HISTÓRIA
Entrevista com Carmem Silva Rotondano Taverna
Interview with Carmem Silva Rotondano Taverna
Entrevista con Carmem Silva Rotondano Taverna
Entrevistadora: Mitsuko Aparecida Makino Antunes
Carmem Silvia Rotondano Taverna - Psicóloga; Doutora em Psicologia (Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP). Atuou como psicóloga escolar na Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo (1978-1989), como professora nas áreas de Psicologia da Educação e História da Psicologia e supervisora de estágio em Psicologia Escolar no Curso de Psicologia da Universidade São Marcos/SP (1984-2008). Atualmente, como pesquisadora, integra o Núcleo de Estudos e Pesquisa em História da Psicologia - NEHPSI, no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da PUC-SP e colabora no Conselho Regional de Psicologia de São Paulo (gestão 2010/2013) na Comissão Psicologia e Educação e no Projeto História e Memória da Psicologia em São Paulo.
Mitsuko Antunes: Como foi sua formação em Psicologia? Em que momento e em função de que fatores você optou pela Psicologia Escolar?
Carmem Taverna: Cursei Psicologia na Universidade de Mogi das Cruzes (1972-1976). A escolha pelo curso aconteceu em função do meu interesse pelas questões da infância e particularmente pela reabilitação de crianças com deficiências. As disciplinas que tratavam da compreensão do desenvolvimento humano e aquelas que, de algum modo, ensinavam como a Psicologia poderia contribuir para o desenvolvimento das crianças e o relacionamento com a escola e suas famílias me interessavam muito. Paralelamente à formação, estagiei no Hospital de Higiene Mental do Estado de São Paulo, na cidade de São Paulo (1974 e 1975), quando pude, de fato, me aproximar das crianças que estudavam em escolas públicas, encaminhadas por seus professores ao Setor de Psicologia, com a queixa de dificuldades de aprendizagem. A atividade realizada era compatível com o que se fazia ainda nesse período: diagnóstico psicológico a partir da aplicação de vários testes e encaminhamentos para diferentes profissionais (psiquiatras, neurologistas, fonoaudiólogos, dentre outros), incluindo psicólogos que realizavam psicoterapia. Foi essa experiência que contribuiu para a escolha que fiz, no último ano do curso, por uma maior carga horária de estágio na área da Psicologia Educacional. E aí sim tive uma experiência decisiva para a minha vida profissional. A partir dos estágios realizados nessa área, tive o primeiro contato com crianças e professores no espaço escolar. Participei como monitora/estagiária, supervisionada pelo professor Sérgio Antonio da Silva Leite, no acompanhamento de uma professora e seus alunos no processo de alfabetização e em discussões semanais com um grupo de professores alfabetizadores do ensino de 1º grau da rede oficial da região de Mogi das Cruzes, inscritos no IV Curso de Treinamento de Professores, realizado em conjunto pelo Departamento de Psicologia Educacional do Instituto de Psicologia da Universidade de Mogi das Cruzes e pela Delegacia de Ensino Básico de Mogi das Cruzes. O contato com a escola me mostrou a importância de se compreender a rede de relações aí estabelecidas: entre professores, entre diretor e professores, entre professores e alunos, entre professores e famílias, indo, portanto, muito além da criança e suas capacidades.
Mitsuko Antunes: Como você começou a trabalhar em Psicologia Escolar? Como você a concebia e como era sua atuação?
Carmem Taverna: Logo após a formatura, participei, no ano de 1977, do curso de especialização em Orientação Educacional no Instituto Sedes Sapientae, um reduto da resistência intelectual à ditadura, dirigido por Madre Cristina. Conheci Maria Nilde Mascelani, professora e coordenadora do curso, e iniciei meus estudos sobre o materialismo histórico e sobre a realidade brasileira. Celso Furtado, Paul Singer, Otavio Ianni, Florestan Fernandez eram alguns dos autores estudados. O difícil, a partir dessa experiência, foi conciliar as teorias psicológicas e principalmente a avaliação psicológica. Talvez, nesse momento, a Sociologia parecia ser muito mais importante do que a Psicologia que tinha estudado na graduação, com exceção do que aprendi na formação em Psicologia Educacional com Sérgio Leite. De algum modo, já sabia que a Psicologia não estaria, em nenhum momento, desvinculada da Sociologia, Antropologia, Filosofia e Política. Cheguei assim na prefeitura, em 1978, admitida como psicóloga no Projeto de Psicologia Escolar, no Departamento de Assistência Escolar da Secretaria da Educação da Prefeitura de São Paulo. A proposta de trabalhar em uma escola pública, no bairro de São Miguel Paulista, veio ao encontro de muitas expectativas que tinha nesse momento: iniciar minhas atividades profissionais e, mais, em uma escola pública. Conseguiria trabalhar para contribuir na transformação da realidade brasileira, visto que a Educação e a escola eram para mim área e lugar privilegiados para isso? Era essa a minha questão.
Compartilhei imediatamente com o Projeto de Psicologia Escolar, que me foi apresentado por Yvone Khouri, idealizadora desse projeto e psicóloga responsável pela área da Psicologia na Secretaria de Educação da Prefeitura de São Paulo, cuja proposta de ação era eminentemente profilática, de abrangência comunitária, em escolas localizadas na periferia da cidade de São Paulo. Esse projeto tinha por objetivo facilitar o processo educativo, através da integração de técnicas psicológicas ao processo multidisciplinar da educação, mediante ações integradas entre psicólogos, assistentes pedagógicos, orientadores educacionais, professores e pais, priorizando a ação com o grupo de alunos que chegava à escola - 1ª série - e na escolha adequada de uma profissão ou de estudos posteriores com alunos que deixavam a escola na 8ª série. Desse modo, nós psicólogos escolares (chegamos a quase cem psicólogos escolares), colaboraríamos na promoção da saúde mental do escolar, da sua família e da instituição escolar. Aplicávamos testes nas crianças encaminhadas pelos professores, é verdade, mas, para mim, estava claro que essa atividade era a única maneira que os psicólogos tinham naquele momento de se aproximar dos professores para iniciar uma conversa sobre o processo escolar das crianças e de se aproximar da equipe técnico-administrativa, lembrando que o diretor dava a palavra final quanto à permanência ou não de um psicólogo escolar. Um livro que me acompanhava era o de autoria de Therezinha Lins de Albuquerque, Acompanhamento psicológico à professora - seus rumos.
O Projeto de Psicologia Escolar foi um os pioneiros na abertura do campo de trabalho do psicólogo e na delimitação do campo da Psicologia Escolar na rede pública de ensino da cidade de São Paulo; expunha a contradição entre a psicologia clínica exercida na escola e o compromisso da área com a Educação, em um período em que a psicologia clínica era a principal área de orientação para a atividade profissional. Nessa nova perspectiva, os psicólogos escolares precisariam utilizar conhecimento e instrumental específico da área da Psicologia, mas também precisariam compreender as relações entre escola e sociedade. Assim, procurava integrar minha formação inicial ao novo trabalho. Importante seria, então, circular pela escola, participar do seu cotidiano e buscar, junto a todos os participantes da vida escolar, incluindo os próprios alunos, seus responsáveis e funcionários da escola, alternativas para enfrentar, principalmente, os altos índices de repetência e evasão na primeira série.
Não era um trabalho fácil. A escola, muitas vezes, recebia o psicólogo com desconfiança e, na figura do diretor, conseguia impedir um trabalho que abrangesse alunos, professores e equipe. Lembro a experiência na primeira escola em que trabalhei. Logo que cheguei, a diretora preparou uma sala para que eu atendesse as crianças encaminhadas pelos professores, orientasse seus responsáveis e só. Não haveria a possibilidade de conversar com professores, pois interromperia e atrapalharia seu trabalho. Dos contatos que tive com a assistente pedagógica, lembro-me que ela solicitava a mim pareceres prontos e fechados das crianças para poder resolver os problemas: encaminhá-las para atendimento clínico, educação especial - quase um passaporte para expulsar as crianças da escola. Como costumava chamar, o meu "gabinete" localizava-se em um prédio anexo à escola, onde também estavam as salas que guardavam os materiais de Educação Física e os instrumentos da fanfarra, além de um depósito; lá eu tinha que permanecer. Pouco fiz, sentia-me frustrada no meu entusiasmo inicial.
Outra experiência a ser lembrada, dessa vez bastante gratificante, foi a que tive, no período 1979 a 1986, na Escola Municipal João Domingues Sampaio, no bairro de Vila Maria Alta, na zona norte da cidade. Como sempre, fui recebida pela diretora, mas de um modo inusitado. Dona Terezinha, Tereza Quental Navarro, gostaria de me contar sobre o planejamento da escola no atendimento à 1ª série e saber qual a minha posição para o enfrentamento da questão da repetência e perguntou como pretendia colaborar na equipe como psicóloga. Uma sabatina. De modo bastante formal, ela me apresentou a equipe: Zezé, a assistente pedagógica, Ivone, orientadora educacional, Meire, a assistente de direção, e Sueli, a secretária da escola. Desejando boas vindas, levou-me para conhecer as dependências da escola e apresentou-me aos professores e funcionários. Não poderia ter acolhimento melhor. Permaneci nessa escola até 1986, quando D. Terezinha, depois de um afastamento por motivo de saúde, se aposentou. A "chefe", como é chamada por nós até hoje (ainda nos encontramos em animados almoços), conseguiu dirigir esse grupo de profissionais e tirar o melhor que cada um podia oferecer. Os problemas eram geralmente discutidos em grupo com a participação mais próxima das pessoas envolvidas, e as decisões, consequentemente, eram grupais. Embora meu trabalho estivesse concentrado no atendimento à 1ª série, participava dos projetos relacionados à passagem dos alunos da 4ª para a 5ª série, como também da atividade de orientação vocacional aos alunos das 8ªs séries, em conjunto com a orientadora educacional, coisa rara à época - orientadores educacionais e psicólogos brigavam pela Orientação Vocacional. Era com muito prazer e satisfação que ia à escola. Tínhamos resultados bastante positivos ao trabalharmos para além das questões individuais dos alunos. Incluída na equipe, acompanhava salas de reforço escolar, que funcionavam no período posterior a aula, grupo de mães e grupo dos alunos monitores de 7ª e 8ª série, que auxiliavam professores da 1ª série, conhecia a casa de alguns alunos e instituições que atendiam os alunos no período em que não estavam na escola. Para esse trabalho, a Psicologia Social de Pichon Rivière passou a fazer parte das minhas referências. Seus livros ainda nem eram traduzidos para o português. Evidentemente, seguia as orientações gerais dadas pela Seção de Psicologia, na qual era lotada, como observação das classes, entrevistas com professores, formação de classes homogêneas, sempre tendo como dispositivo para o início de qualquer intervenção a queixa escolar.
Precisava aprofundar meus conhecimentos e gostaria de frequentar um curso que propiciasse a reflexão da minha prática. Em 1980, iniciei o curso de mestrado no Programa de Psicologia da Educação da PUCSP. Embora não tenha apresentado a dissertação, fiquei por cinco anos estudando (nessa época era possível fazer isso) e pude conhecer novos posicionamentos teóricos, entrar em contato com um universo mais amplo, ao qual a Psicologia pertencia, e me alimentar das muitas reflexões realizadas que contribuíam para a minha prática. Na verdade, era a prática que me interessava. Inesquecíveis os professores Joel Martins, Iraí Carone e Abigail Mahoney. Sou muito grata a eles.
Em 1983, ingressei em um grupo composto por alguns psicólogos escolares da prefeitura que viviam experiências semelhantes na escola e que, sob a supervisão da professora Elcie Salzano Masini, refletia sobre a ação do psicólogo na escola. As discussões nesse grupo se desdobraram para a constituição de outro grupo, que se reunia paralelamente, envolvendo assistentes pedagógicos, orientadores educacionais e psicólogos escolares de quatro escolas da prefeitura; buscávamos refletir sobre nosso trabalho e ações talvez mais unificadas dessas equipes. Também estudávamos temas especificamente relacionados à Educação. Paulo Freire era leitura obrigatória e Piaget sempre revisitado.
Mitsuko Antunes: Ao longo do tempo, que mudanças ocorreram nesse trabalho?
Carmem Taverna: Penso que a mudança mais importante ocorreu com a transferência dos psicólogos escolares do Departamento de Saúde Escolar para o Departamento de Planejamento da mesma Secretaria da Educação, compondo agora o quadro técnico junto com assistentes pedagógicos, orientadores educacionais, diretores e supervisores de ensino. Um abalo à concepção de que psicólogos só poderiam compor quadros da Saúde com médicos, dentistas, fonoaudiólogos. Isso aconteceu em 1983, quando os novos ventos para a redemocratização do Brasil já estavam mais fortes. Penso que, nesse momento, os psicólogos escolares puderam se aproximar das discussões a respeito da democratização da escola e, consequentemente, da sociedade brasileira e tiveram uma oportunidade de redimensionar a atuação do Serviço de Psicologia Escolar na Secretaria de Educação.
Para falar mais especificamente dessa mudança, preciso voltar um pouco no tempo. O final da década de 1970 configurou-se como um momento de renovação para a sociedade brasileira na luta por liberdades democráticas e a Psicologia já questionava seu lugar na sociedade brasileira e buscava uma organização mais democrática inicialmente em um Fórum de Debates para pensar a profissão na nova conjuntura e, posteriormente, em movimento de oposição que concorreu às eleições no Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo e no CRP-06 (1979). Ambas as chapas de oposição foram vencedoras. Não posso deixar de citar a importante presença de Madre Cristina, apoiadora incondicional desse movimento que acontecia no Instituto Sedes Sapientae.
Os psicólogos da prefeitura, de algum modo, participaram desse movimento, lembrando que Dra. Yvone Khouri era presidente da Associação dos Psicólogos da Prefeitura e integrante do Fórum de debates e movimento de oposição. Conseguimos elaborar um Programa de Psicologia Escolar na prefeitura com as propostas compatíveis à crítica que se fazia, entretanto sua execução não era fácil, era forte a ideologia autoritária presente em todos os setores da prefeitura, inclusive nas escolas, o que marcava, portanto, diferenças significativas entre o plano elaborado e sua execução.
A Educação também encaminhava sua crítica nesse período. As ideias de Paulo Freire eram referências para as discussões sobre a democratização do ensino. Lembro-me de ler e discutir Pedagogia do oprimido, em espanhol, no grupo com a equipe técnica e professores na Escola João Domingues Sampaio.
Ainda ativa no início da década de 1980, a Associação dos Psicólogos da Prefeitura, em conjunto ao Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo e Conselho Regional de Psicologia de São Paulo 6ª Região, promoveu encontros com os psicólogos da área educacional. Nesses eventos, foram privilegiadas as discussões sobre a inserção da Psicologia no contexto social brasileiro e o questionamento do modelo médico, identificado com a concepção positivista de ciência, buscando-se, assim, nova orientação para a prática profissional. Em 1981, tivemos duas publicações que referenciavam as discussões dos psicólogos escolares e foram muito importantes para mim: a coletânea Introdução à Psicologia Escolar, organizada por Maria Helena Souza Patto, evidenciando, em seus artigos, a questão política e ideológica que atravessa o fazer do psicólogo escolar, e o livro Ação da Psicologia na escola, de Elcie Salzano Masini, apresentando uma proposta de aconselhamento escolar, rompendo com a crença exagerada nos testes psicológicos, tão amplamente utilizados. Além disso, na prefeitura, ainda vinculados ao Departamento de Saúde Escolar, os psicólogos escolares tiveram acesso, muito provavelmente por intermédio da equipe das escolas em que trabalhavam, a textos de diversos autores com orientação filosófica e política humanista e marxista, que abordavam assuntos relacionados aos aspectos sociológicos e antropológicos do desenvolvimento infantil e aprendizagem, à questão política da educação popular, à marginalização cultural, à saúde mental da criança, à dinâmica institucional.
Em 1982, o debate eleitoral foi ampliado. Mantido o calendário de eleições diretas para o Congresso Nacional e para governadores, em alguns Estados, as oposições conseguiram algumas vitórias expressivas, como no caso de São Paulo, onde foi eleito Franco Montoro, que, no ano seguinte, indicou Mario Covas para prefeito da capital. Pela primeira vez, uma força de oposição ao regime autoritário governou o Estado de São Paulo e a prefeitura da capital simultaneamente. Nova Política Educacional foi proposta nessas duas instâncias em defesa do ensino público, cujos aspectos principais referem-se à gestão democrática quanto ao acesso à escola e administração interna; à melhoria da qualidade de ensino para ampliar a permanência do aluno na escola; à melhoria das condições do educador e valorização da sua participação nas decisões educacionais.
Foi nesse contexto de tanta atividade e questionamentos que o Serviço de Psicologia foi transferido para o Departamento de Planejamento, deixando de compor o quadro dos profissionais do Departamento de Saúde Escolar. A transferência trouxe para o grupo de psicólogos escolares, no qual estava incluída, expectativa positiva para a elaboração de um novo Plano de Trabalho e, talvez, para a definição do papel do psicólogo escolar na prefeitura. Participamos de cursos e reuniões com diretores, assistentes de diretor, auxiliares de direção, técnicos de educação, orientadores educacionais, assistentes pedagógicos e supervisores de ensino para discussão e reflexão de aspectos, como, por exemplo, sobre o cotidiano da escola, a função social do educador e a reprodução da ideologia liberal, tão presente, ainda hoje, fundamentando os valores da sociedade brasileira, entre os quais está o que atribui o ônus do fracasso à incompetência pessoal, e do êxito, ao esforço individual. Assim, a relação professor-aluno passou a ser intensamente discutida e a visão que atribui aos próprios alunos, ou a suas famílias, os problemas de comportamento e aprendizagem, questionada. Acreditava-se que os psicólogos poderiam colaborar nessa tarefa.
Nessa nova condição, o Serviço de Psicologia Escolar procurou sistematizar uma proposta de trabalho na perspectiva de contribuir efetivamente com o que vinha sendo realizado nas escolas, nas Delegacias de Ensino e no próprio Departamento de Planejamento. Os psicólogos escolares passaram a integrar as equipes multidisciplinares da Educação. Foi nesse contexto, em 1984, que Yvone Khouri, já aposentada da prefeitura, organizou e publicou o livro Psicologia Escolar, oferecendo subsídios e definindo mais claramente a contribuição dos psicólogos à Educação, a partir da reflexão crítica sobre a realidade educacional brasileira.
No período em que o Serviço de Psicologia Escolar integrou o Departamento de Planejamento, de 1983 até o final de 1985, acredito ter havido, de fato, um redimensionamento, tanto técnico como político, da atuação do psicólogo escolar, o que fazia supor que essas ações pudessem se consolidar, nos anos seguintes. Para mim, esse período foi muito especial e possivelmente o que tem garantido a minha esperança e permanência como estudiosa da área. Posso dizer que tudo corria muito bem, literalmente corria, porque trabalhava muito, estudava muito e, ainda, participava dos grupos, encontros, congressos. Uma militante da Psicologia Escolar, assim me considerava. A escola em que trabalhava, João Domingues Sampaio, era o melhor laboratório que podia ter. A realização de um trabalho de equipe, fundamental na minha formação profissional, foi, sem dúvida, possível graças à atenção dada pela equipe às novas diretrizes da Secretaria de Educação e, principalmente, à atitude democrática da nossa diretora, D. Terezinha. Quando da sua aposentadoria, uma nova direção foi dada, priorizando os trabalhos especializados, individualizados - um retrocesso. Isso aconteceu em 1986, data em que mudou também a administração da Prefeitura de São Paulo. Os anos de trabalho intenso na Secretaria da Educação impressos por Guiomar Namo de Mello, na administração Mario Covas, deram lugar à administração Jânio da Silva Quadros.
Mitsuko Antunes: Como foi o fim do Serviço de Psicologia Escolar na SME?
Carmem Taverna: Na administração Jânio Quadros, o Serviço de Psicologia Escolar voltou a pertencer aos quadros do Departamento de Saúde Escolar, e, assim, qualquer possibilidade de consolidação de um novo projeto de atuação para a Psicologia Escolar foi perdida. Talvez já estivesse perdida. O mestrado da Wanda Maria Junqueira de Aguiar, a Ia, chamado O psicólogo escolar da Prefeitura Municipal de São Paulo: atividade e representação - subsídios para uma definição profissional, defendido em 1989, aponta para uma situação que ela interpretou como muito pouco definida, considerando o Serviço de Psicologia Escolar como deslocado da sua história e propósito. Entretanto, no estudo que fiz, vejo que, desde a criação do Serviço, como também nos anos em que o Serviço de Psicologia Escolar integrou o Departamento de Planejamento, alguns movimentos da Psicologia Escolar indicaram a busca por um plano que definisse precisamente a atuação dos psicólogos na escola e sua inserção oficial na equipe escolar. Mas não posso deixar de considerar e concordar com Ia sobre a impossibilidade de apropriação por parte dos psicólogos escolares do projeto a ser construído. Além da política educacional implantada, após 1986, na Prefeitura de São Paulo, que fechou qualquer possibilidade para uma definição do papel do psicólogo escolar, pode-se afirmar que o término das discussões sobre a Psicologia Escolar entre os órgãos de representação da categoria dos psicólogos e educadores e a atenção crescente ao redimensionamento do sistema de saúde público brasileiro, com a participação de psicólogos nas equipes multiprofissionais de saúde, agravaram essa situação, culminando com a extinção do Serviço de Psicologia Escolar, em 1989. Afastados da elaboração de propostas educacionais, realizadas pelo Departamento de Planejamento, os psicólogos permaneceram isolados nas escolas que trabalhavam, pois as reuniões para trocas de experiências ou para a elaboração de uma proposta coletiva de trabalho não mais aconteceram. Voltamos ao trabalho que se caracterizava como clínico-escolar, com a avaliação de crianças com dificuldades de se adaptarem às condições de ensino, orientação aos professores, às famílias e a realização de encaminhamentos para alguma clínica especializada na própria psicologia, psiquiatria, neurologia, fonoaudiologia e outras. É bom lembrar que esse enfoque ao trabalho psicológico era considerado por muitos psicólogos como determinante na sua atuação e, também, considerado por muitos educadores como aquele que dava ao psicólogo seu estatuto profissional. Foi um retrocesso o que ocorreu nos anos Jânio Quadros. Por um lado, houve total distanciamento dos questionamentos sobre os paradigmas que sustentavam a teoria e a prática da Psicologia Escolar, das discussões sobre as transformações necessárias à escola pública, no sentido de alterar sua condição autoritária e opressora e, por outro lado, o desconhecimento das transformações, que já eram realizadas no sistema público de saúde brasileiro - SUS, que definiriam a extinção do Serviço de Psicologia Escolar e a transferência do DSE para a Secretaria Municipal de Saúde.
Até 1986, permaneci na Escola João Domingues Sampaio, quando coincidiu a aposentadoria da nossa diretora, D. Terezinha, e a mudança da administração. Por esses fatores, na minha avaliação, particularizada é verdade, a escola em que trabalhava transformou-se em uma escola pública como qualquer outra. E, assim, participei de um remanejamento no grupo de psicólogos. Nos dois anos seguintes, fiquei vinculada à chefia do Serviço, trabalhando com estagiários e atendendo os chamados das escolas que não contavam com a presença de psicólogos. Em 1988, em novo remanejamento, assumi uma nova escola de 1º grau e uma escola de educação infantil próxima a essa, no bairro da Vila Mariana. Ficou decidido com a coordenadora pedagógica que cuidava do ensino de 1ª a 4ª série que os trabalhos prioritários a serem desenvolvidos seriam com os alunos que apresentavam dificuldades de aprendizagem na 1ª série e a integração dos alunos do 3º estágio da escola de educação infantil mais próxima à 1ª série do 1º grau. Para os atendimentos individuais que considerasse necessário, poderia utilizar um pequeno espaço de um banheiro adaptado como sala. Não com o mesmo entusiasmo, pude nessa escola trabalhar com um grupo de professores de 1ª série na discussão de temas relacionados à aprendizagem e à relação professor e aluno, e com grupos de alunos da 1ª série com dificuldades de aprendizagem. Tentei organizar o trabalho de monitoria com alunos das 7ªs e 8ªs séries, mas a coordenadora responsável por essas turmas não consentiu. Menor isolamento sentia na escola de educação infantil, pelo menos na discussão das ações que pretendia realizar. A diretora e a coordenadora pedagógica mostravam-se disponíveis à elaboração de ações que considerassem todo o processo escolar, porém o excesso de "burocracia", como se referiam aos pedidos da Delegacia de Ensino, as impediam, muitas vezes, de participar das ações programadas. De qualquer maneira, me movimentava mais. Lembro bem dos encontros com as professoras do 3º estágio, das classes de pré-alfabetização, antes do início do período, às sete da manhã: estudávamos, discutíamos situações escolares e, em conjunto, elaborávamos algumas ações com a participação de todas. Na pré-escola, tudo era mais fácil.
Com a nova mudança da administração da prefeitura, em 1989, chegou a notícia de que o Departamento de Saúde Escolar, com todas as suas Divisões e Seções, seria extinto, ou melhor, seria transferido da Secretaria da Educação para a Secretaria da Saúde. Os psicólogos escolares teriam ainda esse ano para encerrar suas atividades antes de serem transferidos para postos de saúde, hospitais gerais, hospitais-dia e centros de convivência. É verdade que o Serviço não ia bem, mas extingui-lo? No entanto, o problema era bem maior, estava politicamente em jogo todo um departamento e a concepção de saúde mental, idealizada a partir da Constituição de 1988, além de uma verba que aumentaria o salário dos profissionais. Muito inquieta no momento do desmanche da Psicologia Escolar, passei a integrar um novo grupo: daqueles que resistiram às mudanças. Reuniões, encontros com a chefia do Departamento de Saúde Escolar, empossada justamente para desativá-lo, reuniões com o pessoal da educação. Esse grupo conseguiu ser recebido pelo professor Paulo Freire, Secretário da Educação da prefeita Luiza Erundina, que, sensibilizado com a nossa questão, nos recebeu para trabalhar no agora denominado Departamento de Orientação Técnica, antigo Departamento de Planejamento. Assim, ficamos em número de oito psicólogas "emprestadas" pela Secretaria da Saúde à Secretaria da Educação, sem nenhum prejuízo nos nossos vencimentos. Isso ocorreu por pouco tempo, pois a verba destinada aos profissionais da saúde sairia do nosso salário caso não assumíssemos a vaga na saúde. Difícil de resistir. Dessa vez sozinha, escolhi permanecer na Secretaria da Educação, mesmo com salário diminuído e pensava que conseguiria, de algum modo, suprir essa perda. No Departamento de Orientação Técnica, permaneci vinculada à equipe que trabalhava com a passagem dos alunos da 4ª para a 5ª série, e duas das minhas colegas de equipe eram a Zezé e a Ivone, antigas companheiras da escola da Vila Maria. A proposta era fascinante. Trabalhávamos com grupos de formação permanente, não só com multiplicadores - coordenadores dos Núcleos de Ação Educativa, nova denominação dada às Delegacias de Ensino, como também com professores em diferentes escolas. Além do trabalho que realizava nessa equipe, tive contato com muitos outros projetos que aconteciam no departamento: educação infantil, educação de adultos, educação ambiental, educação artística e com os grupos de formação nas áreas específicas de ensino, português, matemática, história, geografia. O ambiente, de muito trabalho, era dos mais agradáveis e a presença do psicólogo, requisitada nas discussões das equipes. Conseguimos até organizar um coral, nas horas livres, é claro, com a colaboração de um maestro, participante da equipe de educação artística.
No segundo semestre de 1992, em plena campanha eleitoral e já com a perspectiva de que Paulo Maluf assumiria a prefeitura no ano seguinte, resolvi assumir a minha vaga na Secretaria da Saúde e ficar mais perto do grupo de psicólogos - era evidente que mudanças significativas viriam. Trabalhei em uma unidade-básica de saúde, novo nome dado ao posto de saúde, no bairro do Tatuapé. A minha experiência com a educação fez com que a chefe do posto me deslocasse para atender duas escolas da região que tiveram psicólogos escolares, cujas diretoras, de alguma maneira, queriam manter o serviço. Curiosamente, reencontrei, como diretora de uma dessas escolas, Suely, a secretária da escola João Domingues Sampaio. Apesar de estar em uma unidade básica, voltava a trabalhar como psicóloga escolar. Entretanto, a demanda por atendimento psicológico no posto era muito grande e, por isso, a chefia pedia para que eu ficasse no posto o maior tempo possível. Gradativamente, minhas visitas às escolas foram diminuindo. Foi um período difícil, conflituoso; minha opção profissional continuava sendo na área da Psicologia Escolar. Permaneci na prefeitura até o mês de maio de 1994, quando pedi demissão.
Mitsuko Antunes: Como você avalia esse processo em sua tese de doutorado?
Carmem Taverna: No doutorado, realizei um estudo histórico da Psicologia Escolar na Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo. Não podia simplesmente contar com a minha memória, considerando que trabalhei no Serviço de Psicologia Escolar de 1978 até sua extinção. O que pretendia e acho que realizei foi construir uma história crítica. Para isso, busquei apoio nos fundamentos da História do Presente, entendida como campo de estudo da história do século XX, a partir da década de 1930, e na proposta atual da Historiografia da Psicologia, especificamente na abrangência da abordagem social. No contexto específico da Prefeitura de São Paulo, busquei compreender as necessidades existentes para a implantação de um Serviço de Psicologia Escolar e os fatores conjunturais e estruturais que interferiram no seu desenvolvimento, bem como nas ideologias, valores e representações que estavam presentes. A matéria-prima para a realização desse estudo foram documentos relativos à legislação, à divulgação dos trabalhos realizados, às orientações aos psicólogos escolares e documentos relativos aos cursos, seminários, encontros e congressos dos quais participaram psicólogos escolares da prefeitura. Também foram analisados textos de diversos autores utilizados em treinamentos do Serviço de Psicologia Escolar, pesquisas históricas sobre educação e ensino municipal, pesquisas sobre a Psicologia Escolar na prefeitura e livros, publicados por autores brasileiros, sobre Psicologia Escolar, entre os anos 1970 a 1984. A interpretação do conjunto de documentos permitiu a identificação de quatro períodos na atuação da Psicologia na Secretaria da Educação e a elaboração de uma narrativa apresentada nos capítulos da tese, que apresentam: os antecedentes à criação do Serviço, compreendendo o período da instalação dos Parques Infantis, em 1935, a criação do Setor de Psicologia Clínica, na década de 1940, e o desenvolvimento desse trabalho, até a primeira metade da década de 1970; o período de criação do Serviço de Psicologia Escolar, a qual inaugurou novo campo para a atuação da Psicologia na Secretaria Municipal de Educação, marcando o início da busca de uma identidade profissional do psicólogo escolar, abrangendo os anos de 1975 a 1979; o período das tentativas de definição da Psicologia Escolar, compreendendo os anos de 1980 a 1985; e o momento da transferência dos psicólogos da Secretaria Municipal de Educação para a Secretaria Municipal de Saúde e da extinção do Serviço de Psicologia Escolar, abrangendo os anos de 1986 a 1989.
Para mim, esse estudo preencheu uma lacuna no conhecimento da Psicologia Escolar e pode ser uma das referências para a definição do papel do psicólogo, presente ainda hoje, tal como esteve durante o período de existência do Serviço de Psicologia Escolar. Ao final da tese (defendi em 2003), ainda uma questão se colocava, considerando o difícil e lento caminho que a Psicologia e os psicólogos têm feito para superar as amarras das atividades que a definem. Quais seriam, de verdade, as realizações da Psicologia em favor das necessidades educacionais?
Mitsuko Antunes: Como você interpreta esse processo e sua tese hoje?
Carmem Taverna: Importante ter essa história presente. Conhecer o caso da Psicologia Escolar na Prefeitura de São Paulo pode ajudar tanto psicólogos como estudantes na reflexão sobre a profissão em movimento, fundamentando avaliações críticas sobre velhas que ainda aparecem como novas questões. Enfatizo, especialmente, o conflito que se estabeleceu e ainda se estabelece na Psicologia Escolar ao relacioná-la à área da Saúde e à área da Educação. Outro aspecto importante que vejo refere-se ao serviço público. Qual pode ser o papel de um Serviço de Psicologia Escolar, em especial, um serviço público, como o caso do Serviço de Psicologia Escolar da Prefeitura Municipal de São Paulo?
Mitsuko Antunes: Como você iniciou seu trabalho no campo do ensino da Psicologia Escolar (disciplinas e supervisões)? Que concepções norteavam seu trabalho? Que mudanças houve ao longo do tempo?
Carmem Taverna: A partir de 1984, paralelamente ao trabalho como psicóloga escolar na prefeitura, passei a supervisionar estudantes do último ano do curso de Psicologia no Núcleo de Psicologia Educacional das Faculdades São Marcos, na área de concentração de estágios, em dificuldades de aprendizagem. A experiência acumulada na área e a conclusão dos créditos no mestrado me davam certa segurança no acompanhamento dos estagiários. Fui a convite de Elcie Masini, coordenadora do Núcleo de Psicologia Educacional e supervisora do grupo que participava com colegas da prefeitura. Nesse núcleo, integrei uma equipe de professores/supervisores preocupada com a educação fundamental pública, que discutia as perspectivas da Psicologia Escolar e sua função social. Um grupo de referência também para minhas atividades práticas na Psicologia Escolar. Em 1987, passei também a supervisionar o estágio de Psicologia Escolar, acompanhando os estudantes durante um ano letivo em uma escola pública estadual. Foi nesse período que encontrei, em uma feira de livros, A formação social da mente, de Vigotsky, em edição de Portugal. Foi uma das mais importantes referências. Afinal, encontrava na Psicologia algumas das respostas que buscava. Encontrei um único curso sobre Vigotsky, nesse momento, na Fisiologia da USP.
Em 1989, assumi a coordenação da área de formação da Psicologia Educacional na São Marcos e continuei supervisionando estágios. Não foi difícil mantermos as reflexões sobre a formação profissional com um grupo coeso e capaz, que, além de oferecer suporte teórico, incluía a integração do estudante/estagiário na comunidade escolar e em novos espaços educacionais, como creches, abrigos, centros de juventude e albergues para adultos, buscando atender às novas demandas de trabalho para o psicólogo educacional. Nossas reflexões ganharam nesses anos as referências da Psicologia Social e Comunitária. Permaneci como coordenadora da área até junho de 2000.
É importante dizer que, no período de 1995 a 1997, consolidou-se o meu interesse pela pesquisa científica, foi quando, na própria São Marcos, nesse momento já universidade, voltei ao mestrado e conheci você, Mimi (Mitsuko Antunes), minha orientadora, que, em um momento bastante difícil da minha vida pessoal, me ajudou a encontrar mais um caminho: a História da Psicologia. Nessa ocasião, assumi também a disciplina Psicologia da Educação, no bacharelado do curso de Psicologia. No segundo semestre de 2000, deixei a coordenação da área de formação em Psicologia Educacional na São Marcos, pois contava com uma bolsa CAPES, e pude me dedicar à pesquisa do doutorado no Programa de Psicologia Social da PUCSP, na área da História da Psicologia, com a orientação da Profa. Maria do Carmo Guedes, mas continuei lecionando Psicologia da Educação e supervisionando apenas dois grupos de estudantes/estagiários do último ano. Em 2001, tive a oportunidade de assumir as aulas de História da Psicologia no curso de Psicologia, também na São Marcos, e, assim, me afastei da área educacional, tanto das aulas como da supervisão de estágio. Mas me envolvi de corpo e alma no estudo histórico sobre a Psicologia Escolar na Prefeitura de São Paulo no doutorado.
Mitsuko Antunes: Como você vê a Psicologia Escolar hoje?
Carmem Taverna: Se considerarmos que a História não se desenvolve em linha reta, mas entre avanços e recuos, entre embates de forças e tendências diversas, avalio que hoje a Psicologia Escolar/Educacional vive um momento de grande movimento, enfrentando muitas das mesmas questões, tensões, ambiguidades e contradições que a caracterizam desde o seu início. Nos últimos anos, no meu entender, a Psicologia Escolar ganhou mais força, quando o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo e o Conselho Federal de Psicologia juntaram-se à ABRAPEE nas discussões sobre a Psicologia e Educação. Bom lembrar que a ABRAPEE, constituída em 1990, não deixou de discutir, desde então, a Psicologia Escolar e o fazer dos psicólogos escolares.
Em 2005, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo promoveu a I Mostra Estadual de Práticas de Psicologia em Educação e o IV Encontro de Psicólogos da área da Educação. Os encontros anteriores, organizados pelo CRP-SP e Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo, ocorreram em 1980, 1981 e 1983. Mais de 20 anos se passaram para que as discussões da área fossem retomadas, nesse âmbito. Em 2007, aconteceram a II Mostra Estadual de Práticas de Psicologia em Educação e o V Encontro de Psicólogos da área da Educação. Em 2008/2009, tive oportunidade de participar das atividades do Ano Temático da Educação promovido pelo Conselho Federal de Psicologia, no Seminário Regional do CRP de São Paulo (era conselheira nessa gestão, participava da Comissão Psicologia e Educação e coordenava o Projeto Memória da Psicologia em São Paulo). Os eixos temáticos em pauta já dão uma ideia do conteúdo a ser discutido: Psicologia, políticas públicas intersetoriais e educação inclusiva; políticas educacionais: legislação, formação profissional, participação democrática; Psicologia e instituições escolares e educacionais e Psicologia no ensino médio. Nas discussões pude, mais uma vez, reavivar a memória sobre o meu trabalho na prefeitura e de algum modo reconhecer as questões que lá discutíamos e que ainda estão presentes. Entretanto, eu não ouvi nenhum comentário que apontasse para a desconfiança do profissional, ao contrário, tive a impressão de que o psicólogo tem hoje seu trabalho reconhecido nas instituições educacionais. Também houve um aumento considerável no número de psicólogos que passaram a trabalhar em diferentes espaços educacionais públicos, privados e no terceiro setor, no estado de São Paulo. Mas o que mais me surpreendeu, nas discussões do Ano Temático da Educação, foram os encaminhamentos que anunciavam que havia chegado a hora de participarmos na construção de políticas públicas para a Educação. Para mim, uma novidade. Não mais ficarmos à mercê do poder executivo em seus diversos níveis, mas interferirmos na elaboração de Projetos de Lei. São vários os PLs que tramitam nas Câmaras Municipais, Assembleia Legislativa e Câmara Federal que dispõem sobre a assistência psicológica nas escolas públicas. A grande maioria deles, no entanto, desconsidera as atribuições dos psicólogos vinculados ao Sistema Único de Saúde e sugerem uma atuação clínica ao psicólogo nas escolas; estão longe do que almejamos: inserir um psicólogo na escola que colabore na garantia do processo ensino aprendizagem e que pode assumir o lugar de mediador das relações nas escolas, sem deixar de considerar o projeto político educacional em vigor. Hoje, vejo que é a clareza dos pressupostos e atribuições do psicólogo no contexto escolar e educacional, apoiados no respeito aos Direitos Humanos, a força para o movimento de esclarecimento realizado pelos órgãos de representação profissional, ABRAPEE, CRP-SP e Conselho Federal de Psicologia, ao poder legislativo, às secretarias de educação e também aos psicólogos escolares/educacionais. Nessa perspectiva, em 2010, o CRP-SP publicou, no Diário Oficial do Estado, uma Nota Técnica, enfatizando as contribuições da Psicologia, baseadas nas propostas elaboradas no Seminário Nacional do Ano da Educação (2008). Outra ação importante ocorreu na Câmara Municipal de São Paulo, no dia 9 de junho de 2011. Um evento com a participação da ABRAPEE, CRP-SP e Conselho Regional de Serviço Social de São Paulo para a derrubada do veto do prefeito Gilberto Kassab a um Projeto de Lei que apoiamos, de autoria do vereador Jamil Murad, que dispõe sobre a instituição de Programa de Assistência Social e Psicológica nas instituições da rede municipal de ensino nos níveis infantil, fundamental e médio do município de São Paulo.
Queria ainda fazer um comentário sobre a queixa escolar, em geral o motivo desencadeador da elaboração dos projetos de Psicologia Escolar, tal como aconteceu na Prefeitura de São Paulo. É a queixa escolar que mantém, ainda hoje, significativos índices de encaminhamento aos serviços de saúde, e os embates quanto à sua compreensão permanecem intensos. De um lado, posicionam-se profissionais da área da Educação e da Saúde, incluindo psicólogos que compreendem os problemas escolares como originários exclusivamente de causa biológica ou psicológica da criança e/ou adolescente, que buscam soluções medicamentosas ou, ainda, na tradicional psicoterapia para a resolução de problemas patológicos, próprios do indivíduo. De outro, profissionais das mesmas áreas que trabalham na perspectiva de buscar informações e refletir a partir do lugar em que se originam os problemas - a escola. Esse grupo tem problematizado a medicalização não só da Educação, mas também da sociedade. Para quem quer saber mais, indico que se inteirem a respeito do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, que pode ser acessado pelo site da ABRAPEE.
Mitsuko Antunes: Que perspectivas você vê para a Psicologia Escolar no futuro?
Carmem Taverna: Vejo que não há mais volta quanto à avaliação da sociedade sobre a importância da Psicologia Escolar. Um exemplo é o número de Projetos de Lei para a inserção de psicólogos escolares na rede pública de ensino. Entretanto, o fazer do psicólogo ainda é preocupante. Já comentei sobre os embates e tensões. Por isso, penso que é extremamente importante mantermos abertos os espaços para trocas de experiências e espaços de reflexão em Encontros, Seminários, Congressos, e também nos cursos de formação em Psicologia. Importante mantermos a disposição de esclarecer o poder legislativo quanto aos fundamentos e atribuições dos psicólogos escolares, para que possamos, em futuro próximo, romper com a prática de produção de diagnósticos, ou com uma prática patologizante da aprendizagem e atuar em projetos coletivos que visam interferir no processo de escolarização, no projeto político pedagógico da escola. Assim, avançaremos para a efetivação da prática democrática, do sucesso escolar, da garantia de direitos, do respeito às necessidades de aprendizagem e desenvolvimento de todas as crianças e adolescentes, incluindo aqueles que precisam de necessidades educativas especiais ou que cumprem medidas socioeducativas em privação de liberdade.
Tenho ainda uma preocupação, que também vejo como necessidade. Refere-se à necessidade de se estender e aprofundar as discussões sobre os processos de escolarização e política educacional junto aos psicólogos que trabalham nas secretarias de saúde, psicólogos clínicos, portanto, que recebem uma grande demanda escolar. Estreitar a comunicação com essa área da Psicologia abrirá certamente a oportunidade para uma interação e integração maior entre as demais áreas de especialidade da Psicologia que se dedicam ao estudo e trabalho com crianças, adolescentes e os diversos espaços institucionais. Não acho tarefa fácil, mas imprescindível. Deixo registrada, então, minha preocupação com a atual fragmentação dos saberes e práticas e a pouca comunicação entre as áreas de especialidades da Psicologia.
Mitsuko Antunes: Você poderia falar um pouco de Yvonne Khouri como personagem de relevância na história da Psicologia Escolar no Brasil?
Carmem Taverna: É sempre um prazer falar de D. Yvonne. Como historiadora da Psicologia, penso que é importantíssimo lembrar sua trajetória. Nós, psicólogos, temos muito a aprender com ela. O percurso de Yvonne Khouri como psicóloga e educadora é referência profissional, exemplo do compromisso da Psicologia com as questões sociais brasileiras, notadamente com as questões educacionais.
Iniciou sua trajetória na Prefeitura de São Paulo como educadora sanitária; especializou-se em Psicologia Clínica e chefiou o Serviço de Psicologia Clínica no Departamento de Assistência Escolar da Secretaria da Educação da PMSP, em meados da década de 1960. O crescente aumento do número de encaminhamentos de crianças efetuados pelas escolas, no início da década de 1970, conduziu Yvonne Khouri a realizar estudos, junto à Seção de Psicologia Clínica, que buscassem compreender o denominado fracasso escolar. Em síntese, os estudos por ela orientados mostraram a necessidade de adequação dos programas e metodologias educacionais e de ações profiláticas na área da saúde mental do escolar, da sua família, e da escola como instituição, que poderiam ser realizadas de modo integrado por psicólogos, pedagogos, professores e pais, na própria escola. Assim, criou o Serviço de Psicologia Escolar, em 1975. Um desafio, pois esse projeto confrontava o encaminhamento dado pela Psicologia, à época, colocando-se ao lado dos questionamentos que passaram a ser feitos em relação à profissão de psicólogo e ao encaminhamento dado pelo ensino de Psicologia, que priorizava a formação do psicólogo dentro do padrão de profissional liberal. Como já disse, os psicólogos na prefeitura precisaram, além de utilizar conhecimento e instrumental específico da área, compreender as relações entre escola e sociedade. Por valorizar o encontro dos psicólogos para a discussão crítica do seu trabalho, Dra. Yvonne, em 1978, fundou e presidiu a Associação dos Psicólogos da Prefeitura - APP, cujo objetivo era o de aglutinar não só os psicólogos da Secretaria da Educação, mas também aqueles que trabalhavam em outras secretarias. Vale lembrar que, nesse período, ainda vigorava uma política autoritária nas instâncias públicas. Em 1979, aposentou-se da PMSP. Deixou seu exemplo, força, persistência e a confirmação da importância da Psicologia na educação pública.
Manteve-se ativa, ou melhor, ativista da democracia, da defesa da profissão de psicólogo e da luta de educação para todos. Integrou, em 1978, o Fórum de Psicólogos, movimento de profissionais preocupados em discutir e repensar a atuação da Psicologia na sociedade brasileira e a participação dos psicólogos nos órgãos de representação da categoria: sindicato e conselho profissional. Participou da chapa de oposição que concorreu e foi eleita como conselheira para o CRP de São Paulo, em 1980. Expressiva também foi sua participação nos anos seguintes em âmbito federal, representando o Estado de São Paulo no Conselho Federal de Psicologia.
No Centro de Educação da PUCSP, foi professora por longos anos, tendo assumido, em duas gestões, sua direção e representando-o no Conselho Universitário (órgão máximo de deliberação da universidade). Foi também professora do Programa de Pós Graduação em Educação e Currículo, também na PUCSP, tendo tomado a si a formação de muitos mestres e doutores, lado a lado com outros educadores, como Paulo Freire, com quem partilhou seu trabalho.
Enfatizo que, em 1984, momento em que uma parcela de psicólogos escolares sinalizava, através dos órgãos de classe, a necessidade de debates, que teriam por objetivo definir a contribuição da Psicologia ao processo educacional, é publicado o livro Psicologia Escolar, organizado por D. Yvonne, o volume n.1 da Coleção Temas Básicos de Psicologia. Buscava, assim, oferecer subsídios para o estabelecimento de alguns paradigmas de atuação, definindo mais claramente a contribuição dos psicólogos à Educação, a partir da reflexão crítica sobre a realidade educacional brasileira. Penso que a edição desse livro parece ter sido uma resposta pública ao questionamento feito por um grupo de psicólogos escolares da prefeitura quanto ao compromisso da Psicologia Escolar com a realidade educacional paulistana. Portanto, seu trabalho é uma importante referência.
Mitsuko Antunes: Para finalizar, que mensagem você enviaria aos estudantes de Psicologia e, em especial, para aqueles que têm interesse pelo campo da Psicologia Escolar?
Carmem Taverna: Hoje, com tanta facilidade na comunicação, e nesse momento de grande movimento da Psicologia Escolar, digo aos estudantes para participarem dos eventos promovidos por nossos órgãos de representação. Mas, como professora, penso que é também a sala de aula um espaço privilegiado para a reflexão sobre o movimento atual da Psicologia Escolar e, por isso, sugiro, além do conteúdo teórico e estágios, que aproximação maior seja feita entre o curso de graduação e os estudos e pesquisas realizados nos diversos programas de Psicologia Escolar/Educacional dos cursos de pós-graduação. Uma necessidade, sem dúvida.
Carmem Silva Rotondano Taverna (carmemtaverna@uol.com.br)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
Mitsuko Aparecida Makino Antunes (miantunes@pucsp.br)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
02 Mar 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2011