Resumos
O presente artigo relata uma experiência realizada no Estágio Supervisionado em Docência em Psicologia, disciplina do Curso de Licenciatura em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina, realizada em 2011, interligando o tema da psicologia e das relações étnico-raciais. Embora o ensino da História e Cultura Africana e Afro-Brasileira e o ensino das Relações Étnico-Raciais tenham se tornado obrigatórios em todas as escolas do Brasil a partir da Lei nº10.639/03, que modificou a LDB devido a uma conquista histórica do movimento negro, segue-se precária a formação de professores na maior parte delas. Neste sentido, considerando a relevância sócio-histórica e cultural de promoção de equidade e igualdade social que a lei sugere, a Psicologia tem muito a contribuir no processo de formação de professores ao evidenciar como se dá a constituição do sujeito na relação com a cultura, desnaturalizando preconceitos e estereótipos sobre as relações sociais e étnico-raciais do país.
Psicologia; ensino; relações étnico-raciais
This paper reports the experience of Supervised Internship in Teaching of Psychology, a subject of undergratuate program of Psychology degree at the Federal University of Santa Catarina, held in 2011, linking the issue of Psychology and Racial-Ethnic Relations. Although the teaching of Ethnic and Racial Relations and African and Afro-Brazilian History and Culture has become obligatory in all Brazilian schools of the country from the law 10.639/03, which modified the LDB due to a historic achievement of the black movement, the training of teachers in this context is still very precarious. In this sense, psychology has much to contribute to the process of teacher training by showing how the constitution of the subject is related to culture. In this way it can undermine prejudices and stereotypes about ethnic and racial relations, considering its historical relevance, social and cultural promotion of equity and social equality in our country.
psychology; education; ethno-racial relations
El presente artículo relata la experiencia de Práctica Pre-profesional Supervisada de Docencia en Psicología, curso de la Facultad de Licenciatura en Psicología de la Universidad Federal de Santa Catarina, realizado em 2011, relacionando los temas Psicología y Relaciones étnico-raciales. A pesar de que la enseñanza de Relaciones étnico-raciales, así como la de História y Cultura Africana y Afro-brasileña, se haya convertido en obligatoria en todas las escuelas brasileñas a partir de la Lei 10.639/03, que modificó la LDB (Ley de Directrices Básicas) devido a una conquista histórica del movimiento negro, continúa precaria la formación de profesores en la mayor parte de esas áreas. Considerando la relevancia sócio-histórica y cultural de promoción de equidad e igualdad social establecida por lei, la Psicología tiene mucho a aportar en el proceso de formación de profesores al mostrar como se realiza la constitución del sujeto en la relación con la cultura, desnaturalizando prejuícios y estereotipos sobre las relaciones sociales y étnico-raciales del país.
psicología; enseñanza; relaciones étnico-raciales
Introdução
Atualmente vem crescendo o número de profissionais da Educação e da Psicologia atentos às relações étnico-raciais no Brasil. Este crescimento se deve aos acordos internacionais estabelecidos desde o ano de 2001, quando em Durban, África do Sul, ocorreu a 3ª Conferência Mundial sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, e o Brasil, diante de seus dados e estatísticas populacionais, reconheceu-se perante a ONU como racista e se comprometeu a criar mecanismos de combate à discriminação racial no país. Para atender a esse compromisso, criou a Secretaria Especial de Políticas para a Promoção da Igualdade Racial/SEPPIR da Presidência da República.
Dentre os marcos legais que visaram ao enfrentamento da discriminação étnico-racial no país podemos citar a Lei no 10.639/03, que alterou a Lei no9.394, de Diretrizes e Bases da Educação/LDB, tornando obrigatório o Ensino da História e Cultura Africana e Afro-brasileira (posteriormente, a Lei nº11.645/08 também tornou obrigatório o ensino da história e cultura indígenas), bem como o Ensino das Relações Étnico-raciais em todas as escolas públicas e privadas do país. Em 2009 foi lançado o "Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana", da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [SEPPIR] (2009), o qual estabeleceu os deveres dos níveis e modalidades de ensino Infantil, Fundamental, Médio e Superior, assim como a EJA, o quilombola e o indígena, quanto às novas políticas educacionais.
Atualmente, mais de dez anos após a promulgação da referida lei, a formação dos profissionais inseridos nos contextos educacionais carece de mais atenção. Além de estabelecer marcos legais, é preciso trabalhar as relações étnico-raciais nas escolas é treinar olhares atentos aos efeitos psicossociais do racismo, para se eliminar não só o preconceito em sala de aula, mas também as barreiras e marcas historicamente produzidas pela sociedade, ainda vivas sob a forma de crenças e valores simbólicos desiguais que valorizam os brancos e inferiorizam negros e índios.
Eliane dos Santos Cavalleiro, Coordenadora-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional da Secretaria de Educação Continuada do MEC, afirma em Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (2005):
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Na educação brasileira, a ausência de uma reflexão sobre as relações raciais no planejamento escolar tem impedido a promoção de relações interpessoais respeitáveis e igualitárias entre os agentes sociais que integram o cotidiano da escola. O silêncio sobre o racismo, o preconceito e a discriminação raciais nas diversas instituições educacionais contribui para que as diferenças de fenótipo entre negros e brancos sejam entendidas como desigualdades naturais. Mais do que isso, reproduzem ou constroem os negros como sinônimos de seres inferiores. O silêncio escolar sobre o racismo cotidiano não só impede o florescimento do potencial intelectual de milhares de mentes brilhantes nas escolas brasileiras, tanto de alunos negros quanto de brancos, como também nos embrutece ao longo de nossas vidas, impedindo-nos de sermos seres realmente livres "para ser o que for e ser tudo" - livres dos preconceitos, dos estereótipos, dos estigmas, entre outros males (p. 11-12).
Observam Ministério da Educação em parceria com o Ministério da Saúde (2010):
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De acordo com vários estudos e pesquisas, a escola é considerada como um dos espaços sociais em que crianças e adolescentes negros/as defrontam-se de forma mais contundente com a vivência do racismo e da discriminação racial. As situações de rejeição enfrentadas pelos alunos/as negros/as, aliadas ao silêncio dos/as profissionais da educação em relação a essas práticas, produzem graves sequelas na autoestima dessas crianças e jovens, repercutindo negativamente no seu desempenho escolar e no desenvolvimento de sua capacidade de aprendizado. É, ainda, um fator importante de evasão escolar (p.15)
Romper com o silêncio do estrutural sistema racista de nossa sociedade, dos que sofrem e dos que são beneficiados por ele, é um grande desafio para nós, psicólogos e professores, não só devido à falta de formação e informação sobre os dados que desmascaram e revelam o racismo brasileiro, mas também pela insistente crença em nossa ideologia de democracia racial. O presente texto objetiva diminuir esta lacuna, contribuindo com o debate sobre a formação de professores em relação às questões étnico-raciais, relatando a experiência de prática de Estágio Supervisionado em Docência em Psicologia, realizado em 2011 no Curso de Licenciatura em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Uma Experiência na Formação de Professores:
A opção, no estágio, pelas questões étnico-raciais foi ao encontro das necessidades da escola, pois o currículo do curso de Magistério não contemplava o tema. Optei pela temática por vir, há alguns anos, pesquisando e coletando materiais sobre a Lei nº 10.639/03 e questões étnico-raciais nas áreas da Educação e da Psicologia, por considerá-las de alta relevância social e acadêmica, inclusive em relação à prática docente e à ação psicopedagógica.
O estágio realizou-se em uma escola da rede estadual de Florianópolis, Santa Catarina, que atende estudantes do Ensino Fundamental e Médio, oferecendo também as opções de EJA e Magistério. A prática ocorreu individualmente durante a Semana do Magistério e teve como participantes trinta alunas do curso. A oficina teve três horas de duração e foi intitulada "Psicologia e o Ensino das Relações Étnico-Raciais". Ao planejá-la, a ementa foi definida como: "Preconceito e discriminação no espaço das instituições educativas em relação à negritude. Desmistificando a relação do preconceito na escola. O que temos a ver com isso e o que podemos fazer para transformar essa realidade?". O objetivo geral foi apresentar a Lei nº 10.639/03 e proporcionar reflexões acerca da invisibilidade do ensino da história do negro no Brasil, bem como fomentar discussões para capacitar o professor a orientar a demanda sobre o ensino das relações étnico-raciais e da história e cultura africana a afro-brasileira nas salas de aula. Como objetivos específicos buscou-se introduzir reflexões e motivar a construção de saberes e práticas referentes ao racismo e à invisibilidade do negro nos currículos escolares e na sociedade.
Para a realização de tais objetivos, as atividades foram organizadas em três momentos. No primeiro deu-se a apresentação do filme "Vista a Minha Pele", de Joel Zito Araújo, com duração de 20 minutos, o qual no final traz comentários e depoimentos de professoras da rede pública de ensino, alunas negras e brancas e psicólogas brasileiras refletindo sobre o racismo. O filme é interessante, pois propõe uma troca de papéis entre brancos e negros no Brasil, fomentando a reflexão sobre as diferenças sofridas no dia a dia por cada grupo em uma linguagem bastante acessível, focada no ambiente escolar. A problematização proposta pelo filme suscitou um diálogo sobre situações concretas vividas pelas participantes.
A segunda atividade envolveu o trabalho em pequenos grupos, demonstrando dados da realidade escolar por meio da leitura de pequenos textos1. No terceiro e último momento houve a apresentação da Lei no10.639/03 e as referências, incluindo temas a serem abordados em sala de aula e exemplos da literatura infantil e infanto-juvenil. Ao final, a avaliação das participantes foi positiva, pois foram aprovados o Plano de Ensino e sua ementa e atingidos os objetivo geral e específicos.
Considerações finais
A Psicologia tem muito a contribuir no processo de formação de professores ao evidenciar como se dá a constituição do sujeito na relação com a cultura, desnaturalizando preconceitos e estereótipos sobre as relações sociais e étnico-raciais do país. Por sua vez, a Psicologia Escolar e Educacional, ao focar os contextos de ensino e aprendizagem, tem a possibilidade de buscar a efetivação da promoção de equidade e igualdade racial através de uma reflexão crítica sobre a realidade educacional no país.
A produção acadêmico-científica e as práticas profissionais referentes ao conhecimento da Lei no 10.639/03 sugerem a promoção de direitos no ambiente escolar, buscando alterar condutas e currículos historicamente discriminatórios e estigmatizantes do negro em nosso sistema de ensino. Considerando a relevância sócio-histórica do tema, espero que esta experiência, embora tenha tido as suas limitações por tratar-se de uma experiência de estágio realizada uma vez apenas, sirva de exemplo para outras atuações profissionais.
De que forma as escolas vêm se atualizando com relação à Lei no 10.639/03? Os psicólogos educacionais e escolares têm conhecimentos desta lei? Como os cursos e licenciaturas de Psicologia vêm trabalhando com o racismo e as relações étnico-raciais no seu currículo? E quanto à lei 10.639/03: como os psicólogos educacionais e escolares vêm trabalhando com o racismo e as relações raciais em suas práticas escolares e produções científicas? De que forma podemos ter uma atuação antirracista, a fim de promovermos relações realmente igualitárias e não discriminatórias? Tais perguntas ainda precisam ser respondidas e esses estudos e pesquisas ainda precisam ser realizados nos campos da Educação e da Psicologia.
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1
Maria Telvira da Conceição (1999). Rompendo com o silêncio da história sobre o negro na escola.
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2
Everaldo José Freire (2007). Afro-brasilidade, educação básica e a lei 10.639/03: Vozes veladas, veludadas vozes...
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3
Ida Mara Freire (1998). Bricando de esconde-esconde: A construção da identidade da criança afrodescendente no contexto da educação infantil.
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4
Secretaria da Educação, Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros (1988). Salve 13 de Maio? Escola, espaço de luta contra a discriminação.
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5
Vera Lúcia Neri da Silva (2007). Os estereótipos racistas e sexistas no imaginário de educadores infantis: Suas implicações no cotidiano escolar.
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6
Elisabeth Fernandes de Sousa (2007). Para cuidar da dor do aluno negro gerada no espaço escolar.
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7
Azoilda Loretto da Trindade (1997). A cultura negra nos currículos escolares: Afinal isto é possível?
Agradecimentos:
Agradeço à Professora Diana Carvalho de Carvalho, responsável pelas disciplinas Estágio Supervisionado I e II do Curso de Licenciatura em Psicologia da UFSC, pelo incentivo para que eu elaborasse o presente artigo, fruto da nossa experiência, inédita para ambas. Em segundo lugar, agradeço à Profa. Vânia Beatriz Monteiro da Silva, que é referência no assunto no Brasil e na UFSC, pelo apoio e disposição em ajudar-me neste tema tão pouco explorado pela minha área, a Psicologia, e ao professor José Nilton de Almeida, pelo conhecimento e pela palestra proferida na Semana da Licenciatura organizada por esta disciplina. Agradeço também aos meus orixás e ancestrais pelas portas abertas e a todos os militantes do movimento negro, por terem-me aberto os olhos para o racismo existente em nossa sociedade.
Referências
- Conceição, M. T. (1999). Rompendo com o silêncio da história sobre o negro na escola. Em I. C. Lima; J. Romão, & S. M. Oliveira (Orgs.), Os negros e a escola brasileira (pp. 90-97). Florianópolis, SC: Núcleo de Estudos Negros.
- Freire, E. J. (2007) Afro-brasilidade, educação básica e a lei 10.639/03: Vozes veladas, veludosas vozes... Em F. Marcon, & H. B. Sogbossi (Orgs.), Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira: Olhares sobre a lei 10.639/03 (pp. 95-100). Sergipe, CE: Editora da UFS.
- Freire, I. M. (1998). Brincando de esconde-esconde: A construção da identidade da criança afrodescendente no contexto da educação infantil. Em J. Romão, S. M. Silveira, & I. C. Lima (Orgs), Os negros, os conteúdos escolares e a diversidade cultural II (pp. 34-49). Florianópolis, SC: Núcleo de Estudos Negros.
- Instituto AMMA Psique e Negritude (2008). Os efeitos psicossociais do racismo São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
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Lei n. 10.639, de 09 de janeiro de 2003 (2003). Altera a Lei no 9.394, de 20 dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática «História e Cultura Afro-Brasileira», e dá outras providências. Diário Oficial da União Brasília, DF. Recuperado: 21 abr. 2013.Disponível: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm
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Ministério da Saúde (2010). Adolescentes e jovens para a educação entre pares: Raça e etnias (Coleção Saúde e Prevenção nas Escolas, Vol. 6). Brasília: Ministério da Saúde. Recuperado: 20 abr. 2013. Disponível: http://www.unfpa.org.br/Arquivos/guia_racas.pdf
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Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (2005). Educação anti-racista: Caminhos abertos pela lei federal nº 10.639/03 (Coleção educação para todos). Brasília: Ministério da Educação. Recuperado: 20 abril, 2013. Disponível: http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/anti_racista.pdf
» http://portal.mec.gov.br/secad/arquivos/pdf/anti_racista.pdf - Secretaria da Educação, Grupo de Trabalho para Assuntos Afro-Brasileiros (1988). Salve 13 de Maio? Escola, espaço de luta contra a discriminação (pp. 24-26). São Paulo, SP: Imprensa Oficial do Estado.
- Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (2009). Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana Brasília: Ministério da Educação.
- Silva, V. L. N. (2007). Os estereótipos racistas e sexistas no imaginário de educadores infantis: Suas implicações no cotidiano escolar(pp. 60-69) (Coleção Os Negros e a Escola Brasileira - Série Pensamento Negro em Educação, Vol. 6). Florianópolis, SC: Núcleo de Estudos Negros.
- Sousa, E. F. (2007). Para cuidar da dor do aluno negro gerada no espaço escolar! Em B. de P. Souza (Org.), Orientação à queixa escolar (pp. 223-240). São Paulo: Casa do Psicólogo.
- Trindade, A. L. de (1997). A cultura negra nos currículos escolares: Afinal isto é possível?(PP. 86-93) (Coleção Os Negros e a Escola Brasileira - Série Pensamento Negro em Educação, Vol. 2). Florianópolis: Núcleo de Estudos Negros.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2014