Resumo
Esta pesquisa objetivou verificar se há relação entre a nota do IDEB e o índice de crianças medicadas por transtornos de aprendizagem nas escolas, com a hipótese de que uma escola bem avaliada por esse instrumento teria menos crianças medicadas. Para verificar tal hipótese, foi realizada uma pesquisa empírica com profissionais de uma escola de Ensino Fundamental bem avaliada pelo IDEB. Utilizaram-se entrevistas semiestruturadas, que foram gravadas, e os dados transcritos e analisados para a elaboração de uma discussão teórico-crítica à luz da Psicologia Histórico-cultural. Não foi possível observar uma relação entre a nota do IDEB e o número de alunos medicados na instituição, visto que este número não é inferior ao da média brasileira, como esperado. Além disso, as concepções das educadoras referentes ao uso de medicação controlada em crianças se sustentam numa cisão entre processos de ensino e de desenvolvimento.
Palavras-chave: Indicadores de qualidade; medicalização; Psicologia Histórico-Cultural.
Abstract
This research aimed to verify if there is relationship between the grade of IDEB and medicated children index for learning disorders in schools, with the hypothesis that a well evaluated school would have less medicated children. To verify this hypothesis, an empirical research with professionals from a primary education school and evaluated by IDEB was performed. We used semi-structured interviews, which were recorded and transcribed and analyzed data for the development of a theoretical and critical discussion in the light of historical-cultural psychology. It was not possible to observe a relationship between the note of IDEB and the number of students treated in the institution, as this number is not less than the national average, as expected. In addition, educators' attitudes regarding the use of medication controlled in children hold up a split between education and development processes.
Keywords: Quality Indicator; Medicalization; Historical-Cultural Psychology.
Resumen
Esta investigación tuvo por objetivo verificar si hay relación entre la calificación del IDEB y el índice de niños medicadas por trastornos de aprendizaje en las escuelas, con la hipótesis de que una escuela bien evaluada por ese instrumento tendría menos niños medicados. Para verificar tal hipótesis, se realizó una investigación empírica con profesionales de una escuela de Enseñanza Primaria bien evaluada por el IDEB. Se utilizaron entrevistas semiestructuradas, que fueron grabadas, y los datos transcritos y analizados para la elaboración de una discusión teórico-crítica a la luz de la Psicología Histórico-cultural. No fue posible observar una relación entre la calificación del IDEB y el número de alumnos medicados en la institución, visto que este número no es inferior al de la media brasileña, como esperado. Además de eso, las concepciones de las educadoras referentes al uso de medicación controlada en niños se sostienen en una fisión entre procesos de enseñanza y de desarrollo.
Palabras clave: Indicadores de calidad; medicalización; Psicología Histórico-Cultural.
Introdução
Ser professor na educação pública brasileira significa enfrentar constantes desafios, a começar pelo descaso com as políticas educacionais de forma geral, e o baixo reconhecimento social da profissão (Silva, 2014). A formação docente precária e cada vez mais técnica resulta, como evidencia Saviani (2012), no fato de que o professor não consegue lidar com o aluno concreto, inserido em um contexto, classe econômica e configurações sociais específicas, levando-o a se ater ao aluno idealizado, e não conseguir compreender as necessidades reais das crianças.
Um professor que possui dificuldades em lidar com o contexto apresentado em sala de aula acaba por fazer um trabalho pouco crítico, apenas reproduzindo concepções difundidas, sem consciência real das implicações de sua atuação. Como por exemplo, quando educadores colaboram, mesmo sem intenção, para o fenômeno sobre o qual discutem Moysés e Collares (2012), conhecido como medicalização, em que dificuldades de aprendizagem são entendidas e tratadas como transtornos, reforçando as estatísticas de crianças medicadas por este motivo.
Tomando como base tal problematização, foi desenvolvida uma pesquisa objetivando verificar se há relação entre a nota do IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) e o número de crianças medicadas em uma instituição, esclarecendo também, qual a concepção sobre medicalização que permeia a atuação dos profissionais da educação. Para tanto, foi realizada uma entrevista com os profissionais de uma escola municipal do primeiro ciclo do Ensino Fundamental com melhor avaliação no IDEB no ano de 2011, do terceiro maior município do Estado do Paraná.
Partindo dos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, formulou-se a hipótese inicial de que uma nota alta no IDEB poderia ser sustentada pela atuação de professores que compreendem as implicações de seu trabalho no e para o desenvolvimento dos alunos. Se isso se confirmasse, encontraríamos relatos de práticas pedagógicas de qualidade que estimulariam a evolução das funções psicológicas superiores, tais como atenção voluntária, controle voluntário do comportamento, memória lógica, pensamento conceitual, entre outras. Por fim, seria possível correlacionar uma nota alta no IDEB com uma prática pedagógica promotora de níveis satisfatórios de aprendizado e desenvolvimento, o que, por sua vez, reduziria o número de queixas de crianças com dificuldade de aprendizagem e medicalizadas.
Em sequência serão expostos brevemente os conceitos que permeiam este estudo, baseados nos pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural, bem como os passos metodológicos para a realização da pesquisa e obtenção dos resultados. Em seguida será apresentada a análise qualitativa dos dados e, por fim, a conclusão.
Sobre os conceitos fundamentais que nortearam a análise
O referencial teórico adotado para a análise, a Psicologia Histórico-Cultural, diferencia as funções psicológicas elementares das funções psicológicas superiores. O indivíduo já nasce dotado das funções elementares, mas as funções superiores se desenvolvem por meio do aprendizado conjunto e coletivo, resultando em comportamentos culturais tipicamente humanos e superando as funções elementares. Essa superação se dá com o auxílio dos signos e instrumentos que se caracterizam como mediadores entre o homem e o mundo, visto que os signos são meios para regular a conduta do indivíduo, enquanto os instrumentos se constituem como recursos para modificar a realidade externa (Vygotski, 1995, conforme citado por Facci, Barroco, & Leonardo, 2009). De acordo com Smolka e Nogueira (2002), na relação com o outro e com o mundo o homem produz tais instrumentos auxiliares, técnicos e simbólicos, que constituem sua atividade prática e mental, possibilitando a ele transformar o meio enquanto constrói a si mesmo simbólica, histórica e subjetivamente.
Para Vigotski a cultura objetivada nos instrumentos e signos, quando apropriada pelos indivíduos singulares, permite-lhes a superação do estado puramente biológico ao estado de ser humano cultural, demonstrando a natureza social de seu psiquismo (Martins & Rabatini, 2011). De acordo com as autoras, o ato instrumental, que implica na mediação simbólica (emprego de signos), produz uma relação diferenciada e mais consciente do ser humano com o mundo e consigo mesmo. Para Vigotski ". . . o ato de ensinar é condição para a promoção do desenvolvimento humano" (Martins & Rabatini, 2011, p. 354) e nessa direção a educação escolar é uma das principais responsáveis por promover a mediação entre a criança e o meio social, formando o sujeito cultural plenamente desenvolvido. No entanto, esse processo muitas vezes encontra-se perturbado por inúmeros problemas e obstáculos, que acabam por sucatear a educação pública brasileira, gerando consequências negativas ao processo de ensino-aprendizagem, entre as quais estão os chamados "transtornos" de aprendizagem.
Desses transtornos, destaca-se especificamente, o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade - TDAH, que está em voga devido ao aumento do consumo de medicamento e da quantidade de diagnósticos que vêm sendo realizados como apontam Eidt e Ferracioli (2010). O TDAH é caracterizado como "um padrão persistente de desatenção e/ou hiperatividade, mais frequente e severo do que aquele tipicamente observado em indivíduos em nível equivalente de desenvolvimento" (American Psychiatric Association, 1994, p. 118-9). Portanto, o transtorno afetaria as funções psicológicas superiores, sobretudo a atenção e controle voluntário do comportamento, uma vez que se trata, principalmente, de problemas de desatenção, impulsividade e hiperatividade, segundo indicam os sintomas descritos pelo DSM-IV1. Esses sintomas são inicialmente notados e considerados indesejáveis no contexto escolar, pois, em geral, é nesse ambiente que se começa a exigir da criança uma conduta disciplinada e atenção centrada, uma vez que como expõem Luria (1979), Vygotsky e Luria (1996), a atenção é uma função psicológica base para o desenvolvimento das demais e dificuldades no seu controle poderiam prejudicar o aprendizado dos conteúdos escolares.
Dessa forma, o desenvolvimento dessas funções é fundamental para o progresso escolar infantil. Porém, é preciso considerar que vivemos em uma sociedade que tende à naturalização e à individualização do sofrimento e que explica o desenvolvimento parcial dessas funções como consequência de um transtorno de origem orgânica, inerente à criança. Tomamos como exemplo, os artigos veiculados pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção - ABDA, que defende que o TDAH possui causas genéticas, sendo considerado um problema de ordem biológica em que o tratamento farmacológico se impõe (ABDA, 2014).
Como consequência dessa concepção organicista, nas últimas décadas o fenômeno de medicalização da infância merece atenção. Nele, problemas de ordem social, política, cultural ou afetiva são transformados em problemas médicos e individuais, e nesse processo os remédios se tornaram para a sociedade atual fonte de felicidade e melhor desempenho (Eidt & Ferracioli, 2010; Facci, Silva, & Ribeiro, 2012; Boarini & Borges, 2009).
No entanto, a Psicologia Histórico-Cultural elaborada por Vygotsky, Luria e Leontiev propõe que a atenção e vontade (controle voluntário), assim como as demais funções psicológicas superiores, são produtos das relações sociais humanas e decorrem da apropriação de instrumentos e signos culturais (Vygotsky, 1998). Deste modo, pode-se pensar que quando uma criança é incapaz de focar a atenção ou possuir autodomínio do comportamento, a dificuldade, na maioria das vezes, não é intrínseca a ela, produto de um transtorno puramente biológico, mas de apropriações parciais das mediações culturais como indicam Eidt & Ferracioli (2010).
Nesse aspecto, o papel do professor é basilar para o processo de desenvolvimento pleno das funções psicológicas superiores pela criança, pois se configura como o principal mediador entre ela e tudo aquilo que foi produzido anteriormente pela humanidade, riqueza que se materializa nos conteúdos escolares e nas formas de raciocínio envolvidas no ato de compreendê-los (Tuleski & Eidt, 2007). Levando em consideração tal aspecto, sob o referencial da Psicologia Histórico-Cultural, os professores atuantes como mediadores efetivos, seriam uma alternativa possível à medicalização.
De acordo com estudos, a prevalência do TDAH no Brasil é de cerca de 3 a 10% (Guardiola; Fuchs; Rotta; Rohde, conforme citado por Tonelotto, 2003). Entretanto, autores que estudam o processo de escolarização a partir da Psicologia Histórico-Cultural (Boarini & Borges, 2009; Tuleski & Eidt, 2007; Moysés & Collares, 2012) discorrem que mediante práticas pedagógicas de qualidade, a necessidade do emprego da medicação deve diminuir, pois atividades bem elaboradas com o intuito de provocar na criança a necessidade do aprendizado promovem o desenvolvimento da atenção voluntária e o controle voluntário do comportamento.
Dessa forma, quando as práticas mediadoras se fazem suficientes para desenvolver as funções psicológicas superiores satisfatoriamente, as falhas, apontadas como o motivo primeiro do TDAH, seriam consideravelmente diminuídas. E, consequentemente, a porcentagem de pessoas medicadas ficaria bem mais próxima - ou até mesmo abaixo - de 3%. Ademais, considera-se uma porcentagem de 10% de pessoas medicadas por transtornos de aprendizagem um número bastante alto, visto que o uso de medicação não deveria ser elencado como uma opção viável de tratamento para as dificuldades de escolarização. Antes de se cogitar a prescrição de um medicamento de uso controlado, o qual invariavelmente traz efeitos colaterais nocivos, é necessário esgotar as possibilidades educativas e reeducativas, buscando-se métodos que favoreçam a superação das dificuldades da criança (Tuleski & Chaves, 2012).
Sendo assim, o trabalho dirigido do professor, objetivando o desenvolvimento das funções psicológicas superiores pode diminuir o número de crianças medicadas por transtornos de aprendizagem e colaborar para o aumento da qualidade da educação pública brasileira. Este último, atualmente é mensurado pelo IDEB, indicador que avalia, entre outras coisas, o desempenho escolar e, portanto, se as práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas públicas são eficazes em promover a aprendizagem e desenvolvimento das crianças levando-as a tal desempenho, para tanto, atribui nota às escolas numa escala de 0 a 10 em que 6 é a média a ser atingida. No entanto, à vista dos grandes obstáculos enfrentados pela educação, autores como Almeida, Dalben, e Freitas (2013) apontam que os índices do IDEB não retratam fielmente a qualidade das instituições, visto que excluem o contexto em que se dá a relação ensino-aprendizagem, isto é, consideram apenas o produto de um longo processo permeado por elementos impulsionadores, mas também por diversos déficits. E, portanto, há que se questionar o que está sendo considerada uma "educação de qualidade", por essa avaliação.
Sobre procedimentos, métodos e resultados
Para a realização da pesquisa, foi dada prioridade ao primeiro ciclo do Ensino Fundamental, por ser a fase em que a maioria das crianças é encaminhada para algum tipo de avalição e tratamentos médicos e/ou psicológicos devido às possíveis dificuldades no processo de alfabetização (Tuleski & Chaves, 2012; Bonadio & Mori, 2013). Sendo assim, participaram desta pesquisa quatro profissionais da educação que trabalham no primeiro ciclo do Ensino Fundamental da escola avaliada, no ano de 2011, com a melhor nota no IDEB do terceiro maior município do Estado do Paraná.
Esses profissionais atuam direta e indiretamente nas salas de aula que possuem o menor número de crianças medicadas por transtornos de aprendizagem, a saber, as duas salas de primeiro ano do Ensino Fundamental. Os profissionais foram identificados como Professora A, Professora B, Professora C e Professora D, sem distinção de cargos, a fim de preservar-lhes a identidade e manter o sigilo em relação à escola. O tempo de experiência docente das entrevistadas varia entre 17 e 33 anos, sendo que todas possuem formação superior.
Para se chegar às turmas com menor índice de crianças medicadas, primeiramente foi aplicado um questionário aos pais das crianças no momento da matrícula, ficando a critério destes respondê-lo ou não, de acordo com o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, número do CAE 06875112.0.0000.0104. Com base nos dados obtidos por meio deste questionário, foi estruturada a entrevista a ser realizada com os profissionais que atuam na escola. Sendo assim, foram utilizados como instrumentos para elaboração deste estudo: a pesquisa com os pais e a entrevista com roteiro semiestruturado, gravada em áudio e posteriormente transcrita para a análise.
Os resultados evidenciaram que na referida escola, dos questionários aplicados aos pais, 430 foram respondidos, e destes, 23 apontavam que a criança possuía o diagnóstico de um transtorno de aprendizagem e fazia o uso de pelo menos um psicotrópico. De forma geral, os transtornos mais encontrados foram: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e Transtorno de Déficit de Atenção (TDA) e o medicamento mais utilizado, de acordo com os questionários, é o metilfenidato, mais conhecido com o nome comercial de Ritalina(r).
Levando em consideração o número de questionários aplicados, foi obtido como resultado um percentual de 5,35% de crianças medicadas na escola. A porcentagem obtida estaria na média citada de 3% a 10%2 e não abaixo como foi pressuposto. A entrevista com as professoras das salas em que havia menos alunos medicados teve o intuito de descobrir se eram desenvolvidas atividades pedagógicas diferenciadas (e quais seriam), que pudessem sustentar este índice. Outro dado importante era verificar se a existência de práticas pedagógicas alternativas na escola em geral (mediante entrevista com a coordenadora e professoras) poderia explicar a nota do IDEB obtida pela escola, que no ano de 2011 foi de 6,9.
Problematização dos dados encontrados
A partir dos dados obtidos com as entrevistas, a pesquisa foi estruturada em torno de uma discussão destacando eixos norteadores que correspondiam aos objetivos da pesquisa e aos itens da entrevista, a saber, a nota do IDEB e quais práticas pedagógicas sustentariam-na; o número de alunos medicados por transtornos de aprendizagem; a relação da medicação com a aprendizagem do aluno; possíveis caminhos para a diminuição da medicalização, e práticas pedagógicas e os desafios em sala de aula. Para maior clareza e organização, faremos a exposição em tópicos conforme segue:
A. Sobre a nota do IDEB e o número de alunos medicados.
Sobre o IDEB, as entrevistadas afirmaram conhecer tal avaliação e se disseram satisfeitas com a nota que a escola recebeu. Então, foi-lhes perguntado a que atribuíam esta nota, e num primeiro momento, foram unânimes em relacionar as práticas pedagógicas à nota do IDEB, atribuindo tal mérito ao trabalho desenvolvido na escola, principalmente pelos professores, como ilustra a fala da entrevistada: "Primeiramente à dedicação dos professores, nós temos professores muito responsáveis, professor muito centrado, realmente dedicados ao trabalho" (Professora A).
No entanto, nenhuma das entrevistadas especifica quais e como são trabalhados os conteúdos em sala de aula ou de que maneira contribuiriam para o desenvolvimento infantil. Sobre esse aspecto, as respostas das Professoras C e D são de que seguem o plano pedagógico apresentado pela Secretaria de Educação, mas não exemplificaram o conteúdo desse plano nem de que forma ele é trabalhado, mesmo com a insistência da entrevistadora. Dessa forma, entende-se que a não explicitação ou caracterização das práticas, mencionadas apenas de modo vago, pode demonstrar um possível desconhecimento referente à proposta da Secretaria de Educação e sobre como adaptá-la à realidade da escola de maneira particular.
A respeito das crianças medicadas por transtorno de aprendizagem na escola, as Professoras C e D alegam desconhecer esses índices, enquanto as Professoras A e B dizem conhecê-los detalhadamente, ambas afirmando que consideram tal número bastante alto. Questionadas sobre o que sustentaria esse número de medicados, as Professoras A e B relataram que muitos dos alunos não necessitariam de fato da medicação, mas sim de limite e educação da família. Como explicita a Professora B:
É alto, porque eu acho que falta um pouco em casa de limite, entendeu?! Tem criança que a gente vê claramente que não é medicação, é o compromisso em casa, é o limite, é o que está faltando lá, é a base tá? (Professora B)
Nesse ponto encontramos uma contradição, pois ao referirem-se à nota do IDEB o mérito foi atribuído às práticas pedagógicas desenvolvidas na escola e ao trabalho dos professores. Porém, quando se trata do número de crianças medicadas, considerado alto pelas entrevistadas, atribuem as causas apenas a aspectos educativos extraescolares, como a conduta dos pais que não estabelecem "limites" às crianças.
Num segundo momento, as entrevistadas foram indagadas sobre os altos índices de medicação no contexto escolar de forma geral, e nova contradição se apresenta, pois voltam a vincular as práticas do professor a esse índice. Uma das entrevistadas afirma que a maneira como um educador trabalha em sala de aula, bem como a visão que este possui sobre a medicação e sobre as possibilidades de ajudar o aluno com dificuldades pode contribuir para o aumento do número de alunos medicados por supostos transtornos de aprendizagem, como pode ser verificado no trecho abaixo:
Totalmente influi, entendeu?! Se uma professora ela não tem pulso, pra estar lá na frente, pra estar mantendo, pra ter um olhar, e acha que a Ritalina resolve a vida dela, é lógico que ela vai sugerir encaminhamentos e mais encaminhamentos (Professora B)
Observa-se no discurso das entrevistadas que quando se trata da escola em que elas próprias atuam, a responsabilidade pelo alto índice de medicados é atribuída à família, mas quando se trata de escolas genéricas, a responsabilidade é compartilhada com a escola, e o modo como é desenvolvido o trabalho em sala de aula é considerado.
Dentre tantas contradições, podemos supor a existência de uma pseudoconsciência (consciência fragmentária) que não está articulada com a identificação de práticas pedagógicas que possam efetivamente produzir desenvolvimento ou que possam prejudicá-lo. O discurso oscila entre periférico e genérico, alternando os polos entre família-professor, um responsável pela conduta e outro pelo conteúdo, mostrando uma concepção dualista do ensino, do papel que cabe à família e à escola e do próprio processo de aprendizagem da criança.
B. Relação entre efeito da medicação e mudança no aprendizado da criança.
Outro ponto a ser levado em consideração na fala das entrevistadas é que se tratando do insucesso escolar, o aspecto que mais interessa é o comportamento. Quando um aluno apresenta dificuldades escolares, o primeiro fator a ser corrigido é a conduta da criança. Bonadio e Mori (2013) alertam que o alívio que o medicamento oferece em níveis comportamentais é mais para o professor em sala de aula do que para o próprio aluno, pois só o fato de a criança permanecer em silêncio, sem causar alvoroço e desordem na classe já justificaria o uso da medicação.
Essa concepção é a expressão da precarização da formação docente aligeirada e pragmática de que trata Silva (2014), levando professores a captarem o real de modo fragmentário, sujeitos aos discursos midiáticos sedutores, que enfatizam principalmente o comportamento, e pouco se atêm às questões educacionais de aprendizado. Na escola em questão, as entrevistadas relatam que quando uma criança faz uso de medicação e consegue acompanhar a classe em termos de conteúdo, ela é tratada, nas palavras da Professora B, como uma criança normal, como se não estivesse ritalinada. Isto é, não são desenvolvidas práticas pedagógicas diferenciadas que poderiam produzir atenção voluntária ou autocontrole do comportamento com vistas à redução ou retirada da medicação. Nesse caso, a medicação torna-se um fim em si mesmo e um suporte à prática do professor que pode continuar sendo a mesma. De acordo com as entrevistadas, o aluno só recebe o chamado Apoio Pedagógico caso não consiga acompanhar a classe em termos de aprendizagem, mesmo fazendo uso do medicamento.
No entanto, tratar o aluno como se ele não estivesse ritalinado não lhe trará benefício do ponto de vista educacional, pois existe aí a naturalização do emprego da medicação como solução milagrosa, reafirmando a concepção de "fetiche da pílula", que Bonadio e Mori (2013) propõem e discutem embasadas por uma pesquisa desenvolvida em escolas públicas. Na pesquisa citada, em entrevistas realizadas, as mães e professoras relatam notar o efeito da medicação assim que a criança ingere-a, atribuindo ao remédio um poder "mágico".
Além disso, é expressiva a cisão entre desenvolvimento e processo de ensino-aprendizagem no discurso dos professores, ou seja, que a medicação estabilizaria as "funções organicamente deficientes" para que então a criança possa aprender o conteúdo escolar. Esta cisão impede que o professor compreenda que é por meio do ensino dirigido e organizado que a criança se apropria não só de conteúdos escolares, mas de formas de pensar, raciocinar, regular seu comportamento e atenção. Os perigos implicados nestas concepções referem-se a não organização de um trabalho pedagógico de apoio diferenciado, retirando da escola e do educador sua função primordial, a de ensinar (Tuleski & Chaves, 2012), tornando a criança refém do medicamento que funciona como um paliativo químico, cujo uso contínuo produzirá efeitos colaterais.
C. Possíveis relações entre processos educativos e diminuição da medicalização.
É preciso haver um estranhamento em relação ao uso de medicamentos como a Ritalina, pois essas substâncias não podem ser consideradas parte da dinâmica do desenvolvimento do aluno. É necessário buscar meios para tornar o desenvolvimento da criança independente da medicação, pois como afirmam Bonadio & Mori (2013), ser complacente não desenvolverá as potencialidades do aluno. Tal busca deveria ser impulsionada pelo conhecimento sobre os perigos que psicotrópicos como a Ritalina podem proporcionar.
Sobre esse assunto, as quatro entrevistadas mostraram ter conhecimento dos riscos e desvantagens da medicação, como ilustram os trechos a seguir:
Não {tem desvantagem} no desenvolvimento e no comportamento, tem assim, olhando para o futuro né, que ele vai ficar uma criança dependente de uma droga desde cedo, então tem sim, repercute isso lá na frente, aqui ainda não, mas no futuro vai ter. (Professora B)
É, ai como existe esse monte de estudo sobre Ritalina, se a gente começar a ler, não deixaria o pai dar. Porque não sei se porque tem criança que sente a diferença com a Ritalina e sem a Ritalina, às vezes a mãe não dá, ela chega aqui e fala: "eu não tomei". Ai a gente tem o medicamento na caixinha, escrito o nominho deles e tudo. Ah! Dali a pouco ele foi. (Professora A)
Apesar do conhecimento sobre os efeitos prejudiciais da medicação, existe na fala das entrevistadas a tentativa de esquivar-se do conhecimento mais aprofundado sobre esses efeitos. Pois, desconhecer é um modo de proteger-se do dilema ético que se instaura: compartilhar a responsabilidade pelos prováveis efeitos colaterais resultantes e suas implicações para o desenvolvimento das crianças em médio e longo prazo.
A própria bula3 da Ritalina, medicação mais usada para esses transtornos, traz as reações adversas que o medicamento pode causar, dentre elas, nervosismo, insônia, falta de apetite, cefaleia, discinesia, sonolência, tontura, dores abdominais, vômito, náusea, boca seca, taquicardia, arritmias, palpitação, alterações da pressão arterial e do ritmo cardíaco, além de possíveis problemas na pele, como a hipersensibilidade. Ainda, entre alguns dos efeitos indesejados considerados raros estão: dificuldade de acomodação visual e visão embaçada, redução moderada do ganho de peso, leve retardamento do crescimento, entre outras. Há também uma advertência de que a Ritalina pode causar dependência física ou psíquica.
Logo, a partir da análise dos problemas que a medicação pode trazer, é visto que mesmo os efeitos adversos mais "leves" são muito prejudiciais à saúde da criança. Dessa forma, as crianças sujeitas ao tratamento medicamentoso à base de Metilfenidato sofrerão diversas consequências em nome de um benefício que ainda sequer é comprovado. Como alerta Meira (2012) sobre essa medicação ". . . seu mecanismo de ação no homem ainda não foi completamente elucidado e o mecanismo pelo qual o metilfenidato exerce seus efeitos psíquicos e comportamentais em crianças não está claramente estabelecido . . ." (Meira, 2012, p. 82).
D. As práticas pedagógicas e o desafio em sala de aula.
Uma alternativa para "driblar" a cultura medicalizante são as práticas pedagógicas efetivas, elaboradas intencionalmente para serem eficazes no atendimento das necessidades dos alunos e promotoras do processo de humanização dos mesmos como propõem Eidt e Ferracioli (2010). Para isso, é necessário que as equipes pedagógicas tenham uma formação teórico-prática aprofundada, que possibilite aos educadores levarem em consideração o contexto no qual a escola e seu público estão inseridos. Saviani (2012) esclarece que o professor lida com o aluno concreto que sintetiza em si as relações sociais das quais participa. Sendo assim, cabe ao educador conhecer essa criança "concreta", e a partir desse conhecimento construir ou reorganizar práticas pedagógicas que venham ao encontro das necessidades da mesma e fomentando outras mais, na dialética ensino/desenvolvimento, pois dessa forma o ensino atingiria o objetivo do qual fala Vigotski (2001), isto é, promover o desenvolvimento na criança das funções psíquicas superiores tais como pensamento lógico conceitual, memória lógica, atenção voluntária e autocontrole do comportamento.
Conclusão
A partir da discussão levantada e levando em consideração os limites da pesquisa, não foi encontrado nas respostas das professoras às entrevistas um fator de destaque em termos pedagógicos que poderia ter conduzido a escola a receber uma boa nota do IDEB. Tampouco que colaborasse comprovadamente para a diminuição do número de alunos medicados por dificuldades de aprendizagem, visto que a porcentagem de crianças medicadas está na média e não abaixo dela como se poderia supor.
Sendo a escola bem conceituada pelo IDEB, a hipótese era a de que este seria um indicativo de que na instituição haveria práticas pedagógicas diferenciadas e que os professores tivessem conhecimento da importância delas para o desenvolvimento e aprendizagem das crianças, o que minimizaria o número de encaminhamentos, diagnósticos e medicalização. No entanto, tal hipótese não se confirmou nessa amostra. Logo, as práticas desenvolvidas na escola, mencionadas de modo genérico pelas entrevistadas, e que a levaram a obter uma boa nota no IDEB, não foram eficazes em diminuir a porcentagem de crianças encaminhadas e medicadas por transtornos de aprendizagem.
Isso nos faz questionar o que o IDEB vem mensurando, efetivamente, bem como, concordar com Almeida, Dalben e Freitas (2013) sobre o fato de o IDEB mensurar apenas um viés do todo que representa o processo de escolarização. Tais conclusões, elaboradas a partir de uma pequena amostra são preocupantes, porém não podem ser generalizadas, sendo necessárias maiores investigações visando aprofundar esta problemática com um número maior de escolas.
Ainda assim, fica evidente que a falta de consciência real sobre as implicações de uma visão biologizante e medicalizante em relação às dificuldades de aprendizagem coloca-se como um obstáculo ao ensino diferenciado para os alunos, para que superem suas dificuldades e desenvolvam as funções psicológicas superiores em sua totalidade. Essa concepção de ensino pode ser explicada como reflexo de uma formação fragmentária e precária dos professores, que são submetidos a frequentes avaliações de seu trabalho pelo poder público, pelos coordenadores e até mesmo pelos pais de seus alunos como expõem Tuleski e Chaves (2012), mas recebem pouco apoio para sua formação, e quando o recebem é de maneira superficial e pragmática. Problematizar como se dá a formação docente na atualidade é fundamental, principalmente nas séries iniciais, visto o impacto de uma formação precária do educador para a aprendizagem e desenvolvimento infantil (Silva, 2014).
Desse modo, destacam-se dois aspectos importantes, que poderiam se constituir como caminho inicial para reverter ou minimizar as práticas de medicalização. Primeiro, é preciso construir um estranhamento em relação ao uso de medicamentos como a Ritalina, visto que o uso desse tipo de fármaco por crianças se tornou naturalizado, entendido muitas vezes como necessário para um bom desempenho escolar. Tal problematização deve ser realizada nos mais diversos segmentos sociais como: científico, médico, educacional e familiar. Segundo, deve-se intensificar o dilema ético dos professores, pois ao conhecer de modo aprofundado os efeitos colaterais deste tipo de medicamento, podem sentir-se mais responsáveis pelas consequências dos encaminhamentos, diagnósticos e tratamentos medicamentosos, viabilizando outras práticas quando surgem dificuldades na escolarização.
Por fim, reitera-se que a escola, suas práticas e seus professores cumprem papel essencial no desenvolvimento e na vida de cada criança que passa por ela. Por isso é necessário instrumentalizar teórica e materialmente o professor, para que este realize seu trabalho da melhor forma possível e contribua para o desenvolvimento de crianças humanizadas e livres das rédeas químicas que a medicalização impõe.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Sep-Dec 2016
Histórico
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Recebido
27 Jul 2015 -
Aceito
24 Jun 2016