RESUMO.
O objetivo desta pesquisa é caracterizar o convívio entre adolescentes em medida socioeducativa de internação, a partir da perspectiva dos adolescentes. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com dez adolescentes entre 16 e 18 anos em uma unidade socioeducativa de Porto Alegre. Os dados gerados nas entrevistas foram organizados a partir de uma análise temática de perspectiva êmica, isto é, geraram-se categorias nativas de acordo com a percepção dos participantes. Os adolescentes revelaram que facções criminosas eram o ponto de partida para o estabelecimento de relações amistosas ou de rivalidade; também descreveram um conjunto de normas que configuravam um pacto coletivo a favor de uma ordem institucional. Relações de amizades foram descritas, indicando a confiança e a segurança como facilitador do momento de internação. Houve ainda o relato da ocorrência de relações sexuais consentidas como resultado do longo período de internação. Os resultados indicam, sobretudo, um clima interpessoal hostil que promove o sofrimento psicológico e agrava a situação de vulnerabilidade. Ademais, a convivência entre adolescentes ociosos sem o devido acompanhamento pedagógico favorece a perpetuação de valores e interesses relacionados ao envolvimento com a criminalidade.
Palavras-chave: Adolescente em conflito com a lei; medidas socioeducativas; relações interpessoais
RESUMEN.
El objetivo de este artículo es caracterizar la convivencia entre adolescentes en medida socioeducativa de internamiento, desde la perspectiva de los adolescentes. Se realizó entrevistas semiestructuradas con diez adolescentes, entre 16 y 18 años, internos en una unidad socioeducativa en Porto Alegre. Los datos generados en las entrevistas fueron tratados a partir de un análisis temático émico, esto és, generando categorías nativas de acuerdo con las percepciones de los participantes. Los adolescentes revelaron que las facciones criminales eran el base para el establecimiento de relaciones de amistad y rivalidad. Describieron también un conjunto de normas que configuraban un pacto colectivo en favor de una orden institucional. Relaciones de amistad fueron retratadas, lo que indica la confianza y la seguridad como facilitadores del tiempo de internación. Había también el relato de relaciones sexuales consentidas en consecuencia del longo período de internación. Los resultados indican un clima interpersonal hostil que promueve el sufrimiento psicológico y empeora la situación de vulnerabilidad. Además, la convivencia entre adolescentes ociosos sin el apoyo pedagógico adecuado favorece la perpetuación de los valores e intereses relacionados con la implicación con la criminalidad.
Palabras clave: Adolescente en conflicto con la ley; medidas socioeducativas; relaciones interpersonales
ABSTRACT.
The objective of this research is to characterize the coexistence among adolescents in a juvenile detention facility from their perspective. Semi-structured interviews were conducted with ten adolescents between 16 and 18 years of age in a social-educational unit in Porto Alegre. The data generated in the interviews were organized based on thematic analysis from an emic perspective, that is, generating native categories according to the perception of the participants. The adolescents revealed that criminal factions were the starting point for the establishment of friendly or rivalry relationships. They also described a set of norms that configured a collective pact in favor of an institutional order. Friendly relationships were described, indicating trust and safety as a facilitator of the moment of deprivation of liberty. There were also reports of consensual sexual relations as a result of the long period of detention. The results mainly indicate a hostile interpersonal climate that promotes psychological suffering and aggravates the situation of vulnerability. Furthermore, the coexistence of idle adolescents without the proper pedagogical following favors the perpetuation of values and interests related to involvement in criminal behaviors.
Keywords: Juvenile delinquency; adolescent, institutionalized; interpersonal relationship
Introdução
Esta pesquisa tem como objetivo geral caracterizar o convívio entre adolescentes em medida socioeducativa (MSE) de internação, a partir da perspectiva dos adolescentes. A investigação sobre tais relações interpessoais são de fundamental importância, tendo em vista que a adolescência é a etapa do curso de vida caracterizada pelo deslocamento da importância da figura dos pais para os pares. Entre seus semelhantes, os adolescentes encontram um espaço para desenvolverem a própria identidade e serem reconhecidos socialmente (Brown & Klute, 2003). Por um lado, a vinculação com os pares pode conduzir a desfechos positivos, como em situações em que o grupo perpetua valores prossociais (Freitas, Santos, Ribeiro, Pimenta, & Rubin, 2018; Shin, Ryan, & North, 2019). Por outro lado, a necessidade de aprovação pelos pares pode favorecer o envolvimento em comportamentos de risco (Coscioni, Farias, Rosa, & Koller, 2019; Pessoa, Coimbra, Noltemeyer, & Bottrell, 2017).
Jovens de diferentes contextos partilham linguagens, sentimentos, práticas e valores comuns, mas o modo como experimentam o que os identifica como jovens é vivido conforme o grupo social, etnia, gênero, territorialidade e religião (Perondi & Sthephanou, 2015). Muito embora sejam frequentes na literatura as associações entre juventude e criminalidade, é preciso analisar tal relação pela perspectiva crítica. Nesse sentido, Zaluar (2012) elucida que o envolvimento de adolescentes com o mundo do crime é complexo e influenciado por diversos fatores, como a desesperança em relação às possibilidades de ascensão social por vias legítimas, o trabalho informal, a pobreza, a cultura que incentiva o consumo, a exposição à violência etc. Em relação ao agravamento do conflito com a lei, a partir da inserção no chamado ‘mundo do crime’, Coscioni et al. (2019) elucidam que, ao se vincularem a facções criminosas, os adolescentes passam a ter um status social, mas também estão sujeitos às regras que tal vínculo exige, como a fidelidade e a prática de homicídios em nome da facção.
No Brasil, adolescentes são responsabilizados por seus atos infracionais a partir das MSEs - que são ordenadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE (Brasil, 2006) e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei Federal nº 8.069..., 1990). O ECA baseia-se no entendimento de que os adolescentes são sujeitos de direitos e em situação peculiar do desenvolvimento, o que permitiu a superação, em nível retórico, da lógica punitiva que fundamentava o Código de Menores - lei infantojuvenil anterior. É por esta perspectiva que o ECA propõe a responsabilização de adolescentes autores de atos infracionais a partir de MSEs, que vão desde a advertência até a internação em estabelecimento de ensino. As MSEs devem se embasar em princípios sociopedagógicos, ainda que presente um caráter sancionatório pela condição de privação da liberdade (Brasil, 2006). De acordo com tais princípios, a internação deve ser o mais breve possível e aplicada apenas em casos de atos infracionais graves, ou reincidência em atos infracionais menos graves.
Como meio de promover os objetivos sociopedagógicos da MSE, o SINASE (Brasil, 2006) estabelece a comunidade socioeducativa enquanto dispositivo de gestão participativa, o que inclui os adolescentes e os funcionários dos programas de atendimento socioeducativo. A função da comunidade é operar os processos de deliberação, planejamento, execução, monitoramento, avaliação e redirecionamento das ações desenvolvidas, contemplando as singularidades dos participantes. Os dispositivos pelos quais a comunidade socioeducativa atua são múltiplos e se baseiam na solidariedade mútua. Isto é, a solidariedade enquanto ideal de construção de um ambiente favorecedor da autonomia e de competências pessoais, de modo a possibilitar a construção da identidade e a elaboração de projetos de vida.
Para Jimenez e Frasseto (2015), as MSEs, ainda que sob os princípios do ECA e do SINASE, apresentam características do poder disciplinar, uma tecnologia de poder que está presente nestas instituições desde a sua origem. Sua principal característica é a tentativa fracassada de enquadrar os adolescentes em uma expectativa daquilo que seria o ‘normal’ ou o ‘esperado’. A consequência última é que existe uma dificuldade em se fazer cumprir tais expectativas e o período de internação acaba por ser infrutífero, pois se espera algo dos adolescentes que eles não têm os recursos necessários para acessar durante o período de institucionalização. As MSEs acabam por ocupar o mesmo papel social ocupado anteriormente quando da vigência do Código de Menores: um papel higienista que criminaliza e retroalimenta a pobreza, o racismo e a miséria.
A construção do SINASE é fruto do diálogo entre estado e sociedade, calcado em princípios dos direitos humanos e tendo como foco a ampliação da proteção social e a emancipação dos adolescentes. Entretanto, os desafios na sua implementação têm sido diversos, pois o sistema opera em uma realidade que contradiz suas diretrizes. Para Moreira (2013), ainda que o SINASE surja como uma ferramenta para tentar dar conta da violação de direitos, reincidência e baixa qualidade do atendimento socioeducativo, o mesmo não é suficiente para superar as práticas institucionais já operantes, uma vez que faz uso das mesmas estratégias de poder público que discriminam e criminalizam a população pobre. Nesse sentido, Miranda et al. (2014) apontam para os desafios da socioeducação na garantia dos direitos dos adolescentes que cumprem MSEs. Para os autores, os maiores desafios que dizem respeito à promoção, proteção e defesa dos direitos dos adolescentes em conflito com a lei são o nível de vulnerabilidade social e a distância entre direitos conquistados através do ECA e do SINASE e a realidade institucional do atendimento socioeducativo. Ainda sobre os desafios daquilo que está proposto em lei, Azevedo, Amorim e Alberto (2017) apontaram para as diferentes formas de violência institucional vivenciadas por adolescentes em MSE e suas consequências subjetivas. A literatura indica, portanto, que o ambiente institucional tem impacto negativo, ainda que as leis da socioeducativas previssem um ambiente positivo e pedagógico.
A despeito da comunidade socioeducativa idealizada pelo SINASE, pesquisas indicam que as relações interpessoais nas unidades socioeducativas são marcadas pela hostilidade mútua. Uma pesquisa com professores do sistema socioeducativo identificou que as relações entre os adolescentes eram marcadas por tentativas de intimidação. Em razão das proibições relativas ao combate físico, as ameaças davam-se, sobretudo, no plano discursivo e a partir de trocas de olhares, o que foi compreendido pelos pesquisadores como uma forma de violência implícita (Silva & Ristum, 2010). Resultados semelhantes foram encontrados em uma pesquisa no Espírito Santo e Rio Grande do Sul (Coscioni, Nascimento, Rosa, & Koller, 2020), cujos participantes descreveram clima de tensão que precisava ser contido pelo objetivo coletivo de que a unidade socioeducativa se mantivesse pacífica. Além de garantir a segurança física de todos, a diminuição dos conflitos favorecia a avaliação semestral dos adolescentes, o que se associava diretamente à diminuição do tempo de privação da liberdade.
Algumas pesquisas de caráter etnográfico centraram-se, sobretudo, na compreensão do estabelecimento de normas criadas entre os adolescentes em MSE de internação. Um estudo em São Paulo (Almeida, 2013) identificou que os adolescentes apresentavam concepções negativas uns sobre os outros, o que os conduziam a desenvolver um conjunto de normas para mediar sua convivência. Entre essas normas, destacam-se a proibição durante o dia de visitação de olhar para o familiar de outro interno, levantar a camiseta, ficar com as pernas abertas, coçar as partes íntimas e se masturbar. Durante as refeições não era permitido falar alto e nem falar palavrões. Além disso, apenas os adolescentes que se mostravam mais ‘higiênicos’ poderiam ser responsáveis por auxiliar na alimentação da unidade socioeducativa. Os participantes justificavam a existência dessas normas como meios de garantir a igualdade entre todos, o que evitava conflitos. Normas semelhantes foram descritas por estudos realizados em Espírito Santo (Aragão, Margotto, & Batista, 2012; Coscioni et al., 2020) e Rio Grande do Sul (Coscioni et al., 2020), cujos participantes destacaram regras que funcionavam como limites necessários para a convivência entre os adolescentes.
Neri (2011) pesquisou sobre o modo como os adolescentes se classificavam em duas unidades socioeducativas no Rio de Janeiro. Naquela época, e desde antes, as facções criminosas cariocas (Terceiro Comando, Amigo dos Amigos e Comando Vermelho) já existiam e muitos adolescentes internos tinham vínculos com elas mesmo antes da MSE. O estudo descreveu as diferentes formas de socialização entre os membros das facções em cada uma das unidades socioeducativas. Em uma das instituições, não havia a possibilidade de os internos conviverem com adolescentes de facções rivais. Essa rivalidade estava presente nos morros do Rio de Janeiro e os adolescentes consideravam inapropriado desrespeitar o que estava instituído. Entretanto, na outra unidade socioeducativa pesquisada, os adolescentes conviviam entre si, ainda que aliados a facções rivais. Para esses adolescentes, o convívio era algo possível, na medida em que certas regras de convivência fossem respeitadas.
As pesquisas revisadas investigavam, de modo geral, a experiência de adolescentes e funcionários em unidades socioeducativas, de modo que as relações estabelecidas no local surgiram no relato dos participantes ou nas observações dos pesquisadores como um aspecto periférico do trabalho. Somente um desses estudos possuía como enfoque central a análise das relações interpessoais (Neri, 2011), mas seus achados eram baseados na perspectiva da pesquisadora em sua etnografia. O objetivo desse estudo é, portanto, caracterizar o convívio entre adolescentes em MSE de internação, a partir da perspectiva dos adolescentes.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter transversal e descritiva, realizada em uma unidade socioeducativa masculina em Porto Alegre/RS. O estabelecimento é dividido em quatro alas e os dados foram coletados com dez adolescentes, todos internos em uma mesma ala. Os participantes foram recrutados com o auxílio de uma funcionária da equipe técnica a partir dos seguintes critérios de inclusão: (1) idade entre 15 e 20 anos, evitando-se discrepâncias etárias; e (2) tempo de internação superior a seis meses, considerando este um tempo razoável para a vinculação com outras pessoas. A quantidade de participantes foi definida pela expectativa de obter a saturação dos dados com dez adolescentes (Lal, Suto, & Ungar, 2012). Os nomes são fictícios a fim de preservar a identidade dos participantes. Os adolescentes tinham entre 16 e 18 anos, cinco se autodeclararam de cor branca, dois de cor parda e três de cor preta. Todos cursavam o ensino fundamental.
Foram utilizados como instrumentos uma ficha de identificação e um roteiro de entrevista semiestruturado. O roteiro de entrevista continha 30 perguntas abertas divididas em três sessões: (1) as relações entre os adolescentes na unidade socioeducativa; (2) a relação com o par apontado pelo adolescente como o que ele lidava melhor; e (3) a relação com o par apontado pelo adolescente como o que ele lidava pior. Quando solicitados a refletir sobre a relação com os pares, informou-se aos adolescentes que poderiam incluir relações com pares com quem conviveram em outras unidades socioeducativas.
A pesquisa seguiu os critérios éticos da Resolução nº 510 (2016), do Conselho Nacional de Saúde. Primeiramente foi aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (protocolo 51975115.9.0000.5542) e também pelo presidente da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul. Os objetivos, justificativa, procedimentos e critérios éticos do estudo foram explanados aos adolescentes, que assinaram o termo de assentimento (ou consentimento, a depender da idade). Para os menores de 18 anos, o diretor da unidade socioeducativa assinou os termos de consentimento.
As entrevistas individuais ocorreram em março de 2016 com duração média de 18 minutos, variando entre 12 e 30 minutos. A instituição forneceu um ambiente privado e confortável para a aplicação da pesquisa. Com o consentimento dos adolescentes, as entrevistas foram gravadas em áudio. O entrevistador tem formação em psicologia, é do gênero masculino, tinha 26 anos e já havia entrevistado quatro adolescentes anteriormente em uma pesquisa sobre as relações entre os adolescentes e a equipe técnica de referência.
Os dados foram tratados a partir de uma análise temática (Braun & Clark, 2006) com o auxílio do software Nvivo 10. Houve primeiramente o período para familiarização com o corpus de análise. Os trechos das entrevistas que caracterizavam as relações com os pares foram codificados e agrupados por similaridade semântica. Iniciou-se um processo de proposição de temas a partir de critérios êmicos, de modo a enfatizar a perspectiva dos próprios participantes. As unidades temáticas foram então revisadas até que todos os códigos gerados fossem alocados em categorias mutuamente exclusivas. O processo de análise foi conduzido por dois juízes, que trabalharam conjuntamente e resolveram as diferenças mediante consenso. Os temas gerados foram debatidos com um terceiro juiz independente, que desempenhou o papel de supervisor. Os membros da equipe de pesquisa não possuíam interesses pessoais ou financeiros que pudessem representar conflitos de interesse.
Resultados e discussão
A análise dos dados gerou quatro temas. O primeiro diz respeito à presença das ‘facções criminosas’ de Porto Alegre na unidade socioeducativa e explicita as diferentes consequências desta presença nas relações entre os adolescentes. O segundo tema, ‘pacto de coletividade’, descreve as estratégias relatadas pelos adolescentes para o convívio na unidade socioeducativa e de que maneira eles evitavam situações conflitivas. O terceiro tema faz um contraponto com as descrições de um ambiente em iminente tensão e descreve as ‘relações de amizades’ entre alguns internos. Por fim, as ‘relações sexuais’ surgiram como o último tema, revelando a ocorrência de relações sexuais consentidas pelo longo tempo de internação.
As facções criminosas
Os adolescentes relataram que as relações entre si sofriam a influência do poder de facções, que eram o ponto de partida para o estabelecimento de relações de amizade e inimizade na unidade socioeducativa. A vinculação a esses grupos em geral se dava antes da MSE, de modo que a internação era marcada pela perpetuação dos valores pactuados anteriormente. O pertencimento a uma facção parecia indicar a possibilidade de amparo e reconhecimento perante os pares. Mesmo os adolescentes que não possuíam ligações com facções por vezes alegavam pertencimento a algum grupo como meio de serem reconhecidos.
Segundo o relato dos participantes, o poder das facções chegava ao ponto de influenciar a logística das alas da unidade, uma vez que os agentes socioeducativos priorizavam dividir os adolescentes conforme o pertencimento a facções. Esta era uma forma de organização considerada efetiva no controle de conflitos e também foi observada em pesquisas em outros estados (Aragão et al., 2012; Neri, 2011; Scisleski, Bruno, Galeano, Santos, & Silva, 2015). Esse critério de separação não está de acordo com os estipulados pelo ECA (Lei Federal nº 8.069..., 1990), o qual determina a “[...] rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração” (Art. nº 123). Além de contrário à lei, este modo de organização parecia efetivar o controle das facções dentro da unidade socioeducativa, bem como favorecer a pactuação de valores contrários aos previstos para a MSE.
Os adolescentes classificaram as relações com os pares de mesma facção como de apoio mútuo, como fica claro no relato de Roberto (17 anos): “Com os do meu embolamento [facção criminosa] é tudinho tranquilo. Peguemo visita junto, sentemo junto, conversemo. Um apóia o outro aqui dentro. Ninguém deixa o embolamento contra vim pegar um. Nós ajudemo o outro, que nem uma família na rua”. O trecho destacado indica que a vinculação com a facção gerava sentimento de pertença afetivo, tendo em vista que os pares de mesma facção foram comparados aos membros de uma família. O relato evidencia também um elo de proteção, uma vez que membros de mesma facção se apoiavam em momentos de briga. Em outros relatos, participantes revelaram que os adolescentes se ajudavam quando um não recebia visita e, por consequência, não tinha materiais de higiene pessoal e ‘mascação’ (comidas apelidadas pelos adolescentes, tais como bolacha recheada, salgadinho etc.).
Pode se perceber que, a partir do vínculo com as facções criminosas, os adolescentes indicavam ter vantagens dentro da instituição em relação aos que não tinham tal vínculo anterior. Segundo Coscioni et al. (2019), a facção criminosa representa para os adolescentes não apenas retornos materiais, mas também simbólicos, uma vez que está relacionada à proteção e ao fortalecimento da sua identidade pessoal. Dessa forma, deve-se questionar o papel da MSE nesse contexto, uma vez que ela parece fomentar tal referência, com possíveis reflexos na vida dos adolescentes após a internação. A crítica pode também ser estendida às políticas sociais preventivas que deveriam ter atuado antes do envolvimento com a criminalidade. Enquanto o estado revezar entre o papel de omissão e punição, o ‘mundo do crime’ continuará a acolher muitos jovens desamparados pela miséria e marginalização.
A convivência com adolescentes de facções rivais, por outro lado, foi caracterizada como hostil, principalmente entre os que já tinham desavenças anteriores à MSE. No relato de um dos adolescentes entrevistados, é possível perceber as dificuldades da convivência entre adolescentes de facções rivais, os denominados ‘contras’:
Os caras convivem com os contras, mais do que os cara que tu não te dá lá na rua. Aqui eu não me dou com o cara e sou obrigado a conviver com ele, na sala de aula, no curso, no corredor, no pátio. Não é muito bom, né? Não gosto de ficar perto de uma pessoa que eu não gosto (Lucas, 17 anos).
A tensão parecia ocorrer nas trocas de olhares, o que pode ser entendido como uma forma de violência implícita (Silva & Ristum, 2010). Os adolescentes optavam por manter distância dos pares de facções rivais, o que refletia a lógica fora da unidade socioeducativa: “Não adianta a minha facção não se dá com o cara lá e eu dar risadinha com o cara. Quando eu sair pra rua, os caras da minha facção já vão ficar meio de cara virada pra mim também” (Roberto, 17 anos). A rivalidade chegava ao ponto de os adolescentes evitarem a vinculação, tendo em vista que futuramente poderiam se enfrentar em um conflito armado:
Ah se eu encontrasse com eles e tivesse armados, eles viessem contra mim, eu ia matar eles, né, seu? Não ia dar mole pra eles […] Aqueles meninos, eles me avisaram ‘faz a tua aí que se pexar na rua nós vai ver no que dá’ né seu? Aí ia fazer a mãe deles chorar antes que a minha né seu? (José, 16 anos).
A internação não somente favorece a perpetuação das relações entre adolescentes de mesma facção, como também acentua a exposição à violência e o risco de conflitos ulteriores com a eventual morte nas denominadas ‘guerras do tráfico’. A MSE, assim, parece atuar mais como um fator de risco que um fator de proteção ao comportamento infracional. Tal realidade é contraditória à luz dos princípios estabelecidos pelo ECA e SINASE, o que corrobora o entendimento de que o sistema socioeducativo brasileiro possui fortes características do poder disciplinar e higienismo social (Jimenez & Frasseto, 2015).
A presença das facções criminosas parece inserir sua própria lógica e dificulta o cumprimento dos objetivos previstos para a MSE. A filiação de adolescentes em MSE a facções está associada à possibilidade de acessar bens de consumo e a uma espécie de vínculo que situa o adolescente na relação com o mundo que o cerca, na sua comunidade e diante dos seus pares (Coscioni et al., 2019; Pessoa et al., 2017). No contexto de execução da MSE, as facções criminosas parecem criar uma cisão entre os internos, de modo a propiciar um clima a partir do qual a ‘vida do crime’ é investida (Neri, 2011). A própria organização da unidade socioeducativa investigada favorecia o fortalecimento das organizações criminosas, tendo em vista a alocação dos adolescentes em dormitórios conforme o pertencimento às facções.
O sistema socioeducativo gera, portanto, um paradoxo, tendo em vista que a internação propicia maior vinculação com pares infratores. Um adolescente pode adentrar à unidade sem filiação a facções, mas sair com vínculos aprofundados. A MSE torna-se o que popularmente é conhecido como ‘escola do crime’, uma vez que o período de internação se configura como um período de aprendizagem e vinculação com o ‘mundo do crime’.
O pacto de coletividade
Os adolescentes consideraram que a principal regra para o convívio entre eles era o ‘respeito’ e a ‘humildade’. O que os adolescentes entendiam por respeito, todavia, não se relaciona a uma consideração positiva pelo outro, mas muito mais uma forma de se relacionar evitando-se contatos ‘desnecessários’. Tendo em vista que diversos adolescentes possuíam rivalidades entre si, a noção de respeito era calcada na tentativa de resguardar os limites de uma convivência tolerável, de modo a evitar conflitos que poderiam prejudicar a reavaliação da MSE e consequente aumento do tempo de internação. Nesse sentido, o respeito referido pelos adolescentes representa muito mais uma consideração por si que pelo outro.
A humildade era entendida como uma postura ideal diante do grupo, caracterizada como a ausência de sentimentos de inveja diante dos outros, bem como uma postura de aceitação perante as regras. Segundo os adolescentes, tal comportamento era um meio de evitar conflitos, o que, por consequência, aumentava a possibilidade de melhor reavaliação da MSE. Tanto o respeito quanto a humildade mencionada pelos participantes indicam um pensamento no qual há a ideia de um coletivo com direitos e deveres iguais, o que também é observado em pesquisas em outros estados (Almeida, 2013; Aragão et al., 2012; Coscioni et al., 2020; Neri, 2011). Nesse sentido, algumas características pessoais eram indesejadas, tais como a arrogância, a prepotência e a agressividade: “Aqui os cara comem a mesma comida, vê o mesmo filme. Eles são igual, não tem nada de diferente” (Roberto, 16 anos).
Os participantes relataram que alguns adolescentes nos períodos iniciais da internação apresentam dificuldades em entender o respeito entre pares, o que era entendido pelos participantes como ‘infantilidade’. Situação semelhante foi encontrada em um estudo no Rio de Janeiro (Neri, 2011) que descreveu a existência de uma categoria específica utilizada pelos adolescentes: os ‘comédias’. Esses adolescentes eram desrespeitosos com quem já estava há mais tempo internado e impediam a tranquilidade dos alojamentos ao provocarem os demais internos. Tanto os adolescentes da pesquisa citada, quanto os adolescentes entrevistados na pesquisa aqui relatada entendiam que as brigas eram indesejáveis pelos adolescentes em MSE há mais tempo. Diante de tal situação, os adolescentes mais velhos ‘precisavam impor respeito’ por meio de regras criadas por eles. Nas palavras de Diogo (16 anos), participante da pesquisa aqui relatada, é possível entender a diferenciação feita pelos adolescentes daqueles que estavam chegando em relação aos que estavam a mais tempo na unidade socioeducativa.
Tem uns que tão chegando agora e daí querem fazer besteira, brigar, xingar. Eles nem sabem que o cara tá aí já faz tempo. Esses daí ainda não aprenderam nada na rua, caíram aqui e não sabem de nada. Mas o tranquilo é que os mais velhos tão dando respeito. Ter respeito com os seus, com as dona, ter o convívio ali com todo mundo, pegar nada de ninguém, mexer em nada de ninguém (Diogo, 16 anos).
Foram relatadas estratégias para que conflitos não ocorressem, uma vez que isso poderia gerar represálias que prejudicariam a reavaliação da MSE e consequente aumento do tempo da internação. Os adolescentes entendiam, assim, que as desavenças anteriores ao cumprimento da MSE deveriam ser resolvidas ‘fora da unidade’. Os achados se assemelham a estudos anteriores (Neri, 2011; Silva & Ristum, 2010), os quais relataram a ocorrência de ameaças, sobretudo, no plano discursivo. A presença do confronto apenas em nível velado evitava complicações com a direção da unidade socioeducativa e com o Poder Judiciário.
Se ele tivesse tomando banho, eu esperava um pouco pra mim entrar, porque era uma atrás da outra. Era uma sensação como se fosse um bullying, daí eu evitava. Eu só tinha receio de que chegasse as vias de fato, mas graças a Deus ele seguiu o caminho dele, antes de chega as vias de fato e eu atrapalha minha medida (Bernardo, 18 anos).
Por mais que evitada, os participantes relataram a ocorrência de violência física, cujo desfecho gerava consequências aos adolescentes envolvidos e para a ala como um todo.
Aqui nós só perdemos brigando, em vez de nós só ter pra ganhar dos monitor [agentes socioeducativos]. Era pra ter festa de carnaval, aí as gurias do CASEF [unidade destinada às adolescentes do sexo feminino] ia descer, mas aí por causa das nossas brigas eles cortaram. Cortaram festa, cortaram aula de capoeira, perdemos o pátio, só perdemos (Jeferson, 17 anos).
O relato do adolescente traz uma visão das sanções como algo que deveria ser evitado, à medida em que servia como punição e tinha consequências que levavam o interno a permanecer mais tempo na unidade socioeducativa. As suspensões de atividades de lazer como meio de controle é uma prática comum no sistema socioeducativo (Lazaretti-da-Conceição & Cammarosano-Onofre, 2013), sobretudo embasada em uma lógica coercitiva que desconsidera as práticas de lazer como direitos legítimos de adolescentes privados de liberdade. Situação semelhante foi observada em um estudo conduzido no Rio Grande do Sul e Espírito Santo (Coscioni et al., 2020), cujos participantes revelaram que o convívio entre adolescentes de diferentes facções criminosas ocorria pacificamente, pois todos tentavam evitar punições que poderiam comprometer todos os adolescentes nas unidades.
Este pensamento coletivo pode ser visto, à primeira vista, como algo positivo, tendo em vista que revela uma forma de respeito entre os adolescentes. Todavia, à semelhança do primeiro tema gerado, uma análise crítica de tal coletividade revela a naturalização da violência e das normas sociais pactuadas entre as facções criminosas. O objetivo de manter a paz na unidade socioeducativa atendia apenas ao requisito de antecipar o fim do tempo de internação. Mantinham-se os padrões de violência implícita, bem como intenções futuras de concretização de conflitos que não poderiam ser prontamente efetivados.
Apesar da noção de coletividade expressa no discurso dos adolescentes, existia na unidade socioeducativa uma espécie de disputa por poder entre os internos, onde uns eram mais respeitados que outros. Na percepção dos adolescentes, ter respeito estava diretamente ligado também à posse de determinados bens materiais, como camiseta de time, tênis, boné e, até mesmo, drogas. Os participantes relataram ainda uma espécie de escambo desses itens entre os internos, a partir do qual se estabelecia uma forma poder entre eles.
Por exemplo, o adolescente A briga com adolescente B. Entra droga pro adolescente A. Pro adolescente B não entra droga e ele não pega visita. O adolescente A talvez pegue de vez em quando (visita). Acontece que o adolescente C, D, E, F, G, todos vão pegar o adolescente B. TODOS vão cobra, pois entra droga pro adolescente A. Então vira uma soberania essa questão de ter droga, é complicado (Alexandre, 18 anos).
A fala de Alexandre indica que havia na unidade socioeducativa um interesse pelo poder, relacionado a quem deveria ser melhor considerado e mais protegido diante do coletivo. Diferentes pesquisas em unidades socioeducativas do país relataram a presença de hierarquia entre os internos, que funcionava de modo a gerar desigualdades em suas relações (Almeida, 2013; Aragão et al., 2012; Neri, 2011; Silva & Ristum, 2010). Ademais, é preciso destacar a naturalidade com que o adolescente revela a entrada de drogas na instituição, de modo a enquadrar o período de internação não somente como um fator de risco para o comportamento infrator, mas também ao consumo de substâncias psicotrópicas.
O respeito era entendido como algo obrigatório, porém em disputa. As hierarquias criadas entre os adolescentes refletiam a política de aprisionamento, na qual o outro é visto como inimigo. Como consequência, se faziam necessários mecanismos de proteção contra tal perigo, o que derivou este ‘pacto de coletividade’. Almeida (2013) alega que essas formas de regulação entre os internos são uma prática recorrente na organização interna de instituições prisionais, sendo caracterizadas por exigências entre os adolescentes e por haver um sentimento comum de legitimidade. Tais regras parecem ter sido criadas pelos próprios internos como forma de controlar a violência que o estado era incapaz de conter, o que novamente evoca a negligência estatal perante tais instituições.
A coletividade expressa pelos adolescentes não parece calcada em uma noção de comunidade solidária, uma vez que hierarquias existiam e geravam desigualdades. A coletividade das unidades socioeducativas existe, sobretudo, como forma de evitar um possível caos que geraria dificuldades a todos. Uma unidade socioeducativa tomada pelo conflito pode significar más reavaliações com consequente aumento do tempo de internação. Em nome do bem de ‘todos’, acordos mútuos devem existir.
Relações de amizade
Os adolescentes descreveram um tipo de relação de amizade, confiança mútua e intimidade com os internos com quem dividiam o dormitório. Muitos dos casos de amizade ocorriam também entre adolescentes conhecidos antes da MSE. A amizade que se formava era caracterizada pela facilidade de diálogo, sendo os principais assuntos: o cotidiano da unidade socioeducativa, o território onde viviam, os acontecimentos anteriores de suas vidas, festas, mulheres e drogas. O par foi considerado alguém que facilitava o cumprimento da MSE, uma vez que se sentiam mais à vontade em sua presença.
Eu acho que ele se sentia bem [o par], mas era uma balança entendeu? Era um momento de felicidade e um momento de tristeza. Eu me sentia feliz em um momento conversando com ele. Nós esquecia do crime, esquecia de tudo isso. Mas sentia triste quando eu acordava pra a realidade (Bernardo, 18 anos).
A existência recorrente de relatos como o de Bernardo amplia a compreensão em torno das relações de adolescentes em MSE, caracterizadas em estudos anteriores a partir de processos de hostilidade mútua (Coscioni et al., 2020; Silva & Ristum, 2010). Os participantes revelaram, ao contrário, um conjunto de relações de ‘irmandades’, favorecedoras de um processo de amadurecimento e impulsionadoras de aspirações distantes da criminalidade. Para Jorge (17 anos), este tipo de relação o auxiliou a pensar alternativas para outra vida possível, na qual a ‘vida do crime’ deixou de ser a primeira opção.
Antes eu era bem diferente, eu não respeitava ninguém, não tava nem aí. Daí ele [o par] foi me dando conselho que era pra mim parar, porque se não minha mãe ia ficar mal também. Surgiu um efeito que foi a gente se dá aqui bem. Cada vez que eu vou meio querendo me atrapalhar, ele fala ‘não, mano, não se atrapalha que não vale a pena, tem que ir embora, tua mãe precisa de ti’ (Jorge, 17 anos).
Pode-se perceber pelos relatos dos adolescentes que as relações com seus pares amigos fomentavam uma relação direta e horizontal, na qual existia uma espécie de confiança mútua. Tal sinceridade parecia possibilitar uma troca em que não havia a necessidade de afirmação de conteúdos compartilhados coletivamente. A convivência diária no dormitório possibilitava um espaço para se questionar acerca de suas realidades e expor insegurança quanto ao futuro. No coletivo, as expressões de dúvidas eram evitadas e muitos sustentavam suas relações mediadas pelas facções. É no âmbito de relações mais íntimas que os adolescentes se permitiam desvelar conteúdos divergentes ao coletivo. Se a intenção de romper com o crime era concebida como fraqueza e, por consequência, apenas compartilhada com os pares mais íntimos, este tema também corrobora o conteúdo dos anteriores. Isto é, a internação desfavorece a perpetuação de valores distintos à lógica do ‘mundo do crime’ e, portanto, pode ser compreendida como um fator de risco ao comportamento infrator.
Os participantes indicaram também a existência de amizades que os influenciavam negativamente, acompanhando-os em atitudes que geravam problemas com os agentes socioeducativos. Essa relação gerava momentos considerados de divertimento e o par parecia ser aquele com quem o adolescente se identificava, apontando semelhanças entre eles. Alguns pares influenciavam o adolescente a brigar e consumir juntos drogas ilícitas dentro do dormitório. Esses mesmos adolescentes alegaram terem aprendido com o par sobre o crime, além de aprendizados pragmáticos sobre as regras da unidade socioeducativa. Eles também compartilhavam planos para no futuro seguir na ‘vida do crime’ e dividiam momentos marcados pela perpetuação de atividades ilícitas, mesmo dentro da unidade socioeducativa.
Uma vez nós tava no mesmo dormitório e tinha entrado uma maconha pros guri. E aí nós queria fumar e não tinha como acender. Aí nós pedimos vários mp3 emprestado né seu? Explodimos a mp3 pra poder pegar fogo pra conseguir fumar uma maconha (risos) Peguemo e rasguemo a bateria e fizemos os três pegar fogo e aí nós fumemos e ficou viajando. Depois teve que jogar fora né seu? Tinha que falar com os guris que nós quebremo, eles ficaram mordido, mas não dá mais pra voltar né seu? Já era, quebramo, só apoiamo eles depois (José, 16 anos).
O trecho acima revela novamente diferentes aspectos relacionados à valorização do comportamento infrator entre os adolescentes, desde a entrada de drogas na instituição ao entendimento de que violar normas é algo divertido. Nesse sentido, cabe ressaltar a importância que os pares ocupam na construção de valores e da identidade de adolescentes (Brown & Klute, 2003). Ao reunir adolescentes com valores comuns, é esperado que tais valores sejam perpetuados e reforçados. O que se depreende então é que a MSE parece mais efetiva na perpetuação dos valores entre os pares envolvidos com o mundo do crime que de novos valores em conformidade com a comunidade socioeducativa pretendida pelo SINASE.
Relações sexuais
Foi relatada a ocorrência de relações sexuais consentidas entre os internos. Esse tema foi trazido por um adolescente entrevistado, o qual alegou que a existência de um adolescente interno homossexual abria possibilidade para que situações como essa ocorressem. Para o entrevistado, o principal motivo era o longo tempo de internação, de modo que alguns adolescentes viam no adolescente homossexual alguém para satisfazer seus desejos sexuais. O direito sexual diz respeito à autonomia da pessoa em relação a assuntos de seu corpo, o direito à igualdade e a integralidade corporal e o direito à saúde (Mattar, 2008). Muito embora o ECA e o SINASE façam menções sobre o direito à visita íntima aos adolescentes em MSE de internação, eles são omissos quanto a como lidar com o exercício da sexualidade entre os internos. Ademais, a própria ocorrência das visitas íntimas muito recorrentemente não acontece em consonância com o previsto por lei (Mattar, 2008; Peres et al., 2002). No estabelecimento onde a pesquisa ocorreu, era permitida a visita de namoradas, mas não havia um espaço para a ocorrência de visitas íntimas.
O participante relatou que as relações sexuais ocorriam em sigilo, sem uso de preservativo e que os adolescentes homossexuais sofriam preconceito - eram evitados e alvos de brincadeiras desrespeitosas. Em uma pesquisa realizada na região Nordeste (Mattar, 2008), situação semelhante ocorria: havia também um adolescente assumidamente homossexual com quem os outros adolescentes se relacionavam sexualmente sem que os funcionários tivessem conhecimento. Um estudo realizado em São Paulo (Peres et al., 2002) também identificou a ocorrência de relações sexuais dentro da unidade socioeducativa, ressaltando a importância do uso de preservativo a fim de evitar o contágio por infecções sexualmente transmissíveis.
A MSE deve possuir sobretudo um caráter educativo, de modo que falar sobre a saúde sexual e as relações sexuais que ocorrem entre os internos se faz fundamental a fim de se evitar violências e agravos no quadro de saúde. Cabe maior investigação sobre a ocorrência de tais encontros nas unidades socioeducativas de Porto Alegre e demais regiões do Brasil. Grupos de trabalhos, pesquisas e intervenções devem ser pensados e executados a fim de se debater o exercício da sexualidade durante o período de internação. É importante também alertar sobre o uso de preservativos e outros cuidados, principalmente por se considerar Porto Alegre a capital brasileira com maior índice de contágio de HIV - com mais que o dobro das taxas do que o próprio estado e quase o triplo das taxas do país (Dartora, Anflor, & Silveira, 2017). Além disso, a saúde sexual é um tema fundamental a ser discutido no sistema socioeducativo, no intuito de educar sobre relações sexuais, questões de gênero e orientação sexual, para que a internação não seja um local de opressões e silenciamentos aos adolescentes de orientações sexuais não heterossexuais.
Considerações finais
Esta pesquisa teve como objetivo caracterizar o convívio entre adolescentes em MSE de internação, a partir da perspectiva dos próprios adolescentes. Para tanto, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com dez adolescentes de uma unidade socioeducativa de Porto Alegre. Pesquisas futuras com funcionários e familiares podem contribuir para compreender tais relações a partir da perspectiva dos adultos. Estudos longitudinais podem elucidar como tais relações se estabelecem no transcurso da MSE.
As entrevistas realizadas foram tratadas a partir de uma análise temática que gerou quatro temas de caráter êmico, a saber: (1) as facções criminosas, (2) o pacto de coletividade, (3) relações de amizade e (4) relações sexuais. O tema das facções criminosas diz respeito ao modo como os internos se organizavam dentro da unidade socioeducativa. Muitos adolescentes possuíam vínculo com alguma facção criminosa e, na unidade socioeducativa, tais laços tendiam a se intensificar pelo convívio diário. O pacto da coletividade aborda as normas que os adolescentes estabeleceram para que as brigas motivadas por acontecimentos do período anterior à internação não fossem cotidianas. A existência de regras de comportamento e uma hierarquia sustentada pelos próprios internos eram fatores que favoreciam uma ideia de coletividade entre os internos. A amizade é um tema que se destaca entre os demais achados na literatura nacional, uma vez que descreve a ocorrência de relações positivas entre os pares. Tais relações aparecem como fonte de apoio social, possibilitando que o adolescente consiga se projetar no futuro a partir do projeto de vida de seu amigo. Por outro lado, houve também o relato de amizades que favoreciam a perpetuação das relações com o mundo do crime. Por fim, o último tema revela a ocorrência de relações sexuais entre os adolescentes de modo consentido, em sigilo e sem o uso de preservativos.
Os resultados revelam, portanto, que as relações cotidianas estabelecidas pelos adolescentes durante a internação parecem desfavorecer o objetivo da MSE em promover novas possibilidades de vida distantes da criminalidade. Ao submeter adolescentes que possuem em comum valores pactuados com o ‘mundo do crime’, a MSE favorece a perpetuação da conduta infracional a partir do que é popularmente conhecido como ‘escola do crime’. A prevalência de um ambiente interpessoal hostil e marcado pela violência implícita e explícita desfavorece também o objetivo em promover o desenvolvimento, de modo que a internação se torna sobretudo um período marcado pelo sofrimento. A comunidade solidária idealizada pelo SINASE é ainda uma realidade distante, substituída pelos valores das facções criminosas que se fortalecem a partir da convivência ininterrupta de adolescentes ociosos em uma instituição com recursos humanos e materiais precarizados.
Para se operar a MSE, a partir do ECA e SINASE, é necessária uma postura crítica e atenta aos contextos em que estão inseridos os adolescentes, não somente durante, mas também antes e depois da internação. Enquanto a responsabilidade pelo comportamento infrator for atribuída somente ao indivíduo, não teremos atingido a responsabilidade da sociedade e do estado, prevista pelo SINASE, frente aos adolescentes em conflito com a lei. É preciso que as políticas sociais preventivas em consonância com o sistema socioeducativo efetivem um verdadeiro sistema de garantia de direitos, sistema este que seja sensível ao contexto de miséria e marginalização que funciona como risco ao envolvimento com a criminalidade. Somente assim a MSE pode avançar de uma lógica disciplinar e higienista a uma lógica de fato socioeducativa. Enquanto a internação de adolescentes se mantiver como fator de risco à criminalidade, o adjetivo ‘socioeducativo’ aderido à medida deve ser entendido apenas como mudança retórica.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Ago 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
13 Jun 2019 -
Aceito
12 Jan 2021