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A GÊNESE DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL NOS MANUSCRITOS DE VIGOTSKI DE 1926

La génesis de la teoría histórico-cultural en los manuscritos de Vygotsky de 1926

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar um conjunto restrito de anotações realizados por Vigotski, entre 1925 e 1926. O estudo desses manuscritos tomou como base suas produções posteriores, as quais deram origem ao projeto vigotskiano para uma psicologia científica. Por se tratar de uma análise documental e que tem como objetivo investigar conceitos criados pelo autor, o método utilizado foi o estudo teórico. Constatamos que essas anotações expressam os problemas enfrentados pelo autor para definir o objeto e os métodos da psicologia. Os manuscritos indicam os problemas encontrados por Vigotski na sua busca por métodos objetivos de estudo da consciência. Desse modo, concluímos que as suas anotações são de extrema importância para a compreensão do processo de construção da sua teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano.

Palavras-chave:
Vigotski; Psicologia histórico-cultural; desenvolvimento humano

RESUMEN

En el presente artículo el objetivo es analizar un conjunto restricto de apuntes realizados por Vygotsky, entre 1925 y 1926. El estudio de estos manuscritos se basó en sus producciones posteriores, que dieron lugar al proyecto vygotskiano de una psicología científica. Por tratarse de un análisis documental y que presenta como objetivo investigar conceptos creados por el autor, se utilizó el método de estudio teórico. Encontramos que estas notas expresan los problemas que enfrenta el autor al definir el objeto y los métodos de la psicología. Los manuscritos indican los problemas encontrados por Vygotsky en la búsqueda por métodos objetivos de estudio de la consciencia. De ese modo, se concluye que sus apuntes son de extrema importancia para la comprensión del proceso de construcción de su teoría histórico-cultural del desarrollo humano.

Palabras clave:
Vygotsky; Psicología histórico-cultural; desarrollo humano

ABSTRACT

The present article aims to analyze a restricted set of notes made by Vygotsky, between 1925 and 1926. The study of these manuscripts was based on his later productions, which gave rise to the Vygotskian project for a scientific psychology. The method used was theoretical study. We found that these notes express the problems faced by the author in defining the object and methods of psychology. The manuscripts indicate the problems encountered by Vygotsky in his search for objective methods for studying consciousness. Therefore, we conclude that his notes are extremely important for understanding the process of building his historical-cultural theory of human development.

Keywords:
Vygotsky; Historical-cultural psychology; human development

INTRODUÇÃO

O psicólogo soviético Lev Seminovitch Vigotski (1896-1934) é considerado um dos grandes nomes da Psicologia mundial. Aqueles que trabalharam com ele não mediram elogios para descrevê-lo. Luria (1979/1992), por exemplo, afirmou que durante sua carreira nunca encontrou outra pessoa cujas qualidades intelectuais se aproximassem das de Vigotski. Estudiosos de sua obra o consideram como exemplo de criatividade no campo científico (Dafermos, 2018Dafermos, M. (2018). Rethinking Cultural-Historical Theory: A dialectical perspective to Vygotsky. Singapore: Springer. https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-9
https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-...
). Outros como Stetsenko e Arievitch (2004Stetsenko, A., & Arievitch, I. (2004). Vygotskian collaborative project of social transformation: History, politics, and practice in knowledge construction. The International Journal of Critical Psychology, 12(4), 58-80.) atestam que sua importância vem do seu comprometimento com os ideais de justiça, equidade e mudança social. De modo amplo, o valor de sua produção decorre da sua posição crítica em relação às concepções reducionistas sobre a constituição da consciência humana, bem como dos métodos desenvolvidos para tentar superar tais limites.

Dada a importância do autor, existe a crescente necessidade de compreender sua teoria, sobretudo os fundamentos metodológicos desenvolvidos por ele para o estudo do desenvolvimento humano. Apesar do aumento da divulgação de sua obra, Veresov (2010Veresov, N. (2010). Forgotten methodology Vygotsky’s case. In Toomela, A.; Valsiner, J. (Ed.), Methodological Thinking in Psychology: 60 Years Gone Astray?(pp. 267-295). Charlote/NC: IAP.) afirma que suas criações metodológicas permanecem desconhecidas na Psicologia hegemônica contemporânea ou foram mal compreendidas. Elhammoumi (2009Elhammoumi, M. (2009). Vygotsky’s scientific psychology: Terra incognita. Cultural-Historical Psychology, v. 5, n. 3, p. 49-54.), por sua vez argumenta na mesma direção, ao afirmar que o legado deixado por Vigotski, na tentativa de formular uma Psicologia a partir das bases marxistas, ainda constitui um campo inexplorado pela ciência psicológica. Carecem ainda, investigações sobre a pré-história da Psicologia Histórico-Cultural, como atesta Veresov (1999Veresov, N. (2010). Forgotten methodology Vygotsky’s case. In Toomela, A.; Valsiner, J. (Ed.), Methodological Thinking in Psychology: 60 Years Gone Astray?(pp. 267-295). Charlote/NC: IAP.), sobretudo aquelas que analisam as relações entre os trabalhos publicados e não publicados.

Desse modo, os seus manuscritos e cadernos de anotações constituem uma importante fonte de pesquisa bibliográfica sobre o seu “laboratório criativo”, pois expressam o seu processo de investigação, que envolve o registro de alguns dos seus estudos, o desenvolvimento de hipóteses de pesquisa e planejamentos de experimentos que serviram de ponto de partida para pesquisas empíricas e elaborações teóricas (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer .).

Nosso objetivo será analisar um conjunto restrito de anotações realizados pelo autor e argumentar que elas expressam concepções sobre o objeto e método que guiaram sua produção posterior, portanto ligadas a gênese da teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano. Além disso, o material analisado fornece indícios para compreendermos como teve início o desenvolvimento dos estudos da consciência a partir da mediação dos signos e, posteriormente, dos significados. Para tanto, tomaremos como objeto de análise algumas anotações produzidas por ele e que permaneceram inéditos até recentemente (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer .). Suas anotações vieram a público após a abertura dos seus arquivos pela sua família, em 2006. O trabalho de seleção, organização, transcrição e edição de parte dos arquivos foi feito por Zavershneva (2010Zavershneva, E.(2010). The Vygotsky Family Archive (1912-1934). Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n. 1, p. 14-33.).

Conforme Veresov (1999Veresov, N. (1999). Undiscovered Vygotsky: Etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. New York: Peter Lang.), os primeiros anos de Vigotski em Moscou foram “menosprezados não apenas historicamente, mas também metodologicamente” (p. 108). Com o intuito de preencher essa lacuna, elencamos como objeto de análise os seus manuscritos escritos durante o período inicial da sua incursão na psicologia. Analisaremos, especialmente, algumas anotações organizadas com o título “Do Hospital de Zakharino” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer .), pois foram produzidos enquanto Vigotski estava internado para tratamento de saúde, entre novembro de 1925 e maio de 1926. Essas anotações não foram feitas com a intenção de serem publicadas, pois são um material de estudo e reflexão do próprio autor.

Zavershneva (2012aZavershneva, E. (2012a). “The Key to Human Psychology” Commentary on L.S. Vygotsky’s Notebook from the Zakharino Hospital (1926). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 50, n. 4, pp. 16-41.) foi uma das poucas pesquisadoras, até o momento, a investigar tal material, portanto ainda carecem investigações para reconstruir o caminho de pesquisa percorrido por Vigotski durante o período inicial de sua produção. Sua importância decorre do fato de serem anotações anteriores às pesquisas envolvendo o método instrumental, base para o desenvolvimento do projeto de Vigotski para o estudo do desenvolvimento cultural da criança. São, ainda, anteriores ao manuscrito não publicado “O significado histórico da crise da psicologia” (Zavershneva, 2012bZavershneva, E.(2010). The Vygotsky Family Archive (1912-1934). Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n. 1, p. 14-33.), decisivo para o desenvolvimento posterior de sua teoria. Além disso, fazem parte de um período em que o autor estava se distanciando da reflexologia de Ivan Pavlov (1849-1936) e da reactologia de Konstantin Kornilov (1879-1957).

Por se tratar de um estudo teórico, realizamos uma leitura imanente do material analisado, além de cotejar com outros materiais do próprio autor, publicados e não publicados posteriormente. O diálogo que será estabelecido entre o material analisado e outros escritos do autor, de períodos posteriores, teve como ponto de partida temas ligados ao problema do objeto da psicologia e dos seus métodos. Como metodologia de análise, utilizamos os Procedimentos de interpretação conceitual de texto (PICT) (Laurenti & Lopes, 2016Laurenti, C., &Lopes, C. (2016). Metodologia da pesquisa conceitual em psicologia. In Laurenti, C.; Lopes, C., & Araujo, S. F. (Eds.), Pesquisa teórica em psicologia: aspectos filosóficos e metodológicos (pp. 41-69). São Paulo: Hogrefe.). O objetivo de tal metodologia é possibilitar uma síntese dos principais conceitos utilizados pelo autor. Para cumprir esse objetivo, realizamos diversas leituras a fim de separar os assuntos em núcleos temáticos, pois são um conjunto de anotações privadas que não foram redigidas para serem publicadas. Assim, refletem diversas preocupações que o autor teve durante o período de escrita e que nem sempre seguem uma ordem lógica clara. Apesar do seu caráter provisório, várias hipóteses e conceitos retornaram nos seus escritos posteriores, tal como pretendemos demonstrar.

A delimitação dos excertos mais relevantes teve como base a relação deles com teses e métodos que se tornaram nucleares do sistema teórico posterior do autor. Por se tratar de uma pesquisa que teve como objeto a obra de Vigotski, nos limitamos a realizar análises que tomam como base apenas as obras do referido autor. Desse modo, não foi o objetivo da pesquisa avaliar como as ideias contidas nos seus manuscritos se relacionam com a produção de outros autores da teoria histórico-cultural ou de outras correntes teóricas. Antes de iniciarmos a análise do material, apresentaremos brevemente a natureza das suas anotações, bem como do material selecionado para fundamentar a investigação.

BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO DOS MANUSCRITOS

Os manuscritos que serão analisados pertencem a um período crítico na vida de Vigotski. Ele foi internado no hospital de Zakharino após chegar de sua viagem a Londres, sua única viagem ao exterior. A viagem teve como objetivo representar a União Soviética na Conferência Internacional de Educação de Crianças Surdas (Yasnitsky, 2018Yasnitsky, A. (2018). Vygotsky: An intellectual biography. New York: Routledge.). Em anotação feita durante a viagem, o autor previu que, em razão da sua saúde debilitada, teria no máximo entre 5 e 10 anos de vida (Vygotsky, 2018). Por essa razão, o autor produziu muito pouco durante o período em que ficou internado, pois além das condições de saúde, o ambiente de internação não era favorável ao trabalho intelectual. Ele escreveu apenas algumas cartas e realizou poucas anotações.

Diferente de outros conjuntos de anotações, que utilizaram diversos suportes, como verso de artigos, pequenos recortes de papéis, recibos, dentre outros, as anotações realizadas durante sua internação no hospital de Zakharino foram escritas em um pequeno caderno. De acordo com Zavershneva (2012aZavershneva, E. (2012a). “The Key to Human Psychology” Commentary on L.S. Vygotsky’s Notebook from the Zakharino Hospital (1926). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 50, n. 4, pp. 16-41.), o caderno possui 23 páginas escritas. As páginas não foram numeradas ou datadas e o formato da escrita e a tinta utilizada indicam os diferentes momentos em que as anotações foram realizadas.

Conforme Zavershneva (2012aZavershneva, E. (2012a). “The Key to Human Psychology” Commentary on L.S. Vygotsky’s Notebook from the Zakharino Hospital (1926). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 50, n. 4, pp. 16-41.), as anotações se iniciaram após sua internação e terminaram pouco depois da sua alta. Ainda conforma a autora, essas anotações lançam luz em um período obscuro de sua produção, período esse em que a teoria histórico-cultural começou a surgir. Essas anotações demarcam um período de transição entre a tentativa de conciliar os métodos psicológicos e reflexológicos (Vigotski, 2004) e o abandono dessa tentativa rumo a criação de situações experimentais para o estudo das funções psicológicas superiores baseadas na mediação dos signos culturais. Dessa forma, elas pertencem a chamada pré-história da Teoria Histórico-Cultural (Veresov, 1999Veresov, N. (1999). Undiscovered Vygotsky: Etudes on the pre-history of cultural-historical psychology. New York: Peter Lang.).

De maneira geral, as anotações tratam das seguintes temáticas: 1) Anotações complementares à sua tese sobre a Psicologia da Arte; 2) Reflexões sobre a essência social da pessoa, apoiadas em Marx; 3) Menções sobre a fala e seu papel no desenvolvimento da consciência; 4) Associação do signo mediado com o desenvolvimento humano; 5) Anotações sobre o problema psicofísico; e 6) Rascunhos sobre o método da Psicologia que foram usados parcialmente no texto “Significado histórico da crise da Psicologia”.

Zavershneva (2012aZavershneva, E. (2012a). “The Key to Human Psychology” Commentary on L.S. Vygotsky’s Notebook from the Zakharino Hospital (1926). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 50, n. 4, pp. 16-41.) abordou os manuscritos a partir das temáticas acima. Nós, por outro lado, nos concentraremos em tópicos relativos ao problema do objeto da psicologia e seus métodos de estudo. Analisaremos os seguintes temas relativos ao objeto da psicologia: 1) questões relativas à origem social da consciência; 2) a relação entre fala e desenvolvimento humano; 3) reflexões sobre o problema psicofísico. Em relação aos métodos de estudo da consciência, os temas analisados serão os seguintes: 1) método de abstração; 2) método reverso; 3) método de reconstrução do fenômeno.

EM BUSCA DE UMA NOVA DEFINIÇÃO DO OBJETO DA PSICOLOGIA

Antes de iniciarmos a abordagem efetiva do conteúdo das anotações, devemos mencionar o que não aparece em tais manuscritos, pois pode indicar uma mudança de orientação da reflexão do autor. A tentativa de conciliar os métodos reflexológicos e psicológicos, presente em escritos do mesmo período, não comparecem em suas anotações. Nesses textos publicados, apesar de apontar os limites da reflexologia, existe ainda uma leitura da consciência que se traduz a termos reflexológicos (Vigotski, 2004Vygotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia(C. Berliner, Trad.; 3a ed.). São Paulo: Martins Fontes .). Ele colocou em questão a necessidade de se investigar a consciência por intermédio da palavra enquanto um reflexo reversível, criado pelo próprio homem. Vale mencionar que ele já considerava a “experiência social” como base para a formação da consciência, porém ainda não existia um sistema teórico com conceitos próprios para explicar esse processo. Assim sendo, recorreu à teoria materialista dos processos mentais que existia naquele período, a reflexologia de Pavlov. Em contrapartida, em suas anotações que serão analisadas, a palavra reflexo aparece apenas duas vezes. Este pode ser um forte indício de que naquele período já havia abandonado definitivamente a tentativa de “reformular” a reflexologia. Do seu alerta sobre a necessidade de a reflexologia tomar a palavra como um excitante para o comportamento e mesmo como base para a consciência, apenas restou a preocupação com o papel da palavra em tais processos psicológicos. Uma forma mais acabada sobre o lugar da palavra na constituição das funções psicológicas foi uma tarefa desenvolvida posteriormente, mas sua semente já estava plantada nesse período.

Durante o período em que esteve internado no hospital de Zakharino, Vigotski estava travando um embate interno para buscar meios de estudos a consciência. Apesar das considerações que se seguem, devemos alertar o leitor para o fato de que Vigotski acreditava que não poderia haver uma compreensão do objeto de pesquisa antes da pesquisa em si, isto é, antes da reprodução ideal do movimento real do fenômeno. Nesse sentido, ele estava inteiramente de acordo com o método dialético de Marx. A compreensão do objeto é justamente o resultado do processo de conhecimento dos fatos empíricos mediados pela abstração. Em suas palavras: “[...] o método é, ao mesmo tempo, premissa e produto, a ferramenta e resultado da investigação” (Vygotski, 1960/2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960)., p. 47). Diante do exposto, somos contrários às interpretações que compreendem o método de pesquisa e a explicação de um dado fenômeno como resultado da reflexão do pesquisador antes do contato com o seu objeto de pesquisa. Esse tipo de visão é um equívoco interpretativo tendo em vista o seu método de pesquisa. Propomos que foi o objeto de pesquisa que se impôs ao pesquisador e exigiu a reformulação tanto dos métodos, quanto da sua interpretação ao longo do seu trabalho de pesquisa.

Nesse sentido, as hipóteses sobre a origem da consciência devem ser vistas como especulações que deveriam ser comprovadas pelos dados empíricos. Uma das anotações feitas sobre essa questão dizem respeito ao problema da relação entre a origem animal e cultural (política) do comportamento do ser humano, questão central para os seus trabalhos futuros, e que se tornou o cerne de sua definição sobre o objeto da psicologia (Vygotski, 1960/2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960).). O plano para escrever uma monografia que teria o título de “Zoon Politikon” é uma das expressões dessas reflexões. Apesar da importância da discussão, tal monografia nunca foi escrita. Acreditamos que o livro “Estudos sobre a história do comportamento- símios, homem primitivo e a criança” possa ser a tentativa inicial de levar a cabo esse plano (Vygotsky & Luria, 1930/1996Vygotsky, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança (L. L. Oliveira, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1930).).

A concepção da consciência como tendo origem cultural e social já vinha sendo desenvolvida desde o seu livro “Psicologia da Arte. Nesse estudo, Vigotski criticou as Psicologias individualistas e chamou a atenção para a necessidade de estudar o “psiquismo social” (Vigotski, 1965/1999Vygotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965).), pois sua abordagem ontológica estava se delineando durante a escrita desse livro, por intermédio de Marx e Engels. Nessa mesma publicação, ele afirma que, segundo Marx, o “[...] homem, no mais lato sentido, é um zoon politikon, não só um animal a quem é intrínseca a comunicação mas um animal que só em sociedade pode isolar-se” (Marx conforme citado por Vigotski, 1965/1999Vygotski, L. S. (1999). Psicologia da arte (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965)., p. 14). Vale mencionar que o primeiro capítulo do livro Psicologia da Arte foi último material a ser escrito e por essa razão guarda semelhanças com as anotações escritas no hospital de Zakharino e com o texto “O significado histórico da crise da psicologia” (Zavershneva, 2012aZavershneva, E. (2012a). “The Key to Human Psychology” Commentary on L.S. Vygotsky’s Notebook from the Zakharino Hospital (1926). Journal of Russian and East European Psychology, vol. 50, n. 4, pp. 16-41.).

Vigotski enfatiza, em várias passagens de suas anotações, a origem social da consciência. Desse modo, apenas reforçou uma concepção que já vinha se delineando. No primeiro fragmento do caderno, por exemplo, ele anotou os seguintes tópicos referentes a essa questão:

Psicologia individual e social. Pensamento e fala. A análise dos atos de empatia constitui o desenvolvimento de um tema: 1. A metodologia de bio e sócio; 2. O problema concreto, central, fala é a consciência, o indivíduo é organizado de acordo com o tipo de estrutura social; 3. Seu mecanismo é empatia por objetos, a objetificação das condições internas. (Vygotsky, 2018, p. 73, grifos do autor).

Acreditamos que tais anotações denotam, de forma embrionária, a concepção sobre a natureza da constituição da pessoa que foi sintetizada pelo autor por meio da “lei genética geral do desenvolvimento cultural”, elaborada alguns anos depois. No texto intitulado “Gênese das funções psíquicas superiores”, que faz parte do estudo sobre a “História do desenvolvimento das funções psicológicas superiores”, Vigotski (1960/2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960).) estabeleceu que toda função psicológica superior tem origem cultural e aparece em dois planos, primeiramente no plano social (interpsicológico) e depois no interior da criança como categoria intrapsíquica. Com isso, quando Vigotski assevera, na passagem acima, que o indivíduo é organizado de acordo com o tipo de estrutura social, temos indícios para supor que não houve modificação substancial da sua concepção sobre a forma de constituição do fenômeno psicológico. O que se operou foi uma compreensão mais acabada, a partir dos dados empíricos, das interações entre processos interpsíquicos e intrapsíquicos. Ou seja, temos aqui claramente o problema da transferência [perenós] entre o meio social e os processos psicológicos, visto como central no final da sua produção (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer .). Sua interpretação da dinâmica entre as relações externas e internas se modificou ao longo de sua obra. No final de sua vida ele analisou esse problema a partir da relação entre o campo da ação e o campo semântico (Vygotski, 1997Vygotski, L. S. (1997). Obras Escogidas V: Fundamentos de defecología(J. G. Blank, Trad.). Madrid: Visor.).

Sua busca por uma nova definição ontológica implicou na crítica às orientações dos autores da sua época. Por exemplo, no manuscrito “O significado histórico da crise da Psicologia, escrito provavelmente após a saída do hospital, ele criticou a psicanálise, o behaviorismo, o personalismo e a Gestalt. Sua análise crítica não poupou seus compatriotas, Pavlov e Kornilov, representantes das principais orientações psicológicas daquele período na União Soviética, a reflexologia e a reactologia, respectivamente. Nas anotações produzidas durante sua internação, Vigotski criticou especificamente Kornilov. Esse psicólogo assumiu em 1923, o comando do Instituto de Psicologia de Moscou. Ele também foi um dos primeiros a propor a criação de uma Psicologia com base nos métodos de Marx. Vigotski se afastou paulatinamente da reactologia de Kornilov e rompeu definitivamente com o autor em 1928 (Yasnitsky, 2018Yasnitsky, A. (2018). Vygotsky: An intellectual biography. New York: Routledge.).

Na sua crítica à reactologia, Vigotski argumentou que a definição do comportamento como um sistema de reações, típico do sistema de Kornilov, envolve um mal-entendido fundamental. Ele criticou a visão reactológica que propõe que o ser humano é passivo em relação ao meio ambiente. “Minha ação muda a situação e não é apenas determinada pela situação anterior, mas pelo processo de mudança como um todo - tanto externamente quanto internamente” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 75). Essa passagem de suas anotações indica que Vigotski estava consciente da relação global entre indivíduo e ambiente, fato que seria reelaborado na produção da década de 1930, através do conceito de “situação social de desenvolvimento” (Vygotski, 2006Vygotski, L. S. (2006). Obras escogidas IV: Psicología infantil (L. Kuper, Trad.; 2a ed.) Madrid: Visor .). Nesse sentido, podemos observar que a concepção do indivíduo como um ser ativo é um princípio ontológico fundamental que já estava tomando forma nesse momento da sua reflexão.

A discussão sobre o aspecto ativo do comportamento do ser humano se relaciona com a diferenciação entre o comportamento humano e o comportamento animal. Na sequência, o autor enfatiza que adaptação é um bom termo “para a mudanças morfológica (uma resposta às condições ambientais)” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 75). Para o ser humano, ao contrário da adaptação animal, o comportamento é “atividade”, e não uma “resposta”. Segundo o autor, o comportamento humano difere do animal nos seguintes aspectos: “1) Estímulos artificiais; 2) O aparato trazido de fora (empatia); 3) Reações artificiais (fala etc.)” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 76). Nessa diferenciação, a qual teve como base, provavelmente, seus estudos sobre os achados da época referente ao comportamento animal e suas reflexões sobre a origem do ser social, podemos identificar a pré-história do seu método instrumental de pesquisa. Em nossa hipótese, esse fato pode ser observado quando ele pontua que os “estímulos artificiais” fazem com que o comportamento humano seja diferente do comportamento animal. Também é possível notar o problema da transferência [perenós] entre os aspectos externos e internos, ao passo que ele anota sobre o “aparato trazido de fora” como determinante para o desenvolvimento humano.

Já se delineava a hipótese de que a dinâmica entre a consciência e o aparato trazido de fora passava pela mediação da palavra. A clássica comparação da palavra enquanto um “estímulo criado artificialmente” com a “ferramenta” de trabalho, típica dos textos do período instrumental, já figurava no período em que estava internado. Em suas palavras: “O comportamento verbal difere do comportamento não-verbal como o trabalho difere da adaptação dos animais (a ferramenta também está fora do organismo, ou seja, é um órgão da sociedade).” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 75). Nesse sentido, nessa época, já estava presente em sua reflexão a concepção sobre o papel do estímulo artificial como elemento fundamental para a diferenciação entre o ser humano e o animal. O caráter artificial do estímulo criado pelo homem está, segundo essa visão, na capacidade de não apenas responder aos estímulos do ambiente, mas também criar novos estímulos, portanto o homem não é passivo em relação ao meio. Atrelado a essa visão está o papel do trabalho no caráter ativo do homem na transformação da natureza. A palavra foi considerada um estímulo para “regulação” e organização do comportamento do indivíduo e dos demais ao seu redor, determinante para o desenvolvimento do trabalho coletivo.

A analogia entre o comportamento verbal e a atividade prática de trabalho foi fundamental para a elaboração do seu método de pesquisa das funções psicológicas superiores. Desse modo, é possível notar que a compreensão sobre a função dos instrumentos psicológicos na constituição do comportamento humano já figurava como hipótese alguns anos antes da criação do método instrumental e do desenvolvimento das suas pesquisas que utilizaram o método genético-experimental (Vygotski, 1960/2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960).). Assim, essas anotações feitas entre 1925 e 1926 são de suma importância para acompanharmos o processo de desenvolvimento do seu projeto de pesquisa.

As anotações sobre os estímulos artificiais e sobre o comportamento verbal estão relacionadas à sua hipótese sobre a origem da consciência. Vigotski anotou que a “[...] consciência é fala para si, ela tem origem na sociedade com a linguagem (Marx)”. Na sequência, ele acrescenta: “[...] fala é sempre diálogo. Consciência é diálogo consigo mesmo” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 74). Para concluir a demonstração da ligação dessas hipóteses com o método instrumental, citaremos um trecho de uma anotação que fará eco com a lei genética geral do desenvolvimento cultural, mencionada anteriormente.

Já o fato de que a criança primeiro escuta e compreende e depois adquire consciência verbal indica que: (1) A consciência se desenvolve a partir da experiência; (2) Falando consigo mesmo = agir conscientemente, a criança assume a posição do outro, relaciona-se consigo mesma como se fosse outra pessoa, imita outra pessoa falando com ela, substitui a outra pessoa em relação a si mesma, aprende a ser outra pessoa em relação ao seu próprio corpo. (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 74).

A citação acima demonstra um problema que foi perseguido por Vigotski durante toda a sua vida: como o ser humano toma consciência de si a partir da perspectiva do outro? No texto “A consciência como problema da psicologia do comportamento”, de 1925, ele formula a seguinte hipótese, que se aproxima da citação acima: “Temos consciência de nós mesmos, pois temos consciência dos outros e do mesmo modo temos consciência do outro, pois, em relação a nós mesmos, somos os mesmos que o outro em relação a nós” (Vigotski, 2023Zavershneva, E.(2010). The Vygotsky Family Archive (1912-1934). Journal of Russian and East European Psychology, v. 48, n. 1, p. 14-33., p. 55). O papel da imitação no desenvolvimento humano foi central para sua explicação de como a nossa consciência deriva da tomada de perspectiva do outro, ou seja, da relação com as pessoas ao nosso redor. No período final da sua vida, Vigotski se voltou ao estudo do desenvolvimento dos conceitos como forma de estudo desse mecanismo. No contexto dessa investigação, o autor chegou a afirmar que o conceito científico permite ao aluno atuar em colaboração, mesmo quando o professor está ausente (Vigotski, 1934/2001Vygotski, L. S. (2001) A construção do Pensamento e da linguagem (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1934).). Além disso, a imitação é a base para o desenvolvimento da Zona de desenvolvimento proximal, pois é por meio da imitação de um adulto que a criança pode realizar o que antes era impossível de forma autônoma (Vigotski, 1934/2001Vygotski, L. S. (2001) A construção do Pensamento e da linguagem (P. Bezerra, Trad.). São Paulo: Martins Fontes (Trabalho original publicado em 1934).). Desse modo, a forma de explicação da tomada de consciência de si, no período final de sua obra, passou pela formação dos conceitos nas relações de colaboração.

Relativamente a essa discussão, Vigotski aproxima-se da noção de “autodesenvolvimento”, inspirado em Wilhelm Stern (1871-1938). Ele concorda com esse autor, ao entender que o desenvolvimento infantil não pode ser explicado pela adaptação. Se isso fosse verdadeiro, a ontogênese deveria repetir a filogênese. Apesar de algumas críticas direcionadas à Stern, Vigotski anotou que uma concepção desse autor teria valor: “[...] A pessoa é formada como uma família = uma comunidade dentro de si” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 80). Dessa forma, aqui é possível notar a concepção ontológica sobre o papel da coletividade na origem da pessoa, isto é, a determinação social do desenvolvimento do psiquismo.

Juntamente com o problema da origem do fenômeno psicológico, há também o problema “psicofísico”, o qual passa pela constatação de que “o subjetivo pressupõe absolutamente o objetivo” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 77). Nesta discussão, ele demonstra claramente sua concepção materialista da origem do aparato psíquico. Para o autor, não existe uma essência subjetiva que não se relaciona com a objetividade. Não se trata somente da materialidade da estrutura biológica, suporte do funcionamento psicológico, mas também do papel das relações sociais para tal desenvolvimento. Em outras palavras, ele trata da natureza social da mente, estruturada objetivamente a partir das relações entre as pessoas. A seguinte passagem exemplifica essa questão: O fenômeno mental é constituído das relações entre “[...] dois indivíduos sociais (interpsicológico) ou entre o corpo e o ‘ego’ (como o social em nós)” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 79). Na sequência, Vigotski dispara:

Precisamos descobrir a consciência, o fetichismo dos fenômenos mentais, assim como o fetichismo das mercadorias. O fenômeno mental é, assim como uma mercadoria, uma coisa sensória-suprasensória; a parte suprasensória é a relação social, reificada, social projetada em uma coisa (na palavra). Assim como a mercadoria é uma mercadoria não por suas propriedades físicas, mas por causa das relações sociais por trás dela, o processo fisiológico nos nervos em si não é um ato comportamental, mas as relações sociais por trás dele, que lhe dão esse significado. (Vygotsky, 2018, p. 79).

Vigotski está nos indicando que o fenômeno mental não é uma “coisa em si”, que tem existência independente do seu substrato objetivo, que são as relações sociais. Assim como Marx precisou ir além da aparência da mercadoria para desvendar sua natureza, por meio das relações sociais mediadas pela dinâmica entre produção, distribuição, troca e consumo, Vigotski indica que é preciso realizar a mesma operação, a fim de se estudar os fenômenos psicológicos. Ele conclama para a necessidade da busca da “mercadoria” da Psicologia, do “fetichismo dos fenômenos mentais”. Neste momento, ele ainda não tinha a resposta para essa questão, que somente foi alcançado no final da sua produção, como a seguinte passagem de uma anotação de 1933 indica: “O sistema [psicológico] é reproduzido em todo significado como o sistema capitalista é reproduzido na operação com a mercadoria” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 354). No final da sua vida ele encontrou a mercadoria da psicologia: o significado da palavra; contudo, o caminho até a descoberta do aspecto “supra-sensório” do fenômeno mental precisou de várias mediações até ser alcançado completamente. Em nossa interpretação, não foi o autor que escolheu deliberadamente o significado como unidade de análise do fenômeno psicológico, mas foi o próprio objeto que se impôs. Os fenômenos psicológicos reais, em suas várias formas de expressão nas pesquisas desenvolvidas pelo autor, se apresentaram de diferentes maneiras e em diferentes níveis de abstração, até que seu movimento na realidade pudesse ser reproduzido idealmente. O caminho desenvolvido pelo autor para a reprodução do objeto ocorreu a partir das pesquisas que utilizaram o método instrumental, passando pelo método de investigação do desenvolvimento dos conceitos nos adolescentes, análises de casos clínicos, estudos sobre a ontogênese da aprendizagem, até culminar na descoberta do papel do significado para o desenvolvimento da consciência.

Durante o período em que esteve internado, Vigotski ampliou sua reflexão sobre o problema psicofísico e podemos dizer que ele chegou a três conclusões: 1) a mente não é um processo nervoso; não é uma coisa ou um processo, mas uma relação entre processos; 2) o processo mental não é a expressão de processos psicofisiológicos, mas relação societal de processos nervosos; 3) Psicologia é a ciência da pessoa (não do comportamento ou do fenômeno mental). Vigotski criticou ainda o paralelismo psicofísico, pois “[...] a mente não consome energia porque não é um processo físico, mas a qualificação societal dos processos nervosos” (Vygotsky, 2018, p. 79). Nesse sentido, mais adiante, ele assinala que a “[...] Psicologia não estuda realidades físicas, mas sociais” (p. 80). Vigotski associou o aspecto consciente da pessoa com as relações sociais. Já o aspecto biológico representaria o “inconsciente”. A junção da origem biológica e social ou “[...] a vivida cooperação desses dois princípios é a pessoa.” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 80). Alguns anos depois dessa anotação, no seu texto “A psique, a consciência e o inconsciente”, Vigotski (2004Vygotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia(C. Berliner, Trad.; 3a ed.). São Paulo: Martins Fontes .) criticou a definição do inconsciente como pertencendo ao aparato biológico. Ele afirmou, ao contrário, que o inconsciente é um fenômeno psicológico e não apenas biológico. Essa alteração de perspectiva demonstra o caráter provisório das suas reflexões condensadas nas anotações analisadas. Vale assinalar que, apesar das críticas ao paralelismo psicofísico, alguns pesquisadores consideram que Vigotski acabou produzido uma interpretação também paralelista (Dafermos, 2018Dafermos, M. (2018). Rethinking Cultural-Historical Theory: A dialectical perspective to Vygotsky. Singapore: Springer. https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-9
https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-...
).

Podemos constatar que sua concepção sobre o objeto da Psicologia estava em franca modificação durante o período analisado. Essas alterações devem ser vistas precisamente como diferentes modos de abordagem do fenômeno e não como definições acabadas quanto ao objeto preciso da Psicologia. Esse fato é percebido quando Vigotski declara, em outro conjunto de anotações, posterior a sua saída do hospital, que o objeto não deve surgir antes da Psicologia, mas depois, como resultado da investigação:

O objeto da ciência é uma parte da realidade, representada em conceitos, e isso vem no final. É por isso que vale a pena dar a definição não no começo, mas no final do curso: Então, ela será rica em conteúdo. A primeira definição fornece um ponto de vista que deve ser aceito pelo seu valor aparente: você deve acreditar em mim que existe algo vital, psicológico etc. Logo veremos o que é. Desde esta primeira definição até o curso todo (cada nova peça de conhecimento significa uma definição do objeto) até a definição completa final, que deve acabar com a psicologia (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 109, grifos do autor).

Desse modo, o que Vigotski anotou nos seus cadernos sobre o estatuto ontológico nada mais é do que reflexões sobre o que existe, isto é, a natureza dos fenômenos mentais, pois foram somente as pesquisas empíricas que lhe permitiram descrever a real constituição desse objeto. Na sequência da passagem acima, escrita em 1927, Vigotski ressalta que o objeto surge a partir de aproximações sucessivas, durante o curso do processo científico. Ou seja, a investigação não é a construção do objeto pesquisado, mas a aproximação do pesquisador e sua reprodução ideal.

MÉTODOS PARA O ESTUDO DA CONSCIÊNCIA

Desde o início de sua incursão na Psicologia, Vigotski reconheceu que o ser humano se constitui a partir da superação de suas raízes biológicas. Essa constatação fez surgir a necessidade de elaboração de novos métodos e procedimentos de pesquisas capazes de captar a origem social da consciência humana. Para tanto, Vigotski empreendeu uma análise crítica do método da Psicologia da sua época. Nesse sentido, as anotações ora analisadas contêm reflexões valiosas a esse respeito, e claramente serviram como base para a composição do manuscrito sobre a crise da Psicologia e para a elaboração das pesquisas sobre o desenvolvimento da consciência.

Vigotski sabia que o método da Psicologia não poderia se restringir aos aspectos observáveis do fenômeno pesquisado. Ainda munido do referencial da reflexologia, ele chamou a atenção para a necessidade de se elaborar uma nova metodologia para “[...] investigar os reflexos inibidos”, que seriam inacessíveis à observação direta (Vigotski, 2004Vygotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia(C. Berliner, Trad.; 3a ed.). São Paulo: Martins Fontes ., p. 77). Ainda nessa publicação, Vigotski criticou as concepções que se limitavam ao estudo das “reações visíveis”. Essas concepções negavam a possibilidade de estudo da consciência e seus métodos privariam “[...] os meios mais fundamentais para investigar as reações não manifestas nem aparentes à primeira vista, tais como os movimentos internos, a fala interna, as reações somáticas, etc.” (Vigotski, 2004Vygotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia(C. Berliner, Trad.; 3a ed.). São Paulo: Martins Fontes ., p. 57).

O problema dos métodos de investigação da “fala interna” comparece nos textos que são objeto de análise quando ele reflete sobre a relação entre pensamento e fala (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer .). Vigotski claramente discordava de certos autores, como John Watson (1878-1958), para os quais a palavra é apenas um estímulo que substitui um objeto ou reação. Vigotski anotou que a palavra não é apenas relação entre som e a palavra que ela denota, mas sim “[...] uma relação entre um falante e um ouvinte, uma relação direta entre uma pessoa e um objeto, é uma relação interpsicológica, que estabelece a unidade de dois organismos em direção a um objeto.” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 74). Na sequência, o autor argumenta: “A Linguística transforma a palavra em um fetiche; o psicólogo revela que por trás das relações visíveis entre as coisas estão as relações entre as pessoas (cf. Marx, o fetichismo da mercadoria).” (p. 74). Vemos claramente a referência marxiana no método indireto de estudo dos fenômenos psicológicos. Isto é, nesse momento, Vigotski já expressava a hipótese de que seria necessário compreender o fenômeno de forma indireta, ou seja, para além da sua manifestação imediata. Essa atitude metodológica foi fundamental para suas pesquisas experimentais que levaram o autor a avaliar o desenvolvimento da relação entre pensamento e linguagem. Alguns anos foram necessários para que Vigotski compreendesse as características fundamentais que determinam essa relação (desenvolvimento ontogenético dos conceitos, natureza sistêmica da formação dos conceitos, relação entre significado e sentido, por exemplo). No entanto, por volta de 1925-1926, ele já tinha clareza que a linguagem era muito mais complexa do que uma relação direta entre som e a palavra. Desse modo, dado que o problema da relação entre pensamento e linguagem se tornou central no final da sua vida, essas anotações são de grande importância para compreendermos a evolução do tratamento do problema.

Em outro fragmento, agora dedicado totalmente ao método de Marx, são levantadas algumas questões centrais para a reflexão que Vigotski desenvolveu após as anotações de 1925-1926, especificamente no manuscrito “O significado histórico da crise da Psicologia. Dentre elas, destacamos a indicação da abstração como o método de conhecimento necessário para acessar indiretamente o fenômeno e penetrar na sua essência. Nessas anotações, Vigotski coloca em evidência o problema do método de análise dos fenômenos. “Marx diz que nas ciências sociais a força da abstração desempenha o papel do microscópio” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 84). Ele está se referindo à famosa passagem de Marx (1867/2013), feita no prefácio do Livro I de “O Capital, que versa sobre a natureza dos fenômenos que pretende abordar. Conforme Marx, as “formas econômicas”, diferentemente dos fenômenos naturais, não podem se servir do microscópio nem de reagentes químicos. “A força da abstração [Abstraktionskraft] deve substituir-se a ambos” (Marx, 1867/2013, p. 113). A abstração não diz respeito à livre especulação que não se orienta pelos fatos, ao contrário. Louis Althusser (1918-1990), no prefácio da referida obra de Marx, esclarece que, a despeito de não podermos “tocar com as mãos” o “capital social total” e o “mais-valor”, conceitos elaborados por Marx para explicar o modo de produção capitalista, “[...] esses dois conceitos abstratos designam realidades efetivamente existentes.” (p. 61).

Apesar de partir do método de análise que toma a abstração como fundamento do estudo do fenômeno psicológico, Vigotski não descarta o papel do método de observação. Isso demonstra que sua crítica às orientações que se limitavam a tomar análise como a mera descrição da sua aparência fenomênica não o levou a desprezar tal método. Ao contrário, em uma notação produzida um ano após deixar o hospital, que está provavelmente ligada à sua apresentação no Primeiro Congresso Pedológico de Toda a Rússia, ele defendeu o emprego desse método da seguinte maneira:

Hoje em dia, a abordagem metodológica da psicologia experimental continua cada vez mais num caminho em que o papel do observador se torna imenso, especialmente a observação, que se transforma em um experimento. Eu estou me referindo aos experimentos de Köhler e Jaensch, as filmagens de experimentos, etc. Psicólogos concordarão comigo. Não uma hierarquia de métodos, mas a cooperação de todos esses métodos, os fundamentos da matéria e da dialética em princípio. (Vygotsky, 2018, p. 111).

Vigotski criticou as orientações que reduzem o método experimental a um ato mecânico, que retira do observador o papel de protagonista do processo de conhecimento do fenômeno psicológico. Ao contrário, ele atesta que o papel do observador é imenso. Desse modo, é possível constatar a íntima relação entre ressaltar a importância do método de abstração e o importante papel do observador, no processo de produção de conhecimento. Em outros termos, a abstração só pode ser alcançada em função do papel ativo do observador que percebe um fenômeno e o analisa, dentro de um sistema de fenômenos.

O “método reverso” foi de grande importância para a definição ontológica do fenômeno psicológico. Esse método deu fundamento filosófico para Vigotski tratar os fenômenos em suas formas mais desenvolvidas. A abstração e o estudo do fenômeno em sua forma “mais desenvolvida” teriam sido sintetizados já no seu livro “Psicologia da Arte”. Ele utilizou esse método quando buscou investigar a estrutura de diferentes obras literárias por meio de suas formas mais desenvolvidas. Para tanto, ele escolheu exemplares que sintetizavam o ápice das formas artísticas: fábulas, romances e tragédias. A análise desses exemplares deveria ser capaz de extrair os elementos comuns às demais obras, mesmo às menos complexas. No texto “O significado Histórico da Crise da Psicologia, Vigotski (2004Vygotski, L. S. (2004). Teoria e método em Psicologia(C. Berliner, Trad.; 3a ed.). São Paulo: Martins Fontes .) diz que O Capital foi escrito seguindo esse método. Marx analisou a “célula” da sociedade (a forma do valor da mercadoria) e evidenciou que deve existir uma mediação entre a estrutura mais desenvolvida e a sua célula, portanto o método reverso parte do princípio de que é a forma mais desenvolvida que explica a menos desenvolvida. Esse método articula-se à abstração, visto que, ao se escolher o representante de uma série de fenômenos, se está operando uma generalização.

Voltando as anotações feitas durante sua estadia no hospital de Zakharino, Vigotski reflete sobre o conceito de “supercompensação” de Alfred Adler (1870-1937) e o coloca dentro da matriz marxiana. Ele frisa que, para Marx e Engels, o socialismo seria o capitalismo que foi superado. O mesmo poderia ser dito em relação à arte e à saúde. Ele completa, ressaltando que “[...] no fundo, isso [a ideia de supercompensação] é um princípio dialético de natureza filosófica e epistemológica” (Vygotsky, 2018, p. 81). Esse autor foi usado por Vigotski (Vygotski, 1997Vygotski, L. S. (1997). Obras Escogidas V: Fundamentos de defecología(J. G. Blank, Trad.). Madrid: Visor.) nas suas pesquisas sobre o desenvolvimento de crianças com algum tipo de deficiência. Vigotski atesta que para Adler, a deficiência “se converte, por conseguinte, em ponto de partida e principal força motriz do desenvolvimento psíquico da personalidade” (Vygotski, 1997Vygotsky, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança (L. L. Oliveira, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1930)., p. 15).

González Rey (2013González Rey, F. L. (2013). O pensamento de Vigotsky: Contradições, desdobramentos e desenvolvimento(L. L. Oliveira, Trad.). São Paulo: HUCITEC.) menciona que Adler influenciou Vigotski no que concerne ao papel das relações sociais na formação da pessoa e por meio do seu conceito de “supercompensação”. Por outro lado, posteriormente houve o distanciamento em relação às produções desse autor, pois Vigotski (1997Vygotsky, L. S., & Luria, A. R. (1996). Estudos sobre a história do comportamento: símios, homem primitivo e criança (L. L. Oliveira, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1930).) passou a compreender que são as consequências sociais e não a deficiência em si que condicionam o processo de “supercompensação”. Como resultado dessa concepção, Vigotski se afastou do determinismo objetivo sobre a psique presente na obra de Adler. Esse determinismo compreende uma relação direta entre a doença ou a deficiência e a configuração psíquica. Em outros termos, parte do princípio de que a superação da deficiência está na natureza interna da psique e não nos determinantes sociais.

A concepção dialética sobre o papel da “superação” foi fundamental para as pesquisas futuras de Vigotski. Esse problema aparece em suas pesquisas sobre a relação entre as funções psicológicas inferiores e superiores. Ele salienta o movimento dialético dessa relação, ao explicar o significado da palavra “superar”, em alemão e em russo (Vygotski, 2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960).). Essa palavra teria um duplo significado nessas línguas, denotando tanto destruição como conservação. Em outra ocasião, discutindo o “Desenvolvimento das funções psíquicas na idade de transição”, ele sublinha que “[...] cada estágio superior nega o inferior, mas nega sem destruí-lo, mas incluindo-o como categoria superada, como momento integrante.” (Vygotski, 2006Vygotski, L. S. (2006). Obras escogidas IV: Psicología infantil (L. Kuper, Trad.; 2a ed.) Madrid: Visor ., p. 119). Essa ideia nos remonta à discussão anterior sobre o “método reverso”, pois aquilo que foi superado também está presenta nos estágios mais desenvolvidos. Ela está na base da constituição de sua visão de homem, porque como vimos, ele entendia o homem como superação da sua raiz biológica. De forma mais clara, essa noção aparece nas pesquisas com crianças com algum tipo de deficiência e na análise de casos clínicos, mas também nas investigações sobre o “ato instrumental”, já que o foco sempre foi descobrir como a criança “supera” uma situação-problema, utilizando-se de instrumentos psicológicos. Sendo assim, a concepção dialética que incorpora a noção de superação foi fundamental para as pesquisas futuras de Vigotski.

O princípio de reconstrução do fenômeno foi basilar no processo de criação do seu projeto de pesquisa do comportamento cultural (Vygotski, 2000aVygotski, L. S. (2000a). Obras escogidas III: Problemas del desarrollo de la psique (L. Kuper, Trad.; 2a ed.). Madrid: Visor . (Trabalho original publicado em 1960).). Ele já figurava em suas anotações entre 1925-1926. Nelas, Vigotski considera que “Psicologia pertence às ciências que não permitem o estudo direto (percepção do material), mas requerem sua reconstrução” (Vygotsky, 2018Vygotski, L. S. (2018). Vygotsky’s Notebooks: A Selection (Zavershneva, Org.; R. Van Der Veer, trad). Singapore: Springer ., p. 90). Alguns anos depois, provavelmente no final da década de 1920, Vigotski afirmou que o método de reconstrução possui dois sentidos: “1) estuda não as estruturas naturais, mas construções; 2) não analisa, mas constrói processos.” (Vigotski 2000bVygotski, L. S (2000b). Lev S. Vigotski: Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, v. 71, pp. 21-44., p. 23). Para o autor, a Psicologia não deveria apenas observar os fenômenos, mas reconstruí-los em situações controladas para que fosse possível observar o seu processo de desenvolvimento. A análise genética se tornou o fundamento do seu método posterior e se articulou com o método de reconstrução, pois para estudar o processo de desenvolvimento desde o seu início, é preciso recriar, a partir de formas artificiais, os processos cooperativos entre crianças e adultos que que ocorrem “naturalmente” na vida cotidiana. O método construtivo também se articulava com o método de abstração que, como mencionado, visava superar os fatos observados de maneira imediata. Nas situações experimentais posteriores a 1927, Vigotski se utilizou do método de reconstrução para transformar os processos psicológicos internos, impossíveis de serem observados diretamente, em processos externos, observáveis indiretamente.

A criação de situações experimentais para a “reconstrução” do processo de gênese e desenvolvimento do fenômeno foi extremamente importante na trajetória de pesquisa de Vigotski. Foi com base nela que ele chegou à explicação sobre o caráter mediado do comportamento humano, origem das funções psicológicas superiores, gênese do desenvolvimento dos conceitos que, ao final, o fez compreender o papel do significado para o desenvolvimento do pensamento. Por outro lado, apesar do método de reconstrução permitir o controle do fenômeno, ele também limita sua observação. Vigotski (2004), no seu texto “Sobre os sistemas psicológicos”, constatou esse problema no início da década de 1930, quando percebeu algumas falhas nas situações experimentais criadas por ele e por Sakharov, seu parceiro nas pesquisas, para o estudo dos conceitos. Eles utilizaram palavras artificiais, criadas apenas na situação experimental, para investigar a formação dos conceitos. A falha da investigação decorreu do caráter artificial do experimento, pois ele se deu conta de que a característica determinante para o desenvolvimento dos conceitos, sua natureza sistêmica, não estava presente em uma palavra artificial. Em outros termos, o conceito é uma generalização que existe em diferentes níveis de abstração, sendo alguns mais próximos da materialidade que outros. E o que determina o grau de abstração possibilitado pelo conceito é precisamente sua relação em uma cadeia com outros conceitos, característica que inexistia no conceito artificial. Em outra anotação, datado provavelmente de 1932, ele deixa evidente o erro dos experimentos ao anotar: “um erro na avaliação dos experimentos de Sakharov: 1) artificialidade + 2) como se houvesse um conceito e não o seu sistema” (Vygotsky, 2018, p. 263). Apesar dos limites, esses experimentos o ajudaram a chegar à seguinte conclusão, na sequência da anotação anterior: “O caminho do estudo do significado é a questão central do estudo” (Vygotsky, 2018, p. 263).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo das últimas décadas houve o aumento do acesso às obras de Vigotski, o que tem garantido a possibilidade do estudo aprofundado do seu projeto de análise materialista da consciência. Nessa esteira, tentamos demonstrar que seus manuscritos recentemente publicados podem ser uma rica fonte para reconstrução do seu laboratório criativo. Suas anotações expressaram a retomada de preocupações teóricas anteriores a sua escrita, que estavam se acirrando ou sendo transformadas, bem como serviram de guia para as pesquisas futuras. Além disso, algumas concepções foram revistas e abandonadas na sua produção posterior, como mencionado. Nesse sentido, podem ser consideradas como parte da gênese da teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano, pois elas contribuíram para a realização das pesquisas sobre o desenvolvimento cultural da criança.

Em resumo, observamos através da leitura de suas anotações que, apesar de sua saúde debilitada, o autor não deixou de pensar no seu trabalho de pesquisa e nos problemas teóricos que ele enfrentava. Uma de suas preocupações centrais foi tentar explicar a diferença existente entre os animais e os seres humanos, sem aplicar uma metodologia reducionista. Nesse sentido, a experiência social, trazida de fora, por intermédio dos instrumentos psicológicos, já figurava como hipótese de trabalho para a origem da consciência. Nas anotações existe claramente a visão do homem como um ser ativo, que modifica o meio social e, principalmente, que essa transformação da realidade é possibilitada pelas criações artificiais, dentre elas a linguagem.

Em relação aos problemas metodológicos contidos em suas anotações, podemos concluir que dizem respeito, sobretudo, ao problema dos meios de estudo daquilo que não é observado diretamente. Para atingir esse objetivo, Vigotski entendeu a necessidade de adotar a abstração, o “método reverso” e a reconstrução do fenômeno. Estes foram julgados como “instrumentos” necessários, porém insuficientes para conhecer as características distintivas do ser humano em relação aos demais animais. O método genético-experimental foi desenvolvido nos anos posteriores à sua internação. Ele tinha como princípio o estudo da gênese do fenômeno psicológico por intermédio de situações experimentais. Ele expressa tanto o método de reconstrução do fenômeno, quanto a necessidade da abstração para interpretação da atividade mediada. Já o método reverso foi colocado em prática apenas em suas pesquisas sobre a formação dos conceitos nos adolescentes (Costa, 2020Costa, E. M. (2020). O método na obra Vigotski e a abordagem ontológica do desenvolvimento humano: uma análise histórica. 379 f. Tese (Doutorado em Psicologia) - Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis. Recuperado dehttps://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UNSP_a8f9ee1e800958edeffe5e3149bcf326
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). Esses foram os métodos que guiaram as pesquisas de Vigotski e seus colaboradores nos anos seguintes, apesar das dificuldades que surgiram ao longo do caminho, sobretudo em razão de alguns limites inerentes aos próprios métodos.

Constatamos que suas anotações expressam especulações que deveriam ser postas à prova dos fatos, isto é, a coleta dos dados, a partir de diversos meios (experimentos, observações e psicologia comparada), deveria ser capaz de confirmar ou refutá-las. Vigotski tinha clareza de que o método era também o resultado da pesquisa, pois sua natureza e as condições de acesso a ele determinam em grande medida os métodos utilizados pelo pesquisador. Nesse sentido, não significa que os problemas expressos nesses manuscritos foram resolvidos de imediato, nem que seu método de pesquisa foi plenamente desenvolvido. Ao contrário, a análise de sua produção dos anos seguintes expressa uma contínua modificação teórico-metodológica. O objeto, segundo a dialética materialista, se impõe ao pesquisar durante o processo de “escavação” do real. A partir disso, o pesquisador deve verificar se a imagem construída do objeto corresponde às suas propriedades objetivas (Chasin, 2009Chasin, J. (2009). Marx: Estatuto ontológico e resolução metodológica. São Paulo: Boitempo.). Se não corresponderem, o cientista deve constatar a fragilidade dos métodos e reformulá-los. Essa determinação do objeto o fez reorganizar o seu projeto de pesquisa diversas vezes ao longo de sua produção.

Em suma, as explicações sobre o desenvolvimento humano surgiram das suas pesquisas experimentais, as quais possibilitaram diferentes níveis de aproximação ao fenômeno pesquisado. Desse modo, essas explicações não são um produto da reflexão do próprio autor, na medida em que o autor não cria o seu objeto, mas são a tentativa de se apropriar da lógica peculiar de um objeto peculiar (Dafermos, 2018Dafermos, M. (2018). Rethinking Cultural-Historical Theory: A dialectical perspective to Vygotsky. Singapore: Springer. https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-9
https://doi.org/10.1007/978-981-13-0191-...
).

REFERÊNCIAS

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  • O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2021
  • Aceito
    17 Out 2023
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