Resumo
Pesquisa qualitativa exploratória que se propôs a analisar a autopercepção da saúde bucal em pessoas adultas e idosas do Sul do Brasil que estavam em tratamento em Hospital Universitário de Ensino Odontológico. Entrevistas individuais semiestruturadas foram realizadas, gravadas em equipamento de áudio e transcritas. O material textual foi interpretado pela análise temática de conteúdo. Amostra foi constituída por 46 pessoas. Expressões de um corpo em desconforto, marcado por limitações nas funções fisiológicas (mastigação, fala, paladar) e socioculturais (convívio social, emprego, aparência, sorriso, hábitos) do cotidiano da vida, estiveram presentes nas narrativas das pessoas que se percebiam negativamente em relação à saúde bucal. Foram relatos associados ao não uso de próteses ou uso de próteses inadequadas, a doenças dentárias, ao mau hálito e à dor, que mobilizaram diferentes sentimentos (desespero, nervosismo, irritação, vergonha, constrangimento, opressão). A oportunidade da recuperação, por meio do acesso e realização do tratamento odontológico, trouxe a possibilidade de uma “reaprendizagem corporal” para que esse corpo pudesse seguir interagindo no mundo. Compreender como as pessoas se percebem em relação a sua saúde bucal tem potencial para um atendimento mais humanizado e resolutivo, permitindo que o “sujeito a ser cuidado” tenha mais autonomia/participação nas decisões sobre seu tratamento.
Palavras-chave: autopercepção; saúde bucal; qualidade de vida; pesquisa qualitativa
Abstract
This is a qualitative and exploratory research that aimed to analyze the oral health self-perception of adults and elderly people from the South of Brazil who were being treated at a university-based Dental Teaching Hospital. Individual semi-structured interviews were carried out, recorded by an audio equipment, and transcribed. The textual material was interpreted by thematic content analysis. The sample consisted of 46 individuals. Expressions of a body in discomfort, marked by limitations in physiological functions (chewing, speaking, taste) and in sociocultural functions (social life, employment, appearance, smiling, habits) of daily life were present in the narratives of people who perceived their oral health negatively. There were reports of non-use of prostheses or use of inadequate ones, dental diseases, bad breath and pain, which mobilized different feelings (despair, nervousness, irritation, shame, embarrassment, oppression). The opportunity of recovering this body through access and adherence to dental treatment brought the possibility of a 'corporal relearning' so that this body could continue to interact in the world. Understanding how people perceive themselves regarding their oral health has the potential for providing more humanized and effective care, allowing the subject to have more autonomy/participation in decisions about their treatment.
Keywords: Self-perception; Oral health; Quality of life; Qualitative research
Introdução
A implantação do Sistema Único de Saúde - SUS (BRASIL, 1988), a inclusão da equipe da saúde bucal na Estratégia Saúde da Família (BRASIL, 2000) e a instituição de uma Política Nacional de Saúde Bucal (BRASIL, 2004) trouxeram mudanças nas práticas de atenção à saúde bucal dos brasileiros. A prestação de serviços de saúde, caracterizada exclusivamente por ações de baixa complexidade com enfoque curativo-mutilador e voltadas, na sua maior parte, à faixa etária escolar, deu lugar ao acesso universal, ampliação e qualificação das ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde bucal (PUCCA JÚNIOR et al., 2009; COSTA; CHAGAS; SILVESTRE, 2006).
Nesse contexto de busca pela integralidade da atenção à saúde, estabelece-se uma proposta de reorientação das concepções e práticas para a assistência e o planejamento em saúde bucal, por meio da discussão de uma clínica ampliada voltada para o resolutividade das necessidades/demandas percebidas pelas pessoas, assumindo responsabilidades com o outro e possibilitando a compreensão de aspectos subjetivos e não exclusivamente físicos no processo de cuidado (BOTAZZO et al., 2015; CUNHA, 2010; BRASIL, 2007).
É um debate que traz como base a relação saúde, saúde bucal e qualidade de vida e a importância das experiências subjetivas das pessoas sobre seu próprio bem-estar funcional, social e psicológico (LOCKER, 1997), reinventando a prática histórica da Odontologia que toma a boca como órgão fragmentado e destituído do corpo (PIRES; BOTAZZO, 2015).
Apesar de abranger múltiplos significados, o ter “qualidade de vida” é uma concepção que interage com grau de satisfação encontrado na vida familiar, amorosa, social e ambiental e à própria estética existencial, sendo, portanto, uma construção social-cultural. Implica em uma síntese cultural dos elementos que determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar (MINAYO, 2000). Assim, atividades do cotidiano, como mastigar, falar e sorrir, bem como a aparência e relações sociais podem ser afetadas pela perda dos dentes, contribuindo para a redução da qualidade de vida dessas pessoas (LIMA et al., 2018).
O conhecimento sobre a autopercepção da saúde bucal apresenta-se como uma ferramenta que permite compreender o comportamento das pessoas no contexto da vida diária, suas experiências, influências sociais e culturais (DIAZ-REISSNER; CASAS-GARCIA; ROLDAN-MERINO, 2017; MELO et al., 2016; SILVA; FERNANDES, 2001). Também pode ser relevante para o planejamento e adesão ao tratamento, tendo potencial para contribuir com o sucesso de intervenções realizadas por profissionais da saúde (LINDEMANN et al., 2019). Autopercepção negativa tem sido associada a um menor número de dentes na boca, presença de sangramento, necessidade de prótese, tais condições provocam desconforto e prejudicam a função mastigatória, podendo também gerar uma percepção negativa da estética bucal, causando a insatisfação ao falar ou sorrir (BIDINOTTO et al. 2017; VALE; MENDES; MOREIRA, 2013). Já as pessoas que não apresentam dificuldades para falar, sorrir e mastigar relatam uma autopercepção positiva de saúde, resultando numa satisfação quanto à saúde bucal (RIGO et al., 2015).
Entendendo a autopercepção como uma ferramenta de cuidado e um determinante de uso dos serviços, esta pesquisa teve o objetivo de analisar a autopercepção da saúde bucal em adultos e idosos que estavam em tratamento odontológico em uma Universidade Pública do Sul do Brasil.
Metodologia
Trata-se de estudo de abordagem qualitativa, de caráter exploratório, realizado em Hospital Universitário de Ensino Odontológico no Sul do Brasil. Vinculado a uma Instituição Pública de Ensino Superior, o Hospital representa um espaço de atenção em saúde bucal, com atividades de graduação, pós-graduação, pesquisa e extensão que são desenvolvidas nos três turnos. Também integra esse serviço, um Centro de Especialidades Odontológicas (CEO) que atende usuários da rede SUS do município. Possui 3.040m2, 143 consultórios, três áreas de diagnóstico por imagem, área de expurgo, esterilização e Centro de Distribuição de Materiais.
A amostra foi intencional. Foram convidados a participar da pesquisa adultos e idosos, com idade igual ou superior a 18 anos, de ambos os sexos, que estavam em tratamento nesse espaço de saúde. Excluíram-se as pessoas com problemas de saúde que impedissem responder a uma entrevista.
A produção de informações se deu por meio de entrevistas individuais, semiestruturadas, que seguiram um roteiro pré-estabelecido, realizadas em espaço reservado do Hospital Odontológico por uma única entrevistadora. As entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio e posteriormente transcritas na íntegra pelas pesquisadoras. O roteiro de entrevista foi adaptado do instrumento utilizado pelos estudos epidemiológicos nacionais - SBBrasil 2003 e 2010 (BRASIL, 2011) agregando-se dados de contexto dos participantes (sexo, idade, escolaridade, trabalho, tempo em que acessa o serviço e motivo pela procura ao serviço). Os tópicos do roteiro buscavam interligar a percepção das pessoas em relação à boca/dentes a aspectos voltados à mastigação, fala, sono, higiene da boca, sorriso, relações sociais, sentimentos e dor, servindo de orientação para o andamento da interlocução e foi construído de forma que permitisse a flexibilidade nas conversas e a absorção de novos temas e questões trazidas pelo interlocutor (MINAYO, 2009).
O término da coleta de dados foi definido pela avaliação da densidade do material textual das entrevistas e pelo critério da saturação teórico - repetições de ideias (FONTANELLA et al., 2011). Ao total, 46 pessoas foram entrevistadas, ao longo de cinco meses, de maio a setembro de 2018. Cada entrevista teve a duração de cerca de 40 minutos.
Os dados de contexto foram analisados por meio da distribuição de frequências (análise descritiva). Já o material textual produzido nas entrevistadas foi interpretado pela análise temática de conteúdo (BARDIN, 2011), seguindo as etapas de pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados obtidos e a interpretação. A pré-análise envolveu a leitura flutuante das transcrições das entrevistas, havendo contato exaustivo das pesquisadoras com o material de análise. Na etapa da exploração do material, os dados brutos do material foram codificados em temas e depois em categorias para se alcançar o núcleo de compreensão do texto. Na última etapa foram realizadas as interpretações de acordo com o quadro teórico e objetivo proposto.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade em que o estudo aconteceu (CAAE: 45757715.0.0000.5347 / Parecer: 2.180.023).
Resultados
Participaram desta pesquisa 46 pessoas que estavam em tratamento no Hospital Universitário de Ensino Odontológico. Foi uma amostra constituída na sua maioria por mulheres (73%), de 50 a 76 anos de idade (54,3%), com Ensino Médio completo (60,9%), que trabalhavam (65,3%) e acessaram esse serviço há um ano (60,9%), para serem atendidos pelo CEO da Universidade estudada (28,3%), para realizarem tratamento reabilitador de prótese e/ou implante (17,4%) ou para o atendimento de urgência (13%) (tabela 1).
A análise do material textual produzido pelas entrevistas foi estruturada em temas principais e, após, em categorias (unidades de significação). Três categorias emergentes expressam a forma de organização e apresentação dos resultados, tendo ambas o corpo como unidade central de análise: corpo em desconforto, corpo envergonhado e corpo reabilitado.
Corpo em desconforto: autopercepção negativa da saúde bucal associada ao uso de próteses inadequadas, doenças dentárias, ausência e dor nos dentes e boca
Nesta pesquisa, a autopercepção negativa da condição de saúde bucal esteve associada ao uso de próteses que “incomodam”, “atrapalham”, afetam a aparência e o sorriso (“feia”), dificultam a mastigação no momento da alimentação, acumulando alimentos e machucando a gengiva.
[...] faz 10 anos que eu quero sorrir e não consigo sorrir, porque ela [a prótese] é feia. Eu não tinha condições e botei a mais em conta, daí ela não é de acordo com meus dentes de baixo que são meus mesmo, é aquela coisa que eu não posso dar um sorriso que todo mundo percebe que não são meus dentes. Isso me incomoda. [...] uma foto sorrindo faz tempo que eu não tenho, é sempre foto séria, ou aquele sorrisinho com boquinha (Entrevista 46, mulher, 29 anos, usuária de prótese total superior).
[...] parecia que estava saltado [prótese superior], eu ficava bicuda. Às vezes eu cobria a boca para sorrir, até as vizinhas falam tira esse cacoete de ficar com a mão na boca (Entrevista 4, mulher, 56 anos, usuária de prótese total superior e prótese parcial removível inferior).
[...] a mastigação não fica a mesma com a prótese, entra mais alimento embaixo, aí no meio da refeição tem que levantar e ir no banheiro para tirar e lavar, então tem uma certa dificuldade para se alimentar (Entrevista 16, mulher, 56 anos, usuária de prótese parcial removível inferior e fixas superiores).
[...] está me acumulando alimento aqui nos cantos da prótese (aponta para as bochechas) (Entrevista 7, mulher, 61 anos, usuária de prótese parcial removível inferior).
[...] a ponte móvel atrapalha. Quando a gente não consegue mastigar direito uma cenoura é porque a ponte está ruim, ou uma bergamota, ou laranja. [...] está me incomodando. [...] depende do que você vai comer, coisas pequenas, como amendoim, pipoca acaba entrando embaixo da prótese e machuca (Entrevista 44, mulher, 65 anos, usuária de prótese parcial removível inferior e fixa superior).
A esses relatos de desconfortos na mastigação pelo uso de próteses ainda foram acrescentadas limitações na fala (“falar cuspindo”, “prótese está caindo”), no paladar (“gosto da comida”) e na ingestão de líquidos quentes, como chimarrão, bebida símbolo da cultura do local da pesquisa, quando a prótese é superior (“esquenta bastante”).
[...] depois que coloquei a ponte fixa eu comecei a falar cuspindo. Meus sobrinhos e meus filhos que me falaram isso, aí preciso cuidar para engolir a saliva para não ficar cuspindo (Entrevista 44, mulher, 65 anos, com doença periodontal).
[...] coloquei a prótese com 19 para 20 anos [...] já tem 10 anos que eu uso. Ela não está bem adaptada, ela me machuca, já está caindo, eu falo, ou mastigo e ela cai, ela não está mais adaptada a minha dentição. Eu não sinto o gosto [da comida], porque ela pega metade do céu da boca e ela é grossa, então eu não sinto o paladar. E para mastigar ela machuca, porque eu estou mastigando e entra alimento debaixo dela, ai do atrito com a gengiva e machuca, isso acontece em todas as refeições. E com líquido quente, tipo chimarrão porque ela esquenta bastante (Entrevista 46, mulher, 29 anos, usuária de prótese parcial removível superior).
Doenças bucais causando mobilidade dentária, limitações na fala e interferências na aparência e no cotidiano de vida e trabalho, também foram relatadas pelos entrevistados que se percebiam com problemas na boca/dentes.
[...] já aconteceu de eu estar conversando até com conhecidos mesmo, e eu morder a língua, aconteceu de eu babar, já aconteceu de enrolar a fala e eu perceber que foi por causa da minha dentição, tanto que eu tive vontade de pôr um aparelho, porque realmente a minha arcada dentária está ficando diferente e incomodando, até na minha dicção. [...] sinto que eu mordo muito a língua e a minha fala tem ficado meio que “pregada”, porque os dentes estão se separando, já percebi que eu fiquei com uma certa dificuldade de falar (Entrevista 21, mulher, 37 anos, com mobilidade dentária por doença periodontal).
[...] eu trabalhava no comércio, eu parei de trabalhar, porque eu não estava com os dentes bons, eles não estavam apropriados pra pessoas que trabalham em comércio, que tem que estar sorrindo conversando, falando com as pessoas (Entrevista 45, mulher, 44 anos, sensibilidade dentinária).
A mesma percepção negativa foi relatada pelas pessoas que haviam perdido dentes (edêntulos parciais), sendo este um motivo para a procura pelo tratamento odontológico.
[...] sentia dificuldades para mastigar pela falta de dentes que eu tinha na boca. Era bem deficiente. Isso também foi um outro motivo que me fez retomar o tratamento (Entrevista 14, homem, 54 anos, usuário de prótese fixa superior).
[...] estou insatisfeita com esses dentes que estão faltando, eu sinto falta para poder se alimentar, mastigar melhor (Entrevista 20, mulher, 65 anos, usuária de prótese total superior).
[...] sou muito vaidosa, eu estava sem os dois dentes aqui de baixo (pré-molares), e como a minha risada é de me soltar, de abrir bem a boca, então isso eu não fazia de jeito nenhum porque eu estava sem os dois. Eu sou tão fanática que chegava até o ponto de sorrir na frente do espelho para ver se ia aparecer, se eu tivesse perto das amigas (Entrevista 5, mulher, 45 anos, necessidade de reabilitação protética por implantes).
[...] não gosto de sorrir porque estou sem os dentes aqui, e quando você sorri aparece. Aí fica feio, e me incomoda (Entrevista 35, mulher, 57 anos, edêntula parcial com necessidade de reabilitação protética).
[...] sorrio de boquinha fechada. Meu marido sempre fala para eu sorri, mas meus dentes são muito feios, eu não gosto. [...] eu não gosto mais nem de tirar foto e de sorrir porque eu acho eles feios. [...] me sinto incomodada, acho que não está bonito (Entrevista 31, mulher, 51 anos, necessidade de prótese fixa).
Outro fator que afetou a autopercepção da saúde bucal na amostra estudada foi a presença de dor ocasionada por diversos motivos (dor provocada pelo consumo de alimentos e líquidos gelados, dor ao mastigar, dor pela mobilidade dentária), que em determinadas situações afetavam o desempenho dos entrevistados nas suas atividades diárias.
[...] faz mais de seis meses que eu estou mastigando só de um lado, porque o outro lado dói muito, principalmente, com coisas geladas e doces (Entrevista 15, mulher, 51 anos, necessidade de um aumento de coroa e restauração).
[...] não podia mastigar e nem comer coisas geladas, doía e sentia uma sensação de coisa gelada. Ficava com receio de comer e eles (os dentes) doerem. Coisa gelada, principalmente, no verão ia comer um sorvete e não podia comer, uma carne eu não podia comer (Entrevista 29, mulher, 39 anos, necessidade de tratamento restaurador).
[...] faço mestrado em educação, então é muita leitura, e o dente quebrava, totalmente, a possibilidade de me concentrar no meu projeto, enfim, foi complicado (Entrevista 12, homem, 31 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
Houve relatos em que a dor nos dentes e na boca afetou o convívio social das pessoas, seja pelo “mau cheiro” que estava associado ou por trazer limitações na mastigação, gerando sentimentos de “desespero”, “nervosismo”, “irritação”, fazendo com que deixassem de frequentar determinados ambientes, ou de comer determinados alimentos para não ter incômodos ao fazer as refeições em público.
A dor de dente é terrível. [...] afetava as minhas relações, era algo sigiloso, as pessoas mais próximas sabiam e compartilhavam dessa parte ruim. Eu falava alguma coisa e realmente estava vindo mal cheiro (Entrevista 12, homem, 31 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
[...] principalmente quando eu como carne que ela entra entre os dentes. Eu fico desesperada, desesperada de dor e porque fica irritando e empurrando. Eu vou comendo a carne e já vou tirando, toda vez que eu vou comer, eu tenho que mastigar e ir tirar, me deixa nervosíssima. [...] teve uma festa da minha família e eu não compareci. Em relação a churrasco, deixar de ir nas festas não deixo, mas já deixei de comer na festa. Às vezes eu até como, mas como com muita irritação e com muito cuidado, mas já deixei de comer para não doer e para não estar no meio das pessoas fazendo todo um trabalho (Entrevista 21, mulher, 37 anos mobilidade dentária por doença periodontal).
[...] estou num período bastante irritada por causa da dor, a dor faz a pessoa ficar nervosa e sensível, então qualquer coisinha te irrita, tu ficas bem mais irritada porque está quase que, constantemente, sentindo dor na boca (Entrevista 15, mulher, 51 anos, necessidade de aumento de coroa e restauração).
[...] já deixei de ir em alguns lugares porque não podia comer algo que não fosse macio por meses, então afeta nesse sentido. Como é muito recorrente, tem algumas coisas que em determinados períodos eu tive que me limitar. Isso é inconveniente (Entrevista 2, mulher, 32 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
Corpo envergonhado: sentimentos associados à autopercepção negativa da saúde bucal
Esse corpo em desconforto pela condição da boca/dentes expressou sentimentos de vergonha, associados ao constrangimento, opressão e irritação, os quais foram associados a uma percepção negativa da saúde bucal.
[...] ficava com vergonha por causa da aparência desse dente. Por causa do canal o meu dente ficou mais escuro, e ficou o abscesso, aí isso me deixou mais constrangido, por falar e aparecer aquela coisa feia (Entrevista 12, homem, 31 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
Para conversar, eu fico meio que oprimida, constrangida e com vergonha (Entrevista 46, mulher, 29 anos, usuária de prótese total superior).
[...] eu falava de longe com as pessoas, falava com a mão na boca, sempre escovando os dentes, sempre com bala na boca, isso é muito desgastante. [...] virava a cara para o lado, isso afasta as pessoas né? [...] vergonha a gente sempre fica né? [...] ainda mais para quem teve os dentes lindos como os meus. Eu tinha sorriso de comercial de creme dental. Todas as fotos minhas eu só estou rindo de longe. Eu sorrio de canto (Entrevista 18, mulher, 54 anos, necessidade de adequação bucal e reabilitação protética).
[...] eu sofri um acidente de bicicleta e fiquei 15 anos com dentes provisórios, eu me incomodava, a estética me incomodava. [...] eu tinha vergonha de sorrir e conversar, se fosse pessoas desconhecidas eu tinha vergonha. [...] eu tentava tapar o sorriso com os lábios (Entrevista 43, homem, 40 anos, realizou tratamento reabilitador com próteses e facetas).
[...] fico mais irritada quando a doença está mais agressiva (Entrevista 34, mulher, 47 anos, prótese parcial removível superior, relata ter penfigoide bolhoso).
Essa percepção negativa trouxe prejuízo à autoestima das pessoas, aos seus relacionamentos/convívio social e limitações na possibilidade do sorrir.
[...] minha autoestima acaba ficando lá embaixo e acaba que a gente fica com vergonha. E eu sou nova né, acaba afetando a autoestima da gente. [...] não é de agora, faz um tempo que eu sinto que de toda a minha aparência estética, a minha dentição e a minha boca são os que mais estão me prejudicando (Entrevista 21, mulher, 37 anos, com mobilidade dentária).
[...] os dentes são muito importantes, como se diz né é o cartão de visita da pessoa, acredito eu. Afeta os meus relacionamentos sociais, acredito que seja pelo mau hálito, e até pelos dentes um pouco amarelados e tortos (Entrevista 24, homem, 35 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
[...] faz muito tempo que eu não sei o que é sorrir direito. Não dá, porque meu problema é bem no dente da frente, aí eu tapo a boca. Eu tive que vim até na emergência por causa desse meu dente, que com um tombo ele caiu completamente. Depois esse dente não parava, vivia caindo (dente de estoque preso com contensão), eu não saia nem para ir no mercado, me sentia bem envergonhada porque é o bem da frente. Agora eu já me habituei a falar com a boca mais fechada (Entrevista 7, mulher, 61 anos, usuária de prótese parcial removível inferior).
Cabe ressaltar que independente da manifestação de desconforto que o corpo expresse, o “viver com a doença bucal” foi uma condição que se destacou na fala dos entrevistados por afetar de forma negativa a autopercepção da saúde bucal, mobilizando diferentes sentimentos.
[...] dá vários sentimentos quando a gente vive com a doença. (Entrevista 34, mulher, 47 anos, prótese parcial removível superior, relata ter penfigoide bolhoso).
Corpo reabilitado: autopercepção positiva da saúde bucal associada a resolução dos problemas nos dentes e na boca
A autopercepção positiva da saúde bucal esteve presente nas narrativas dos participantes desta pesquisa quando os problemas nos dentes e na boca foram solucionados, especialmente os relacionados à aparência física que afetavam o sorriso e as relações sociais, trazendo vergonha e constrangimento (“para mim fez toda a diferença”, “agora eu distribuo sorrisos”).
[...] me incomodava muito com meus dentes da frente, dentes amarelos. [...] eu tapava com as mãos, ou sorria com a boca fechada mesmo. [...] eu tinha muita vergonha dos dentes, vivia falando que não poderia ir na formatura da minha sobrinha, eu dizia “Como eu iria sorrir para as fotos com os dentes feios e amarelos. Só vai ter gente com dentes bonitos, eu não vou poder ir”. [...] e agora eu distribuo sorrisos para todos, dou bom dia para todo mundo (Entrevista 1, mulher, 56 anos, usuária de prótese fixa superior e prótese parcial removível inferior).
[...] quando sorria, eu tinha muita gengiva, e me incomodava o meu sorriso, sempre me incomodava a minha gengiva. Aí a aluna resolveu fazer uma cirurgia que ela tirou um mínimo pedacinho de gengiva, mas que eu já notei, que para mim fez toda a diferença (Entrevista 5, mulher, 45 anos, necessidade de reabilitação protética por implantes).
[...] agora como eu consegui fazer reparos e já estou mais tranquila, mas antes eu tinha constrangimento de ver que os dentes não estavam bons e aquela coisa toda de sorrir e de conversar, mas agora não (Entrevista 45, mulher, 44 anos, com sensibilidade dentinária).
[...] eu me sentia bem incomodada com a minha aparência antes de começar o tratamento. Eu coloquei as facetas. Mas agora não me sinto mais incomodada, agora está perfeito (Entrevista 17, mulher, 51 anos, realizou reabilitação estética com facetas).
Observou-se que essa percepção positiva da saúde bucal associada ao atendimento odontológico, já acontecia a partir do momento do início do tratamento, o que trouxe bem-estar e melhora nas relações sociais das pessoas.
[...] eu estou muito satisfeita, aliás, fiquei quando eu cheguei na faculdade, quando começou o tratamento eu achei o máximo. Minha relação com as outras pessoas melhorou depois que começou o tratamento (Entrevista 1, mulher, 56 anos, usuária de prótese fixa superior e prótese parcial removível inferior).
Os entrevistados mostraram-se felizes e satisfeitos com tratamento odontológico recebido, reconhecendo o cuidado dos profissionais que os atendem - “a atenção é espetacular” - e valorizando a infraestrutura e materiais existentes nesse serviço - “é tudo de primeira, material e hospital de primeiro mundo”.
[...] eu fico feliz em ter como vim aqui, eu já fiz tratamento fora antes de começar a vir aqui e deu errado que eu tive que refazer, aqui o atendimento é mais longo, mas ele é perfeito, nenhum dos tratamentos que eu fiz aqui eu tive que refazer (Entrevista 2, mulher, 32 anos, necessidade de tratamento endodôntico).
[...] estou satisfeita, principalmente, desde que eu comecei a me tratar aqui. Porque a atenção é espetacular, todos eles me trataram muito bem. Tratamento muito bom mesmo (Entrevista 8, mulher, 60 anos, necessidade de reabilitação por implantes).
[...] estou muito satisfeito por ter aparecido esse tipo de serviço para nós. O dentista sempre foi um serviço caro né, entrar num consultório de dentista para fazer qualquer coisa é muito caro. Agora com esse tipo de serviço para nós que não temos uma renda muito... alta, para chegar e bancar, tipo esse meu tratamento no particular ia ser muito caro, de repente eu ia fazer metade, de repente não ia conseguir fazer todo (Entrevista 11, homem, 56 anos, extração dos sisos e doença periodontal).
[...] estou satisfeito, quando eu cheguei aqui teve todo um trabalho, isso eu achei bem legal, por ser um tratamento mais completo. Eu cheguei com uma demanda bem específica, bem pontual, daí achei bacana a disponibilidade, e o trabalho é bacana mesmo, de fazer uma coisa mais integral, vão fazer um tratamento integral (Entrevista 12, homem, 31 anos, necessidade de implante).
[...] estou muito satisfeito. Desde o atendimento, a atenção e o profissionalismo dos alunos, e o acompanhamento dos mestres, que nunca deixaram, em hipótese alguma, a mercê do aluno (Entrevista 14, homem, 54 anos, com perda óssea e necessidade de reabilitação estética com facetas).
[...] eu vim para cá e fiquei muito contente, até porque é tudo de primeira, material e hospital de primeiro mundo, diga-se de passagem (Entrevista 15, mulher, 51 anos, necessidade de um aumento de coroa e restauração).
[...] estou em tratamento, glória a Deus! Senão eu estava mal! Foi devido a ter vindo aqui que minha boca está bem melhor, saudável, está ficando e vai ficar ainda melhor. [...] o negócio era brabo, depois que eu vim ser atendida aqui, tudo mudou (Entrevista 18, mulher 54 anos, necessidade de adequação bucal e reabilitação protética).
Essa possibilidade da reabilitação pelo tratamento trouxe ganhos que se refletiram na vida das pessoas, motivando-as, mudando sua autoestima e trazendo segurança para a realização das atividades do cotidiano.
[...] muito satisfeito! Eu considero, principalmente, pelo trabalho feito aqui, me motivou muito, minha autoestima mudou total. Mudou muita coisa na minha vida, comigo mesmo, de uma maneira interna (Entrevista 43, homem 40 anos, realizou tratamento reabilitador com próteses e facetas).
[...] participo de muitas reuniões, administro propriedades, tenho muitos eventos, palestras que a gente tem que falar. O tratamento me ajudou muito, agora me sinto mais seguro, mais à vontade para sorrir e para conversar (Entrevista 14, homem, 54 anos, usuário de prótese fixa superior).
Após o término do tratamento odontológico, há uma expectativa de satisfação com a saúde bucal pela melhora esperada na estética e funcionalidade dos dentes, mas também pela possibilidade de ter uma condição saudável da boca, acabando com o constrangimento de falar com outras pessoas, o que dará “motivação” e poderá “abrir novos caminhos”.
[...] vou ficar mais satisfeito ainda pela estética e com os dentes saudáveis, praticamente toda a arcada, os dentes que eu perdi repostos (Entrevista 14, homem, 54 anos, usuário de prótese fixa superior).
[...] vai melhorar quando eu finalizar o tratamento, porque eu também vou estar saudável, se eu continuar me cuidando (Entrevista 15, mulher, 51 anos - necessidade de um aumento de coroa e restauração).
[...] eu não sentiria mais constrangimento de falar com as pessoas, eu conseguiria mudar a minha vida, te dá mais objetivos, mais vontades, te dá mais motivação para ti abrir novos caminhos. Acho que é isso que uma dentição te faz se sentir bem, te faz abrir portas (Entrevista 46, mulher, 29 anos, usuária de prótese parcial removível superior).
Discussão
Esta pesquisa propôs-se a analisar, a partir de uma abordagem qualitativa, o modo como as pessoas se percebem em relação a sua condição de saúde bucal, evidenciando o papel da “boca e dos dentes” na vida dessas pessoas. Estuda a percepção apresentando-a como a descrição de uma experiência concreta e humana a partir do ponto de vista específico de um sujeito que age sobre o mundo e também sofre a ação do mundo, “como as coisas aparecem a nós” (MATTHEWS, 2011, p. 15). Traz a perspectiva do corpo como eixo da relação com o mundo, ou seja, o corpo como vetor semântico pelo qual se constrói a evidência dessa relação, incluindo ações, percepções, sentimentos e ritos de interação (LE BRETON, 2009).
Os resultados encontrados referem-se a uma população de adultos e idosos marcados por uma “incapacidade bucal” que gera desconfortos e impõe limites ao corpo na realização de atividades diárias como a de mastigar, falar, sorrir, se alimentar na frente de outras pessoas, tomar chimarrão e até trabalhar, levando a uma autopercepção negativa da saúde bucal.
Assim como observado neste estudo, resultados de pesquisas anteriores também têm associado a autopercepção negativa da saúde bucal a alterações no sistema mastigatório e ao uso de próteses mal adaptadas que acarretam problemas de saúde geral, já que causam danos nos tecidos moles e duros da boca, restringindo o consumo de determinados tipos de alimentos, e impedindo, muitas vezes, a alimentação do indivíduo junto a outras pessoas, comprometendo as relações sociais e a qualidade nutricional da dieta (CORRÊA et al., 2016; RIGO et al., 2015; BRAGA; BARRETO; MARTINS, 2012; CASOTTI; MARTINS; FRANCISCO, 2012; UNFER et al., 2006; GILBERT; FOERSTER; DUNCAN, 1998).
Acrescenta-se a esses achados, a ausência de dentes na boca associada à insatisfação com a condição de saúde bucal, o que pode ser explicado pelo comprometimento do sorriso e da estética, afetando muitas vezes o psicológico, reduzindo a autoestima e a integração social das pessoas, e também por dificultar a fala e a mastigação e causar desconfortos inclusive pela presença de dor (LIMA et al., 2018; NICO et al., 2016; AGOSTINHO; CAMPOS; SILVEIRA, 2015).
A dor provocada por diferentes motivos, nesta pesquisa, expressou uma autopercepção negativa da saúde bucal. A literatura, da mesma forma, relata a dor como fator ligado a uma autopercepção negativa da saúde bucal (BINARDINI et al., 2017; VALE; MENDE; MOREIRA, 2013), e à presença de doenças (FONSECA; FONSECA; MENEGHIN, 2017), sendo considerada uma importante medida de impacto da saúde bucal na qualidade de vida (HAIKAL et al., 2017). Já entre idosos, entretanto, a dor pode ser aceita como um evento natural da idade avançada e não interferir na autopercepção desses idosos sobre a sua condição de saúde bucal (HAIKAL et al., 2011).
Essas limitações impostas ao corpo por questões associadas à boca geraram nas pessoas estudadas sentimentos negativos - sofrimentos, expressos por “desespero”, “nervosismo”, “irritação”, “vergonha” e “constrangimento”. Pessoas com baixa satisfação da saúde bucal sentem-se mais envergonhadas devido a presença de problemas nos dentes, boca e gengiva. Problemas bucais podem reduzir a satisfação com a vida do indivíduo, impedindo-o de relaxar e, com isso, sentimentos negativos como estresse e irritação são identificados (RIGO et al., 2015).
Cabe considerar, nesta análise, que o sofrimento relatado pelos entrevistados não se restringe ao desconforto físico de um corpo em si, mas sim a situações e sensações que se somam, trazendo restrições à vida dessas pessoas. É um corpo que se torna não familiar, com perdas em seu controle, que torna o sujeito um usuário em busca de cuidado, surgindo a demanda pelo serviço de saúde em busca de uma “reaprendizagem corporal” para seguir interagindo no mundo (CANESQUI, 2007; CAMARGO JÚNIOR, 2003; CORBIN, 2003). Nessa perspectiva, a boca humana assume o significado de um dispositivo social de interação do ser com o mundo (BITENCOURT; CORRÊA; TOASSI, 2019), tornando-se responsável por realizar trabalhos sociais (BOTAZZO, 2006).
A presença desconfortável do “mau hálito” nos entrevistados transformou-se em uma barreira nas relações sociais. Numa forma de reaprendizagem corporal, as pessoas relataram fazer uso de substâncias como bochechos e balas quando tem um encontro íntimo ou nas suas relações sociais para disfarçar o mau cheiro da boca (SILVA et al., 2006).
Outro aspecto observado nessa necessidade de readaptação corporal está voltado à realização de um tratamento odontológico que atenda às necessidades das pessoas que o procuram. Dar início, ou estar em tratamento em um local onde há um reconhecimento da qualidade do cuidado recebido, tanto em relação aos profissionais, quanto à estrutura física e de materiais, foi associada, neste estudo, com a autopercepção positiva da saúde bucal. Saber que suas necessidades de saúde serão atendidas em um serviço que gostam e confiam resultou na melhora da autoestima e trouxe segurança para a realização das atividades diárias, trazendo satisfação, principalmente quando o tratamento contempla a solução de problemas na aparência.
A avaliação dos serviços de saúde pelos usuários fornece informações essenciais para a definição dos padrões de qualidade dos atendimentos prestados e tem sido muito valorizada, representando um resultado esperado da assistência. A satisfação dos usuários constitui um componente fundamental da avaliação dos serviços de saúde, sendo inclusive considerada como objetivo final de tais serviços (SANTOS, 1995; DONABEDIAN, 1988).
Torna-se oportuno o destaque aos resultados encontrados nesta pesquisa que reforçam o valor do “corpo-boca-dentes” no bem-estar do indivíduo. Tratamentos odontológicos que melhoraram a aparência das pessoas, motivando-as, mudando sua autoestima e fazendo com que tivessem mais vontade de sorrir e conversar, estiveram associados à autopercepção positiva da saúde bucal. Pessoas com autoestima elevada têm uma autopercepção positiva da vida. Já a baixa autoestima está associada a insatisfação corporal, que provoca a insegurança do indivíduo, a insatisfação consigo mesmo e diminui a sua autoconfiança (NUMANOVIC et al., 2018). A estética é um importante fator para o bem-estar físico e psicossocial do indivíduo. Tratamentos odontológicos que alterem a aparência são aceitos facilmente devido ao impacto que a aparência tem na autoestima (PERES et al., 2011). Doenças dentárias e dentes em más condições de saúde, fraturados, ou escurecidos estão associados a autopercepção negativa da saúde bucal, causando danos a autoestima do indivíduo (VILELA et al., 2013).
Existe uma forte relação entre autopercepção positiva de saúde bucal e satisfação com a aparência, e essa relação pode ser explicada pelo fato de que a aparência física é facilmente notada nos momentos de interações sociais, o que pode criar a ideia de que “o que é bonito é bom”, mostrando que uma boa aparência é uma característica social desejável, interferindo, assim, na autoestima dos indivíduos (BIDINOTTO et al., 2017). Corroborando com essas evidências, o presente estudo mostrou relatos de autopercepção negativa da saúde bucal relacionados a problemas estéticos, ausências dentárias e insatisfação com a aparência.
Ao final desta análise, torna-se relevante chamar a atenção para dois aspectos estruturantes desta pesquisa. O primeiro trata da característica da amostra estudada. São pessoas que buscaram, conseguiram acesso e estão em tratamento odontológico, ou seja, tinham uma expectativa de que esse tratamento levaria a melhorias nas suas condições de saúde bucal e de vida, agindo como uma medida de proteção ao corpo “doente”. Essa garantia do cuidado em saúde bucal pode ter afetado positivamente a autopercepção de saúde bucal dos entrevistados, mesmo quando o tratamento ainda estava iniciando. O segundo aspecto refere-se ao conceito de clínica. Ao trazer as percepções e sentimentos das pessoas sobre sua saúde, considerando as experiências de vida, argumenta-se por uma clínica que não pode prescindir de dar escuta ao corpo vivo, que interage com outros corpos e que inclusive produz doenças. Discute-se, assim, o resgate da dimensão do cuidado bucal na clínica odontológica (SOUZA, 2006).
Estudos de acompanhamento sobre a autopercepção da saúde bucal, após a conclusão dos tratamentos, são recomendados, bem como pesquisas que incluam a análise da autopercepção como ferramenta de cuidado em diferentes populações e serviços de saúde, com destaque aos usuários atendidos pela rede de serviços do SUS.
Considerações finais
Expressões de um corpo em desconforto, marcado por limitações nas funções fisiológicas (mastigação, fala e paladar) e socioculturais (convívio social, emprego, aparência, sorriso, trabalho, hábitos) do cotidiano da vida, estiveram presentes nas narrativas das pessoas que se percebiam negativamente em relação à saúde bucal. Foram relatos associados ao não uso de próteses ou uso de próteses inadequadas, a doenças dentárias, ao mau hálito e à dor, que mobilizaram diferentes sentimentos (desespero, nervosismo, irritação, vergonha, constrangimento e opressão).
A oportunidade da recuperação desse corpo, pelo cuidado, pelo “ter o tratamento odontológico”, “ter os problemas nos dentes e na boca solucionados”, trouxe a possibilidade de uma “reaprendizagem corporal” para que esse corpo pudesse seguir interagindo no mundo. Assim, ganhos se refletiram na vida das pessoas, motivando-as, mudando sua autoestima e trazendo segurança para a realização das atividades do cotidiano, bem-estar e melhora nas relações sociais.
Estudos de autopercepção a partir de uma abordagem qualitativa devem ser estimulados nos serviços de saúde, constituindo-se em uma ferramenta complementar potente de cuidado humanizado e resolutivo, permitindo que o “sujeito a ser cuidado” tenha mais autonomia e participação nas decisões sobre seu tratamento.1
Referências bibliográficas
- AGOSTINHO, A. C. M. G.; CAMPOS, M. L.; SILVEIRA, J. L. G. C. Edentulismo, uso de prótese e autopercepção de saúde bucal entre idosos. Rev. Odontol. UNESP. Araraquara, v. 44, n. 2, p. 74-79, mar-abr. 2015.
- BENYAMINI, Y.; LEVENTHAL, H.; LEVENTHAL, E. A. Self-rated oral health as an independent predictor of self-rated general health, self-esteem and life satisfaction. Soc. Sci. Med. New York, v. 59, n. 5, p. 1109-1116, Feb. 2004.
- BIDINOTTO, A. B. et al. Autopercepção de saúde bucal em comunidades quilombolas no Rio Grande do Sul: um estudo transversal exploratório. Rev. Bras. Epidemiologia. São Paulo, v. 20, n. 1, p. 91-101, jan./mar. 2017.
- BITENCOURT, F. V.; CORRÊA, H. W.; TOASSI, R. F. C. Experiências de perda dentária em usuários adultos e idosos da Atenção Primária à Saúde. Ciênc. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 169-180, 2019.
- BOTAZZO, C. et al. Inovação na produção do cuidado em saúde bucal. Possibilidades de uma nova abordagem na clínica odontológica para o Sistema Único de Saúde. Relatório Técnico. São Paulo, 2015.
- BOTAZZO, C. Sobre a bucalidade: notas para a pesquisa e contribuição ao debate. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 7-17, 2006.
- BRAGA, A. P. G.; BARRETO, S. M.; MARTINS, A. M. E. B. L. Autopercepção da mastigação e fatores associados em adultos brasileiros. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 28, n. 5, p. 889-904, maio 2012.
- BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Atenção primária e promoção da saúde. Coleção Pró-gestores - Para entender a gestão do SUS. Brasília: CONASS, n. 8, p. 41-43, 2007.
- ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
- ______. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.444/GM. Estabelece incentivo financeiro para a reorganização da atenção à saúde bucal prestada nos municípios por meio do Programa de Saúde da Família. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 28 dez. 2000.
- ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Coordenação Geral de Saúde Bucal. SBBrasil 2010: pesquisa nacional de saúde bucal: resultados principais. Brasília, 2011.
- ______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Coordenação Nacional de Saúde Bucal. Diretrizes da Política Nacional de Saúde Bucal. Brasília, 2004.
- CAMARGO JUNIOR, K. R. Um ensaio sobre a (In)definição de integralidade. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R. A. (Org.). Construção da integralidade: cotidiano, saberes e práticas em saúde. Rio de Janeiro: Abrasco, 2003. p. 35-43.
- CANESQUI, A. M. (Org.). Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec, Fapesq, 2007.
- CASOTTI, C. A.; MARTINS, K.; FRANCISCO, S. Self-perception and oral health conditions of the elderly in a small town. Rev. Gaúcha Odontol. Porto Alegre, v. 60, n. 2, p. 187-193, 2012.
- CORBIN, J. The body in health and illness. Qualitative Health Research. Newbury Park, v. 3, n. 2, p. 256-297, 2003.
- CORRÊA, H. W. et al. Saúde bucal em usuários da atenção primária: análise qualitativa da autopercepção relacionada ao uso e necessidade de prótese dentária. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 2, p. 503-524, 2016.
- COSTA, J. F. R.; CHAGAS, L. de D.; SILVESTRE, R. M. (Org.). A Política Nacional de Saúde Bucal do Brasil: registro de uma conquista histórica. Brasília: OPAS/OMS: Ministério da Saúde, 2006. p. 41-42.
- CUNHA, G. T. A construção da clínica ampliada na atenção básica. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 2010.
- DIAZ-REISSNER, C. V.; CASAS-GARCIA, I.; ROLDAN-MERINO, J. Calidad de vida relacionada con salud oral: impacto de diversas situaciones clínicas odontológicas y factores socio-demográficos. Revisión de la literatura. Int. J. Odontostomat. Temuco, v. 11, n. 1, p. 31-39, abr. 2017.
- DONABEDIAN, A. The quality of care: how can it be assessed? JAMA. Chicago, v. 260, n. 12, p. 1743-1748, 1988.
- FIGUEIREDO, M. C.; FAUSTINO-SILVA, D. D.; BEZ, A. S. Autopercepção e conhecimento sobre saúde bucal de moradores de uma comunidade carente do município de Porto Alegre-RS. ConScientia e Saúde, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 43-48, mar. 2008
- FONSECA, E. P.; FONSECA, S G. O.; MENEGHIM, M. C. Fatores associados ao uso dos serviços odontológicos por idosos residentes no estado de São Paulo, Brasil. Rev. Bras. Geriatr. Gerontol. Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 785-796, dez. 2017.
- FONTANELLA, B. J. B. et al. Amostragem em pesquisas qualitativas: proposta de procedimentos para constatar saturação teórica. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 389-394, fev. 2011.
- GILBERT, G. H.; FOERSTER, U.; DUNCAN, R. P. Satisfaction with chewing ability in a diverse sample of dentate adults. J. Oral Rehabil. Oxford, v. 25, p. 15-27, 1998.
- HAIKAL, D. S. et al. Validade da autopercepção da presença de cárie dentária como teste diagnóstico e fatores associados entre adultos. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 33, n. 8, p. e00053716, ago. 2017.
- HAIKAL, D. S. et al. Autopercepção da saúde bucal e o impacto na qualidade de vida do idoso: uma abordagem quanti-qualitativa. Ciênc. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 16, n. 7, p. 3317-3329, ago-set. 2011.
- LINDEMANN, I. L. et al. Autopercepção da saúde entre adultos e idosos usuários da Atenção Básica de Saúde. Ciênc. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 45-52, 2019.
- LIMA, C. V. et al. Falta de dentição funcional influencia na autopercepção da necessidade de tratamento em adultos: estudo de base populacional no Brasil. Cad. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 63-69, 2018.
- LOCKER, D. Clinical correlates of chance in self-perceived oral health in older adults. Community Dent. Oral Epidemiol. Copenhagen, v. 25, n. 3, p. 199-203, June 1997.
- MARTINS, A. M. E. B. L. et al. Autopercepção da saúde bucal entre idosos brasileiros. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 44, n. 5, p. 912-922, out. 2010.
- MATOS, D. L.; LIMA-COSTA, M. F. Autoavaliação da saúde bucal entre adultos e idosos residentes na região Sudeste: resultados do Projeto SB-Brasil, 2003. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 22, n. 8, p. 1699-1707, ago. 2006.
- MATTHEWS, E. Compreender Merleau-Ponty. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
- MELO, L. A. et al. Fatores associados à autopercepção negativa da saúde bucal em idosos institucionalizados. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 21, n. 11, p. 3339-3346, nov. 2016.
- NICO, L. S. et al. Saúde bucal autorreferida da população adulta brasileira: resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, fev. 2016.
- NUMANOVIĆ, A. et al. Psychological and sociodemographic characteristics and development of physical exercise dependence. Revista Brasileira de Medicina do Esporte. São Paulo, v. 24, n. 1, p. 50-53, jan. 2018.
- PIRES, F. S.; BOTAZZO, C. Organização tecnológica do trabalho em saúde bucal no SUS: uma arqueologia da política nacional de saúde bucal. Saúde Soc. São Paulo, v. 24, n. 1, p. 273-284, 2015.
- PERES, S. H. C. S. et al. Self-perception and malocclusion and their relation to oral appearance and function. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 16, n. 10, p. 4059-4066, out. 2011.
- PUCCA JÚNIOR, G. A. et al. Ten years of a national oral health policy in Brazil: innovation, boldness, and numerous challenges. J. Dent. Res. Washington, v. 94, n. 10, p. 1333-1337, 2015.
- RIGO, L. et al. Satisfação com a vida, experiência odontológica e autopercepção da saúde bucal entre idosos. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 20, n. 12, p. 3681-3688, dez. 2015.
- SANTOS, M. P. Avaliação da qualidade dos serviços públicos de atenção à saúde da criança sob a ótica do usuário. Rev. Bras. Enferm. Brasília, v. 48, n. 2, p. 109-119, 1995.
- SILVA, C. J. P. et al. Percepção de saúde dos usuários do sistema único de saúde do município de Coimbra/Minas Gerais. R. Fac. Odontol. Porto Alegre. Porto Alegre, v. 47, n. 3, p. 23-28, dez. 2006.
- SILVA, D. D.; SOUSA, M. L. R.; WADA, R. S. Autopercepção e condições de saúde bucal em uma população de idosos. Cad. Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 21, n. 4, p. 1251-1259, jul./ago. 2005.
- SILVA, S. R. C.; FERNANDES, R. A. C. Autopercepção das condições de saúde bucal por idosos. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 35, n. 4, p. 349-355, ago. 2001.
- SOUZA, E. C. F. Bucalidade: conceito-ferramenta de religação entre clínica e saúde bucal coletiva. Ciên. Saúde Colet. Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 18-43, 2006.
- UNFER, B. et al. Autopercepção da perda de dentes em idosos. Interface Comun. Saúde Educ. Botucatu, v. 10, n. 19, p. 217-226, jan./jun. 2006.
- VALE, E. B.; MENDES, A. C. G.; MOREIRA, R. S. Autopercepção da saúde bucal entre adultos na região Nordeste do Brasil. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 47, supl. 3, p. 98-108, dez. 2013.
- VILELA, E. A. et al. Association between self-rated oral appearance and the need for dental prostheses among elderly Brazilians. Braz. Oral. Res. São Paulo, v. 27, n. 3, p. 203-210, 2013.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Nov 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
20 Ago 2019 -
Aceito
29 Out 2019 -
Revisado
24 Mar 2021