, cursa primeiro ano do ensino fundamental, no município de Ulianópolis, onde vive com seus pais. A genitora é a principal cuidadora, durante seus dois anos de tratamento. O pai é lavrador e mantenedor da família. Força tem osteossarcoma (Figura 3).
Estrela: menina, seis anos de idade. Natural do Estado do Pará, cursa o pré-escolar, no município de Oeiras do Pará, Vila da Comunidade Nova América (zona rural) onde mora com seus pais e suas quatro irmãs. Sua mãe veio acompanhá-la no tratamento, que já dura dois anos e cinco meses, enquanto seu pai que trabalha como lavrador e mantém a família, ficou cuidando das outras filhas. Estrela tem leucemia linfoide aguda - LLA (Figura 4).
Navegador: menino, 11anos, natural do Estado do Pará, município de São Domingos do Capim, comunidade Natal de Jesus (zona rural), onde mora com seus pais e seus seis irmãos. Sua mãe é sua principal cuidadora durante o período de um ano e meio de tratamento. Seu pai exerce a função de pescador e lavrador, ficou no município cuidando dos outros filhos. Navegador tem leucemia linfoide aguda - LLA (Figura 5).
As diversas perdas no adoecer
Todas as crianças destacaram em algum momento da construção do desenho ou na elaboração de suas estórias, as perdas e as limitações que vivenciam ou que foram percebendo no decorrer do tratamento oncológico. Estas foram relacionadas a vários aspectos de suas vidas, tais como atividades cotidianas (frequentar a escola), atividades de lazer (correr, tomar banho de rio), mudança de hábito, principalmente alimentar (restrições) e o isolamento familiar, como observada abaixo:
[...] um campo muito bonito, onde ia eu, minha mãe, meus irmãos, a gente ia tomar banho de igarapé, brincava muito, depois voltava pra casa, passava uns dias, depois ia de novo [...] Mas, eu parei de ir pra lá, porque comecei meu tratamento, e não posso mais tomar banho de igarapé, não posso mais fazer nada, sinto falta dessas coisas e saudade dos meus irmãos também e também minha tia vendeu e comprou outro, que também tem igarapé, mas eu ainda não conheci, porque não fui liberada, mas sei que vou ser, voltaremos a brincar e se divertir como antes (Sabedoria).
Tinha a rotina baseada em correr, pular, e brincar de casinha com minhas irmãs. Estava começando minha vida escolar, queria muito aprender a ler e escrever, já começava a escrever meu nome [...] tenho muitos amigos na escola e minha professora era legal (Estrela).
As crianças sofrem por seu corpo ser objetificado pelas intervenções impostas pela doença, sofrem pela dor física sentida, pela perda da autonomia, por alteração de sua conformação corporal. Nesse sentido, observa-se que cada participante expressa suas perdas mais significativas, que vão além da perda da saúde. Perpassam pela perda do convívio com o restante da família, pelo abandono repentino de sua casa, de não poder frequentar a escola, de possuir restrições no brincar e no comer, dentre outras, mas que não inviabiliza novos modos de se relacionar e de se reconstruir em relação a si mesmo e com os outros (Azevedo, 2011Azevedo, A.V.S. (2011). O brincar da criança com câncer no hospital: análise da percepção científica. Estudos de Psicologia, 565-572. Recuperado de: http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v28n4/15.pdf
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). Isso pode ser corroborado com a fala de Navegador “[...] Maior prazer era andar de barco com meu pai, quando iam pescar e cuidar da roça [...]”.
A morte de si de seus companheiros de enfermaria
Ao longo do desenvolvimento, a criança acompanha as mortes reais que as rodeiam, tentando entender o que acontece, com isso vai formando concepções sobre a morte (Chiattone, 2003Chiattone, H.B.C (2003). A criança e a morte. In V.A. Camon (Org.), E a psicologia entrou no hospital (p. 69-133). São Paulo, SP: Pioneira Thompson Learning.). Estas vivências possibilitam à criança enfrentar o sofrimento e a frustração causados pela perda. A mesma busca uma compreensão do que ocorre consigo e do ambiente onde se encontra; lida com a incerteza em relação ao futuro, podendo sentir a proximidade da morte e expressar seus sentimentos e emoções (Bifulco, 2014Bifulco, V. A. (2014). O luto do portador de doença crônica incurável: o modelo da psico-oncologia. In F.S. Santos (Org.), Tratado brasileiro sobre perdas e luto (p. 223-229). São Paulo, SP: Atheneu.). Esse tema foi evidenciado pelas crianças, e entre essas destaca-se o relato de Estrela, que faz referência a um novo lugar que irá residir que não mais nesta existência:
Quando for morar nessa casa, vou sozinha, não poderei levar nem meu pai, nem minha mãe e nenhuma das minhas irmãs. Eles precisarão ficar aqui, quer dizer, lá em casa (referindo-se ao seu município), cuidando uns dos outros. [...] Sentirei saudades, mas sei que estarei melhor estando nesta casa (apontando para o desenho). [...] Porque não terei essas coisas daqui, de ter que ir pra hospital, de ficar doente. Lá vai ser tudo diferente. Vou poder brincar, correr. Vai ser muito legal (Estrela).
A fala de Estrela ratifica o descrito na literatura, o qual refere que as crianças podem pressentir a morte e expressar seus sentimentos e emoções, no momento em que são permitidas a exprimir-se por meio de palavras, gestos, brincadeiras, desenhos ou estórias (Baldini & Krebs, 1999Baldini, S. M., & Krebs, V. L. J. (1999). A criança hospitalizada. Pediatria, 3(21), 182- 190.). Estrela faleceu em janeiro de 2017, aproximadamente quatro meses após essa atividade.
Outra questão desvelada e que vem ratificar outros estudos (Perina, 2005Perina, E. M. (2005). Breve histórico da psicooncologia pediátrica no Brasil. Campinas, SP: Livro Pleno.; Vendruscolo, 2005Vendruscolo, J. (2005). Visão da criança sobre a morte. Simpósio: Morte: Valores e Dimensões, 38(1): 26-33. Recuperado de: http://revista.fmrp.usp.br/2005/vol38n1/3_visao_crianca_sobre_morte.pdf
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) refere-se à percepção da criança em relação à morte dos colegas de tratamento, como relata o Navegador: “Acho que a morte é algo bom, já que depois dela meus colegas foram para um lugar melhor, onde não sentem mais dor e nem precisam mais passar por sessões de QT, estão completamente livres”. A proximidade da morte pode ser vivenciada como algo positivo, a medida que pode trazer alívio para dor e descanso.
O adoecimento pelo câncer, a hospitalização, as perdas decorrentes dos efeitos colaterais da quimioterapia, como a perda de cabelo e o emagrecimento e a morte dos companheiros de enfermaria, evocam o tema da morte e do morrer, exigindo do profissional de saúde abertura e habilidade a fim responder a essas demandas. Adiar ou recusar o encontro para ouvir o que a criança tem a falar sobre a morte é negar-se ao cuidado integral, aumentando o sofrimento. É necessário que o profissional possa compreender sua própria condição de mortal e assim, abrir-se ao encontro da criança que clama por significar sua vida e sua morte.
Considerações finais
Apesar da negação e o temor da morte, ao contrário do que é comum para a maioria das pessoas, as crianças têm capacidade para perceber o que ocorre consigo e também com o ambiente ao seu redor, incluídas aqui as experiências de morte que ela possa vir a vivenciar, tornando-se fundamental o diálogo com a mesma sobre essas temáticas e tudo que a ela se relacione.
Essa importância justifica-se pela necessidade de a criança aproximar-se do tema, para poder elaborar seus lutos e as perdas que vivencia durante a sua vida. Para que isso ocorra é importante que se busquem formas de abordar o assunto desde cedo, ainda na infância (Kovács, 2008Kovács, M. J. (2008). Representações da morte. In M. J. Kovács(Coord.), Morte e desenvolvimento humano (5a ed.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Para tanto, é necessário que os adultos que fazem parte dos grupos (familiar e social) das crianças, também tenham uma preparação, uma vez que o tema é gerador de angústias. Assim, o tema da morte com as crianças será abordado e o interdito minimizado.
Não falar sobre esse tema, comumente é visto como uma forma de proteger a criança, porém isso não se sustenta, já que a qualquer momento os questionamentos surgirão, principalmente ao perceberem que algo está ocorrendo em seus corpos e em suas vidas. De todo modo, comumente é o próprio adulto que se defende de seus temores e angústias e não as crianças, que se mostram abertas para falar sobre a morte.
No entanto, é preciso considerar aspectos importantes, entre eles: a capacidade cognitiva da criança, sua idade, suas emoções, afetos, contexto social, familiar e cultural onde está inserida, bem como as experiências de perdas que já vivenciaram (morte na família, de um animal de estimação ou algo também significativo a ela), falando abertamente sobre o assunto, não necessitando de respostas prontas.
Também é indispensável que se utilize a linguagem da criança e recursos lúdicos (desenhos, estórias, brincadeiras, livros infantis, entre outros), podendo abordar o assunto em ambientes nos quais as crianças convivem, como a escola, por exemplo, indo além dos hospitais. Assim é possível que se aborde de forma adequada o tema, sendo primordial que as informações não venham sozinhas, mas acompanhadas de reflexões e explicações e, quando a mesma se deparar com a morte real, esta poderá viver seus sentimentos, lutos e perdas de forma saudável, podendo dar conta de suas perdas futuras e de sua própria morte.
Por outro lado, observa-se que a maioria dos colaboradores elegeu o desenho para falar da morte e do morrer, não se mostrando receptivas a construírem suas estórias, o que nos faz refletir que estórias têm começo e fim, mas algumas dessas crianças ainda aguardam o desfecho do tratamento para saber se vencerão o câncer ou se o seu desfecho será a vida ou a morte. Assim, não me parece resistência ou inabilidade para produzirem suas estórias, mas explicitam e significam o momento no qual contemplamos a vida e se preparam para esse momento, aguardando com aceitação um futuro que poderá implicar em viver ou morrer.
Os resultados obtidos evidenciam a importância do desenvolvimento de pesquisas nesta área, de modo a contribuir para que o profissional de saúde tenha abertura e habilidade a fim de responder as demandas dos temas da morte e do morrer evocadas pelas crianças. Adiar ou recusar o encontro para ouvir o que a criança tem a falar sobre a morte é negar-se ao cuidado integral, aumentando o sofrimento. É necessário que o profissional possa compreender sua própria condição de mortal e assim abrir-se ao encontro da criança que clama por significar sua vida e morte.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Jun 2019 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
-
Recebido
16 Set 2017 -
Aceito
04 Set 2018