Há mais de trinta anos, em comentário para a revista Science, William Broad já apontava para os problemas crescentes causados pelo estímulo constante à publicação desenfreada (BRoaD, 1981), o tristemente famoso "publish or perish": cada vez mais se buscaria a submissão aos periódicos do que ele chamou de "unidades mínimas publicáveis" (least publishable units), dando origem ao que ficou conhecido mais tarde como "publicação salame", isto é, a divisão do que a rigor deveria ser um único texto abrangendo uma pesquisa em vários pequenos artigos, para maximizar o número de publicações. ainda no mesmo artigo, Broad assinalou o fenômeno da multiplicação de autores, ao menos em parte dos casos devido à eufemisticamente denominada "autoria honorária". temos observado, com alguma preocupação, esse fenômeno nas submissões a nossa revista, em muitos casos sem qualquer justificativa razoável.1 Por razões éticas, não é possível dar exemplos concretos, mas tem sido surpreendente receber manuscritos com um número de autores que se aproxima, ou às vezes ultrapassa, o número de sujeitos participantes na pesquisa que originou o artigo.
A pressão pela publicação tem, portanto, gerado a busca de subterfúgios que em alguns casos tensionam o que seria eticamente aceitável, mas para além desse problema, algo muito mais generalizado, e talvez mais deletério para a própria ciência, é a proliferação de pesquisas reiterativas, que não correm maiores riscos, que não buscam a originalidade. editorial recente dos Cadernos de Saúde Pública (CsP) aponta para esse problema (CaRValHo et al., 2013): suas autoras concluem, ao final, após relacionar esse problema com a pressão constante por publicação, afirmando que "[i]novar demanda tempo, esforço e, especialmente, arriscar e não ter medo de errar. É urgente romper o círculo vicioso do 'mais do mesmo'. Como editoras, esperamos publicar em CsP artigos que explorem perguntas de pesquisas socialmente relevantes de forma criativa e diversificada."
Solidarizamo-nos com os valores expressos pelas editoras em seu texto. avançar nessa direção demanda, contudo, mais do que nossa ação como editores; é necessário enfrentar a pressão exagerada por publicar cada vez mais e mais, porque dispomos de evidência de que esta se tornou danosa para a própria ciência. e essa pressão, por sua vez, tem como vetor privilegiado os mecanismos institucionais de indução da atividade científica, com destaque para avaliação de pesquisadores, individualmente ou em grupos. É urgente que a comunidade de pesquisa de um modo geral, e a saúde Coletiva, em particular, se organizem de modo efetivo para pôr fim, ou ao menos mitigar, o caráter excessivo e danoso dessa situação.
Que fique bem claro que não se trata aqui de defender, por trás da acusação de "produtivismo", o não cumprimento de uma obrigação básica da vida acadêmica, que é publicar, e com frequência, dada que essa é a única forma que dispomos de fazer avançar o diálogo essencial ao próprio desenvolvimento da ciência. Mas ao mesmo tempo parece-nos inegável que estamos chegando, se é que já não nos encontramos lá, num nível insustentável e indesejável de pressão pela publicação.
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A presente edição de Physis não tem um tema específico. os artigos selecionados a partir da demanda espontânea tiveram uma variedade temática importante, o que não nos permitiu a criação de um tema. Isso reflete, de todo modo, a amplitude da própria área de saúde Coletiva. nesta edição, ainda, estamos encerrando uma tradição dos editoriais de Physis, que era apresentar resumidamente os artigos publicados em cada número. após reavaliação interna, decidimos abandonar esse formato.
Excepcionalmente neste número temos duas resenhas sobre o mesmo livro, Retratos da Formação Médica nos Novos Cenários de Prática, de Maria Inês nogueira, uma de adriana aguiar e a outra de Vanessa Rangel. Coincidentemente, as duas chegaram às nossas mãos quase ao mesmo tempo, e dada a qualidade e complementaridade de ambas, optamos por publicá-las conjuntamente, ao invés de forçar uma escolha arbitrária.
Estamos em processo de transição de sistemas de gerenciamento de manuscritos; todas as novas submissões estão sendo feitas pelo scholarone, mas ainda temos um número substantivo de artigos no sistema anterior, o submission da scielo. Isso tem gerado alguns atrasos, que esperamos superar ao longo do ano. Independentemente dessa transição, temos tido algumas dificuldades em conseguir pareceristas, ou conseguir que os pareceres nos cheguem no prazo indicado. em parte isso pode ser consequência do crescimento exponencial da oferta de artigos a periódicos, conforme comentado na primeira parte deste editorial, mas qualquer que seja a razão, provoca atrasos consideráveis no processo. lembramos que revisores e autores são o mesmo grupo de pessoas assumindo papéis diferentes em revezamento, e muitas vezes os pesquisadores que se eximem de participar do processo de revisão são também os que reclamam da lentidão do processo... a ciência é um empreendimento coletivo, e o papel do revisor é no mínimo tão importante quanto o do autor.
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Temos solicitado aos autores que submetem artigos para avaliação que incluam declarações individualizando a contribuição individual de cada signatário dos artigos para que possamos avaliá-las segundo os critérios do International Committee of Medical Journal Editors. Várias submissões têm sido feitas sem esse documento, ou com uma versão completamente inadequada (por exemplo, afirmando que "todos autores colaboraram igualmente"). as normas adotadas pela revista determinariam a recusa a priori nesses casos; temos evitado fazê-lo mas é possível que eventualmente tenhamos que adotar essa medida mais drástica, em função da carga adicional de trabalho que representa
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2014