Resumos
Este artigo trata da produção histórico-política dos corpos dos indivíduos nas sociedades ocidentais modernas, perspectiva mais próxima das ciências sociais e humanas, que é diversa e crítica da clássica abordagem anatômico-fisiológica predominante no domínio das ciências naturais e da medicina. Esta reflexão, apoiada no pensamento de Michel Foucault, busca desnaturalizar uma abordagem do corpo centrada em seus elementos biológicos e anatomofisiológicos, para problematizar a sua construção em termos sociais, econômicos e políticos, além de estéticos, ao longo da história.
história do corpo; biopoder; Michel Foucault
Este artículo trata de la producción histórico-política de los cuerpos de los individuos en las sociedades occidentales modernas, perspectiva más próxima de las ciencias sociales y humanas, que es diversa y crítica del clásico abordaje anatómico-fisiológico predominante en el dominio de las ciencias naturales y de la medicina. Esta reflexión, apoyada en el pensamiento de Michel Foucault, busca desnaturalizar un abordaje del cuerpo centrado en sus elementos biológicos y anatomofisiológicos, para problematizar su construcción en términos sociales, económicos y políticos, además de estéticos, a lo largo de la historia.
historia del cuerpo; biopoder; Michel Foucault
The bodies' historical and political production in individuals in modern Western societies is provided. Whereas above perspective is closer to the social and human sciences, it is different and critical to the anatomical and physiological approach predominant in the natural sciences and in medicine. Current analysis, based on Michel Foucault, denaturalizes an approach of the body centered on biological and anatomical-physiological elements and problematizes its construction in social, economical and political terms, besides aesthetical ones, throughout History.
History of the body; bio-power; Michel Foucault
ARTIGOS
O corpo problematizado de uma perspectiva histórico-política
The problematized body from a political-historical perspective
El cuerpo problematizado de una perspectiva histórico-política
Kleber Prado FilhoI; Sabrina TrisottoII
IDoutor em Sociologia. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina-UFSC
IIPsicóloga e Mestre em Educação
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Kleber Prado Filho. Caixa Postal 5068, Campus Universitário, CEP 88040-970, Florianópolis-SC. E-mail: kpradpo@brturbo.com.br
RESUMO
Este artigo trata da produção histórico-política dos corpos dos indivíduos nas sociedades ocidentais modernas, perspectiva mais próxima das ciências sociais e humanas, que é diversa e crítica da clássica abordagem anatômico-fisiológica predominante no domínio das ciências naturais e da medicina. Esta reflexão, apoiada no pensamento de Michel Foucault, busca desnaturalizar uma abordagem do corpo centrada em seus elementos biológicos e anatomofisiológicos, para problematizar a sua construção em termos sociais, econômicos e políticos, além de estéticos, ao longo da história.
Palavras-chave: história do corpo, biopoder, Michel Foucault.
ABSTRACT
The bodies' historical and political production in individuals in modern Western societies is provided. Whereas above perspective is closer to the social and human sciences, it is different and critical to the anatomical and physiological approach predominant in the natural sciences and in medicine. Current analysis, based on Michel Foucault, denaturalizes an approach of the body centered on biological and anatomical-physiological elements and problematizes its construction in social, economical and political terms, besides aesthetical ones, throughout History.
Key words: History of the body; bio-power; Michel Foucault.
RESUMEN
Este artículo trata de la producción histórico-política de los cuerpos de los individuos en las sociedades occidentales modernas, perspectiva más próxima de las ciencias sociales y humanas, que es diversa y crítica del clásico abordaje anatómico-fisiológico predominante en el dominio de las ciencias naturales y de la medicina. Esta reflexión, apoyada en el pensamiento de Michel Foucault, busca desnaturalizar un abordaje del cuerpo centrado en sus elementos biológicos y anatomofisiológicos, para problematizar su construcción en términos sociales, económicos y políticos, además de estéticos, a lo largo de la historia.
Palabras-clave: historia del cuerpo, biopoder, Michel Foucault.
O corpo tem sido tradicionalmente colocado em nossa cultura como objeto da biologia e da medicina, reconhecidas entre nós como ciências especializadas no conhecimento e na intervenção sobre aquilo que ele apresenta de "natural" sua forma, seu funcionamento, seus movimentos entendidas, portanto, como ciências autorizadas a atravessar o seu volume em busca da sua verdade empírica, objetiva, natural e por que não? - essencial, substancial.
Não obstante, o corpo não é de monopólio destes domínios do conhecimento, mas tem sido, ao longo da história, e para muito além da sua aparente naturalidade, objeto de muito saberes: nos campos da economia, da educação, das ciências políticas, da sociologia, da psicologia, das ciências humanas em geral, e também tem sido alvo de práticas diversas: de moralização, de normalização, de modelização, de "capacitação", de "treinamento" - enfim, ele tem sido objeto de múltiplas técnicas de construção. A modernidade desenvolveu todo um conhecimento e uma sofisticada tecnologia de produção de corpos, e pensar o corpo de uma perspectiva histórico-política é tomá-lo não naquilo que ele teria de "natural", mas ao contrário tomá-lo exatamente na sua produção.
O corpo objeto tradicional das modernas ciências médicas é o corpo biológico, natural, sede de processos fisiológicos, solo firme, positivo, onde se instala a doença; entretanto não é deste corpo que se tratará aqui, senão da sua produção histórica em sentido amplo: em termos sociais, políticos e econômicos, apontando para uma certa estetização da qual ele tem sido alvo contemporaneamente.
Será utilizado neste percurso o apoio teórico de Michel Foucault pela sua importância para as ciências humanas, mas também para as ciências médicas e para a biologia, considerando-se a diversidade e riqueza dos seus estudos históricos relativos a esses campos, entre os quais se destacam "O nascimento de clínica", original de 1963, "O nascimento da medicina social", palestra na UERJ em 1974, além de "História da loucura" (1961/1989), tese de doutorado, de 1961, dialogando com a psiquiatria, e "As palavras e as coisas" (1966/1987), publicado originalmente em 1966, que trata, entre outros temas, do nascimento da biologia e das ciências humanas. Também será utilizada nesta reflexão a abordagem disciplinar dos corpos levada a efeito em "Vigiar e punir" (1975, 1987), livro de 1975, onde Foucault traça uma genealogia dos indivíduos modernos que centra o foco exatamente na produção dos seus corpos pela norma e para o capital.
Abordar o corpo de tal perspectiva histórico-política implica inicialmente não apenas desnaturalizar em sentido amplo esta concepção habitual quanto a uma suposta "natureza do corpo", desmistificação e desconstrução deste "corpo natural", objeto natural das ciências médicas, mas também apontar que o ponto de vista biológico e anatomofisiológico encontra-se instalado e "naturalizado" nestes domínios de conhecimento, como paradigma a ser quebrado. O corpo, este volume concreto, não tem nada de natural em rigor, não existe "corpo natural", espontâneo e livre, "pura potência", anterior a qualquer trabalho da cultura ele é sempre resultado de investimentos de poder e de enunciações por saberes: sua própria "natureza" é construída. É bom lembrar que a idéia de "natureza" o conceito histórico de "natureza" surge como problema para a filosofia do século XVII e permanece ainda hoje na episteme, tendo assumido, no entanto, características diversas no decorrer da modernidade. Há muito que a noção de "natureza" se descolou das suas supostas bases objetivas, concretas e materiais "mundo natural", "natureza verde" para contaminar todo o pensamento moderno, multiplicada nas suposições de uma "natureza humana", "natureza política", "natureza econômica", "natureza social", "natureza psicológica", "natureza criminosa", "natureza antinatural": os "loucos", os "serial-killers", os "anormais" e as diversas formas de "desvio" de uma suposta natureza que seria normal.
Então, não se trata aqui da naturalidade, mas da historicidade dos corpos, no plural, porque, percorrendo a história, nota-se a circulação de toda uma diversidade de noções e de modalidades concretas de corpos diferentes regimes e modos de produção de corpos que coexistem, rivalizam, se sucedem e se transformam ao longo do tempo.
Retornando ao problema da naturalização do corpo nos domínios do conhecimento médico, vale apontar que esta concepção naturalizada e naturalizante é, ela mesma, construída ao longo da história da formação dos saberes e práticas médicas. Tomando-se a medicina como saber e prática milenar, nota-se que se trata, na verdade, de vários corpos e de várias corporeidades, correlativos de "medicinas" diversas ao longo da história. O corpo posto como objeto para o saber médico ao tempo de Hipócrates não é o mesmo corpo dos "fluidos" e "vapores" que se coloca para a medicina medieval, que, por sua vez, não é o mesmo da medicina moderna, na qual predomina a concepção biológica e anatomofisiológica. É importante notar que, colada a um "corpo concreto", histórico objeto e resultado de práticas concretas encontra-se certa "corporeidade", que é da ordem dos dispositivos, dos enunciados e das normas, implicando jogos de enunciação, de normalização e de subjetivação, nos quais não apenas o corpo, mas a própria "alma", a subjetividade dos sujeitos, é produzida.
Um profissional médico, como sujeito histórico, só tem acesso a certo "corpo" entendido como objeto das suas intervenções e da produção de saber que decorre da sua prática a partir de um conjunto histórico de conceitos e enunciados coerentes a respeito deste volume sobre o qual trabalha, ou, da noção de corporeidade que predomina neste tempo. Também os sujeitos comuns, objetos dos saberes e práticas médicas, relacionam-se com seus próprios corpos e com outros corpos a partir de uma corporeidade histórica à qual estão eles mesmos assujeitados. Os corpos modernos encontram-se presos a uma normatividade sustentada em argumentos científicos uma corporeidade de ordem biológica, anatomofisiológica e sexual, além de estarem sujeitos ainda à norma relativa à "sanidade mental".
Por outro lado, mesmo dentro da modernidade, que não é linear nem homogênea, podem-se observar desníveis de abordagem: a medicina atual muito tecnológica concebe o corpo e com ele se relaciona de forma muito diferente de como procedia 50 ou 100 anos atrás. Só para exemplificar: as preocupações dietéticas e estéticas, que ganham ênfase nas práticas e saberes médicos contemporâneos, dizem respeito a um corpo não desligado de uma corporeidade completamente diferente daquele que era objeto de intervenção médica na primeira metade do século XX. Vale lembrar que a cirurgia estética intervenção voltada a fins puramente estéticos surge nos Estados Unidos na passagem dos anos 1950 para 1960, e que se acentua no final do século XX toda uma preocupação em torno de regulação dietética do corpo visando a mais saúde, mais vida e longevidade, mas também mais beleza, mais juventude, mais prazer e mais intensidade.
Assim como a medicina tem sua história, os corpos também têm a sua, e no cruzamento destas duas histórias encontram-se e por vezes rivalizam diferentes práticas e concepções correlativas de diferentes corpos e corporeidades. Deve-se notar que a medicina do início do século XX trabalhava com uma corporeidade mais integrada e aplicava sobre os corpos um conjunto de práticas igualmente mais integradas do que as da medicina contemporânea, que trabalha com uma corporeidade bastante fragmentada e fragmentária. Não se trata de dizer que a medicina de 100 anos atrás fosse melhor do que a atual, tampouco de simplesmente supor um "progresso" da especialização médica nesta explosão das especialidades da medicina contemporânea. O século XX e esta passagem ao XXI nos mostram que, à medida que o campo do saber médico se diversifica, fragmenta e superespecializa, o corpo, que é objeto correlato de suas intervenções concretas e das suas práticas históricas de produção de conhecimento, fragmenta-se a ponto de perguntarmos hoje por sua "unidade", uma vez que este é um enunciado básico ligado a certa "independência" homeostática e fisiológica que caracteriza a individualidade dos corpos: seus ritmos particulares, suas taxas, necessidades, respostas e comportamentos singulares.
Esta questão da autonomia auto-regulatória dos corpos liga-se também ao enunciado da organicidade, que remete à formação histórica da noção de "organicidade", tal como analisado por Foucault (1976/1987) em "O nascimento da clínica". Esta é uma das idéias que sustentam a concepção naturalizada de corpo a qual é aceita e amplamente utilizada na biologia e na medicina, mas não se restringe a estes domínios de conhecimento, acabando por estender-se também ao campo das ciências humanas, das ciências sociais e da própria psicologia. A corporeidade contemporânea é centralmente atravessada pelo enunciado da organicidade. Mas, o que caracteriza a organicidade dos corpos? Na verdade, trata-se de um jogo dos discursos médicos e da biologia: um certo modo de funcionamento sistêmico que remete a um entrelaçamento de funções e sistemas diferenciados, porém em interação, mantendo certa dose de autonomia e interdependência entre si, que implica uma solidariedade sistêmica do tipo orgânico: auto-regulada e autônoma, cristalizada na figura do "organismo", elemento fundamental da corporeidade moderna.
Para além disso, o organismo, na sua autonomia auto-regulatória, é o elemento corporal da subjetividade moderna que "habita" um corpo, e relaciona-se consigo mesmo e com os outros como organismo. A medicina contemporânea trata dos corpos não apenas de uma perspectiva biológica, anatomofisiológica, mas também orgânica. O conceito de organismo, no entanto, é datado e recente é moderno e refere-se menos àquilo que um corpo é em sua "natureza" do que à construção da sua organicidade nos jogos do saber. Considerando-se os débitos da ciência psicológica aos campos da biologia e dos saberes médicos, deve-se lembrar que a psicologia não apenas clínica se alimenta dele e reproduz em seus domínios este enunciado da organicidade, cuja presença pode ser notada tanto na hipótese fragmentária do "paralelismo psicofísico" quanto em concepções mais integradas, dinâmicas e "sistêmicas" de sujeito.
A modernidade é ainda, conforme Foucault (1976/1988), um tempo histórico no qual predomina o exercício de um biopoder1 1 O biopoder é o que caracteriza a moderna economia de poder e diz respeito à formação de uma diversificada tecnologia de poder que incide sobre a vida e toma os corpos como objetos, produzindo tanto os corpos dos indivíduos pela aplicação de uma "anatomopolítica" quanto os corpos coletivos das populações por intervenções através de biopolíticas reguladoras. articulado numa multiplicidade de práticas "positivas" de poder incidindo sobre a vida, tomando os corpos dos indivíduos como alvos e pontos de aplicação, investindo-os e produzindo-os conforme uma ordem moral, social, política, produtiva e normativa capitalista-burguesa. O biopoder recobre historicamente uma outra economia de poder antecedente, que estava centrada no poder de causar a morte ou deixar viver.
No estudo levado a efeito em "Vigiar e punir" Foucault (1975/1987) mostra que os suplícios medievais são um modo histórico de tratamento dos corpos que exibe sua destruição em praça pública, expressando a vingança do rei, quando, por exemplo, um súdito desrespeitava um édito real ou era considerado culpado de traição. O tratamento social e político do corpo nesse momento implica a sua destruição num espetáculo público de poder, mostrando exemplarmente que "isto é o que acontece com aqueles que afrontam o poder real". Os suplícios são uma caricatura do exercício do poder feudal, centrado no direito de causar a dor, multiplicar a morte e fazer correr o sangue.
Nas sociedades modernas extinguem-se os espetáculos de poder centrados na destruição de corpos a modernidade, que é o tempo do capital, valoriza economicamente os corpos, investindo-os de produtividade, porque precisa de grandes massas de corpos aptos para o trabalho e ao mesmo tempo dóceis ao poder. A especialização do trabalhador, sua capacitação profissional, o aprimoramento do gesto, o aperfeiçoamento do ritmo e a formação de uma resistência física capaz de garantir oito a doze horas diárias de produção exigem um minucioso investimento de poder no corpo, que é realizado pela aplicação das "disciplinas"2 2 As "disciplinas" são figuras bastante conhecidas através da problematização de "Vigiar e punir" (Foucault, 1975/1987), consistindo em práticas múltiplas que acabam formando uma tecnologia de poder disciplinar no Ocidente a partir do século XVII. Devem ser entendidas aqui como pequenas maquinarias de poder "minúcias do poder" que operam sobre os corpos, produzindo-os conforme fins utilitários e políticos convenientes e produzindo neste mesmo movimento as subjetividades dos sujeitos. sobre ele. Este disciplinamento dos corpos, no Ocidente, a partir do século XVII, é correlativa do desenvolvimento de uma prática anatomopolítica. Pode parecer estranho o emprego do termo "anatomia" ligado à palavra "política", uma vez que no discurso médico ele tem um sentido biológico-estrutural naturalizado, nem um pouco político; no entanto, o emparelhamento das palavras no termo "anátomo-político" busca justamente mostrar o caráter político fundamental da produção dos corpos. Esta é uma questão muito atual ligada ao problema relativo a como manter os corpos presos aos poderes, fenômeno que se sustenta neste jogo de potência x utilidade x docilidade. Mas deve-se lembrar que a modernidade não apenas produz corpos para o capital, mas também os moraliza e produz sua sexualidade conforme normatividades de cunho científico que classificam a normalidade ou anormalidade para muito além dos domínios da sexualidade, marcando sua identidade e definindo o que é socialmente aceitável ou não para determinado grupo, em determinada cultura.
A modernidade não apenas disciplina corpos individuais, ela também produz corpos coletivos. A urbanização das cidades, a edificação do Estado, a estruturação institucional e a formação econômico-produtiva da sociedade e a organização e especialização do trabalho são exemplos do disciplinamento de corpos sociais conforme uma racionalidade utilitária, capitalista. Mas entre estes corpos "organismos" sociais que se formam na história ocidental, um, que emerge em meados do século XVIII, interessa de maneira especial a Foucault e também à medicina, à política e à economia: trata-se do surgimento das populações como objetos de regulação e intervenção de governo. As biopolíticas modernas estratégias e ações concretas do biopoder objetivam uma produção da vida, da força e da potência dos corpos das populações conforme taxas, índices, padrões, normas e estatísticas diversas, o que implica o desenvolvimento de saberes e a formação de uma "ciência de Estado" a estatística e uma "medicina de Estado": a medicina social. Acontece nesse momento uma medicalização do corpo da sociedade e dos dispositivos de poder, implicando a formação de um tipo de governo que visa sempre mais aumentar, intensificar e normalizar a saúde e a vida das populações e de cada um dos indivíduos; e é quase desnecessário acrescentar que se acentua contemporaneamente esta medicalização e este governo médico sobre a vida, tendo-se em conta a correlativa acentuação de preocupações e cuidados de ordem dietética e estética, em torno de uma produção da saúde e da beleza do corpo e da própria subjetividade ou identidade individual.
Resumindo: apoiadas numa tecnologia disciplinar que se formou ao longo dos séculos XVII e XVIII, as sociedades modernas desenvolveram uma maquinaria política de produção de corpos e subjetividades individuais e coletivos uma vez que nestas sociedades as práticas de governo visam regular a conduta e a vida dos corpos dos indivíduos, como visam regular também a saúde e a vida dos corpos das populações. A genealogia, como método de análise histórica proposto por Nietzsche e Foucault, ocupa-se, segundo eles, dos corpos concretos não exatamente naturais traçando a história da sua sujeição e produção nos jogos de saber/poder, que são exatamente aquilo que lhes dá forma, força e visibilidade portanto concretude: volume e existência concreta submetendo-os a regimes de utilidade e docilidade. Esta passagem do texto "Nietzsche, a genealogia e a história" sintetiza a perspectiva histórico-política aqui apresentada:
O corpo: superfície de inscrição dos acontecimentos (enquanto que a linguagem os marca e as idéias os dissolvem), lugar de dissociação do Eu (que supõe a quimera de uma unidade substancial), volume em perpétua pulverização. A genealogia, como análise da proveniência, está portanto no ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente marcado de história e a história arruinando o corpo (Foucault, 1984, p. 22).
Tratada de forma panorâmica a questão da produção política e econômica dos corpos, pode-se passar ao problema da sua produção estética, entendendo-se que, assim como se modificam historicamente as condições concretas de produção social, política e econômica dos corpos, modificam-se de forma igualmente histórica as condições da sua estetização. É quase desnecessário dizer que cada tempo tem sua própria estética e que as concepções e padrões estéticos mudam ao longo da história basta notar que o século recém-findo foi muito rico em diversidade estética, fazendo literalmente desfilar na passarela da mídia sucessivas modas, recorrências, modismos, variados padrões corporais, e também tecnologias, muitas delas médicas, de produção e modelização dos corpos segundo uma estética corporal que se modifica historicamente.
Conforme já foi apontado, verifica-se no final do século XX uma intensificação de preocupações de ordem estética e dietética, mostrando a formação de uma certa cultura, um ethos, um modo de vida e de relação com os outros, que implica, correlativamente, o desenvolvimento de um modo de relação do sujeito consigo mesmo: uma forma de relação ética e estética. Pode-se afirmar, de modo geral, que cada sociedade tem sua própria "cultura de si", composta por modos específicos de relação do sujeito consigo mesmo isto é o que se pode chamar de "experiência histórica" de um sujeito concreto na genealogia da ética de Foucault (1964/1988, 1964/1989).
De acordo com ele, considerando-se que as relações do sujeito com o próprio corpo ao nível da estética do corpo e da própria existência são de ordem ética, deve-se lembrar que a ética moderna, além de racionalista e utilitarista, é profundamente individualista, e que no final do século XX este individualismo se exacerba num narcisismo3 3 "Narcisismo" é um conceito oriundo do campo da psicanálise que se refere a uma característica cultural moderna, bem contemporânea, de exacerbado individualismo e autocentramento do sujeito em si mesmo, a exemplo do mito grego segundo o qual Narciso se enamora da própria imagem refletida no lago, caindo nele e morrendo embriagado nesta contemplação de si mesmo. Cumpre apontar que este centramento narcísico atual nada tem a ver com aquilo que Foucault (1964/1988) designa como "cuidado de si" antigo. sem igual na história do Ocidente. Mostra disso é o crescimento acelerado do número de academias de "cultura física" nas sociedades urbanas contemporâneas, crescimento que beira certo "culto ao físico", característico da "cultura de si mesmo" nestas sociedades, voltada para uma modelização plástica do corpo atendendo a um modelo mecânico-fisiológico-disciplinar, centrado na repetição exaustiva do movimento.
Estas são condições de possibilidade para o nascimento de um culto ao corpo na cultura ocidental, que em sua exacerbação transforma-se numa "corpolatria"4 4 Culto exacerbado ao corpo envolvendo uma combinação de exercícios físicos, cuidados dietéticos e intervenções estetizantes sobre o corpo inclusive cirúrgicas visando a mais beleza, mais juventude, mais intensidade, mais saúde, mais vida. A corpolatria, como culto exagerado ao corpo, é correlativa do narcisismo: individualismo exacerbado, constituindo características culturais e subjetivas marcantes do nosso tempo. O que se designa aqui como corpolatria nada tem a ver com o conceito utilizado por Codo & Senne (1985), que, apesar de homônimo, trata diferentemente a questão. . Este culto contemporâneo ao corpo, que se intensifica no final do século XX, passa não apenas pelas academias, mas também pelas dietas e regimes alimentares, por um disciplinamento dos hábitos diários de saúde, e ainda pelos consultórios médicos e salas de cirurgia. Articula-se deste modo todo um conjunto de cuidados dietéticos, hábitos sistemáticos de saúde e restrições corporais diversas, a um exercício físico mecânico, disciplinado, objetivando uma produção de músculos segundo uma estética modelizadora, minuciosa, combinando procedimentos de produção de saúde e práticas de produção estética. É neste domínio comum situado nas fronteiras da saúde com a estética, que se forma esta "ditadura estética" sob a qual se vive hoje em dia esta obrigação contemporânea de ser bonito e saudável! Tal exigência estetizante funciona ao nível daquilo que se vê no corpo, sua plástica, sua forma e apresentação, mas também em termos daquilo que não se vê e faz funcionar o corpo a sua fisiologia expressa em taxas, índices, médias e normas.
Esta corpolatria implica uma ética ou um tipo de relação consigo mesmo em que o sujeito se estetiza conforme padrões e normas médicas, de saúde, e ainda, segundo padrões e normas estéticas, sociais; e existe um componente de ascetismo envolvido nessas condutas: tanto na academia quanto no campo dos cuidados dietéticos e com a saúde, a aplicação de disciplinas e restrições multiplicada em exercícios sistemáticos acaba produzindo prazer e bem-estar físico e psicológico, proveniente destas práticas de vigilância e controle do próprio corpo. Portanto, esta estetização de si mesmo não se restringe à mera produção corporal ela contempla ainda todo um conjunto de exercícios e trabalhos sobre si mesmo voltados a uma estetização da própria existência, das formas de subjetividade e dos modos de ser, implicando fazer-se bonito aos olhos dos outros, fazer do seu corpo e da sua vida uma obra de arte a ser admirada. Neste sentido pode-se caracterizar a experiência subjetiva contemporânea da qual somos todos sujeitos como "estética da subjetividade", implicando uma "produção de si por si mesmo" referida a padrões éticos, estéticos e morais.
Algumas questões fundamentais se colocam então ao nível das relações do sujeito consigo mesmo hoje, ou dos nossos modos contemporâneos de subjetivação: como intensificar e melhorar a saúde e a vida e ao mesmo tempo a apresentação e a beleza? Tendo-se como o pano de fundo o capitalismo, onde predomina a forma mercadoria, outra pergunta se impõe: como valorizar o corpo e a si mesmo nesta sociedade? Do ponto de vista desta indústria e do mercado, cabe também perguntar: que corpos se quer produzir? Para que fins? Com que recursos? Conforme quais padrões? A que custo? Problemas bastante atuais, em aberto, cujas respostas provocam desconforto, mas que precisam ser enfrentados tendo em conta os limites elásticos de produção, manipulação, modelagem, investimento e "fetichização"5 5 Este conceito faz eco na psicanálise e no materialismo histórico: no contexto da psicanálise, refere-se a um investimento de energia de ordem sexual nos corpos concentrado em determinadas partes deles erotizando, sexualizando e sensualizando os corpos, fazendo deles e suas partes objetos de desejo; no contexto do materialismo histórico, refere-se propriamente à fetichização da mercadoria, ou a um tipo de investimento de ordem simbólica, imagética e mercadológica, no sentido de produzir a imagem do produto, aumentar sua aceitação no mercado, bem como capturar por alguns instantes o desejo do consumidor. dos corpos hoje disponíveis.
Afirmou-se anteriormente que as sociedades ocidentais contemporâneas desenvolveram toda uma tecnologia e uma maquinaria de produção de corpos envolvendo recursos e fins diversos, e a medicina, como saber e poderosa tecnologia de intervenção e transformação dos corpos que é, não podia ficar fora deste movimento histórico e deste promissor mercado. Por que não voltar-se para fins estéticos? Por que não atender aos desejos estéticos dos sujeitos em relação à produção dos seus próprios corpos e da sua felicidade? Neste campo de problematização desenvolve-se na segunda metade do século XX a medicina estética como disciplina voltada a uma produção estética dos corpos, situada nas fronteiras da saúde com a estética corporal.
Vale lembrar, no entanto, que a aplicação de tecnologias políticas, como também estéticas e médicas de produção de corpos e subjetividades, não apenas se encontra presa às suas próprias possibilidades de caráter técnico e científico, mas é ainda limitada por padrões éticos, históricos, de caráter social e profissional. Portanto, trata-se de práticas poderosas que devem ser objeto de regulação social e estão sujeitas a um reconhecimento e uma validação social, para além de critérios meramente técnicos ou científicos.
Recebido em 04/04/06
Aceito em 22/01/07
- Codo, W & Senne, W. A. (1985). O que é corpo(latria)? (Coleção Primeiros passos). São Paulo: Brasiliense.
- Foucault, M. (1989, 2ª ed.). História da loucura (J. Coelho Netto, Trad.). São Paulo: Perspectiva. (Original publicado em 1961).
- Foucault, M. (1987, 3ª ed.). O nascimento da clínica (R. Machado, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1963).
- Foucault, M. (1987, 4ª ed.). As palavras e as coisas (S. Muchail, Trad.) São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1966).
- Foucault, M. (1987, 5ª ed.). Vigiar e punir (L. Vassallo, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Original publicado em 1975).
- Foucault, M. (1988, 7ª ed.). História da sexualidade I: a vontade de saber (M. Albuquerque & J. A. Gilhon de Albuquerque, Trads.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1976).
- Foucault, M. (1988, 5ª ed.). História da sexualidade II: o uso dos prazeres (M. Albuquerque, Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1964).
- Foucault, M. (1989, 4ª ed.). História da sexualidade III: o cuidado de si (M. Albuquerque, Trad.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1964).
- Foucault, M (1984). Nietzsche, a genealogia e a história. Em R. Machado (Org), Microfísica do poder (pp.145-152). Rio de Janeiro: Graal.
Endereço para correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Jun 2008 -
Data do Fascículo
Mar 2008
Histórico
-
Aceito
22 Jan 2007 -
Recebido
04 Abr 2006