RESUMO
O objetivo deste estudo consiste em analisar os efeitos psicossociais que as áreas de tecnologia e inovação ganharam na atualidade bem como seus impactos na formação profissional. Para tanto, a pesquisa conta com um breve resgate histórico no qual apresentamos como os elementos da inovação tecnológica produzem efeitos locais e históricos que se tornam norteadores da vida urbana contemporânea. A parte empírica apresenta um estudo qualitativo descritivo que conta com depoimentos de cinco docentes engenheiros que atuam em uma universidade pública federal localizada no interior do estado do Paraná. Os resultados demonstram que essa área é conectada às prescrições voltadas ao desempenho laboral e ao enaltecimento do uso da tecnologia no cotidiano. Com isso, ela fica distante de uma análise crítica sobre os efeitos psicossociais trazidos por tais aplicações, especialmente no que se refere à colocação profissional. Como conclusão parcial, destaca-se que as práticas voltadas para a tecnologia e a inovação atendem a demandas populacionais, empresariais e governamentais de diferentes tipos, reafirmando sua importância para a organização social. Ao mesmo tempo, tornou-se evidente o quanto a área carece de uma análise crítica acerca de suas ações na esfera da inclusão e exclusão sociais.
Palavras-chave: tecnologia; inovação; engenharia; subjetividade; formação profissional
RESUMEN
El objetivo de este estudio consiste en analizar los efectos psicosociales que las áreas de tecnología e innovación ganaron en la actualidad, así como sus impactos en la formación profesional. Para tanto, la investigación cuenta con un breve rescate histórico en el cual presentamos como los elementos de la innovación tecnológica producen efectos locales e históricos que se vuelvan orientadores de la vida urbana contemporánea. La parte empírica presenta un estudio cualitativo descriptivo que cuenta con testimonios de cinco docentes ingenieros que actúan en una universidad pública federal localizada en el interior del estado de Paraná. Los resultados apuntan que esa área es conectada a las prescripciones volcadas al desempeño laboral y al reconocimiento del uso de la tecnología en el cotidiano. Con eso, ella se queda distante de un análisis crítico sobre los efectos psicosociales traídos por tales aplicaciones, especialmente en lo que se refiere a la colocación profesional. Como conclusión parcial, se pone de relieve que las prácticas volcadas a la tecnología y la innovación atenden a las demandas de populaciones, empresariales y gubernamentales de distintos tipos, reafirmando su importancia para a organización social. A la vez, se volvió evidente lo cuanto el área necesita de un análisis crítico acerca de sus acciones en la esfera de la inclusión y exclusión sociales.
Palabras clave: tecnología; innovación; ingeniería; subjetividad; formación profesional
ABSTRACT
This study aims to analyze the psychosocial effects gained by technology and innovation areas nowadays, as well as their impacts on professional education. To this end, this research includes a brief historical overview in which we present how elements of technological innovation produce local and historical effects that guide contemporary urban life. The empirical section presents a descriptive qualitative study that includes statements from five engineering professors who work at a public university located in the interior of the state of Paraná, Brazil. The results indicate that engineering is connected to prescriptions focused on work performance and the endorsement of technology use in daily life. Thus, it remains distant from a critical analysis of the psychosocial effects brought about by technological innovations, particularly concerning job placement. As a partial conclusion, we highlight that practices related to technology and innovation meet the demands of different types of populations, companies, and governments, reinforcing their relevance for social organization. At the same time, it is evident that the area lacks a critical analysis regarding its actions in the sphere of social inclusion and exclusion.
Keywords: technology; innovation; engineering; subjectivity; professional education
INTRODUÇÃO
O uso de ferramentas e equipamentos facilitadores da vida cotidiana se acentua na atualidade contando com áreas de conhecimento dedicadas ao aprimoramento sistemático da tecnologia. Em uma acepção filosófica, Lévy (1999, p. 28) a define como “a atividade multiforme de grupos humanos, um devir coletivo complexo que se cristaliza, sobretudo, em volta de objetos materiais, de programas de computadores e de dispositivos de comunicação”. Tal atividade é articulada em meio à produção de conhecimentos, equipamentos e serviços, sendo acompanhada de outra dimensão: a inovação. Esta é compreendida como produto ou processo “que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho” (Lei 13.243, 2016, p. 2).
Ainda para Lévy (1999) a elaboração de novas tecnologias é algo essencialmente social, cabendo evidenciar como seu avanço, que ocorreu em relação direta com a inovação, foi explorado em uma rede de computadores mundialmente interconectada. Inicialmente, cabe considerar que tal rede segue os pressupostos do desenvolvimento socioeconômico capitalista disseminando a ideia de que o progresso social, conectado à tecnologia é algo linear, acessível e bem definido (Hardt, & Negri, 2001). Nessa direção, além das esferas governamentais, empresas globais aderem à difusão e avanço da tecnologia, assinalando sua relevância em debates internacionais na promoção de progresso social e de sustentabilidade mundial (ONU, 2015). Com esse incentivo, formam-se redes interinstitucionais comprometidas em produzir conhecimentos voltados aos processos de inovação tecnológica, atribuindo especial atenção à formação de profissionais.
Consoante a essa valorização, estudos recentes demonstram (Labzina, Dobrova, Menshenina, & Ageenko, 2019; Oliveira & Moraes, 2016; Phan & Ngo, 2020) que a profissionalização tecnológica, bem como o desenvolvimento de equipamentos e processos mais eficientes, demandam parcerias para sua expansão. Nesse sentido, os governantes brasileiros afirmam que o desenvolvimento de tecnologia deve estar articulado às políticas econômicas mundiais (MEC, 2005). Instituições de Ensino Superior (IES) são geradoras e executoras de projetos voltados para ciência, tecnologia e inovação cujos resultados são requisitados pelas indústrias atingindo assim o cotidiano populacional.
Tendo em vista esse cenário que aproxima organizações diversas para fomentar a produção tecnológica das indústrias, esta pesquisa definiu como objetivo analisar os efeitos psicossociais que as áreas de tecnologia e inovação ganharam na atualidade bem como seus impactos na formação profissional. Por efeitos psicossociais compreendemos a pluralidade de práticas que são executadas em diferentes instituições sociais as quais interferem de maneira significativa nos modos de vida da população (Sawaia, 2001). Para isso, no primeiro momento, o estudo apresentará uma breve discussão histórica e crítica acerca da consolidação da inovação tecnológica no país, especialmente na formação profissional. Em seguida, serão apresentados e analisados depoimentos de docentes ligados à Educação Superior tecnológica que foram convidados a relatar os efeitos sociais, éticos e políticos na formação de engenheiros eletricistas. Ao final será possível mostrar que a tecnologia e a inovação fazem parte do cotidiano populacional sendo amplamente reconhecidas e valorizadas no dia a dia. Ao mesmo tempo, o estudo mostra que essa valorização, por vezes incondicional, dificulta uma análise crítica dos efeitos psicossociais de exclusão social, especialmente na esfera laboral.
BREVE TRAJETO HISTÓRICO DE CONSOLIDAÇÃO DA TECNOLOGIA E DA INOVAÇÃO NO BRASIL
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) evidenciou que mais de 70% dos entrevistados consideram que os resultados decorrentes da ciência e tecnologia trazem apenas benefícios ou mais benefícios que malefícios (CGEE, 2019) à sociedade. Essa avaliação, somada à utilização diversificada de equipamentos, aplicativos e serviços tecnológicos, deixa entrever o quanto ambas adentraram não apenas o cotidiano das organizações produtivas quanto o dia a dia da população. Em alguma medida, seu uso recorrente nos diferentes espaços sociais faz com que a tecnologia e a inovação sejam consideradas partes necessárias e indispensáveis ao funcionamento social, sendo amplamente acionadas em diferentes situações e colocando novos dilemas a serem apreciados (Tavares & Gomes, 2017). Atentos a isso, indagamos: como foi traçada e consolidada essa utilização de modo que ambas se consolidassem como imprescindíveis à sociedade?
Os estudos de Foucault (2019) sobre a noção de verdade cooperaram para compreender esse cenário. Para o autor, tal ideia se produz por um longo e multifacetado processo histórico que está em constante transformação e conta com a adesão da população. O autor salienta que a “verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade” (Foucault, 2019, p. 52). O que vemos ocorrer no cotidiano da vida em sociedade é uma aproximação do “discurso científico” (Foucault, 2019, p. 52) com o cotidiano populacional por meio da inserção de tecnologia e inovação em diferentes atividades. Analisemos alguns exemplos. Um deles é a mobilidade urbana, mais recentemente reorganizada por aplicativos que oferecem uma forma alternativa de acesso à renda daqueles que trabalham nesse ramo. Tanto que houve um aumento do número de pessoas que trabalham em veículos automotores particulares que, em 2018, atingiu o quantitativo de 3,6 milhões de pessoas no país (IBGE, 2019). Uma segunda aproximação ocorre por meio da difusão de aplicativos para a comunicação instantânea que, em 2018 no Brasil, foi utilizada, segundo Oliveira (2018), por mais da metade da população. Tal adesão também é notória na consolidação do chamado Ensino à Distância (EAD), cuja expansão dos últimos anos (INEP, 2019) ganhou destaque recentemente, quando atingiu a marca de 9,3 milhões de matrículas nas modalidades à distância, semipresencial e cursos livres em 2018 (ABED, 2019).
Tais exemplos remontam à disseminação do saber tecnológico que emerge “das relações de forças, de desenvolvimentos estratégicos e de táticas” (Foucault, 2019, p. 41) voltadas à promoção de soluções facilitadoras da vida em sociedade. A produção dos sistemas de valoração, de acordo com Foucault (2019), acontece em meio a regimes de verdade apoiados na difusão de enunciados científicos, precisamente na construção de um complexo de enunciados, com efeitos de verdade, que dissemina, com base científica, a importância da aquisição tecnológica e do uso da inovação na organização geral do cotidiano da população.
Foucault (2019) ressalta que o saber é constituído nas relações de poder. A governamentalidade pode ser compreendida como uma forma de poder que “levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes” (p. 429). Essa perspectiva deixa entrever o quanto uma determinada produção de saberes pode ganhar importância na dinâmica social participando do governo da população, que investe sistematicamente na disseminação de inovações tecnológicas produzindo efeitos psicossociais. Como isso ocorre no contexto temático desta pesquisa? No Brasil, a articulação entre ciência e tecnologia com ênfase na inovação remonta à Conferência Nacional de Ciência Tecnologia e Inovação (2001) que delineou o objetivo de “ampliar a capacidade de inovação e expandir a base científica e tecnológica nacional” (Brasil, 2002, p. 36). Os anos que se seguiram foram marcados pela execução de projetos voltados para a criação e expansão de centros de Ensino Técnico e de Ensino Superior centralizados no desenvolvimento tecnológico (MEC, 2005;Lei 11.892, 2008).
Para Foucault (2019), a produção de conhecimentos em uma sociedade, com seus efeitos de verdade, “está submetida a uma constante incitação econômica e política” (p. 52). Assim, o desenvolvimento da área tecnológica configura um jogo que envolve conflitos de interesses que vão desde a esfera econômica, passando pela social, ambiental, relacional e política. Exemplo disso foi a promulgação da Lei 13.243, de 2016, que tinha como um de seus objetivos facilitar a integração entre Estado, universidades, centros de pesquisas e a iniciativa privada a fim de “atender às prioridades das políticas industrial e tecnológica nacional” (Lei 13.243, 2016, p. 1). Tal integração fez com que as áreas de conhecimento mais marcadas pela tecnologia e inovação favorecessem uma “conexão e interação com os meios empresariais, governamentais e a própria sociedade” (Audy, 2017, p. 86), desde o processo de formação acadêmica.
Foucault (2019) assinala que o conhecimento é fundamentalmente social, produto de enfrentamentos e interesses diversos. Sua instrumentalização, quando pautada no viés econômico, serve à diminuição de custos e alargamento da lucratividade, deixando entrever o quanto a linguagem e os valores de mercado adentram na esfera educacional. Vislumbrar uma superação dos ditames de mercado que atravessam a produção de conhecimento nas universidades implica, de acordo com Mattos e Fernandes (2023), combater a “ideologia meritocrática” (p. 15) que tende a reforçar “o produtivismo acadêmico” (p. 15) em áreas privilegiadas pelo mesmo. Tal situação desdobra-se nas “práticas docentes, o que tende a levar professores a desenvolverem maiores investimentos em atividades de pesquisa, que são mais rentáveis no campo, do que nas práticas pedagógicas” (Mattos & Fernandes, 2023, p. 15).
Chega-se, assim, a outra interface entre o governo da população e a produção de verdades ligadas à inovação tecnológica que coloca em cena os interesses do mercado. Lazzarato (2017, p. 168) assinala que a governamentalidade, nesse caso, “se dá como um conjunto de técnicas que não podem ser exclusivamente atribuídas ao Estado”. Ela circula no campo social e ganha expressão em “alguns aparelhos políticos ou econômicos (Universidades, Exército, escritura, meios de comunicação)” (Foucault, 2019, p. 52). As mídias são grandes vetores na produção, disseminação e manutenção de discursos, saberes e verdades sobre a tecnologia e a inovação, ao afirmarem que:
O mundo nunca para de mudar. A cada ano, a cada mês, a cada dia, algo novo surge, evolui, melhora. A comunicação fica mais rápida. Os aparelhos ficam menores, mais potentes, mais inteligentes. A produção, cada vez mais eficiente e sustentável. (...). Isso tudo tem um nome, inovação. Inovação muda tudo, muda todos. (Grupo JS&M, 2019, s/n).
Tal enunciado publicitário permite entrever um cenário de mudanças e transformações que é marcado pela busca do novo, desde que inscrito no circuito de produção das mercadorias. Estas são vinculadas a melhorias de diferentes dimensões da existência contemporânea, facilitando a adesão de grupos populacionais distintos que reconhecem e utilizam seus produtos, desde que incluídos no circuito do consumo. Ocorre que a emergência de problemáticas relacionadas à exploração da natureza, à esfera laboral, ao consumo e à vida pessoal, é colocada na interface com a inovação, popularizando a eficiência desses progressos. Com isso, os processos de exclusão ganham visibilidade e são multifacetados uma vez que, conforme argumentado por Sawaia (2001, p. 9), envolvem “dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas”.
Aliada à estratégia publicitária, a governamentalidade torna-se preponderante na constituição das condições políticas e econômicas de difusão desta área, dando consistência à produção de sujeitos que ocorre em conexão direta com seu tempo histórico e de acordo com suas relações (Foucault, 2019). Em uma acepção mais ampla dessa produção, Guattari e Rolnik (1996, p. 33) assinalam que a subjetividade “é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares”. Os autores mencionam que os processos de subjetivação se produzem em meio a elementos que estão em circulação a cada momento histórico e que, conforme este estudo, envolvem a valorização do desenvolvimento tecnológico como promotor de soluções para os mais diversos impasses emergentes no tecido social.
Nota-se, assim, que historicamente a aliança entre governos, instituições de pesquisa e mercado cooperaram para disseminar as inovações tecnológicas em meio a uma população que aderiu a seus benefícios, sem se ocupar de uma análise mais crítica sobre os efeitos, por exemplo, de desemprego (Forrester, 1997) e exclusão social (Sawaia, 2001). Para Sawaia e Figueiredo (2019), a exclusão social, tão marcada em nossos dias também no contexto do Ensino Superior,
fecha o futuro e impede a abertura de horizontes, o acesso à educação e à saúde, fomenta injustiças, reforça o individualismo e a banalização dos males provocados aos homens e à natureza, e culpabiliza as pessoas e grupos pelo seu próprio infortúnio. (p. 666).
Frente à crescente articulação entre as universidades e as empresas, fortemente disseminada pela ênfase na tecnologia e na inovação, os agentes que compõem o ensino superior encontram-se diante do desafio de debater “o papel das universidades públicas na construção de uma sociedade mais justa e democrática” (Oliveira, & Moraes, 2016, p. 91). Cabe compreender, agora, como trabalhadores dedicados à docência na área tecnológica da engenharia percebem sua atuação na formação de profissionais que atuarão em um mercado cada vez mais voltado à inovação tecnológica.
CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE A PARTE EMPÍRICA
Na parte empírica, de cunho qualitativo e descritivo, foi adotada a perspectiva de Minayo (2001) que assinala a importância de “compreender e explicar a dinâmica das relações sociais [...] depositárias de crenças, valores, atitudes e hábitos (p. 24). A autora ressalta que esse tipo de pesquisa trabalha “com a vivência, com a experiência, com a cotidianidade e também com a compreensão das estruturas e instituições como resultados da ação humana objetivada” (p. 24).
A parte empírica da investigação foi iniciada após sua aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos e a assinatura dos Termos de Consentimento pelos participantes. Seus nomes foram alterados a fim de garantir o sigilo sobre sua identificação. O contato inicial com os participantes ocorreu por mensagem eletrônica com a explicação dos objetivos da pesquisa e convite à participação. Após o aceite, a coleta de dados aconteceu em modo remoto, pela plataforma meet, tendo em vista que neste momento da pesquisa a pandemia por COVID-19 e suas restrições de contato presencial já estavam decretadas.
Os cinco docentes que aceitaram participar da pesquisa declararam-se do sexo masculino, com idades variando entre 38 e 45 anos, com vínculo empregatício firmado no momento da pesquisa, atuantes no curso de Engenharia de uma universidade pública federal tecnológica sediada no interior do estado do Paraná. Os participantes possuíam experiência de no mínimo sete anos nessa área educativa e ministravam disciplinas ligadas à tecnologia como Eletrônica, Técnicas de Controle e Automação, Microcontroladores, Máquinas Elétricas e Análise de Sinais.
Foram definidas três condições para a participação: os docentes deveriam possuir graduação e doutorado na área da Engenharia, atuar ao menos há cinco anos como docentes nessa instituição e manter uma vinculação direta com tecnologia e inovação na prática docente, sendo autores de trabalhos reconhecidos pela área e registrados em seus currículos.
O instrumento utilizado para coleta dos depoimentos foi a entrevista semiestruturada que serviu para questionar como os participantes se localizavam em meio a valores, formação de profissionais e vinculações da área. Nelas foram abordados temas como: a história de vinculação do docente com a tecnologia e a educação, as principais facilidades e dificuldades da prática educativa na área, os valores que regem o ensino de tecnologia, os efeitos da tecnologia e da inovação na formação de profissionais e na vida cotidiana da população, bem como a percepção ética acerca das transformações advindas da tecnologia ante a organização social vigente.
Os depoimentos foram organizados e analisados em dois eixos temáticos, a saber: 1. Requisitos gerais para atuar na área e 2. Valores compartilhados na área. Esse dispositivo de análise busca “agrupar elementos, ideias ou expressões em torno de um conceito capaz de abranger tudo isso” (Gomes, 2001, p. 70). Gomes (2001) considera ainda que as categorias devem ser construídas “a partir de único princípio de classificação” (p. 72), permitindo “a inclusão de qualquer resposta numa das categorias do conjunto” (p. 72). Seguindo esses pressupostos, no primeiro eixo foram analisados os principais requisitos indicados pelos participantes no que se refere aos processos de aprendizagem. No segundo eixo foram analisados os valores, ideias, desejos e objetivos que sustentam o trabalho na área.
RESULTADOS: TECNOLOGIA E INOVAÇÃO NO COTIDIANO LABORAL DE ENGENHEIROS
Nos depoimentos apresentados na sequência será evidenciada a importância que a tecnologia e a inovação ganharam no meio acadêmico e nas empresas e na vida da população. Os resultados e análises apresentados dão visibilidade aos valores presentes na formação dos profissionais responsáveis por intervir no cotidiano social a partir da tecnologia e da inovação.
Eixo 1: Requisitos gerais para atuar na área
Dar visibilidade aos requisitos considerados necessários para atuar na área tecnológica implica destacar as formas de agir, pensar, ver e se posicionar no mundo sob a ótica dos entrevistados. Assim, Lucas coloca em cena a relevância da vontade de aprender que, para ele, está relacionada com a disposição para buscar conhecimentos novos. O docente menciona: “Em termos lá de pesquisa, eu tive muitos casos bons, o aluno vinha conversar comigo não tinha noção nenhuma, mas quando veio trabalhar comigo, desempenhou trabalho maravilhoso, brilhante, porque foi atrás de aprender as coisas que não sabia”. Para Lucas tal quesito refere-se à busca ativa por informações e saberes que reverbera com outro componente subjetivo relevante relatado por Pedro: a curiosidade. O docente afirma:
[...] se ele mantém a curiosidade aguçada com certeza ele vai enxergar condições na natureza, no dia a dia que podem ser melhoradas. Se ele consegue enxergar uma condição e procura como resolver essa condição ele gera uma, e se ninguém fez isso antes, ele gera uma inovação. Ele gera algo que ele consegue modificar na vida das pessoas. Eu acho que o mais importante é a curiosidade. Os alunos têm que ser curiosos, se você não tiver curiosidade de saber como funciona, é difícil ter interesse em trabalhar um pouco mais. (Pedro).
Lucas e Pedro mostram que para gerar inovações é essencial ao aprendiz e ao profissional manter a vontade de apreender e a curiosidade operando nas atividades diárias. Por outro lado, como é possível manter esse grau de implicação com a aprendizagem em um contexto social que, conforme mencionado na parte teórica deste estudo, é permeado pela naturalização de uma verdade, desigualdades sociais e processos de exclusão? Ao relacionar a ‘vontade de aprender’ com a ‘curiosidade’, os docentes apresentam uma maneira específica de “perceber o mundo” (Guattari & Rolnik, 1996, p. 27), centralizada no empenho individual (Lazzarato, 2017). Aliado a isso, Roberto assinala que a resiliência é necessária para superação das adversidades encontradas na implementação de projetos na esfera industrial. Segundo ele:
[...] as coisas não podem falhar. Um respirador não pode dar tela azul do Windows, um marca-passo não pode travar. É longe entre você só fazer a solução e a coisa ser viável para ser aplicada no cotidiano das pessoas e tudo mais. Então, o engenheiro vai ter que fazer essas análises de uma forma bem criteriosa, vai exigir bastante dele nesse sentido. Eu posso dizer que a minha disciplina exige muito essa parte da resiliência. Você trabalha muito e tem pouquíssimos momentos de felicidade, demora muito tempo para você ficar sorrindo por pouco tempo porque, como a coisa não tem muito glamour, é fato da engenharia. Engenharia é uma coisa mais fria, parece cruel o que eu estou falando, mas é um fato. (Roberto).
A resiliência foi vinculada à capacidade individual de atravessar dificuldades presentes nas diferentes etapas da confecção de produtos cujo funcionamento não admite falhas, bem como demanda uma espera necessária para alcançar os resultados nos trabalhos da área de engenharia. A produção de uma verdade (Foucault, 2019) sobre a tecnologia, disseminada como algo fácil e acessível, percorre um longo caminho de elaboração que, quando desconsiderado, abre uma distância entre as práticas realizadas na universidade e o reconhecimento público do produto final. Isso pode gerar insatisfações e sofrimentos tanto nos profissionais aprendizes (Mattos & Fernandes, 2023) quanto nos usuários (Audy, 2017). Perante tal cenário, Fernando menciona: “então, as coisas dão errado, você tem que pegar, fazer novamente. E, assim, não pode jogar a toalha”. No entanto, Fernando relata que a resiliência é “uma característica que nós estamos, infelizmente, perdendo com o tempo”. O docente explana:
E quando eles chegam mal preparados para a universidade, é muito comum que eles tenham dificuldades porque o ambiente é totalmente diferente. E veja, isso eu estou falando dos cotistas que sofrem um pouquinho mais, mas até os demais alunos de escola particular também sofrem. A grande questão, nesse caso, está na ordem do sofrimento. Faz uma diferença base, porque uns têm uma base um pouquinho melhor, ele vai ter que estudar, mas o cara, muitas vezes ele consegue passar isso aí mais facilmente. Outros que têm que estudar muito, eles acabam desistindo e isso é muito ruim. Vai passando de geração em geração, eles acabam ficando um pouquinho menos resilientes. Eles abandonam com mais facilidade o sonho. (Fernando).
Nos últimos anos, a média de renda dos ingressantes na universidade tem decrescido (INEP, 2019) o que, segundo Fernando, se relaciona com um aumento do sofrimento dos estudantes durante a graduação e que leva à diminuição da resiliência. Fernando complementa: “Tem gente que não consegue, tem gente que começa a travar” (Fernando). Nesse sentido, Tavares e Gomes (2017) destacam a “enorme distância” que separa os estudantes, as instituições educativas e as demandas de mercado, mostrando que as políticas institucionais coexistem com “diversos dilemas difíceis de resolver” (p. 647).
Na tentativa de intervir nesse quadro, Fernando conta que a universidade tem modificado as disciplinas iniciais em prol de conteúdos tidos como fundamentais para a área tecnológica, o que não impede, segundo ele, que ocorra sofrimento e alta taxa de desistência, colocando os estudantes diante de impasses. Assim, o discente que “trava” tem dificuldades de aderir a uma competição consigo mesmo e com a formação, conforme exigências definidas pela área. O participante salienta a importância do empenho nos estudos, esclarecendo: “A parte do estudo tá bacana, os alunos, eles estão estudando” (Fernando). Entretanto, conforme mencionado na parte teórica desse estudo, ao desconsiderar os problemas de ordem social, atravessados em larga medida pela exclusão social, “cada um então se crê (é encorajado a crer-se) dono falido de seu próprio destino, quando não passou de um número colocado pelo acaso numa estatística” (Forrester, 1997, p. 10).
José salienta a importância de outro requisito para formação e atuação na área: estar receptivo ao aprendizado de novas tecnologias:
como muda muito rápido a gente não pode ficar fechado e tem que estar em constante aprendizado justamente por isso, por estar buscando as tecnologias e vendo se vale a pena mudar para ela. A eficiência nesse aspecto tecnológico tem muito a ver com a velocidade. Com que velocidade você consegue atender essa nova tecnologia que surgiu aí. (José).
A receptividade e a adesão à tecnologia e à inovação, quando associadas a uma verdade socialmente legitimada em componentes de subjetivação que circulam no social (Foucault, 2019), ganham relevância por ligar o ritmo das inovações no mercado ao ritmo do consumo de novas tecnologias pela população. Assim, difunde-se uma prática que consiste em conectar as forças de trabalho e consumo “ao imperativo de não desacelerar, de não perder tempo” (Stengers, 2019, p. 14). Fernando endossa esse elemento, uma vez que para ele, é necessário ter “iniciativa para procurar novas tecnologias. Não dá para ficar esperando muito não”. Em contraponto à alta velocidade produtiva, Lucas relata não ser possível conhecer todas as transformações tecnológicas utilizadas na indústria. O participante conta: “Eu, como professor, acabo ficando um pouquinho defasado talvez do que tem por aí de novas tecnologias, a gente acaba não ficando muito por dentro”. Daí a necessidade, segundo José, de se estabelecer vínculos de cooperação a partir de uma boa comunicação: “Como é muito rápido, saber interagir com os colegas e buscar outros profissionais para suprir essa demanda também é importante porque não dá tempo da própria pessoa ir atrás”.
Os componentes de subjetivação colocados em cena por José, valorizam “a produção de saberes e contatos sociais. Esse tipo de produção [imaterial] incorpora também a imaginação, a inteligência e a cooperação” (Mansano & Carvalho, 2015, p. 658). Tais dimensões se conectam com outro requisito na esfera laboral mencionado por Roberto que envolve o que ele chama de capacidade analítica:
A capacidade analítica, a ideia de você analisar a situação que você está fazendo. Você fez uma coisa e não deu certo, você faz uma análise das experiências que você viveu, coleta, melhora o processo, e tenta chegar numa solução o mais rápido possível, aprender com os erros ou, ao invés de você aprender com os seus erros, pesquisar e verificar o que já aconteceu com outras pessoas para não cometer o mesmo erro também”. (Roberto).
Nessa perspectiva, a capacidade analítica se alinha a uma conduta pragmática mais racional, dirigida e “fria”, aspecto que, para Lazzarato (2017), promove um funcionamento mecânico no exercício laboral desses profissionais, havendo pouco espaço para uma análise crítica e situada sobre os efeitos da produtividade na vida da população e na vida do próprio trabalhador da área. Fernando relata situações que não apreciava em sua experiência na indústria: “você ter horário fixo de trabalho, você não poder trocar tantas ideias sobre a vida. Era coisa muito técnica, era uma coisa muito mais fria”. Atrelado a tal distanciamento, Roberto menciona:
Então, tem o foco necessário para, mesmo diante de vários problemas que vão ocorrer. Isso infelizmente ou felizmente, faz parte do mundo, principalmente na indústria. Saber lidar com isso, vai aumentar a sua resiliência e vai fazer a pessoa crescer na atividade que ela se propõe a fazer (Roberto).
Manter o foco na produção, à revelia dos problemas presentes na elaboração dos projetos, remete ao cumprimento disciplinado das atividades laborais de rotina. A valorização da capacidade analítica e do foco difunde um modelo de trabalhador e estudante que se assemelha a “peças mecânicas, constituindo componentes e elementos ‘humanos’ do maquinismo” (Lazzarato, 2017, p. 173). A difusão de tal funcionamento, segundo Lucas, está presente na universidade em que trabalha: “Eu acho que muitos colegas veem o aluno lá como: ‘o cara tirou zero, ele é um inútil’. Você não tem um: ‘por que isso aconteceu? O que pode estar rolando?’. Acho que falta um pouco dessa humanização na universidade”. Tal situação abre espaços, novamente, para culminar em processos de exclusão, nos quais o vínculo afetivo com a formação pode ser “invisibilizado, desvalorizado, tornado inexistente” (Santos & Mendes, 2018, p. 15), situação que dificulta os processos de aprendizagem e vinculação.
Analisando os obstáculos à permanência dos estudantes nas universidades, Mattos e Fernandes (2023, p. 17) afirmam que as “dificuldades acadêmicas e a prática pedagógica apresentam um importante desdobramento, especialmente por serem fatores determinantes para a aprovação nas disciplinas e progressão nos cursos”. Conforme relatado pelos participantes, a exigência de produção e desempenho incessante se mantém à revelia de impasses que são de ordem afetiva, econômica e social, como será apresentado na sequência.
Eixo 2: Valores compartilhados na área
Nesta seção, serão apresentados os valores difundidos na área que geram diversos “efeitos específicos de poder” (Foucault, 2019, p. 53). A acessibilidade e a disponibilidade de informações advindas do uso de celulares, internet e aplicativos no cotidiano da população são dimensões destacadas por Lucas, que afirma: “Atualmente, está muito mais disponível a questão da tecnologia e de acesso de informação. Tipo, um celular agrega muitas funções. Isso é resultado de pesquisa de tecnologia”. Nessa perspectiva, o acesso tanto aos equipamentos quanto à internet ganha notoriedade na posse de conhecimentos. Roberto assinala: “Olha que interessante, mesmo longe de um polo educacional, com a tecnologia da informação, você pode ter acesso a esse conhecimento e melhorar o seu conhecimento e tudo mais. Você universaliza a educação”. Assim, o avanço das telecomunicações e a proliferação do consumo de equipamentos tecnológicos favorecem a avaliação de que é necessário ampliar o acesso facilitado à educação.
O acolhimento desse enunciado como uma verdade a ser acolhida e legitimada (Foucault, 2019) tem como um de seus efeitos a minimização de impasses existentes no campo social da formação em nível superior e da colocação no mercado de trabalho (Mattos & Fernandes, 2023). A educação, nessa perspectiva, acaba sendo confundida apenas com a aquisição de informação, o que mantém ampla distância com a produção de conhecimento e se aproxima, como menciona Stengers (2019), de um rápido treinamento profissional. Concomitantemente, dissemina-se a necessidade de uma busca pró-ativa por conhecimento na qual o indivíduo “é remetido não apenas a concorrência com os outros, mas também à concorrência consigo mesmo” (Lazzarato, 2017, p. 175). Nessa acepção, Pedro põe em relevo o empenho individual ao assinalar: “A informação, ela está disponível. Então se tiver perseverança vocês conseguem, de maneira geral, transformar as informações em conhecimento”.
Uma vez que o acesso à informação é considerado fácil e amplo, os participantes ressaltam a relevância do comprometimento com sua busca e, desse modo, espalha-se a ideia de que o sujeito possui as condições necessárias para conduzir livremente seu próprio aperfeiçoamento profissional. Isso ocorre à revelia das pressões e dificuldades presentes tanto na formação quanto na atuação profissional. A produção deste componente de subjetivação individualista é endossada por José, que, em relação ao aprendizado contínuo, aponta: “Como a gente tem mais acesso à informação, com a tecnologia você consegue estudar, apreender e ver como que o mundo funciona. Você pode, se você tiver vontade e não for cabeça fechada”. Para José, a partir da vontade e abertura do estudante, torna-se possível ampliar a compreensão do funcionamento do mundo tecnológico. Esse engajamento, a partir da mobilização de tais elementos pode, de acordo com Lazzarato (2017), fazer de cada pessoa “um ‘sujeito’ responsável e culpado pelas suas próprias ‘ações’ e ‘comportamentos’. O ‘sujeito livre’ [...] realiza-se na figura do empreendedor de si e na figura do consumidor que escolhe de maneira ‘soberana’ em meio a uma panóplia infinita de mercadorias” (Lazzarato, 2017, p. 172). Atravessado pela difusão da facilidade de acesso e disponibilidade de informação, Roberto relata sua percepção:
a enorme quantidade de informações, as pessoas, e eu me incluo, parece que sentem mais cobradas em saber tudo que tá acontecendo da melhor forma possível. Antigamente a vida era mais simples, por quê? Por que você não precisava conhecer, saber tantas coisas. Hoje elas sabem e ao mesmo tempo, elas não sabem muito bem o que fazer com isso. (Roberto).
Dada à disponibilidade de informações, Roberto pressupõe uma responsabilização de cada um sobre o seu acesso e uso para conquistar e manter a colocação profissional. Tal pressuposição funciona, de acordo com Guattari e Rolnik (1996), como um quadro de referência imaginário, em que qualquer pessoa poderia acessar a informação contando com seu interesse. Ao situar suas percepções dentro desse referencial, Roberto faz alusão a dois componentes de subjetivação apontados por Guattari e Rolnik (1996): a segregação e a culpabilização. Ambas se alternam na sua fala que, por um lado, aponta a continuidade da separação entre as pessoas que sabem utilizar tais conhecimentos em seus cotidianos e, por outro lado, evidencia a culpa advinda da cobrança por estar informado plenamente sobre os acontecimentos ao seu redor. Fernando relata: “qualquer indústria em que você for trabalhar, você vai ser remunerado para sugerir alternativas, para melhorar, otimizar o processo. Para você fazer isso tem que estudar. Se não, dificilmente vai se manter no emprego”.
Para o entrevistado, a capacidade de otimizar os processos produtivos e gerar lucro está atrelada ao estudo contínuo e pode resultar na conquista e na permanência de engenheiros à postos de trabalho. Nesse sentido, tal instabilidade é confirmada por Roberto, que salienta: “Eu entendo que a zona de conforto hoje em dia é muito menor do que era anteriormente porque a inovação, principalmente a tecnológica, muda rapidamente, o que não acontecia tanto antes. O pessoal está sempre se reciclando”. A velocidade das transformações tecnológicas e a instabilidade, apontadas por Roberto, reforçam a exigência pela formação permanente. Um dos efeitos desse cenário é que o profissional “sai da condição de trabalhador meramente dócil e obediente para assumir a condição de ‘participante e responsável” (Mansano & Carvalho, 2015, p. 657), por uma formação que não se conclui enquanto estiver conectado ao mercado de trabalho. Nesse processo, o trabalhador torna-se, como menciona Lazzarato (2017, p. 175), “seu primeiro juiz”, disposto a proferir novos julgamentos e definir novas metas a serem alcançadas à revelia do cenário de desemprego instalado.
Mattos e Fernandes (2023) ressaltam: “a permanência universitária envolve outras dimensões para além das ações de auxílio econômico. Os estudantes compreendem e vivenciam fatores simbólicos que podem influenciar para que eles permaneçam ou se evadam da universidade” (p. 17). Esses fatores simbólicos vão desde as políticas de inclusão até os afetos e vinculações sociais que eles vivenciam no cotidiano das aulas. Quando em face do desarranjo do modelo de aulas presenciais ocorrido devido à pandemia de Covid-19 ora em curso, Roberto relata que se assustou ao encarar uma nova metodologia de trabalho. O docente conta:
A gravação de aulas, muitos acharam muito melhor do que o modo presencial, porque a oportunidade de ver as aulas posteriormente e tirar as dúvidas que não tinham entendido no momento foi ótima. Para mim, eu não esperava um feedback assim, porque é meio assustador. A gente não tem o preparo adequado e tem que ministrar disciplina em um novo formato. (Roberto).
No entendimento de Roberto, as novas facilidades advindas das tecnologias comunicacionais aplicadas à educação ocasionaram um alto índice de aceitação da plataforma digital de aprendizagem, que ganham destaque como algo amplamente facilitador da formação profissional. Outro efeito decorrente do acesso facilitado à informação foi a mudança na percepção do tempo. Nesse sentido, Roberto explana:
As pessoas aprendem as coisas mais rápido, fazem as coisas mais rápidas e tendem assim a ser cobradas para serem mais produtivas. É um mundo mais produtivo em relação à competitividade e tudo mais. Como mudou a vida do trabalhador, nesse sentido, com as inovações tecnológicas, eu acho que ele é mais cobrado, por quê? Porque ele tem acesso mais rápido às informações que ele necessita. (Roberto).
Stengers (2019) salienta que devido à expansão e popularização da informática, as relações de aprendizado e produção de conhecimento técnico, ligados a usos práticos, tendem a gerar um “movimento, onde o imperativo é ir o mais rápido possível” (p. 14). Nessa direção, Roberto relata sua expectativa para que a velocidade da aprendizagem, o resultado e a produtividade sejam maiores. No entanto, aludindo ao seu cotidiano na docência, Roberto alerta: “as pessoas têm velocidades de aprendizado diferentes e eu acho que isso deve ser respeitado”. Pedro explora outro ângulo da temporalidade. Segundo ele:
Há uma inquietude de não conseguir aguardar o tempo necessário para transformar informação em conhecimento. Hoje eu percebo que tem muito mais interesse no resultado do que no processo de aprendizado, e isso vai um pouco contra a visão que eu tenho na universidade. Os alunos na universidade não são profissionais da engenharia ainda. Uma das coisas que eu percebo que precisa ter para se tornar um engenheiro, para trabalhar com tecnologia, além da curiosidade e da perseverança, é também paciência. (Pedro).
Ao comparar gerações diferentes, Pedro evidencia uma tensão na formação de profissionais. Em alguns momentos, os estudantes são convidados a ser mais eficientes e, como mencionado por José e Roberto, mais velozes no processo de aprendizado; em outros são compreendidos como precipitados conectados apenas a busca de resultados, como pontuado por Pedro. Ambos os casos dão visibilidade à formação do profissional que transita entre a rapidez da produção e a paciência da aprendizagem. José argumenta que o encurtamento das distâncias por meio do avanço de tecnologias de transporte e comunicação deu suporte para uma disputa mundial, quando diz:
Essa diminuição do espaço e a facilidade da comunicação acabam criando uma pressão nas pessoas, na sociedade, por velocidade e por eficiência que gera um estresse muito grande. Então, esse aí tem um efeito nocivo, tem as vantagens e as desvantagens, esse aspecto nocivo do estresse que a tecnologia traz. Tem uma geração aí que nunca foi tão estressada e tão deprimida como a atual, por isso que a depressão é uma das grandes doenças do século XXI. (José).
A percepção sobre os efeitos da competição em uma geração de estudantes vai ao encontro da leitura feita por Lazzarato, que afirma: “a ‘doença’ do século XXI se manifesta na ‘depressão’: impotência para agir, impotência para decidir e impotência para empreender projetos; resistência passiva e individual à mobilização geral e à ordem de ser ativo, ter projetos e se implicar” (Lazzarato, 2017, p. 176). Tal cenário, conforme exposto, pode acarretar uma diminuição da qualidade de vida tanto de docentes quanto de estudantes em seu percurso formativo universitário. A situação indica, dessa maneira, uma necessidade premente de atenção à saúde e bem-estar nos processos de ensino e aprendizagem (Anversa, Santos Filha, Silva, & Fedosse, 2018).
Ao final da apresentação deste eixo, pode-se considerar que os valores difundidos na área, sob a perspectiva dos participantes, salientam as facilidades e dificuldades de acesso às informações presentes na rede de internet, gerando efeitos que responsabilizam os sujeitos pelo sucesso de sua formação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante este percurso investigativo que teve por objetivo analisar os efeitos psicossociais que as áreas de tecnologia e inovação ganharam na atualidade, bem como seus impactos na formação profissional, foi possível mostrar a constituição de valores que geraram efeitos de verdade acerca da tecnologia e inovação na contemporaneidade. Ao final dessa trajetória, a pesquisa chegou a algumas constatações. Primeiro, tornou-se perceptível que esse processo de tornar a tecnologia uma nova referência de verdade envolveu a execução de uma pluralidade de estratégias governamentais, publicitárias e empresariais que disseminaram sua importância junto à população, favorecendo a ideia de que as inovações tecnológicas seriam amplamente acessíveis.
Em segundo lugar, ressalta-se uma tendência socialmente compartilhada do entendimento de que há acesso e disponibilidade irrestritos a informações e à formação, o que põe ênfase na responsabilização individual do estudante para manter-se ativo e aberto a novas tecnologias no exercício profissional. Isso implica conhecer e acessar os lançamentos tecnológicos, acolhendo a demanda por uma formação permanente. Isso se desdobra na adesão à alta velocidade da obsolescência e do consumo de produtos e serviços, bem como das estratégias de aprendizagem. Assim, ainda que ocorram impasses no aprendizado, é responsabilidade desses profissionais administrar seu acesso ao conhecimento, o que possibilita, de acordo com os participantes, a permanência em postos de trabalho.
Em terceiro lugar, os resultados apontam para outra face dos efeitos psicossociais da alta velocidade que recai sobre a vida desses estudantes e trabalhadores. O esgotamento detectado na dificuldade em acompanhar a atualização das inovações tecnológicas, na aflição por não conhecer as novidades de mercado e no incômodo ao ser exposto a exigências de curto prazo. Assim, os entrevistados evidenciam que esse excesso engendra efeitos de ordem social que leva seus profissionais a uma exaustão, por vezes expressa em sofrimentos psíquicos como a depressão, o stress e o pânico. A gravidade dessa situação indica um campo para investigações futuras que articula as áreas de tecnologia e inovação e os processos de adoecimento presentes no cotidiano relacional e formativo desses profissionais.
Como conclusão parcial, fica notório o desafio posto aos docentes da área: dedicar-se à análise dos efeitos psicossociais gerados pela valorização da tecnologia e da inovação, atentando tanto para seus benefícios, bem como para os impasses que elas engendram no cotidiano de estudantes, profissionais e população.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
26 Out 2021 -
Aceito
22 Abr 2023