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O QUE SABEMOS SOBRE A MENTE DOS BEBÊS? UMA REVISÃO DA LITERATURA

¿Lo qué sabemos sobre la mente de los bebés? Una revisión de la literatura

RESUMO

A Teoria da Mente, mais conhecida em inglês como Theory of Mind (ToM), designa a habilidade sociocognitiva que se desenvolve nos seres humanos durante os primeiros anos de vida, que lhes permite atribuir estados mentais às outras pessoas por meio de inferências a respeito de suas crenças, desejos e intenções, e assim predizer ou explicar o comportamento dos outros nas relações sociais cotidianas. Nesse sentido, foi objetivo desta pesquisa realizar uma revisão de literatura a respeito da emergência e do desenvolvimento da ToM em bebês. A busca foi realizada nas bases Science Direct, Scielo e PsycInfo e obteve 399 resultados, dos quais foram analisados 26 artigos referentes ao desenvolvimento da ToM antes da linguagem expressiva. Os resultados sugerem que as habilidades mentais dos bebês são mais sofisticadas do que se acreditava anteriormente. Entretanto, a razão desse êxito é contraditória e vem sendo conceitualizada e interpretada de modos diferentes pelos pesquisadores.

Palavras-chave:
teoria da mente; bebês; estados mentais; pré-verbal

RESUMEN

La Teoría de la Mente, más conocida en inglés comoTheory of Mind (ToM), designa la habilidad sociocognitiva que se desarrolla en los seres humanos durante los primeros años de vida, lo que les permite asignar estados mentales a las otras personas por intermedio de inferencias en lo que se refiere a sus creencias, deseos e intenciones, y así predecir o explicar el comportamiento de los otros en las relaciones sociales cotidianas. El objetivo de esta investigación fue realizar una revisión de literatura a respecto de la emergencia y del desarrollo de la ToM en bebés. Se realizó la búsqueda en las basesScience Direct, ScieloyPsycInfoy se obtuvo 399 resultados, de los cuales se analizaron 26 artículos referentes al desarrollo de la ToM antes del lenguaje expresivo. Los resultados sugieren que las habilidades mentales de los bebés son más sofisticadas de lo que se creía anteriormente. Sin embargo, la razón de ese éxito es contradictoria y sigue siendo conceptualizada e interpretada de modos distintos por los investigadores.

Palabras clave:
de la mente; bebés; estados mentales; preverbal

ABSTRACT

Theory of Mind, (ToM), designates the socio-cognitive ability that develops in human beings during the first years of life, which allows them to attribute mental states to other people through inferences regarding their beliefs, desires and intentions, and thus predict or explain the behavior of others in everyday social relations. In this sense, the objective of this research was to carry out a literature review regarding the emergence and development of ToM in babies. The search was carried out in the Science Direct, Scielo and PsycInfo databases and obtained 399 results, of which 26 articles were analyzed referring to the development of ToM before expressive language. The results suggest that babies’ mental abilities are more sophisticated than previously believed. However, the reason for this success is contradictory and has been conceptualized and interpreted in different ways by researchers.

Keywords:
theory of mind; babies; mental states; pre-verbal

INTRODUÇÃO

Pesquisas sobre o desenvolvimento cognitivo, emocional e social dos bebês progrediram muito neste século XXI, ajudadas pelas novas técnicas de imagens cerebrais. Estudiosos do comportamento infantil admitem que o bem-estar social e emocional das crianças está intrinsecamente conectado ao seu desenvolvimento cognitivo. Bebês são aprendizes ativos, escolhem o que podem esperar, de quem esperar e se engajam intensamente na relação com os outros (Wellman, 2014Wellman, H. M. (2014). Making Minds. Oxford University Press.). Quando o bebê demonstra, pelo olhar e pelos gestos, seu desejo de obter alguma coisa e o cuidador o atende, cria-se um apoio consistente, responsivo e caloroso, que sustentará suas aprendizagens e seu desenvolvimento cognitivo.

No mundo do bebê, o interesse pelas outras pessoas parece superar todos os outros interesses. Experimentos com recém-nascidos mostram que a face humana é sempre preferida a outros estímulos, sendo os olhos o objeto preferencial. Diversas pesquisas que tratam de comportamentos de imitação e de atenção conjunta mostram que os bebês desenvolvem compreensão social mais cedo do que tradicionalmente se pensava e dão indícios de consciência a respeito dos estados mentais das outras pessoas.

Pesquisas recentes em neurociências mostram que o cérebro humano é um cérebro social e os bebês já nascem predispostos a estar com outros humanos e a manter a proximidade com eles (Dehaene, 2021Dehaene, S. (2021). How we learn: Why brains learn better than any machine... for now. Penguin.). Apesar da imaturidade, a mente de um bebê já apresenta um conhecimento considerável, herdado da longa história evolutiva da espécie. Muitas vezes esse conhecimento não é visível nos primeiros comportamentos dos bebês, contudo os avanços tecnológicos dos métodos de pesquisa estão abrindo novos caminhos que permitem desvendar o vasto repertório de habilidades com que os bebês nascem.

O aumento de recursos tecnológicos e metodológicos fez com que novas pesquisas com crianças muito pequenas se tornassem possíveis. Assim, as pesquisas com crianças muito pequenas, ainda antes de dominarem uma linguagem oral expressiva, demonstraram que as habilidades que nos permitem aprender sobre o mundo e sobre nós mesmos têm suas origens na primeira infância. Sabe-se atualmente que mesmo os recém-nascidos conhecem muito sobre pessoas, objetos e linguagem. Mais do que isso, bebês e crianças pequenas têm mecanismos de aprendizagem que permitem que eles revisem de maneira espontânea, reformulem e reestruturem seu conhecimento (Gopnik, Meltzoff, & Kuhl, 2001Gopnik , A., Meltzoff, A. N., & Kuhl, P. K. (2001). The scientist in the crib: what earlly learning tells us about the mind. New York: Harper.).

Alguns desses mecanismos que vêm sendo estudados nas pesquisas com bebês, inserem-se no quadro conceitual da Teoria da Mente (em inglês, Theory of Mind, ToM). A ToM estuda a habilidade sociocognitiva que se desenvolve nos seres humanos durante os primeiros anos de vida e lhes permite atribuir estados mentais às outras pessoas por meio de inferências a respeito de seus desejos, intenções e crenças. Nessa perspectiva, as discussões a respeito da atribuição de crença falsa aos outros atraem o interesse de pesquisadores e educadores que buscam estabelecer e descrever o momento do desenvolvimento em que a criança se mostra capaz de entender que outras pessoas podem não perceber um fato que ela, a criança, está percebendo. Dessa forma, é esse momento particular do desenvolvimento que as clássicas tarefas de teoria da mente e crença falsa avaliam. Assim, a criança que se dá conta de que outros podem não perceber o que ela está percebendo (e.g. o personagem Maxi, da clássica tarefa de crença falsa, que não viu que a mãe mudou o chocolate de lugar e, portanto, continuou a crer que a guloseima estava no mesmo lugar em que ele a tinha colocado), já é capaz de entender que as outras pessoas podem ter uma crença falsa a respeito do objeto em questão. As pesquisas clássicas sobre teoria da mente consideram que isso acontece por volta dos 4 anos de idade. Essa conquista mental específica tem grande utilidade para a vida social e emocional, pois ajuda a explicar e predizer o comportamento das outras pessoas nas relações sociais cotidianas.

Foi objetivo desta pesquisa revisar o conhecimento disponível na literatura a respeito do desenvolvimento da teoria da mente e da compreensão da crença falsa em bebês. Entende-se que bebês são as crianças no primeiro e no segundo período da infância, isto é, entre zero e 36 meses de idade, que estão adquirindo a linguagem receptiva e começam também a utilizar a linguagem expressiva.

A escolha dessa faixa etária deve-se ao fato de que os primeiros estudos sobre o desenvolvimento da ToM, que tiveram início nos anos 70, terem sido realizados com crianças que já dominavam a linguagem oral e por isso foram consideradas aptas a realizar tarefas de avaliação, que se baseavam em ouvir e responder perguntas sobre personagens de histórias, tal como foram também realizados estudos mediante observações de crianças em situações lúdicas que envolviam o uso interativo da linguagem (Domingues, 2015Domingues, S. F. (2015). Uso da escala de tarefas em teoria da mente nas pesquisas brasileiras . Boletim de Psicologia, 17(2), 229-242. https://doi.org/g3nx
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). Os estudos com bebês, que serão objeto de revisão sistemática na presente pesquisa, só foram feitos no final do século XX e início do século XXI, quando já se dispunha de instrumentos decorrentes de novas tecnologias como imagens cerebrais (fRMI), movimentos dos olhos (eye tracking) e tarefas não-tradicionais (Scott & Baillargeon, 2017Scott, R. M., & Baillargeon, R. (2017). Early false-belief understanding.Trends in Cognitive Sciences,21(4), 237-249. https://doi.org/10.1016/j.tics.2017.01.012
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), que substituíam o recurso metodológico à linguagem verbal.

Método

As buscas foram realizadas nas bases de dados Science Direct, Scielo e PsychInfo. Os descritores mentalization, theory of mind, infant, early childhood, preverbal e *-month-olds foram cruzados com operadores booleanos (AND e OR). Foram encontrados 399 artigos, dos quais 307 indexados na base PsycInfo, 78 na Science Direct e 14 na Scielo.

Os critérios de inclusão utilizados foram: pesquisas que tratassem de sujeitos com desenvolvimento típico, pré-verbais, na faixa etária de zero a 36 meses; publicadas em português, inglês, francês ou espanhol, no período de 2010 a 2017. Em caso de estudos longitudinais, foram incluídas as pesquisas cujo início se dava no período pré-verbal, usando ao menos um instrumento que não exigisse um nível mais desenvolvido da linguagem.

Após a realização da leitura dos títulos e resumos dos 399 artigos encontrados, foram selecionados para leitura na íntegra: 44 da base PsycInfo, 24 de Science Direct e 2 da Scielo, totalizando 70 pesquisas que cumpriam os critérios de inclusão. Dessas, cinco estavam duplicadas e outras duas foram excluídas por estarem em idiomas que não compunham os critérios de inclusão, restando 63 artigos. Uma análise inicial gerou três grandes categorias temáticas e metodológicas que conduziram à escolha final de 26 pesquisas, sendo que todas em inglês: A) emergência da ToM e sistemas de desenvolvimento, aprendizagem estatística e evolução cultural (n=13); B) desenvolvimento em bebês da compreensão e atribuição de crença falsa (n=8); C) cuidado parental no início do desenvolvimento da ToM (n=5).

RESULTADOS DA ANÁLISE DAS PESQUISAS ENCONTRADAS

A análise na íntegra das pesquisas encontradas permitiu integrar conhecimentos novos a respeito das representações mentais em bebês, seus sistemas de desenvolvimento e compreensão da crença falsa e as implicações do cuidado parental.

Pesquisas teóricas sobre emergência e desenvolvimento da ToM em bebês

Os estudos teóricos que tratam da emergência e desenvolvimento da ToM foram reunidos em três grandes grupos: identificação de um ou mais sistemas de desenvolvimento, evidências a favor da aprendizagem estatística e evolução cultural.

a) Identificação de um ou mais sistemas de desenvolvimento

Uma questão teórica destacada na literatura é a que trata das bases cognitivas da ToM, para responder à questão da possível identificação nos humanos foram usados dois sistemas habilitados para rastrear crenças e estados mentais semelhantes a crenças (Apperly & Butterfill, 2009Apperly , I., & Butterfill, S. (2009). Do humans have two systems to track beliefs and belief-like states? Psychological Review, 116(4), 953-970. https://doi.org/dphhxn
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; Butterfill & Apperly, 2013Butterfill, S., & Apperly, I. (2013). How to construct a minimal theory of mind. Mind & Language, 28(5), 606-637. https://doi.org/10.1111/mila.12036
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). Os autores discutem a falta de consenso teórico a esse respeito e fazem referência à estudos cujos resultados demonstram que antes dos 3 anos de idade as crianças falham em testes de atribuição de crença; em contrapartida, se referem a uma série de outras pesquisas mais recentes mostrando que crianças de 13 a 15 meses obtêm sucesso em tarefas de crença falsa.

Butterfill e Apperly (2013Butterfill, S., & Apperly, I. (2013). How to construct a minimal theory of mind. Mind & Language, 28(5), 606-637. https://doi.org/10.1111/mila.12036
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) sugerem que a atribuição de crenças funciona de um modo similar ao raciocínio numérico, de modo que os limites de um sistema cognitivo numérico básico só serão superados quando as crianças adquirirem o sistema numérico convencional, pois as habilidades numéricas dependem fortemente de recursos cognitivos gerais como linguagem, processamento de informações e funções executivas. Considera-se, portanto a existência de dois sistemas que combinam eficiência cognitiva e flexibilidade, que são alcançadas por meio de processos de raciocínio cognitivamente mais exigentes. Na mesma direção, segundo os autores, a ToM também possui dois sistemas distintos para a atribuição de crença: um cognitivamente eficiente, contudo limitado e inflexível e outro que é flexível, porém exige o uso de recursos cognitivos gerais como linguagem e controle executivo.

A proposta de Butterfill e Apperly (2013Butterfill, S., & Apperly, I. (2013). How to construct a minimal theory of mind. Mind & Language, 28(5), 606-637. https://doi.org/10.1111/mila.12036
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) confrontou questões teóricas a respeito de como sistemas cognitivos tratam informações do domínio da ToM, colocando em foco outros pontos de vista teóricos debatidos na área. Assim, em referência a essa Teoria dos Dois Sistemas (TDS), Thompson (2014Thompson, J. R. (2014). Signature Limits in Mindreading Systems. Cognitive Science, 38(7),1432-1455. https://doi.org/g3n2
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) afirma que se trata de uma explicação plausível para o desenvolvimento da ToM, porém apresenta falhas que devem ser superadas. Uma delas é explicar o bom desempenho de bebês em tarefas não-tradicionais, uma vez que entre os 18 e os 72 meses, nenhum dos pontos parece explicar o que acontece nessa faixa etária. Nesse sentido, Thompson (2014Thompson, J. R. (2014). Signature Limits in Mindreading Systems. Cognitive Science, 38(7),1432-1455. https://doi.org/g3n2
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) sugere a existência de um sistema de nível intermediário, sendo que posterior ao sistema de nível um, um sistema intermediário se desenvolveria em seres humanos por volta dos 18 meses, enquanto que o sistema de nível dois estaria presente em crianças mais velhas e em adultos, de modo que esse sistema intermediário comportaria a leitura comportamental e a tomada de perspectiva.

Em oposição, Carruthers (2015Carruthers, P. (2015). Two systems for Mindreading? Review of Philosophy and Psychology, 7, 141-162. https://doi.org/10.1007/s13164-015-0259-y
https://doi.org/10.1007/s13164-015-0259-...
) aponta que os argumentos oferecidos por Butterfill e Apperly (2013Butterfill, S., & Apperly, I. (2013). How to construct a minimal theory of mind. Mind & Language, 28(5), 606-637. https://doi.org/10.1111/mila.12036
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) não são convincentes e que os dados referidos podem ser explicados de outra maneira. Segundo ele, os bebês possuem um conjunto de conceitos primitivos (tais como achar, gostar, sabe que) junto a regras simples para determinar a aplicação desses conceitos. Nessa perspectiva, o autor sustenta que um único sistema inicial se desenvolve de maneira contínua e, ao longo do processo, alguns conceitos são adicionados e outros são diferenciados, transformando-se gradualmente no sistema usado pelos adultos. Esse sistema único se torna cada vez mais eficiente ao longo do tempo, bem como interage mais fortemente com outras faculdades mentais.

Carruthers (2015Carruthers, P. (2015). Two systems for Mindreading? Review of Philosophy and Psychology, 7, 141-162. https://doi.org/10.1007/s13164-015-0259-y
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) relaciona as falhas de crianças de 3 anos em tarefas de ToM às funções executivas e habilidades linguísticas, de modo que o sucesso em tarefas tradicionais depende, na verdade da interação entre as funções executivas, os sistemas de memória e a ToM. O autor aponta ainda, razões para que a analogia com a aquisição do sistema numérico seja refutada: (a) o sistema numérico só pode ser adquirido com esforço e como resultado de um ensino explícito, enquanto que a ToM se desenvolve também por meio de outros processos como a exposição a conversas a respeito de estados mentais; (b) o processo de aquisição de sistemas numéricos não se mostra universal, enquanto a capacidade de pensar a respeito de crença falsa explícita vem se mostrando universal, o que sugere que conceitos numéricos são construídos culturalmente, enquanto que conceitos centrais da ToM não são.

Nessa mesma direção, Christensen e Michael (2016Christensen, W., & Michael, J. (2016). From two systems to a multi-systems architecture for mindreading. New Ideas in Psychology, 40, 48-64. doi: https://doi.org/f74kmq
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) propõem uma arquitetura diferente para os sistemas que sustentam a habilidade da ToM ao invés de um sistema paralelo, como sugerido pela TDS (Apperly & Butterfill, 2009Apperly , I., & Butterfill, S. (2009). Do humans have two systems to track beliefs and belief-like states? Psychological Review, 116(4), 953-970. https://doi.org/dphhxn
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). Propõem a existência de um multi-sistema cooperativo, em que a representação de crenças é integrante de um conjunto de habilidades envolvidas na representação de situações. Conforme os autores, bebês não representam crenças da mesma maneira que crianças mais velhas ou adultos, entretanto suas representações de crenças envolvem uma memória semântica geral, que se apresenta como base para uma representação mais sofisticada que emerge em crianças mais velhas.

Kóvacs, Fogd e Kampis (2017Kóvacs, Á. M., Fogd, D., & Kampis, D. (2017). Nonverbal components of theory of mind in typical and atypical development. Infant Behavior & Development, 48,54-62. https://doi.org/gbnz72
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) aceitam um sistema unitário como ponto de partida para analisar os processos envolvidos na ToM implícita, isto é, aquela que não pode ser explicitada por meio da linguagem. Segundo as autoras, o sucesso em tarefas de ToM implica que a criança é apta a atribuir estados mentais, entretanto o erro pode se dar por diversas razões, como não prestar atenção suficiente no agente, não identificar o foco de atenção desse agente ou simplesmente não conseguir conectar um estado mental a uma consequência comportamental. Dados obtidos por meio de neuroimagens evidenciam que inferências implícitas e explícitas, isto é, nível um e nível dois, ativam a mesma área cerebral, bem como estudos ERP revelam que inferências de objetivos engatilhados por instruções implícitas e explícitas acontecem no mesmo espaço de tempo. Neuroimagens também sugerem que a junção temporoparietal, onde os temporais e os lobos se encontram, está regularmente envolvida nos dois tipos de tarefa. Tais evidências levam as autoras a questionar a abordagem dicotômica de dois sistemas e, ao invés disso, sugerir a possibilidade de pensar que a ToM é o resultado de um processo que envolve não só dois aspectos dicotômicos, mas a interação dos processos propostos.

Sodian (2011Sodian, B. (2011). Theory of mind in infancy.Child Development Perspectives, 5(1), 39-43. https://doi.org/10.1111/j.1750-8606.2010.00152.x
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) reuniu evidências a respeito da teoria da mente em bebês e considera, assim como Chirstensen e Michael (2016) e Thompson (2014Thompson, J. R. (2014). Signature Limits in Mindreading Systems. Cognitive Science, 38(7),1432-1455. https://doi.org/g3n2
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), que a proposta de um ou mais sistemas para o processamento de conhecimentos e crenças é a melhor maneira de enxergar as evidências reunidas por ele, que levam a admitir que a atribuição de intenção, que corresponde ao sistema de nível um, já ocorre no primeiro ano de vida. Os bebês, por volta de 1 ano de idade já integram uma representação precisa da percepção dos objetivos de um agente, o que seria precursor de uma atribuição de estados mentais mais refinada no período da educação infantil. Por outro lado, ao contrário de Butterfill e Apperly (2013Butterfill, S., & Apperly, I. (2013). How to construct a minimal theory of mind. Mind & Language, 28(5), 606-637. https://doi.org/10.1111/mila.12036
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), que acreditam que a ToM representacional só seria desenvolvida em crianças mais velhas, Sodian aponta evidências de que bebês de dois anos já possuem essa habilidade e, portanto, possuem um sistema de nível dois.

Sob a perspectiva sistêmica, seja esse sistema único, múltiplo ou dicotômico, as pesquisas analisadas concordam com a necessidade de mais evidências, pois não se conhece ainda como esse(s) sistema(s) se adapta(m) aos inputs do meio ambiente, os efeitos das experiências sociais no desenvolvimento desse(s) sistema(s) e se são de fato relevantes para tal.

b) Aprendizagem estatística

Sobre a emergência da ToM, Gopnik e Wellman (2012Gopnik, A., & Wellman, H. (2012). Reconstructing constructivism: Casual Models, Bayesian learning mechanisms and the theory-theory. Psychological Bulletin, 138(6),1085-1108.: https://doi.org/f4chc4
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) propuseram que bebês e crianças na primeira infância já constroem teorias intuitivas, isto é, teorias a respeito de sua própria mente e sobre a mente de outras pessoas. Sob essa perspectiva, os autores sugerem modelos probabilísticos como uma possível possibilidade para a mudança de uma teoria, como a ToM, e para isso a inferência Bayesiana seria o modo mais geral e consolidado. Em linhas gerais, a regra Bayesiana é uma fórmula para encontrar a probabilidade de uma estrutura hipotética gerar o padrão de evidência.

Desse modo, considerando que as representações causais em crianças são como uma rede Bayesiana, o bom desempenho em tarefas de crença falsa não depende de uma hipótese isolada e sim de diversos conceitos ligados entre si: a teoria e comportamentos fontes de informação a respeito da aparência e realidade e a mudança representacional para prever ações. Nesse sentido, é possível que crianças até os três anos de idade ainda não possuam todos os conceitos ligados para obter um bom desempenho nesse tipo de tarefa de crença falsa, porém já possuem conceitos avulsos.

Assim como Gopnik e Wellman (2012Gopnik, A., & Wellman, H. (2012). Reconstructing constructivism: Casual Models, Bayesian learning mechanisms and the theory-theory. Psychological Bulletin, 138(6),1085-1108.: https://doi.org/f4chc4
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), Banovsky (2016Banovsky, J. (2016). Theories, structures and simulations in the research of early mentalizing. Cognitive systems research, 40, 129-143. https://doi.org/g3nw
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) aponta que há de fato similaridades entre as teorias formuladas por crianças intuitivamente e as teorias científicas. A ToM de um bebê lhe permite fazer previsões de comportamentos ou até mesmo de situações que exigem que se leve em conta as crenças falsas. A relação entre a ToM de um adulto e a de um bebê possuem complexidades diferentes, porém chegam a previsões similares, pois compartilham de uma mesma estrutura.

Ruffman (2014Ruffman, T. (2014). To belief or not belief: Children’s theory of mind. Developmental review, 34(3), 265-293. https://doi.org/f6cv2n
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) sugere três fatores que contribuem para o desenvolvimento da compreensão de estados mentais: (a) a capacidade inata para aprendizagem estatística que possibilita a aprendizagem de padrões de comportamento; (b) as propensões inatas ou precocemente desenvolvidas que incluem interesse por olhos, face, fala e movimentos humanos; (c) o uso, pelos cuidadores, de verbos mentais para descrever o comportamento de um agente. Nesse sentido, a compreensão de estados mentais é inicialmente auxiliada por diálogos que levam crianças a salientarem seus próprios desejos, como querer, por exemplo, e pelo uso desses verbos para se referir a certos comportamentos, como alcançar um objeto e sorrir. De acordo com Ruffman (2014Ruffman, T. (2014). To belief or not belief: Children’s theory of mind. Developmental review, 34(3), 265-293. https://doi.org/f6cv2n
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), bebês não possuem uma compreensão inata de estados mentais e sim uma base inata para aprender sobre estados mentais. Sob essa perspectiva, o autor argumenta que as crianças desenvolvem uma compreensão do comportamento para depois desenvolver a compreensão de estados mentais.

Sob uma perspectiva distinta, Vierkant (2012Vierkant, T. (2012). Self Knoledge and knowing other minds: The implicit/explicit distiction as a tool in understanding theory of mind. British Journal of Developmental Psychology, 30(1), 141-155. https://doi.org/d35b5f
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) aponta que mesmo sem a linguagem expressiva completamente desenvolvida, é possível deliberar a respeito de estados mentais. Nesse sentido, os relatos verbais das crianças nas tarefas de crença falsa não são o único indício de consciência que pode ser apresentado: ações intencionais também podem ser indicadores de consciência.

c) A evolução cultural da ToM:

Heyes e Frith (2014Heyes, C. M., & Frith, C. D. (2014). The cultural evolution of mind reading. Science, 344(6190)1-6. https://doi.org/f56tks
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) apontam que testes de movimentos do olhar evidenciam que a ToM implícita não apresenta necessidade de controle executivo, o que sugere que os mecanismos neurocognitivos da ToM podem ser geneticamente herdados e, sejam eles gerais ou específicos, esses mecanismos são diferentes dos que controlam a teoria da mente explícita. Os autores utilizam a aquisição da linguagem escrita como analogia para a aquisição da ToM explícita: assim como na aquisição da linguagem escrita, a ToM é uma habilidade passada de uma geração para a outra por meio da instrução verbal. Assim como a alfabetização, a aquisição da ToM também envolve decodificação de sinais: na linguagem escrita, os sinais são letras no papel e na ToM, os sinais são expressões faciais, movimentos corporais e declarações.

Carmiol (2012Carmiol, A. (2012). La comprensión temprana de la adquisición del conocimiento: viejas propuestas, nuevos horizontes. Avances en Psicología Latinoamericana, 225-237.) propõe a teoria da aprendizagem cultural, como uma possível explicação para a emergência da ToM. Conforme Carmiol, dos 6 aos 9 meses, os bebês são capazes de reconhecer pessoas como seres animados; posteriormente, dos 9 aos 12 meses, passam a reconhecer que pessoas são agentes com metas específicas e, em um terceiro momento (12 aos 14 meses), compreendem os outros como agentes que pensam sobre ações distintas destinadas a metas específicas, representadas internamente. Por volta dos 14 meses, os bebês são capazes de representar cognitivamente metas e planos de ação de outrem e essa capacidade, aliada à motivação de compartilhar estados mentais, forma a base do que se denomina intenção compartilhada. Por volta dos quatro anos de idade, ocorre a transição da intenção compartilhada para a intenção coletiva e essa permite que a criança reconheça e use o sistema geral e abstrato de perspectivas e normas características de sua própria cultura.

Wang e Leslie (2016Wang, L., & Leslie, A. M. (2016). Is implicit theory of mind the ‘real deal’? The own-belief/true-belief default in adults and young preschoolers. Mind & Language, 31(2), 147-176. https: //doi.org/f8hm5f
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) relatam estudos que revelam compreensão espontânea e implícita da crença falsa já na primeira infância. Por outro lado, após analisar todos os estudos encontrados, concluem que não obtiveram evidências suficientes para que se possa afirmar que essas manifestações precoces tratam realmente de uma genuína ToM.

A emergência da crença falsa em bebês

Resultados obtidos por Southgate e Vernetti (2014Southgate, V., & Vernetti, A. (2014). Belief-based action prediction in preverbal infants. Cognition, 130(1), 1-10. https://doi.org/f5km2p
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) sugerem que não só os bebês percebem eventos sob a perspectiva de outrem, como também as representações dessas perspectivas geram predições de ações e que, assim como os adultos, os bebês previram uma ação somente quando ela foi coerente com a representação que o agente possuía. Southgate e Vernetti apontam que predições corretas podem ser feitas com base apenas na experiência perceptual do agente, sem que o bebê esteja realmente refletindo sobre o caráter verdadeiro ou falso da representação que esse agente possui.

Os dois experimentos realizados por Luo (2011Luo, Y. (2011). Do 10-month-old infants understand others’ false beliefs? Cognition, 121(3), 289-298. https://doi.org/d7db2j
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) com 24 crianças entre 10 e 11 meses sugeriram que, os bebês reconheceram que o agente possuía uma crença falsa e, no segundo experimento, os resultados sugeriram que na tarefa de crença falsa de um objeto os bebês reconheceram que o agente não tinha consciência de que os dois objetos estavam presentes na cena. Em linhas gerais, esses resultados apontam para a possibilidade de que bebês de 10 meses considerem a crença de um agente, seja ela verdadeira ou falsa, quando predizem e interpretam ações.

Buttleman, Suhrke e Buttleman (2014Buttelmann, F., Suhrke, J., & Buttelmann, D. (2014). What you get is what you believe: eighteenmonth-olds demonstrate belief understanding in an unexpected-identity task. Journal of Experimental Child Psychology, 131, 94-103. https://doi.org/f6274k
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) argumentam que a compreensão da crença falsa de bebês de 18 meses é tão sofisticada quanto a de pré-escolares. Essa conclusão resultou de um experimento de identidade inesperada (unexpected-identity task), para verificar se bebês usam sua habilidade para representar aparência falsa e a identidade real de um objeto e ao mesmo tempo atribuir essas representações a outros agentes. Para testar essa hipótese, 63 crianças de 18 meses foram avaliadas com quatro objetos enganosos: uma esponja que parecia uma pedra, uma caixa que parecia um livro, um lápis que parecia um galho e uma escola que parecia um patinho. Além disso, foram usados os objetos reais, isto é, uma pedra, um livro, um galho e um patinho de brinquedo. A solução esperada seria que os bebês atribuíssem corretamente um objetivo ao pesquisador, usando como base as crenças desse pesquisador a respeito desse objeto: quando tinha consciência apenas da aparência do objeto (condição de crença falsa), o agente não saberia que há uma incompatibilidade entre a aparência e a identidade real do objeto e, portanto, ele escolheria o objeto por razões enganosas. Os resultados dessa pesquisa apontaram que bebês de 18 meses são capazes de compreender a crença falsa de outra pessoa sobre um outro objeto mesmo quando ele pode ser representado de maneiras diferentes. Além disso, verificou-se que bebês usam sua compreensão da crença do agente para inferir o objetivo daquele agente e ajudá-lo de acordo com esse objetivo.

Fizke, Butterfill, van de Loo, Reindl e Rakoczy (2017Fizke , E., Butterfill, S., van de Loo, L., Eva, R., & Rakoczy, H. (2017). Are there signature limits in early theory of mind? Journal of Experimental Child Psychology, 162, 209-214. https://doi.org/g3nz
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) conduziram experimentos com 67 crianças de 31 meses e com 137 crianças de 26 meses e concluíram que, apesar das limitações desse estudo, a performance apresentada mostra limites nas capacidades da ToM dos bebês. Esses limites são aqueles previstos na teoria de dois sistemas, sugerida por Apperly e Butterfill (2009Apperly , I., & Butterfill, S. (2009). Do humans have two systems to track beliefs and belief-like states? Psychological Review, 116(4), 953-970. https://doi.org/dphhxn
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), reiterando que bebês são capazes de resolver alguns tipos de tarefas, como a de mudança de localização, entretanto não conseguem resolver tarefas que envolvem estados mentais, como as aspectuais.

Sob uma perspectiva distinta, Yott e Poulin-Dubois (2012Yott, J., & Poulin-Dubois, D. (2012). Breaking the rules: do infants have a true understanding of false belief? British journal of experimental psychology, 30(1), 156-181. https://doi.org/b8kg2x) realizaram um experimento com 48 bebês de 18 meses e obtiveram resultados que não sustentam a hipótese de que a performance de bebês se dá pela ativação de regras comportamentais. Os resultados encontrados por Yott e Poulin-Dubois não só diferem da perspectiva comportamental como também divergem da perspectiva da teoria de dois sistemas de Apperly e Butterfill (2009Apperly , I., & Butterfill, S. (2009). Do humans have two systems to track beliefs and belief-like states? Psychological Review, 116(4), 953-970. https://doi.org/dphhxn
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), na medida em que os dados mostram que os bebês não raciocinaram automaticamente, isto é, sem exigências cognitivas para obter sucesso nas tarefas.

Priewasser, Rafetseder, Gargitter e Perner (2017Priewasser, B., Rafetseder, E., Gargitter, C., & Perner, J. (2017). Helping as an early indicator of a theory of mind: Mentalism or teleology? Cognitive Development. 46. https://doi.org/gd5n4d
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), diferentemente de Yott e Poulind-Dubois (2012Yott, J., & Poulin-Dubois, D. (2012). Breaking the rules: do infants have a true understanding of false belief? British journal of experimental psychology, 30(1), 156-181. https://doi.org/b8kg2x), encontraram resultados a favor da perspectiva comportamental. Os pesquisadores argumentam que bebês de 9 a 18 meses são "teleologistas", aptos a pensar a respeito de ações de um agente, sem se preocupar, de fato, com os estados mentais desse agente. Os resultados obtidos em tarefas não-tradicionais mostraram inclinações dos bebês para um raciocínio teleológico, o que pressupõe que bebês sabem o propósito e o objetivo da ação do agente e, para tanto, não é preciso atribuir estados mentais e sim um objetivo. Segundo os pesquisadores, uma criança teleologista procura, antes de tudo, ajudar o agente a alcançar um objetivo.

Crivello e Poulin-Dubois (2018Crivello, C., & Poulin-Dubois, D. (2018). Infants’ false belief understanding: A non-replication of the helping task.Cognitive Development,46, 51-57. https://doi.org/10.1016/j.cogdev.2017.10.003
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) verificaram o desempenho em tarefas de crença falsa de dois grupos de bebês de 18 meses. Os experimentos foram conduzidos com 41 bebês e os resultados da tarefa de crença falsa demonstraram divergentes do estudo original. Um follow-up do primeiro estudo, com uma amostra de 97 bebês e os resultados não diferiram significativamente do acaso, não obtendo resultados semelhantes ao do estudo original, que apontou 72% de sucesso na tarefa.

Dados longitudinais obtidos por Wiesmann, Friederici, Disla, Steinbeis e Singer (2017Wiesmann, C. G., Friederici, A. D., Disla, D., Steinbeis, N., & Singer, T. (2017). Longitudinal evidence for 4-year-olds’ but not 2- and 3-year-olds’ false belief-related action anticipation. Cognition. 46, https://doi.org/10.1016/j.cogdev.2017.08.007
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) por meio de tarefas de crença falsa com olhar antecipatório (anticipatory looking) usando um monitor Tobii T120, que rastreia o olhar do sujeito que está submetido à tarefa. Dois experimentos foram conduzidos com crianças aos, 2, 3 e 4 anos de idade, sendo que aos 3 e 4 anos, as crianças também realizaram tarefas tradicionais de crença falsa explícita. Os resultados mostraram mudança significativa na tarefa de crença falsa com olhar antecipatório entre os 3 e 4 anos e respostas corretas apenas aos 4 anos, o que sugere que a antecipação e a representação de crença falsa não se desenvolvem antes dos 3 e 4 anos.

Implicações do cuidado parental no desenvolvimento da ToM

Os bebês, por viverem em um mundo essencialmente social, desenvolvem desde cedo expectativas e conhecimento a respeito de ações e interações que ocorrem no ambiente em que vivem. As interações vivenciadas na primeira infância moldarão a cognição social e o comportamento da criança ao longo da vida.

Brink, Lane e Wellman (2015Brink, K. A., Lane, J. D., & Wellman, H. M. (2015). Developmental pathways for social undestanding: Linking social cognition to social contexts. Frontiers in Psychology, 6, 719. https://doi.org/f7fmh4
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) apontaram a necessidade de mais estudos que apresentem conexões entre os primeiros anos de vida, o comportamento social, a cognição social e a educação infantil. Para fornecer um quadro teórico mais amplo a respeito de como a cognição social precoce depende do contexto social onde a criança está inserida, realizaram três estudos e constataram que a tendência materna de se engajar em conversas sobre estados mentais é um elemento facilitador no desenvolvimento da ToM.

Meins, Fernyhough, Arnott, Turner e Leekam (2013Meins, E., Fernyhough, C., Arnott, B., & Leekan, S. R. (2013). Mind-mindedness and Theory of mind: mediating roles of language and perspectival symbolic play. Child Development, 84(5), 1777-1790. https://doi.org/f49rqg
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) abordaram a relação entre conversa sobre estados mentais e ToM a partir do conceito de orientação mental (mind-mindedness). O conceito de orientação mental diz respeito à inclinação de cuidadores ao tratar os bebês como indivíduos com pensamentos idênticos àqueles do cuidador, de modo que este cuidador (frequentemente a mãe ou o pai) "coloca palavras na boca do bebê", como por exemplo, uma mãe que fala com seu bebê sobre atribuição de crenças, desejos e emoções "Acho que estou com fome mamãe, eu estou com fome, mamãe", como se o bebê estivesse, de fato, realizando essa fala.

Meins et al. (2013Meins, E., Fernyhough, C., Arnott, B., & Leekan, S. R. (2013). Mind-mindedness and Theory of mind: mediating roles of language and perspectival symbolic play. Child Development, 84(5), 1777-1790. https://doi.org/f49rqg
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) pesquisaram o modo como a orientação mental atinge um efeito facilitador para o desenvolvimento da ToM. Os resultados desse estudo mostraram diversas relações entre orientação mental e desenvolvimento sociocognitivo infantil, de modo que a tendência materna de tecer comentários apropriados em conversas com crianças aos 8 meses estava diretamente associada ao desempenho em tarefas de ToM aos 4 anos. Crianças que, aos oito meses, tiveram mães com maior tendência a tecer comentários aleatórios, demonstraram um menor vocabulário relativo a estados mentais e um nível inferior de brincadeira simbólica aos 26 meses.

Para verificar a relação entre a orientação mental, confiança (security of attachment) e aspectos da ToM, Laranjo, Bernier, Meins e Calrson (2010Laranjo, J., Bernier, A., Meins, E., & Carlson, S. M. (2010). Early manifestations of children’s theory of mind: the roles of maternal mind-mindedness and infant security of attachment. Infancy, 125, 300-323. https://doi.org/f579kd
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) realizaram um estudo em três fases, com 61 díades de mães e bebês aos 12 meses, aos 15 meses e aos 26 meses. Os resultados também mostraram potenciais relações entre orientação mental, confiança e as articulações iniciais da ToM: quando as mães usaram comentários mentais apropriados com maior frequência durante o primeiro ano de idade, houve associação positiva com a compreensão dos aspectos da ToM avaliados aos dois anos.

Laranjo, Bernier, Meins e Carlson (2014Laranjo, J., Bernier, A., Meins, E., & Carlson, S. M. (2014). The roles of maternal mind-mindedness and infant security attachment in predictiond preschoolers’ understanding of visual perspective taking false belief. Journal of experimental child psychology, 125, 48-62. https://doi.org/f579kd
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), realizaram um follow up do estudo acima obtendo resultados que sugerem que o uso de comentários mentais apropriados por parte das mães durante brincadeiras com brinquedos aos 12 meses se relacionou ao desempenho em tarefas de crença falsa e à tomada de perspectiva aos 4 anos de idade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta revisão foi possível mostrar o sucesso de bebês em tarefas de atribuição de estados mentais e, em determinados tipos de tarefa, as atribuições são mais sofisticadas do que se acreditava anteriormente. Entretanto, as hipóteses explicativas desse êxito ainda são contraditórias.

Dentre as divergências apontadas nas categorias analisadas as interpretações dos pesquisadores dependeram em grande parte da definição adotada a respeito da teoria da mente: para alguns, ToM é o resultado, ou seja, a habilidade já desenvolvida; para outros, a denominação ToM é usada para designar o processo inicial.

Mesmo considerando a variação no significado dado à habilidade de atribuir estados mentais, os pesquisadores concordam com seu caráter desenvolvimental: seja por meio de um multi-sistema, de dois sistemas ou de um único sistema ramificado. A ToM se desenvolve ao longo do tempo e, para tanto, recebe contribuições de fatores sociais, do controle executivo e da linguagem.

As pesquisas analisadas sugerem uma forte influência do cuidado parental no desenvolvimento da ToM e fornecem muitas evidências de que os pais que usam verbos mentais de maneira apropriada favorecem o desenvolvimento.

Os estudos encontrados evidenciaram grande interesse de pesquisadores contemporâneos pelo desenvolvimento da ToM e especificamente pela emergência da compreensão da crença falsa, ligada à aquisição de um domínio representacional mental a ser investigado por meio de pesquisas transculturais.

Embora a presente pesquisa tenha fornecido um panorama da área, algumas questões podem ser levantadas. Uma delas é a que diz respeito à ausência de referências de pesquisas brasileiras sobre a ToM em bebês. Outras futuras revisões poderão verificar se essa ausência pode ser atribuída a uma falha metodológica ou mesmo à falta de padronização dos descritores usados por pesquisadores da área, uma vez que o termo "bebê" em português, não determina necessariamente a faixa etária como ocorre em inglês, o que dificulta seu emprego nas pesquisas. Ainda assim, parece-nos relevante que a temática seja desenvolvida no âmbito nacional, considerando as orientações da Base Nacional Comum Curricular, que estabelece parâmetros para o período da creche, a fim de potencializar o desenvolvimento infantil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Dez 2021
  • Aceito
    17 Nov 2023
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