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“QUE BOM QUE ELE HAVIA ESTRANHADO”: CONSIDERAÇÕES SOBRE A METODOLOGIA IRDI

“Qué bien que él había extrañado”: Consideraciones sobre la Metodología IRDI

RESUMO

O projeto IRDI na Creche objetivou acompanhar 74 bebês de 0 a 18 meses matriculados em Escolas de Educação Infantil vinculadas à prefeitura de Porto Alegre durante nove meses. A Metodologia IRDI (Indicadores clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil) consiste em 31 indicadores divididos por faixas etárias e articulados a eixos teóricos psicanalíticos. A ausência desses indicadores pode apontar para sinais de sofrimento psíquico. O presente artigo propõe revisitar o caso de um bebê acompanhado pelo projeto que passou por intervenções dos pesquisadores, considerando que estas foram importantes para a retomada do seu percurso constitutivo. Para isso, serão utilizadas vinhetas clínicas dos diários de campo dos pesquisadores que visitavam a escola, relatos das observações e cenas das filmagens realizadas durante o acompanhamento. No retorno à escola para novo acompanhamento, esse menino, aos 3 anos de idade, não apresentava mais sintomas clínicos, mostrando-se bem posicionado nas operações constitutivas.

Palavras-chave:
educação infantil; bebês; psicanálise da criança

RESUMEN

El proyecto IRDI en la Guardería tuvo por objetivo acompañar 74 bebés de 0 a 18 meses matriculados en Escuelas de Educación Infantil vinculadas a el ayuntamiento de Porto Alegre durante nueve meses. La Metodología IRDI (Indicadores clínicos de Riesgo para el Desarrollo Infantil) consiste en 31 indicadores divididos por Grupos de edad y articulados a ejes teóricos psicoanalíticos. La ausencia de esos indicadores puede apuntar para señales de sufrimiento psíquico. En este artículo se propone revisitar el caso de un bebé acompañado por el proyecto que pasó por intervenciones de los investigadores, considerando que estas fueron importantes para la retomada de su trayectoria constitutiva. Para eso, serán utilizadas viñetas clínicas de los diarios de campo de los investigadores que visitaban la escuela, relatos de las observaciones y escenas de los rodajes realizadas durante el acompañamiento. En el retorno a la escuela para nuevo acompañamiento, ese niño, a los 3 años, no presentaba más síntomas clínicos, mostrándose bien posicionado en las operaciones constitutivas.

Palabras clave:
educación infantil; bebés; psicoanálisis infantil

ABSTRACT

The IRDI Project in Nurseries aimed to assess 74 infants from 0 to 18 months old attending Nurseries of the Porto Alegre education system for nine months. The IRDI Methodology (Clinical Risk Indicators for Child Development) consists of 31 indicators divided by age groups and articulated into psychoanalytic theoretical axes. The absence of these indicators can show a sign of psychic suffering. This article proposes to revisit the case of an infant assessed by the project who underwent interventions by the researchers, considering that these were important for him to resume his constitutive path. For this, we will be presenting clinical vignettes from the field journals of the researchers who visited the school, reports of the observations, and video footage of the activities carried out during the assessment. Upon returning to school for a new follow-up, this 3-year-old boy no longer had clinical symptoms, and was considered well-positioned in constitutive operations.

Keywords:
early childhood education; infants; child psychoanalysis

INTRODUÇÃO

Os primeiros anos de vida de uma criança são de extrema importância para o seu desenvolvimento. Assim sendo, é necessário um olhar atento e cuidadoso para o bebê que está se constituindo subjetivamente. Conforme Rapoport e Piccinini (2004)Rapport, A.; Piccinini, C. (2004). A escolha do cuidado alternativo para o bebê e a criança pequena. Estudos de Psicologia, 9(3), 497-503. DOI10.1590/s1413-294x2004000300012
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, o curto período de tempo da licença maternidade e paternidade, a migração de moradores do interior para as grandes cidades (diminuindo a rede de apoio familiar voltada aos cuidados do bebê) e a diminuição no número de membros das famílias nas últimas décadas têm influenciado os pais a buscarem cuidados alternativos para o bebê. Somando-se a tais fatores, a pouca flexibilidade nos horários de trabalho, as falhas de implementação das políticas públicas relacionadas aos cuidados dos bebês e suas famílias, bem como o ritmo acelerado da vida nos centros urbanos faz com que muitos pais fiquem impossibilitados de cuidar de seus filhos por grande parte do dia. A alternativa encontrada é que a criança fique aos cuidados de babás ou, mais comumente, de instituições como escolas de educação infantil ou creches. Considerando que muitas crianças passam a maior parte do seu dia nesses estabelecimentos de ensino, é fundamental que tais espaços atuem no sentido da constituição do sujeito que ali está se formando e que os educadores também reconheçam seu papel na subjetivação do bebê.

Apesar da importância constitutiva nos anos iniciais da vida de uma criança, os(as) trabalhadores(as) de escolas de educação infantil ainda têm, em sua maioria, uma visão do cuidado que prioriza as necessidades físicas e/ou de ordem cognitiva das crianças (Ferrari, Fernandes, Silva, & Scarpinello, 2017Ferrari, A. G.; Fernandes, P. P.; Silva, M. R.; Scarpinello, M. (2017). A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito. Rev. Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 17-33. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p17.2
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). Faz-se necessário pensar a educação infantil na sua potência enquanto local de promoção de saúde mental na infância, proporcionando um olhar atento para a constituição psíquica. Dessa forma, surge a pesquisa “O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida” (Ferrari, Silva & Cardoso, 2013Ferrari, A. G.; Silva, M. R.; Cardoso, J. L. (2013). O impacto da Metodologia IRDI na prevenção de risco psíquico em crianças que frequentam creche no seu primeiro ano e meio de vida. Projeto de Pesquisa. Instituto de Psicologia - UFRGS. Recuperado de https://www1.ufrgs.br/pesquisa/forms/form_paginaInicial.php?Op=2
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) ou IRDI na Creche, a qual se propõe a avaliar e acompanhar a díade educador-bebê com base na Metodologia IRDI (Kupfer, 2009Kupfer, M. C.; Jerusalinsky, A.; Bernardino, L.; Wanderley, D; Rocha, P; Molina, S;... Lerner, R. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: Um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am. Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.). O IRDI (Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil) surge inicialmente como um instrumento de avaliação da díade mãe1 1 Entende-se que não necessariamente será a mãe que fará esta função, mas sim aquele/aquela que se coloque enquanto cuidador primordial desse bebê. -bebê, mas posteriormente se percebeu a sua potência no trabalho com educadores de escolas de educação infantil e o Instrumento foi adaptado como uma Metodologia, visando um acompanhamento sistemático dos bebês e das escolas. Esse projeto inspirou-se nas pesquisas anteriores de Kupfer (2012)Kupfer, M. C.; Voltolini, R. (2005). Uso de indicadores em pesquisas de orientação psicanalítica: um debate conceitual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 359-364. DOI:10.1590/S0102-37722005000300013
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e Bernardino e Mariotto (2010Bernardino L.; Mariotto, R. M. M. (2010). Psicanálise e educação infantil: diálogos a partir de uma pesquisa. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, (20), 131-146.) sobre a Metodologia IRDI no contexto da creche.

O IRDI, como Instrumento, se caracteriza por um conjunto de 31 indicadores clínicos de referência para o acompanhamento de problemas ou entraves no desenvolvimento psíquico de crianças de zero a dezoito meses. É dividido por faixas etárias (0-4 meses incompletos, 4-8 meses incompletos, 8-12 meses incompletos e 12-18 meses) e se sustenta em eixos teóricos advindos da teoria psicanalítica (Suposição de Sujeito, Estabelecimento de Demanda, Alternância Presença-Ausência e Função Paterna).2 2 Os eixos teóricos são desenvolvidos no artigo de Ferrari et al. (2017). Conforme Kupfer e Voltolini (2005Kupfer, M. C.; Voltolini, R. (2005). Uso de indicadores em pesquisas de orientação psicanalítica: um debate conceitual. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(3), 359-364. DOI:10.1590/S0102-37722005000300013
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), os indicadores, individualmente, pouco ou nada dizem sobre a constituição do bebê avaliado, eles “precisam estar relacionados entre si para que possam apontar a lógica do eixo em torno do qual estão articulados” (p. 360). O Instrumento IRDI foi desenvolvido para a avaliação do bebê na relação com seu cuidador primordial, utilizando-se tanto da observação da díade quanto de inquérito com esse adulto. Os indicadores devem ser marcados como Presentes, Ausentes ou Não Observados, a presença dos indicadores demonstra saúde psíquica e a ausência aponta para sinais de sofrimento.

Para além de ser um instrumento de avaliação e acompanhamento, o IRDI adquire uma função de guia do olhar, podendo orientar intervenções e indicar nortes de leitura que ajudam a acompanhar o nascimento de um sujeito psíquico (Kupfer & Bernardino, 2018Kupfer, M. C.; Bernardino, L. (2018). IRDI: Um instrumento que leva a psicanálise à pólis. Estilos da clínica, 23(1), 62-82. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p62-82.
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). Assim, a Metodologia IRDI surge como uma proposta de intervenção a partir do instrumento. Bernardino e Mariotto (2010)Kupfer, M. C. (2012). Metodologia IRDI - Uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise (Projeto de pesquisa). Universidade de São Paulo. Recuperado de https://bv.fapesp.br/pt/bolsas/135814/metodologia-irdi-uma-intervencao-com-educadores-de-creche-a-partir-da-psicanalise/
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propuseram um trabalho de acompanhamento sistemático nas escolas de educação infantil que possibilitasse atuação em três frentes: com o bebê, com os pais e com os educadores. Com os bebês, as intervenções se dão majoritariamente pela via do brincar. O brincar com o intuito mesmo da clínica, de proporcionar um lugar ao sujeito, “pode acontecer na educação infantil através da hora da brincadeira com os bebês no colchonete, na visita a cada berço para trocar palavras e olhares em torno de um chocalho, um móbile, pretexto para entrar em relação” (Bernardino & Mariotto, 2010Kupfer, M. C. (2012). Metodologia IRDI - Uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise (Projeto de pesquisa). Universidade de São Paulo. Recuperado de https://bv.fapesp.br/pt/bolsas/135814/metodologia-irdi-uma-intervencao-com-educadores-de-creche-a-partir-da-psicanalise/
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, p. 10).

No que tange aos pais, as intervenções se constituem em torno da escuta. Na proposta, cabe aos pais apropriarem-se das questões das crianças, não mais recorrendo a um saber superior, acadêmico, mas reconhecendo o seu saber acerca do próprio filho. Com as educadoras, Bernardino e Mariotto (2010Bernardino L.; Mariotto, R. M. M. (2010). Psicanálise e educação infantil: diálogos a partir de uma pesquisa. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba, (20), 131-146.) entendem que o trabalho se dê por duas vias, a da transmissão, reconhecendo o valor da sua posição e do seu fazer, e a da formação profissional, proporcionando também uma escuta para os educadores e suas demandas, um cuidado para quem cuida (Wiles & Ferrari, 2020Wiles, J; Ferrari, A. G. (2020). Do cuidado com o bebê ao cuidado com o educador. Psicologia Escolar e Educacional, 24. https://doi.org/10.1590/2175-35392020213976
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).

Posteriormente ao trabalho com a Metodologia IRDI, o mesmo grupo de pesquisa, coordenado por Kupfer, criou a Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3), instrumento de validação do IRDI, o qual teve como proposta servir de desfecho clínico para a pesquisa (Lerner, 2008Lerner, R. (2008). Apresentação. In: R. Lerner ; M. C Kupfer (Eds.), Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa (pp. 7-12). São Paulo: Escuta.). Na nova avaliação foram acrescentadas quatro novas categorias, além das supracitadas, que dizem das manifestações da infância: A fala e a posição na Linguagem (FL); O brincar e a fantasia (BF); O corpo e sua imagem (CI); e Manifestação diante das normas e posição frente à lei (NL)3 3 As manifestações da infância são trabalhadas em Jerusalinsky (2008). .

MÉTODO

A partir das experiências anteriores com a Metodologia IRDI, foi desenvolvido o projeto referido anteriormente, IRDI na Creche, com a proposta de uma adaptação para a cidade de Porto Alegre do trabalho desenvolvido em São Paulo e Curitiba. Foram avaliados 74 bebês entre 3 e 18 meses matriculados nas turmas de berçário de sete escolas vinculadas à Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre. O acompanhamento se deu sistematicamente por nove meses, de abril a dezembro de 2014. Cada escola de educação infantil era visitada semanalmente por dois pesquisadores que ficavam em sala de aula junto com os bebês e as educadoras durante um turno de suas atividades. Eles realizavam observações das crianças, da relação dessas com as educadoras e também do funcionamento da rotina em cada turma. Os pesquisadores também brincavam com as crianças e produziam tanto intervenções em ato, as quais serviam de espelho para o fazer cotidiano do educador, quanto através de conversas com esses profissionais. Além disso, foram produzidos filmagens e relatos em diários de campo. Nesse período foram realizadas uma avaliação inicial dos bebês - no início do período em sala de aula - e novas avaliações - a cada dois meses - durante todo o acompanhamento para verificar a presença de indicadores previamente ausentes e uma avaliação final, todas com o Instrumento IRDI. As avaliações eram realizadas pelos pesquisadores após cada visita, fora da sala de aula.

Posteriormente, as crianças acompanhadas com a Metodologia IRDI foram acessadas novamente e avaliadas a partir da AP3, aos três anos e meio de idade. Desenvolveu-se, então, o projeto Avaliação Psicanalítica aos 3 anos de crianças acompanhadas pela Metodologia IRDI (Ferrari & Silva, 2016Ferrari, A. G.; Silva, M. R. (2016). Avaliação Psicanalítica aos 3 anos de crianças acompanhadas pela Metodologia IRDI (Projeto de Pesquisa). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Recuperado dehttps://www1.ufrgs.br/pesquisa/forms/form_paginaInicial.php?Op=2
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). O intuito do projeto foi possibilitar uma avaliação longitudinal das crianças acompanhadas, objetivando apurar em que momento constitutivo elas se encontravam aos 3 anos, bem como se estavam se defrontando com problemas ou entraves na sua constituição psíquica. Das 74 crianças acompanhadas pela Pesquisa IRDI, 46 foram avaliadas com a AP3.

A avaliação com a AP3 se deu de forma diferenciada do IRDI: cada escola foi acompanhada por três pesquisadores que faziam visitas semanais. Em um primeiro momento, os pesquisadores observavam a criança que seria avaliada em sala de aula, interagindo com os colegas e educadores. Após essa observação um pesquisador procurava iniciar uma brincadeira com a criança com o intuito de criar um vínculo para que a próxima parte da avaliação fosse realizada. Por fim, a criança era convidada a ir com os pesquisadores a uma sala separada onde ocorria a última parte da AP3, que consistia em um momento de atividade lúdica durante cerca de 50 minutos. Para tanto, apresentava-se à criança uma caixa contendo materiais definidos para tal atividade (bonecos representativos de família; banheiro; ambientes do lar; material de desenho; 2 carrinhos; joguinho de chás; animais; fantoches; massa de modelar; uma bola pequena e espelho pequeno). A quarta etapa da AP3 consistia em uma entrevista com o educador com o intuito de saber sobre as características da criança em sala de aula e de sanar dúvidas decorrentes da avaliação (Ferrari & Silva, 2016Ferrari, A. G.; Silva, M. R. (2016). Avaliação Psicanalítica aos 3 anos de crianças acompanhadas pela Metodologia IRDI (Projeto de Pesquisa). Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Recuperado dehttps://www1.ufrgs.br/pesquisa/forms/form_paginaInicial.php?Op=2
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). As visitas às creches ocorreram entre setembro de 2016 e abril de 2017, momento em que as crianças inicialmente acompanhadas pela Metodologia IRDI completavam 3 anos e meio de idade. Uma das autoras do artigo acompanhou uma das escolas vinculadas ao projeto, enquanto duas autoras supervisionaram todo o trabalho.

No presente trabalho, pretende-se conjecturar acerca das intervenções realizadas pelos pesquisadores durante o acompanhamento com a Metodologia IRDI, entendendo que elas podem ter atuado como um dispositivo de promoção de saúde mental na infância. Para tanto, buscou-se analisar o caso de uma criança cuja avaliação com a AP3 não apontava para risco psíquico, mas na avaliação com o IRDI, tal risco havia se apresentado. O caso escolhido foi o de um menino aqui denominado Rafael, que aos três anos demonstrou estar bem posicionado nas operações constitutivas, mas que durante o acompanhamento com o IRDI, preocupava os pesquisadores pela passividade excessiva que apresentava e pela incipiência do seu brincar e da sua linguagem. A análise do acompanhamento e das referidas intervenções com Rafael se deu a partir da leitura dos diários de campo das pesquisadoras, dos relatos das observações posteriores com a AP3 e da filmagem do terceiro momento da avaliação, referente aos 50 minutos de atividade lúdica. No intuito de ilustrar os movimentos do menino no decorrer do acompanhamento, serão utilizadas passagens dos materiais de pesquisa referenciados acima.

Os projetos de pesquisa que originaram o presente trabalho foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Os pais das crianças participantes das intervenções com o IRDI e AP3 assinaram Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, bem como as educadoras envolvidas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Primeiro tempo: O acompanhamento com a Metodologia IRDI

A partir da avaliação inicial de Rafael com o IRDI, realizada aos 11 meses de idade, constatou-se a ausência de 3 indicadores dentre os 10 da sua faixa etária, 8 a 12 meses incompletos: 15. Durante os cuidados corporais, a criança busca ativamente jogos e brincadeiras amorosas com o educador; 18. A criança estranha pessoas desconhecidas para ela; e 19a. A criança possui objetos prediletos de casa. Os indicadores 15 e 19a pertencem ao eixo denominado Estabelecimento de Demanda.

No eixo Estabelecimento de Demanda estão reunidas as primeiras reações involuntárias que o bebê apresenta ao nascer, tais como o choro, que serão reconhecidas pelo cuidador primário como um pedido que a criança dirige a ele. O indicador 15, frequentemente ausente nas crianças acompanhadas pela pesquisa IRDI na creche (Puccinelli, 2018Puccinelli, M. (2018). A sustentação do corpo como possibilidade de existência: Os processos de integração psicossomática no âmbito da educação infantil (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul.), alude à singularização possível do laço entre educador e bebê. Mariotto (2009Mariotto, R. M. M. (2009). Cuidar, educar e prevenir: As funções da creche na subjetivação de bebês. São Paulo: Escuta .) coloca que os cuidados corporais dispensados ao bebê, apesar de aparentemente técnicos e instrumentais, possuem uma dimensão significativa de humanização do seu corpo. Assim, “um adulto que possa brincar, conversar e interpretar a criança que cuida, insere no laço um caráter simbólico no que parece ser essencialmente concreto” (Mariotto, 2009, p. 139), possibilitando a sua emergência enquanto ser psíquico. Já o indicador 19a diz da possibilidade de um retorno da criança ao outro do cuidado primário, agora a partir de um objeto externo que, gradativamente, auxiliará na introdução do bebê em um reconhecimento e aceitação da realidade. Esse indicador é entendido a partir da noção de objeto transicional (Winnicott, 1951/2000Winnicott, D. W. (2000). Objetos transicionais e fenômenos transicionais. In Winnicott, D. W. Da pediatria à psicanálise(Obras escolhidas, pp. 316-331). São Paulo: Imago. (Trabalho original publicado em 1951).). Para que o bebê possa começar a se relacionar com o mundo externo e suportar a angústia de separação do cuidador é preciso que haja uma “área intermediária” entre a realidade interna e a externa, um espaço transicional. Nesse espaço transicional é que se dão os objetos e fenômenos transicionais (Winnicott não faz uma distinção precisa entre os dois termos pois considera importante não o objeto em si, mas o uso que a criança faz dele). Os objetos transicionais têm por objetivo representar o cuidador primário, possibilitando que a criança reconheça a realidade externa enquanto tal.

Já o indicador 18 faz parte do eixo Função Paterna. Entende-se que tal função ocupa, para a dupla cuidador-bebê, o lugar de terceira instância, orientada pela dimensão social (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C.; Jerusalinsky, A.; Bernardino, L.; Wanderley, D; Rocha, P; Molina, S;... Lerner, R. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: Um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am. Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.) e não necessariamente por um pai real. Fiorini (2014Fiorini, L. (2014). Repensando o Complexo de Édipo. Rev. Brasileira de Psicanálise, 48(4), p. 45-57.) sugere denominá-la “função terceira”, a qual pode ser exercida por outros, incluindo a mãe com suas próprias reservas simbólicas. Tratando da discriminação da criança entre quem é ou não familiar a ela, o indicador 18 aponta, através do estranhamento, para um processo de diferenciação entre o eu e o outro. O entendimento e, para além disso, a incorporação de tal diferenciação possibilitará a emergência de um sujeito psíquico singular, separado de um outro externo e detentor de desejos que lhe são próprios. As funções presentes nos quatro eixos teóricos do IRDI são desempenhadas sobretudo pelos cuidadores primordiais, podendo também ser realizadas pelos educadores; ainda que se perceba como distintas as maneiras como o educador e os cuidadores primordiais exercem a função de agente do discurso, sendo resultado dos diferentes lugares ocupados por cada um para a criança (Ferrari et al., 2017Ferrari, A. G.; Fernandes, P. P.; Silva, M. R.; Scarpinello, M. (2017). A experiência com a Metodologia IRDI em creches: pré-venir um sujeito. Rev. Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 17-33. https://doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p17.2
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; Rosa & Ferrari, 2018Rosa, D. J.; Ferrari, A. G. (2018). Bebês com sinais de autismo na escola infantil: entrelaçando histórias na transmissão de marcas subjetivantes. Correio da APPOA, v. 282. Recuperado de https://appoa.org.br/correio/edicao/282/bebes_com_sinais_de_autismo_na_escola_infantil_entrelacando_historias_na_transmissao_de_marcas_subjetivantes/647
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).

Para os pesquisadores que visitavam a creche, Rafael se mostrava um bebê mais passivo, que não chamava muita atenção das educadoras em meio aos demais, conforme uma pesquisadora aponta em uma passagem do seu diário de campo:

Hoje, me dediquei mais a Rafael, um menino que não chama muito a atenção; pois não chora, é quietinho, está sempre com uma expressão neutra, um sorrisinho no rosto que não muda muito. Eu o chamava, ia até ele, brincava junto com algum brinquedinho. [...] Em um momento, Rafael batia com um brinquedinho na porta. Fui até lá, peguei ele no colo, levantando-o para que pudéssemos ver a rua através do vidro. Olhamos as árvores, a pracinha, eu ia falando sobre essas coisas com ele: ‘Olha lá isso…’ [...] Depois, em outros momentos, Rafael me olhava e apontava para a porta ou a janela onde tínhamos ido.

É possível perceber, a partir dessa cena, o olhar que foi dirigido a Rafael, bem como a intervenção que se deu com ele naquele momento; convocando-o, mostrando e nomeando o que encontrava no ambiente a sua volta. A pesquisadora lê o ato do bebê - bater com um brinquedo na porta - como uma demanda dirigida a ela e intervém a partir da sua observação da cena. Rafael, aparentando lembrar-se do contato anterior, olha para a pesquisadora e aponta para a porta onde ela o havia levado.

Outra resposta do menino perante as intervenções dos pesquisadores se denota através do seguinte trecho:

Nesse dia, Jefferson [pesquisador] me chama atenção para Rafael, um menino que já me preocupava desde o início. Rafael é bastante paradinho, tem uma expressão facial alegre, os olhos brilhantes (que respondem quando interagimos com ele); porém parece tímido (é a palavra que nos vem), envergonhado. [...] Quando tocamos no corpinho dele para brincar, interagir de alguma forma, ele fica paradinho, respondendo de forma positiva com os olhos e com um tímido sorriso.

Essa cena, tal qual a anterior, dá notas do olhar dirigido à Rafael, de como os pesquisadores puderam perceber que, para além de um bebê “passivo” ou “tímido”, havia ali uma potência. Foi por perguntar-se sobre esse menino que chamava a atenção justamente por “não chamar a atenção” que os pesquisadores viram em Rafael a vivacidade de uma criança que se relaciona, que interage, que demanda. A antecipação de um lugar de sujeito para Rafael possibilitou a construção de um engate com o outro, manifestado através das expressões positivas do menino durante as intervenções. Conforme colocam Kupfer et al. (2009Kupfer, M. C.; Jerusalinsky, A.; Bernardino, L.; Wanderley, D; Rocha, P; Molina, S;... Lerner, R. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: Um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am. Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.), a partir do desejo antecipa-se no bebê a presença de um sujeito psíquico, a qual tende a consolidar-se justamente porque foi anteriormente suposta.

Em um terceiro acontecimento, cerca de dois meses depois do início do acompanhamento, percebe-se inclusive a presença de um indicador que até então encontrava-se ausente: “Hoje Rafael estranhou quando chegamos e chorou por um tempinho. A profe disse ‘ah Rafael, tu estranhou’. O Jefferson [pesquisador] pegou ele no colo e logo passou. Comento: que bom que ele havia estranhado.” A partir do estranhamento de Rafael frente à presença dos pesquisadores, é possível notar que o indicador 18 (A criança estranha pessoas desconhecidas para ela) se fez presente, diferentemente do que havia sido constatado na avaliação inicial de Rafael com o IRDI. Na sua análise do conhecido caso de psicose infantil de Melanie Klein, o Caso Dick, Lacan (1953-54/2009Lacan, J. (2009). O Seminário (Livro 1 - Os escritos técnicos de Freud). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1954).) coloca que o menino estava “inteirinho no indiferenciado” (p. 95). Em Dick, a identificação mais primordial, especular, não aconteceu, Lacan faz referência ao menino como vivendo em um mundo “não humano”, pois é incapaz de distinguir os objetos, incapaz de simbolizar a realidade. No seu relato, Klein afirma que ele “deixou a babá ir embora sem manifestar a menor emoção e me seguiu para o consultório com total indiferença” (Klein, 1930/1996Klein, M. (1996). A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego. In: M. Klein, Amor, culpa e reparação (pp. 249-264). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1930)., p. 254). De fato, Dick não concebe a diferenciação entre eu e outro, não há diferença para ele entre Klein e os móveis da sala, não há reconhecimento do outro enquanto sujeito.

À vista disso, pode-se entender o comentário da pesquisadora acerca do estranhamento de Rafael (“que bom que ele havia estranhado”). Se, até então, ele pouco reagia às chegadas dos pesquisadores, nesse momento deu notas de que algo poderia ter mudado na sua relação com o mundo exterior. Conforme Pesaro (2010Pesaro, M. E. (2010). Alcance e limites teórico-metodológicos da Pesquisa multicêntrica de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo.), o estranhamento do bebê frente às pessoas desconhecidas diz da simbolização da figura materna, que possibilita o advento, para ele, da mãe/cuidador real. Rafael, ao longo de seu acompanhamento com o IRDI, passou a se mostrar um bebê, não só responsivo às interações dos pesquisadores, mas também demandante. Isso se deve ao fato de se ter dedicado um olhar atento ao menino que, em um primeiro momento, aparentava uma maior passividade. Frequentemente, essas crianças não chamam tanto a atenção em meio às demais, no contexto da escola, uma vez que costumam “não incomodar”. A partir do olhar que a Metodologia IRDI proporciona, é possível tomar cada criança em sua singularidade, atentando para suas características e, como no caso de Rafael, construindo intervenções capazes de evidenciar suas potencialidades.

Segundo tempo: A Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3)

Aos 3 anos e 8 meses de idade, Rafael passou por uma avaliação com a AP3 (Avaliação Psicanalítica aos 3 anos). Nesse momento, a escola do menino havia passado por uma mudança de direção, e as coordenadoras não eram as mesmas que receberam os pesquisadores no acompanhamento com o IRDI. Conforme relato de uma pesquisadora que participou do acompanhamento realizado nos anos de 2014 e 2015, a equipe da escola se mostrava, naquela época, bastante acolhedora, envolvendo-se com a proposta do projeto IRDI nas creches. Situação diferente do que foi possível observar na escola durante as visitas com a AP3, em 2016.

Desde a primeira visita, a diretora exprimiu a necessidade da escola de encaminhar diversas crianças para atendimento psicológico, inquirindo as pesquisadoras sobre o funcionamento do serviço de atendimento psicológico vinculado à universidade. A queixa - semelhante em todos os casos à exceção de alguns detalhes - era de agitação e agressividade exacerbadas nas crianças. Após combinações sobre os momentos das visitas e a rotina das turmas, por exemplo, passou-se a frequentar as salas de aula das crianças que seriam avaliadas, fazendo filmagens, diários de campo e observações. Desde o início, as crianças se interessaram pela presença das pesquisadoras, convocando-as para brincadeiras, fazendo perguntas, tocando-as, sem muito estranhamento.

As educadoras, no período em que as pesquisadoras ficavam em sala, pareciam pouco disponíveis, um pouco mais afastadas do grupo e dirigindo-se às crianças majoritariamente para chamar-lhes a atenção de modo mais ríspido e fazer comunicados gerais. Dificilmente era observada uma situação em que houvesse uma brincadeira compartilhada entre crianças e educadoras, também foram raras as vezes em que se viu uma professora conversando com uma criança especificamente, a não ser para repreendê-la. Conforme uma das pesquisadoras relatou em seu diário de campo: “Tomei o barulho e a aproximação das crianças como uma forma de comunicar algo do que se passa - ou não - no contato com suas professoras”.

Ao chegar às salas, as pesquisadoras eram recebidas com uma aglomeração de crianças que lhes “encurralavam” na entrada, fazendo muito barulho, pedindo abraços, realizando perguntas e convocando-as para brincar. De maneira geral, quase todas as crianças da turma faziam parte desse movimento, poucas eram as que de fato não se interessavam pela presença das pesquisadoras. Rafael era uma delas. Desde o primeiro dia percebeu-se que ele, apesar de notar essas chegadas, não compartilhava do entusiasmo dos colegas, preferindo brincar com seus amigos. Rafael formava, com dois de seus pares, um trio de meninos muito próximos e que “se bastavam”, como colocou uma das pesquisadoras no seu diário. Brincavam correndo pela sala e utilizando os materiais disponíveis para construir diversas histórias de monstros, de super-heróis, de lutas... Apesar de seus amigos terem se interessado pelo trio de pesquisadoras e brincado diversas vezes com elas, Rafael ainda não havia demonstrado o mesmo. Ele parecia vivaz e esperto, mas mais tímido e quieto do que seus amigos, que as convocavam a ver suas descobertas e partilhar os seus brinquedos.

No dia da sua avaliação, pairava o questionamento sobre o seu aceite, pois não havia sido criado vínculo com ele. Surpreendentemente, após uma das pesquisadoras aproximar-se dele e iniciar uma brincadeira, Rafael aceitou o convite para ir até outra sala brincar. Esperava-se que o menino levasse algum tempo para desinibir-se no momento da avaliação, pois pouco conhecia as pesquisadoras, porém se mostrou muito ávido e receptivo, brincando com facilidade e incluindo todos os presentes nos seus jogos. Criativo e vivaz, Rafael demonstrou rapidamente estar à vontade e permitiu-se explorar a caixa de brinquedos e a nova sala, brincando e conversando por mais de 40 minutos.

Através da avaliação foi possível perceber que o menino se encontrava bem posicionado tanto nas operações constituintes como nas manifestações da infância, as quais evidenciam se a criança está em um percurso constitutivo adequado ou se está encontrando impasses em sua constituição (Jerusalinsky, 2008Jerusalinsky, A. (2008). Considerações acerca da Avaliação Psicanalítica de Crianças de Três anos - AP3. In: R. Lerner; M. C Kupfer (Eds.), Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa(pp. 117-136). São Paulo: Escuta.). Além disso, nenhum sintoma clínico foi detectado. Na avaliação, apareceu um grande interesse de Rafael pelos objetos da sala e sua potência em transitar entre o faz-de-conta e a realidade durante as brincadeiras criadas por ele. Tais acontecimentos podem ser ilustrados pela cena que se segue.

O menino, durante a avaliação, pegou um abajur de brinquedo da caixa e disse: “uma árvore”. Em seguida, corrigiu-se: “não, um guarda-chuva”, colocando-o sobre sua cabeça. Rafael comentou que a chuva estava caindo ali. A pesquisadora sugeriu, então, que ele fosse para baixo do guarda-chuva. O menino se referiu a ela dizendo: “tu tá se molhando” (sic), chamando as três pesquisadoras para se protegerem da chuva. Assim que os quatro se abrigaram no brinquedo, Rafael disse “deu”, afirmando que a chuva já tinha passado. A pesquisadora perguntou: “Abriu sol?” Rafael respondeu que sim, apontando para a janela da sala em que estavam e mostrando o dia ensolarado que fazia, “ali ó” (sic).

Quanto à linguagem, Rafael sustentou um diálogo, demonstrando um vocabulário rico. Utilizou o pronome “eu” para referir-se a si próprio, reconhecendo, portanto, a si mesmo e tomando o outro como sujeito. Tal posicionamento na linguagem se trata de um registro da possibilidade de se situar em relação às significações estabelecidas; de como sustenta as relações com o outro; do reconhecimento da demanda e do desejo do outro, e da percepção e produção de novas significações (Jerusalinsky, 2008Jerusalinsky, A. (2008). Considerações acerca da Avaliação Psicanalítica de Crianças de Três anos - AP3. In: R. Lerner; M. C Kupfer (Eds.), Psicanálise com crianças: clínica e pesquisa(pp. 117-136). São Paulo: Escuta.). O menino também apresentou observância aos limites do enquadre proposto, mostrando-se atento às falas das educadoras e respondendo aos pedidos destas. Tais características dizem, de modo geral, da interiorização de uma instância de interdição, sustentando as diversas formas que a lei pode adotar.

Percebeu-se, em Rafael, bom cuidado corporal e desenvoltura motora. O menino demonstrou conhecer e saber nomear as posições (em cima, embaixo, dentro, fora), além de apresentar autonomia para realizar as atividades na escola, tais como comer e ir ao banheiro sozinho e dormir sem a ajuda da educadora. Para Françoise Dolto (1984Dolto, F. (1984). A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva.), o esquema corporal é uma realidade de fato, sendo de certa forma “nosso viver carnal no contato com o mundo físico” (p. 10). Ele é, em síntese, o corpo funcional de um indivíduo. O esquema corporal relaciona-se intimamente com a noção de imagem inconsciente do corpo (Dolto, 1984). Tal imagem corporal diz respeito à memória inconsciente das vivências relacionais e serve de testemunho das relações afetivas com o outro. Trata-se de uma construção que aparece como resultado das ações do cuidador primordial sobre o corpo da criança, transformando-o em um sistema de significações que permitirá à criança se apreender em uma imagem psíquica, unificada, a partir da qual ela poderá se reconhecer (Kupfer et al., 2009Kupfer, M. C.; Jerusalinsky, A.; Bernardino, L.; Wanderley, D; Rocha, P; Molina, S;... Lerner, R. (2009). Valor preditivo de indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil: Um estudo a partir da teoria psicanalítica. Lat. Am. Journal of Fund. Psychopath, 6(1), 48-68.).

O menino demonstrou, ao longo da avaliação, interesse em compartilhar suas descobertas, tanto com as pesquisadoras quanto com a educadora. Ao abrir e explorar a caixa com os brinquedos e materiais a serem utilizados na avaliação, Rafael pegou o espelho e o mostrou para a pesquisadora, respondendo que quem estava aparecendo ali era ela. Logo depois se olhou e também apontou o espelho para as outras pesquisadoras presentes, convocando-as a se olharem e a participarem daquele momento. Compartilhou também os bonecos que ia encontrando durante sua exploração, nomeando-os, como lobo mau, Papai Noel, ursinho... Constatou-se também, em entrevista com a educadora, que o controle esfincteriano já havia acontecido e que, além disso, o desfralde foi demandado pela própria criança. Ademais, Rafael demonstrou autonomia ao se alimentar, comendo bem e sozinho. Tais atribuições fazem parte, na AP3, do eixo Estabelecimento de Demanda. Mesmo eixo em que foi detectada, nas intervenções com o IRDI aos 11 meses de idade, a ausência de dois indicadores (15 e 19a).

Na avaliação de Rafael aos 3 anos, foi possível observar que o menino compartilhou suas ações e descobertas, dirigindo-se às professoras e pesquisadoras para tanto. Em um trecho de sua avaliação uma das pesquisadoras relatou:

Durante a avaliação Didi [educadora] precisou entrar na sala uma vez e Rafael se dirigiu a ela, mostrando com o que estava brincando. Com as pesquisadoras isto também se deu durante a entrevista, quando encontrava novos brinquedos na caixa ou quando via algo que o interessava na sala.

Com essas situações se ilustram demandas de Rafael, considerando a anunciação de seu interesse pelos brinquedos e brincadeiras.

Foi possível perceber, a partir da AP3, que Rafael se encontrava no percurso constitutivo esperado, não apresentando sintomas clínicos ou sinais de sofrimento psíquico. Como foi dito anteriormente, ele demonstrava estar bem situado nas operações constitutivas consideradas no instrumento. Foi o desfecho dessa avaliação, em contraste com os dados encontrados na pesquisa do IRDI, que possibilitaram conjecturar acerca da constituição psíquica de Rafael, pensando longitudinalmente a forma com a qual as intervenções com a Metodologia IRDI podem ter reverberado e contribuído para os resultados encontrados mais tarde, com a AP3.

Terceiro tempo: pensando só depois os movimentos de Rafael…

Os primeiros anos de vida de uma criança são de extrema importância para a sua constituição subjetiva e desenvolvimento. Dessa forma, é importante atentar para os sinais de sofrimento que podem aparecer nesse período, onde a estruturação psíquica ainda não está decidida, possibilitando um reconhecimento e uma intervenção a tempo. Conforme Kupfer e Bernardino (2018Kupfer, M. C.; Bernardino, L. (2018). IRDI: Um instrumento que leva a psicanálise à pólis. Estilos da clínica, 23(1), 62-82. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i1p62-82.
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), os indicadores, na pesquisa IRDI, servem como operadores de uma leitura que permite supor a presença e a singularidade do sujeito. Além disso, o IRDI enquanto dispositivo dá subsídios para a observação de sinais iniciais de sofrimento psíquico e oportuniza ações de promoção de saúde mental, viabilizando a retomada do percurso constitutivo esperado para esses bebês.

O olhar de atenção e cuidado dirigido a Rafael oportunizou intervenções voltadas para um investimento em suas potencialidades em um momento ainda inicial de sua vida. As passagens retiradas dos diários de campo dos pesquisadores dão testemunho do acompanhamento do menino com a Metodologia IRDI, demonstrando a preocupação da dupla com a falta de iniciativa e a passividade de Rafael. Preocupação essa que se deu a partir do olhar atento aos indicadores e ao que eles sinalizavam, permitindo intervir nos entraves constitutivos. A partir disso, foi possível pensar sobre as intervenções realizadas pelos pesquisadores, supondo haver ali um sujeito em constituição e interpretando seus parcos pedidos como demandas endereçadas a eles. Os pesquisadores reconheceram, nos olhos brilhantes de Rafael, um potencial para o estabelecimento de laços afetivos. Sua vitalidade, escondida por baixo de uma aparente passividade, pôde ser colocada em evidência - tanto para as pesquisadoras quanto para as educadoras. Tal reconhecimento permitiu um trabalho que, possivelmente, minimizou entraves constitutivos antecipados pela ausência de alguns indicadores. As possíveis reverberações desse investimento se fazem notar nos momentos em que Rafael “responde” aos pesquisadores, seja pedindo para olhar a janela mais uma vez, seja estranhando e chorando com a chegada destes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A psicanálise, por se ocupar de um sujeito desejante, com uma dimensão inconsciente que o rege, não trabalha com afirmações causais diretas. Nesse sentido, não intencionamos afirmar que o desfecho da avaliação de Rafael com a AP3 se deu por causa das intervenções dos pesquisadores no acompanhamento com a Metodologia IRDI. Pretendemos sim apontar que elas podem ter feito a diferença de alguma forma na constituição dessa criança, seja fornecendo o olhar necessário para o seu desenvolvimento ou consolidando ganhos constitutivos que já estavam postos, mas ainda incipientes.

O IRDI tem se mostrado um potente dispositivo de intervenção em vários contextos. Alguns trabalhos abordam a utilização de tal instrumento em escolas de educação infantil (Wiles & Ferrari, 2020Wiles, J; Ferrari, A. G. (2020). Do cuidado com o bebê ao cuidado com o educador. Psicologia Escolar e Educacional, 24. https://doi.org/10.1590/2175-35392020213976
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), em instituições de acolhimento institucional (Omizzollo, 2017Omizzollo, P. (2017). Experiências de (des)continuidade e o vir a ser no abrigo: Desdobramentos a partir da teoria de D. Winnicott (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul.) e junto ao programa Primeira Infância Melhor (PIM) (Dornelles, 2018Dornelles, A. (2018). Entre impasses e encontros de formação: composições narrativas como passagem à po-ética de um dizer (Dissertação de Mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul.). Assim como em tais trabalhos, foi possível ilustrar, através do caso Rafael, a abertura de possibilidades de intervenções a partir das observações e acompanhamento baseados no IRDI.

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  • 1
    Entende-se que não necessariamente será a mãe que fará esta função, mas sim aquele/aquela que se coloque enquanto cuidador primordial desse bebê.
  • 2
    Os eixos teóricos são desenvolvidos no artigo de Ferrari et al. (2017).
  • 3
    As manifestações da infância são trabalhadas em Jerusalinsky (2008).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2019
  • Aceito
    12 Jan 2020
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