Acessibilidade / Reportar erro

Iniquidades na assistência pré-natal no Brasil: uma análise interseccional

Inequities in prenatal care in Brazil: an intersectional analysis

Resumo

O estudo investiga o impacto do intercruzamento de raça/cor, escolaridade e local de residência na não adequação do cuidado prestado em diferentes dimensões do pré-natal. Para tal, analisaram-se dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013 com modelos de regressão logística múltipla. Os resultados sugerem que as variáveis operam em conjunto na não adequação ao pré-natal. As mulheres negras e as menos escolarizadas apresentaram maior probabilidade de não ter 6 consultas de pré-natal, iniciadas antes da 12ª semana de gestação. Mulheres de até 20 anos de idade, residentes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e menos escolarizadas foram menos submetidas aos exames laboratoriais e físicos preconizados. E, por último, mulheres negras e de até 20 anos de idade foram mais propensas a não receber orientações sobre o parto. Os achados reiteram a natureza multifacetada do problema e alertam para a insuficiência dos inquéritos populacionais, ao não incluir e não permitir a caracterização dos segmentos mais marginalizados da população, dificultando a investigação de realidades segundo uma perspectiva interseccional.

Palavras-Chave:
Raça; Escolaridade; Local de residência; Interseccionalidade; Atenção pré-natal

Abstract

The present study investigates the intersecting impacts of race/color, education and place of residence on the non-adequacy of care provided in different dimensions of prenatal care. To this end, we analyzed data from the 2013 National Health Survey using multiple logistic regression models. The results suggest that the variables operate together to shape non-adequacy to prenatal care. Black women and those with less schooling were more likely to miss 6 prenatal consultations, starting before the 12th week of pregnancy. Women up to 20 years of age, those residing in the North, Northeast and Midwest regions and those with less schooling were less submitted to the recommended laboratory and physical exams. And, finally, black women and those up to 20 years of age were more likely to not receive guidance on childbirth. Our findings reiterate the multifaceted nature of the problem and point to the insufficiency of population surveys, by not including and not allowing the characterization of the most marginalized segments of the population, making it difficult to further investigate realities from an intersectional perspective.

Keywords:
Race; Schooling; Place of residence; Intersectionality; Prenatal care

Introdução

A literatura brasileira sobre as iniquidades na adequação ao pré-natal tem enfocado o acesso aos serviços e o cuidado prestado às gestantes nas diferentes instâncias do sistema de saúde. Os estudos demonstram que, embora haja uma tendência à universalização da cobertura pré-natal no país (Domingues et al., 2015DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública, v. 37, p. 140-147, 2015.), ainda persistem iniquidades sociodemográficas e regionais em dimensões específicas do cuidado. Gestantes das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, negras, indígenas, mais jovens, de baixa escolaridade e sem companheiro(a) têm maior risco de apresentar pré-natal inadequado (Viellas, 2014; Domingues et al., 2015DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública, v. 37, p. 140-147, 2015.; Garnello et al., 2019). Em relação às brancas, por exemplo, mulheres negras são menos informadas sobre a maternidade de referência no pré-natal e, em se tratando do parto, estão mais frequentemente desacompanhadas, peregrinam por mais maternidades até obter atendimento, além de receberem menos anestesia nos partos normais (Leal et al., 2017LEAL, M. C. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública, v. 33, n. , 2017. Supl. 1.; Theophilo; Rathner; Pereira, 2018THEOPHILO, R. L.; RATTNER, D.; PEREIRA, É. L. The vulnerability of afro-brazilian women in perinatal care in the unified health system: Analysis of the active ombudsman survey. Cienc e Saude Coletiva, v. 1, n. 23, p. 3505s-3516s, Nov. 2018. Supl. 11.).

Apesar de os dados apontarem quais são os principais eixos estruturantes das iniquidades na adequação ao pré-natal no Brasil (i.e., raça/cor, posição socioeconômica, região de moradia etc.), são raras as pesquisas epidemiológicas sobre o tema que explicitam a corrente teórica subjacente às análises e procuram testar hipóteses específicas delas derivadas. A complexidade envolvendo as iniquidades sociais em saúde impõe enfoques ampliados dos processos sócio-históricos de base, sendo que a explicitação do marco teórico é fundamental não somente para avançar no entendimento dos eventos em questão, mas também promover ações que visem à justiça social.

Associada à infrequente explicitação e testagem das teorias de fundo, a recorrente distinção entre variáveis “individuais” e “contextuais” sugere a predominância de uma perspectiva fragmentada da realidade na qual o social é tratado com um domínio externo ao indivíduo (Garbois; Sodré; Dalbello-Araujo, 2014). A categoria “determinação social da saúde”, reemergente no seio do movimento da Medicina Social da América Latina nos anos 1970, sustenta uma importante crítica ao paradigma empírico-funcionalista da epidemiologia dominante e propõe, muito além de reformas simples, a transformação integral do processo social de acumulação/exclusão com o qual formas de vida saudáveis são incompatíveis (Garbois; Sodré; Dalbello-Araujo, 2014GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. Determinantes sociais da saúde: o “social” em questão. Saude e Soc., v. 23, n. 4, p. 11-9, 2014.).

Situada na corrente da epidemiologia crítica, a teoria ecossocial proposta por Nancy Krieger propõe a noção de corporeidade ou incorporação para se referir ao modo pelo qual o processo social coletivo é manifestado biologicamente no indivíduo ao longo do ciclo vital, refletindo-se em padrões iníquos de saúde, doença e bem-estar (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública, v. 31, n. 1, p. 13-27, 2013.). Nessa perspectiva, os processos sociais são irredutíveis ao indivíduo e, ao mesmo tempo, nunca externos a ele, traduzindo de forma dinâmica, em diversas escalas da organização social, as relações entre exposição, susceptibilidade e resistência (Krieger, 2001KRIEGER, N. Theories for social epidemiology in the 21st century: An ecosocial perspective. Int J Epidemiol., v. 30, n. 4, p. 668-677, 2001.).

Complementando a teoria ecossocial, a interseccionalidade se apresenta como uma importante ferramenta analítica que, tendo como cerne a justiça social, se debruça sobre as dinâmicas envolvidas no intercruzamento dos principais eixos de poder (Crenshaw, 1991CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Rev., v. 43, n. 6, p. 1241, jul. 1991.). Por esse ângulo, análises envolvendo as iniquidades sociais que priorizam um ou outro eixo são insuficientes perante a complexidade com que o problema se apresenta. Ao invés disso, raça, gênero, classe, geração, cidadania, sexualidade, entre outros, se sobrepõem e (re)configuram mutuamente vulnerabilidades e privilégios.

O conceito de matriz de dominação, elaborado originalmente por Patrícia Hill Collins, localiza distintos grupos sociais em um contexto sócio-histórico específico, dentro de estruturas interseccionais de opressão que reforçam a exclusão de determinados grupos sociais, mas que também propiciam estratégias de resistência à mesma (Collins, 2000COLLINS, P. H. Black Feminist Thought. New York: Routledge, 2000.). Nesse sentido, cada categoria se constitui na relação com a outra e nos distintos campos do poder, sejam eles hegemônicos, estrutural, disciplinar ou interpessoal, produzindo tanto vivências individuais quanto coletivas (Hancock, 2007HANCOCK, A. M. When multiplication doesn’t equal quick addition: Examining intersectionality as a research paradigm. Perspect Polit., v. 5, n. 1, p. 63-79, 2007.).

A constituição articulada das categorias de diferenciação, inseridas em relações de poder, vinculou a raça ao trabalho subordinado da mesma forma que este, por sua vez, se articulou ao gênero (Piscitelli, 2008PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulaçãoe experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, n. 11, v. 2, p. 263-274, 2008.). No contexto das ex-colônias, a relação entre raça, trabalho e gênero se dá especificamente sob a matriz da colonialidade, a qual estrutura distintas dimensões da organização social atual (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Prespectivas latino-americanas. Buenos Aires: editora CLACSO, 2005. p. 227–278.). O sistema colonial/moderno fez prevalecer a racialização do gênero que, baseada numa construção dicotômica, é essencialmente branca e burguesa, marcada pela fragilidade, pureza e feminilidade, totalmente em oposição à condição de força e de violação heterossexual das mulheres não-brancas colonizadas (Lugones, 2008LUGONES, M. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, n.9, p. 73-101, Bogotá, 2008.). À mulher negra brasileira, como bem elaborou Lélia Gonzalez, o racismo e o sexismo hegemônicos naturalizaram locais simbolizados nas figuras da mulata, da doméstica e da mãe preta. Esses locais objetificam as mulheres negras que, ora invisibilizadas nos papeis da faxineira, cozinheira ou servente, ora hiperssexualizadas e exotificadas na figura da mulata, são sistematicamente violentadas (Gonzalez, 1984GONZALEZ, L. Racismo E Sexismo Na Cultura Brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p. 223-243, 1984.).

A constituição articulada dos diferentes eixos de poder em um determinado espaço-tempo se materializa sobre os corpos e estrutura experiências inerentemente interseccionais. O exercício da maternidade como um alvo potencial de regulação das instituições sobre os corpos das mulheres é permeado por ideais racistas, classistas e sexistas (Souzas, 2004SOUZAS, R. Relações raça e gênero em jogo : a questão reprodutiva de mulheres negras e brancas. [Tese de doutorado]. Faculdade de Saúde Publica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004., Mattar; Simone; Diniz, 2012MATTAR, L. D.; SIMONE, C.; DINIZ G. Hierarquias reprodutivas.Interface, n. 16, p. 107–120, 2012.). Atravessada por essas relações de poder, a assistência à reprodução reflete, assim, importantes iniquidades que vulnerabilizam determinados corpos, enquanto protege e privilegia outros. A violência obstétrica, da qual inúmeras mulheres são vítimas, é, por exemplo, preferencialmente dirigida a negras, pobres, adolescentes, mulheres em situação de rua, trabalhadoras do sexo e usuárias de drogas (Diniz et al., 2015DINIZ, S. G. et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev., v. 25, n. 3, p. 377-82, 2015.).

Diante do exposto, investigamos o intercruzamento entre as categorias raça/cor, escolaridade e local de residência na constituição de iniquidades na assistência pré-natal no Brasil. Com base nos pressupostos da interseccionalidade e utilizando a abordagem intercategórica proposta por Leslie McCall, que centraliza a análise nas relações desiguais que se estabelecem dentro e entre distintas categorias sociais (McCall, 2005MCCALL, L.; The Complexity of Intersectionality. Signs J Women Cult Soc., v. 30, n. 3, p. 1771-1800, mar. 2005.), nos propomos a avaliar essas iniquidades entre mulheres distintamente marcadas pela raça/cor, escolaridade, local de residência, bem como localizadas na sobreposição destes. Dessa forma, assumimos que tais categorias representam processos sócio-históricos de subordinação que operam aditivamente e de forma interseccional, constituindo matrizes de dominação específicas sob as quais mulheres negras, de baixa escolaridade e residentes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país se encontram em situação de maior desvantagem.1 1 O presente trabalho, resultado de dissertação de mestrado, foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).

Métodos

O presente estudo utilizou dados provenientes da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), conduzida em 2013. A PNS é um inquérito de base domiciliar, realizado em todo o território brasileiro pelo Ministério da Saúde em parceria com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz). A pesquisa está centrada no levantamento de dados sobre a situação de saúde brasileira, com ênfase tanto na organização dos serviços e seu financiamento, quanto nas próprias condições de saúde da população (Szwarcwald et al., 2014SZWARCWALD C. L. et al. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet., v. 19, n. 2, p. 333–342, feb, 2014.). A amostragem da PNS se deu por conglomerados, em três estágios. No primeiro, foram selecionados de modo equiprobabilístico os setores censitários (Unidades Primárias de Amostragem – UPA) do contingente da Amostra Mestre, pertencente ao Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares do IBGE (Souza JúniorSOUZA JÚNIOR, P. R. B. et al. Desenho da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol e Serviços Saúde, v. 24, n. 2, p. 207-216, jun. 2015. et al., 2014). No segundo estágio, selecionou-se um número fixo de domicílios em cada UPA previamente determinada. Nos domicílios, foram coletadas informações referentes às condições da habitação e da situação socioeconômica e de saúde de todos os moradores através de questionário. No terceiro e último estágio, foi selecionado aleatoriamente um morador com 18 anos de idade ou mais, o qual respondeu um questionário individual, voltado a condições de saúde e estilos de vida. Foram incluídos na PNS um total estimado de 79.875 domicílios, sendo que o trabalho de campo se estendeu de agosto de 2013 a janeiro de 2014 (Souza-Júnior et al., 2014). A presente análise foi restrita ao subgrupo das mulheres adultas, que responderam ao módulo S do questionário individual, referente ao atendimento no pré-natal, totalizando 2.378 mulheres. Vale ressaltar que somente participaram desse módulo as mulheres que declararam ter tido o último parto no período entre 28/07/2011 e 27/07/2013, minimizando, assim, possíveis vieses de memória relacionados à pesquisa. Além disso, a realização da PNS sucede um estudo-piloto, o que garante a adequada compreensão do conteúdo das perguntas aplicadas no questionário por parte das entrevistadas, perguntas essas comuns em outros estudos transversais que avaliam a atenção pré-natal no Brasil.

A inadequação da atenção pré-natal foi avaliada conforme as recomendações preconizadas pelo Ministério da Saúde, as quais foram adaptadas às informações disponíveis no banco de dados da PNS e indicadas por quatro desfechos, posteriormente tratados como as variáveis dependentes das análises. O desfecho 1, referente ao acesso e à cobertura do pré-natal, considerou os seguintes componentes: a realização da primeira consulta de pré-natal até a 12ª semana de gestação e a realização de, no mínimo, seis consultas de pré-natal (Brasil/MS, 2002BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento. Rev Bras Saúde Matern Infant., v. 2, n. 1, p. 69-71, abr. 2002.; 2011BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº1.459/GM/MS de 24 de Junho de 2011. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde a Rede Cegonha. Diário Oficial da União, 2011; 24 Jul.). O desfecho 2, por sua vez, se referiu à qualidade da assistência pré-natal, incluindo a realização de todos os exames laboratoriais mínimos recomendados pelo Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN): VDRL (Venereal Disease Research Laboratory); exame de urina, hemograma; teste anti-HIV; e solicitação de, no mínimo, uma ultrassonografia (Domingues et al., 2012DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Avaliação da adequação da assistência pré-natal na rede SUS do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica, v. 28, n. 3, p. 425-37, mar. 2012.). Alguns trabalhos que avaliam a adequação ao pré-natal consideram também os procedimentos clínico-obstétricos recomendados nas consultas, constantes no manual Pré-Natal e Puerpério – Atenção Qualificada e Humanizada do Ministério da Saúde (Domingues et al., 2012DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Avaliação da adequação da assistência pré-natal na rede SUS do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica, v. 28, n. 3, p. 425-37, mar. 2012.; 2015). Para contemplá-los, o desfecho 3 atentou para a realização, em todas as consultas de pré-natal, de: aferição da pressão arterial; aferição do peso; aferição da altura do fundo do útero; e auscultação dos batimentos cardíacos fetais. Por último, o desfecho 4 considerou a vinculação da gestante à maternidade de referência por meio de orientação sobre esse serviço no pré-natal. Para cada desfecho, a falta de adequação representou o não cumprimento de, pelo menos, um dos parâmetros definidos, recebendo código 1. O oposto, ou seja, a completa adequação, foi definido quando todos os parâmetros foram cumpridos em cada desfecho, recebendo código 0.

As variáveis independentes consideradas na análise foram os marcadores de raça/cor, local de residência e nível de escolaridade. A raça/cor foi determinada a partir da autodeclaração das respondentes, segundo a classificação empregada pelo IBGE, que divide a população nas categorias “branca”, “parda”, “preta”, “amarela” e “indígena”. Tendo em vista sua baixa frequência, autodeclaradas amarelas e indígenas foram omitidas das análises, enquanto as pretas e pardas foram agrupadas em uma única categoria, denominada “negra”. O nível de escolaridade foi considerado um indicador de posição socioeconômica, sendo dividido em três categorias: sem escolaridade ou ensino fundamental incompleto, ensino fundamental completo ou médio incompleto e ensino médio completo ou mais. Dadas as iniquidades regionais vigentes nos indicadores de saúde (Travassos; Oliveira; Viacava, 2006TRAVASSOS, C.; OLIVEIRA, E. X. G.; VIACAVA, F. Geographic and social inequalities in the access to health services in Brazil: 1998 and 2003. Cienc e Saude Coletiva, v. 11, n. 4, p. 975-86.; Victora et al., 2011VICTORA, C. G. et al. Health conditions and health-policy innovations in Brazil: The way forward. The Lancet, n. 377, p. 2042–2053, 2011.), o local de residência seguiu a divisão do país em duas grandes macrorregiões: Norte/Nordeste/Centro-Oeste e Sudeste/Sul. Além dessas variáveis, os modelos de regressão logística, descritos em maior detalhe abaixo, contaram com ajuste para faixa etária (≦20, 21-34 e ≧35 anos de idade) e situação conjugal (sem/com companheiro(a)).

Num primeiro momento, estimamos as frequências absoluta e relativa das gestantes em cada uma das categorias das variáveis independentes e dependentes de interesse. Essa etapa foi seguida da análise bivariada da não adequação da atenção pré-natal em cada um dos quatro desfechos, segundo as variáveis independentes raça/cor, escolaridade, local de residência, faixa etária e situação conjugal. Posteriormente, as frequências da não adequação aos desfechos foram analisadas a partir da combinação das categorias raça/cor, escolaridade e local de residência. A fim de testar a hipótese do estudo, a etapa final da análise modelou os efeitos aditivos e interseccionais de raça/cor, nível de escolaridade e local de residência sobre os quatro desfechos considerados. Em cada um dos casos, partiu-se de um modelo de regressão logística2 2 Técnica estatística utilizada para predizer uma variável dependente binária a partir de uma ou mais variáveis independentes. inicial, que incluiu as intersecções (ou termos de interação) entre raça/cor, nível de escolaridade e macrorregião de residência, ajustado por faixa etária e situação conjugal. Na sequência, interações entre os pares das variáveis independentes de interesse: modelo 2 (interação entre a macrorregião e a raça/cor), modelo 3 (interação entre a raça/cor e a escolaridade) e modelo 4 (interação entre macrorregião e escolaridade) foram analisados quanto à sua significância estatística, como tentativa de resposta parcial aos nossos pressupostos.

Por meio da estratégia de eliminação retrógrada (ou “backward elimination”, em inglês), obtivemos modelos finais, correspondente ao modelo 5 para cada desfecho, nos quais apenas variáveis com valor de p<0,20 foram mantidas nas equações de regressão. Os modelos foram comparados quanto à significância estatística dos termos de interação, o princípio da parcimônia, coerência teórica e o poder explicativo, avaliado com as estatísticas de informação de critério de Akaike e de Bayes, e pseudo R2 2 Técnica estatística utilizada para predizer uma variável dependente binária a partir de uma ou mais variáveis independentes. . Todos os modelos foram igualmente examinados quanto à normalidade, homoscedasticidade3 3 Distribuição homogênea dos resíduos. e magnitude dos resíduos gerados. Por fim, os modelos finais, contendo apenas as variáveis estatisticamente significativas, foram avaliados quanto às medidas das associações apresentadas em razão de odds 4 4 Medida de probabilidade de modelos estatísticos de regressão logística. e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC95%), sendo a significância estatística considerada para valores de probabilidade inferiores a 5%.

Todas as análises foram realizadas com o pacote estatístico Stata, versão 13.1, incorporando as informações relativas aos pesos e à estrutura amostral, conforme preconizado no material de referência da PNS. A construção dos modelos se deu conforme os pressupostos teóricos da interseccionalidade assumindo, portanto, que as variáveis independentes se co-constituem, não sendo pertinente a ideia de confundimento ou de confusão residual na análise dos resultados. Não cabe também a adoção de uma perspectiva hierarquizada sobre o relacionamento das variáveis independentes, uma vez que a noção de matriz de dominação centraliza a inter-relação entre elas, mais do que a predominância de alguma em particular.

Resultados

Entre as 2.378 mulheres que relataram ter tido o último parto no período entre 28/07/2011 e 27/07/2013, 1.490 (62,7%) tiveram informações completas para o conjunto das variáveis analisadas, as quais compuseram a amostra analítica do presente estudo. Uma comparação entre a amostra analítica e as observações excluídas revelou não haver diferenças conforme todas as variáveis independentes estudadas, com exceção da raça/cor (ver Tabela Suplementar); as mulheres negras foram mais frequentes na amostra analítica. Nessa amostra, a maioria é negra (54,8%), vive com cônjuge ou companheiro(a) (79,9%), tem entre 21 e 34 anos de idade (51,2%), apresenta ensino fundamental completo ou ensino médio incompleto (41,1%) e reside no estrato constituído pelos estados do Norte, Nordeste ou Centro-Oeste (70,6%), conforme demonstra a Tabela 1. Podemos também observar que 82,3% das gestantes foram cobertas pelo mínimo de seis consultas de pré-natal e as iniciou em até 12 semanas de gestação (desfecho 1). Cerca de 70,0% delas tiveram todos os seus exames laboratoriais realizados no pré-natal (desfecho 2). Aproximadamente 80,0% das mulheres foram submetidas aos exames físicos preconizados (desfecho 3) e foram orientadas quanto à maternidade de referência nas consultas de pré-natal (desfecho 4).

Tabela 1
Distribuição das mulheres segundo os marcadores sociodemográficos e critérios de adequação ao pré-natal. Brasil, 2013

Em conjunto, todos os desfechos variaram amplamente, quando analisados segundo os diferentes marcadores sociais, conforme nos mostra a Tabela 2. No entanto, as iniquidades se estruturaram a partir de distintos eixos em cada desfecho. Para o desfecho 1, por exemplo, as iniquidades são principalmente estruturadas por raça/cor e escolaridade. Em outras palavras, sua não adequação se verifica em 23,5% das gestantes negras, o que representa mais do que o dobro observado nas brancas (10,8%), e em 28,4% das gestantes de baixa escolaridade, comparativamente a 16,0% entre as mais escolarizadas. Quando analisamos o desfecho 2, observamos que, além da escolaridade, existe uma importante iniquidade segundo faixa etária: a não adequação é apresentada por cerca de metade das mais jovens (51,7%), isto é, o dobro do observado entre as gestantes de maior idade (25,5%). Quanto ao desfecho 3, novamente, a faixa etária das gestantes parece ser o principal eixo estruturante, com 35,6% das mais jovens apresentando não adequação, em contraste com 15,0% no grupo de maior idade. Para o desfecho 4, a macrorregião de residência e a raça/cor revelaram as maiores iniquidades, com negras e residentes na macrorregião Norte, Nordeste e Centro-Oeste em situação mais desfavorável; 27,8% e 29,7% de não adequação observada nestes grupos, respectivamente. Estes valores foram expressivamente mais altos do que aqueles encontrados nas mulheres brancas (10,9%) e nas regiões Sudeste/Sul (13,5%).

Tabela 2
Distribuição da não adequação ao pré-natal segundo marcadores sociodemográficos. Brasil, 2013

A Figura 1 revela a não adequação aos diferentes desfechos a partir da localização social das gestantes no intercruzamento do local de residência com a raça/cor e o nível de escolaridade. Para o desfecho 1, a forma como a escolaridade prediz a não adequação é influenciada pela raça, sugerindo ação mútua destes dois eixos. Em outras palavras, enquanto as brancas mais escolarizadas iniciam o pré-natal no tempo preconizado e realizam mais consultas, para as negras, a ascensão social não se reflete, necessariamente, numa melhora no acesso ao atendimento. O efeito da escolaridade é notável para o desfecho 2, em que o aumento no seu nível impacta diretamente na realização dos exames laboratoriais preconizados para as brancas e para as negras em ambas as macrorregiões analisadas. As iniquidades na adequação aos desfechos 3 e 4 apresentam padrão diverso. No primeiro caso, se estruturam em função do local de residência e da escolaridade: a melhora na adequação consoante à escolarização é mais evidente na região Sudeste/Sul. Para o desfecho 4, por sua vez, as iniquidades são principalmente compreendidas segundo o eixo raça/cor que, na maioria dos grupos sociais, se soma ao local de residência e configura pior atendimento às mulheres negras, das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Figura 1
Não adequação ao pré-natal segundo raça/cor, escolaridade e local de residência das mulheres. Brasil, 2013.

A análise dos modelos de regressão sugere que os eixos de marginalização operam em conjunto na determinação da não adequação ao pré-natal (Tabela 3). Para o desfecho 1, o modelo final apresenta uma perda significativa do poder explicativo (4,1%) relativamente ao modelo inicial (6,5%) e mantém os eixos raça/cor e escolaridade operando aditivamente e de forma significativa em sua estruturação. Na Tabela 4, é possível observar que as negras apresentam odds 2,4 vezes maior de não adequação, relativamente às brancas, enquanto as gestantes de baixa escolaridade apresentam odds 90,0% maior de não adequação, quando comparadas com as mais escolarizadas. Conforme a Tabela 3, o modelo final para o desfecho 2 explica 4,1% de sua variabilidade, valor próximo ao apresentado pelo modelo inicial (4,6%). Nesse modelo, ter baixa escolaridade (razão de odds de 3,1), ser residente nos estados do Norte, Nordeste e Centro-oeste (razão de odds de 1,7) e ter vinte anos de idade ou menos (razão de odds de 3,1) esteve direta e significativamente associado com a não adequação (Tabela 4). Por sua vez, o modelo final para o desfecho 3 manteve um bom percentual de explicação (2,8%), relativamente ao modelo inicial (3,3%) (Tabela 3), revelando que ter baixa escolaridade, residir nas regiões Norte, Nordeste ou Centro-Oeste e ser mais jovem esteve associado com odds de não adequação da ordem de 2,1, 1,9 e 3,1 maior do que suas contrapartes, respectivamente. Tal modelo também indicou que não ter companheiro(a) implicou uma redução no odds de não adequação de cerca de 50,0%. O modelo final do desfecho 4 teve seu potencial explicativo consideravelmente reduzido (2,2%), quando comparado com o modelo inicial (5,4%) (Tabela 3). Mesmo assim, seus resultados apontaram as mulheres negras (razão de odds de 3,1) e as mais jovens (razão de odds de 2,2) tiveram maior probabilidade de não adequação, relativamente a seus pares privilegiados.

Tabela 3
Análises dos modelos preditivos para cada desfecho de não adequação ao pré-natal. Brasil, 2013
Tabela 4
Associação entre as variáveis independentes e os respectivos desfechos, conforme observada nos modelos finais de regressão logística. Brasil, 2013

Discussão

A análise conjunta dos resultados reitera que o problema das iniquidades no cuidado pré-natal no Brasil é multidimensional e, portanto, envolve diversas instâncias da organização social que se materializam nas diferentes categorias sociais, constituindo matrizes de opressão e privilégio. A interseccionalidade, conceituada como um paradigma de pesquisa, centraliza a complexidade com que um fenômeno social se apresenta e, ao situar experiências individuais e coletivas em estruturas de poder, procura ampliar e aprofundar as formas de abordar o assunto, lançando luz sobre questões até então não contempladas (Hancock, 2007HANCOCK, A. M. When multiplication doesn’t equal quick addition: Examining intersectionality as a research paradigm. Perspect Polit., v. 5, n. 1, p. 63-79, 2007.). Nesse sentido, McCall tem proposto distintas formas de explorar a complexidade que as análises interseccionais se propõem. Mesmo reconhecendo que a categorização inevitavelmente reproduz relações iníquas de poder, a abordagem intercategórica, a partir da qual propomos analisar nossos resultados, toma as categorias analíticas como um meio para expor as relações injustas entre grupos sociais e, a partir disso, discute as dimensões institucionais e políticas do problema (McCall, 2005MCCALL, L.; The Complexity of Intersectionality. Signs J Women Cult Soc., v. 30, n. 3, p. 1771-1800, mar. 2005.).

O cuidado pré-natal avaliado segundo recomendações do Ministério da Saúde de um mínimo de 6 consultas iniciadas em até 12 semanas (desfecho 1) nos informa sobre o quanto as gestantes estão acessando o serviço e sobre a longevidade desse cuidado recebido, ambos essenciais para o diagnóstico e manejo de eventuais situações de risco (Kirkham; Harris; Grzybowski, 2005). Nossos resultados revelam que as iniquidades referentes à adequação a esse desfecho são principalmente moldadas pela escolaridade e a raça/cor. Quando a análise foi estratificada pelos dois marcadores (Figura 1), foi possível identificar sua ação mútua no estabelecimento das iniquidades. A relação entre o nível de escolaridade e o número de consultas realizadas pode variar em diferentes grupos sociais. Mulheres negras, por exemplo, têm menos acesso aos serviços de saúde, comparativamente às brancas, em todos os níveis de escolaridade, incluindo os mais altos (Goes; Nascimento, 2013GOES, E. F.; NASCIMENTO, E. R. Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saúde em Debate, n. 37, v. 99, p. 571-579, dez. 2013.). Ter alto nível de escolaridade também não as protege do racismo obstétrico (Davis, 2018DAVIS, Dána-Ain. Obstetric Racism: the racial politics of pregnancy, labor, and birthing. Medical Anthropology, v. 38, n. 7, p. 560-573, 6 dez. 2018. Informa UK Limited.)5 5 A pesquisa em questão avalia, ainda que num contexto muito distinto como o é o estadunidense, a percepção de mulheres negras, bem-sucedidas profissionalmente ou com alto nível de escolaridade, da discriminação racial por parte de profissionais de saúde durante o pré-natal, parto e nascimento. e nem de ter desfechos negativos no parto, mesmo quando se compara com as brancas menos escolarizadas. Essa realidade fica evidente quando analisamos o recebimento, no pré-natal, da orientação sobre a maternidade de referência (desfecho 4). Como nos mostra a Figura 1, entre as residentes na região Sul/Sudeste, a proporção de mulheres negras com alto nível de escolaridade que não recebem essa orientação é mais que o triplo das mulheres brancas, ainda que essas tenham um baixo nível de escolaridade. Partindo da premissa de que a escolaridade constitui um indicador da posição socioeconômica, podemos inferir que a ascensão social das mulheres negras não é condição suficiente para reverter as barreiras enfrentadas nos sistemas de saúde e no pré-natal em específico. Ao contrário, o racismo faz com que o grupo dominante a todo momento questione o sucesso de uma pessoa negra ou grupo minoritário socialmente, mesmo numa situação tão vulnerável como a gestação e o parto (Gutierrez et al., 2012). Essas observações nos remetem à inter-relação entre raça, gênero e classe como partes estruturantes das injustiças sociais. Apesar de o Brasil contar com um aparato legal que garante que a gestante seja informada e vinculada a uma maternidade de referência, as mulheres negras e as com até 20 anos de idade estão significativamente mais propensas a não receber orientações sobre o parto no pré-natal, o que compromete a efetivação desse direito e reflete na peregrinação para o parto das mulheres negras (Leal et al., 2017LEAL, M. C. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública, v. 33, n. , 2017. Supl. 1.; Theophilo; Rattner; Pereira, 2018).

O local de residência, a faixa etária e o nível de escolaridade se associam em conjunto, de forma direta e estatisticamente significativa à não adequação segundo a realização dos exames, laboratoriais e físicos, preconizados no pré-natal (desfechos 2 e 3). Gestantes menos escolarizadas, as que possuem até 20 anos de idade e as residentes nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste apresentaram maior probabilidade de não adequação a esses desfechos comparativamente às residentes nas regiões Sudeste e Sul, às com 35 anos ou mais de idade e às mais escolarizadas. Para o desfecho 3, se associa também a situação conjugal em que, ao contrário do esperado (Viellas et al., 2014VIELLAS, E. F. et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, p. 85s-100s, ago. 2014. Supl. 1.; Domingues et al., 2015DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública, v. 37, p. 140-147, 2015.), as mulheres acompanhadas foram significativamente mais sujeitas à não adequação, relativamente às não acompanhadas. Esse resultado pode se tratar de um evento aleatório, uma vez que não existe diferença estatisticamente significativa entre a proporção de mulheres acompanhadas e não acompanhadas. Embora se tenha verificado, nos últimos anos, um aumento na cobertura pré-natal (NunesNUNES J. T. et al. Qualidade da assistência pré-natal no Brasil: revisão de artigos publicados de 2005 a 2015. Cad Saúde Coletiva, n. 24, v. 2, p. 252-61, jun. 2016. et al., 2016) e a implementação de programas e ações por parte do Ministério da Saúde voltadas para melhorias no acesso e qualidade, as persistentes iniquidades no cuidado e sua especificidade regional, demonstram a incapacidade desse serviço em contemplar os segmentos mais vulnerabilizados da sociedade. A lei dos cuidados inversos, “the inverse care law” em inglês, proposta por Julian Tudor Hart, alega que a disponibilidade de bons cuidados médicos varia inversamente às necessidades da população atendida (Hart, 1971HART, J. T. The Inverse Care Law. The Lancet, n. 297, v. 7696, p. 405-412, fev. 1971.). O conceito de vulnerabilidade programática cunhado por Mann e Tarantola (1992)MANN, J. M.; TARANTOLA, D. J. M.; NETTER, T. W. Assessing vulnerability to HIV infection and AIDS. In: MANN, J. M, TARANTOLA, D. J. M, editors. AIDS in the world, the global AIDS policy coalition. Boston: Harvard University Press; 1992. p. 577-602. no contexto da pandemia de HIV/Aids, chama a atenção aos aspectos institucionais voltados às necessidades de saúde e à redução de vulnerabilidades de indivíduos e grupos. Partindo dessa ótica, Jurema Werneck alega que o racismo institucional e sua intersecção com outros eixos de opressão constitui a dimensão institucional que produz e/ou mantem vulnerabilidades à saúde da população negra (Werneck, 2016WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 535-549, set. 2016.). Nesse sentido, sugerimos que a conjunção entre os eixos idade, escolaridade, local de residência e a raça/cor denuncia as iniquidades no cuidado pré-natal, constituindo matrizes sociais que privilegiam mulheres brancas, de maior idade, em melhor condição socioeconômica e residentes nas regiões Sul e Sudeste do país.

Embora a pesquisa tenha sido realizada em 2013, a pandemia do coronavírus de 2020 reafirmou o quão estruturais são essas iniquidades, demonstrando como estas têm como alvo principal o corpo das mulheres, demarcando violências inerentemente interseccionais que colocam mulheres negras em situação de maior vulnerabilidade. Os casos de morte materna por covid-19, por exemplo, revelam o quão presentes e perversas são essas matrizes de poder. Esses impactos da pandemia são aprofundados nos trabalhos de Moreira et al. (2020MOREIRA, L. E. et al. Mulheres em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psicologia & Sociedade, v. 32, p. 1-19, nov. 2020.) e de Santana (2020SANTANA, N. M. “Medo do desconhecido” – atenção às gestantes, parturientes e puérperas no contexto da Covid-19. In: Grossi, M. P. & Toniol, R. (orgs.) Cientistas sociais e o coronavírus. Anpocs, Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020, p. 609-614.).

A PNS, dada a sua abrangência e a relevância das informações geradas, se constitui em um fundamental instrumento de denúncia e monitoramento das iniquidades sociais em saúde. Apesar de abrangente, a pesquisa é pouco inclusiva. Em seu plano de amostragem, ao considerar apenas moradores de domicílios particulares, por exemplo, exclui uma das parcelas mais marginalizadas da sociedade, as pessoas em situação de rua e as institucionalizadas. Outro problema relacionado à representatividade é a necessidade de sobre-amostrar a população indígena na pesquisa. As adolescentes, grupo particularmente vulnerabilizado quando se trata da saúde reprodutiva e da saúde sexual, também não integram a população-alvo da PNS. Ao não considerar a interdependência entre as categorias sociais e a diversidade intracategórica existente, a pesquisa invisibiliza as iniquidades específicas a grupos sociais multiplamente marcados, importantes para as análises interseccionais. Os aspectos elencados reverberam nas limitações das nossas análises, que por questões de viabilidade, foram restringidas a negras e brancas e à divisão do país em apenas duas macrorregiões. Assim, as iniquidades apontadas nesse estudo representarão sempre um cenário subestimado da magnitude do problema.

Pesquisas populacionais, que incorporam em seu planejamento uma perspectiva interseccional, potencializam a capacidade de capturar experiências individuais e de grupo inerentes ao cruzamento de diferentes dimensões da vida social e, a partir disso, permitem análises mais ampliadas das estruturas que produzem as iniquidades sociais, bem como a elaboração de instrumentos de mudança. Nesse sentido, para um retrato mais fiel das iniquidades sociais em saúde, é fundamental que se aprimore o delineamento amostral da PNS tanto para a inclusão de outros segmentos da sociedade quanto para um maior detalhamento das especificidades entre e intragrupos. Apesar dessas limitações, esse estudo reforça que as injustiças no cuidado em saúde e, em particular, no pré-natal são atravessadas por múltiplos eixos de opressão e reitera a importância de os serviços de saúde se apropriarem de políticas e estratégias que consideram a interseccionalidade, as quais possibilitam a transformação das práticas em saúde.

  • 1
    O presente trabalho, resultado de dissertação de mestrado, foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES).
  • 2
    Técnica estatística utilizada para predizer uma variável dependente binária a partir de uma ou mais variáveis independentes.
  • 3
    Distribuição homogênea dos resíduos.
  • 4
    Medida de probabilidade de modelos estatísticos de regressão logística.
  • 5
    A pesquisa em questão avalia, ainda que num contexto muito distinto como o é o estadunidense, a percepção de mulheres negras, bem-sucedidas profissionalmente ou com alto nível de escolaridade, da discriminação racial por parte de profissionais de saúde durante o pré-natal, parto e nascimento.

Referências

  • BRASIL. Ministério da Saúde. Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento. Rev Bras Saúde Matern Infant., v. 2, n. 1, p. 69-71, abr. 2002.
  • BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº1.459/GM/MS de 24 de Junho de 2011. Institui no âmbito do Sistema Único de Saúde a Rede Cegonha. Diário Oficial da União, 2011; 24 Jul.
  • BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Rev Fac Nac Salud Pública, v. 31, n. 1, p. 13-27, 2013.
  • COLLINS, P. H. Black Feminist Thought. New York: Routledge, 2000.
  • CRENSHAW, K. Mapping the Margins: Intersectionality, Identity Politics, and Violence against Women of Color. Stanford Law Rev., v. 43, n. 6, p. 1241, jul. 1991.
  • DAVIS, Dána-Ain. Obstetric Racism: the racial politics of pregnancy, labor, and birthing. Medical Anthropology, v. 38, n. 7, p. 560-573, 6 dez. 2018. Informa UK Limited.
  • DINIZ, S. G. et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: Origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. J Hum Growth Dev., v. 25, n. 3, p. 377-82, 2015.
  • DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Adequação da assistência pré-natal segundo as características maternas no Brasil. Rev Panam Salud Pública, v. 37, p. 140-147, 2015.
  • DOMINGUES, R. M. S. M. et al. Avaliação da adequação da assistência pré-natal na rede SUS do Município do Rio de Janeiro, Brasil. Cad Saude Publica, v. 28, n. 3, p. 425-37, mar. 2012.
  • GARBOIS, J. A.; SODRÉ, F.; DALBELLO-ARAUJO, M. Determinantes sociais da saúde: o “social” em questão. Saude e Soc., v. 23, n. 4, p. 11-9, 2014.
  • GARNELO, L. et al. Assessment of prenatal care for indigenous women in brazil: Findings from the first national survey of indigenous people’s health and nutrition. Cad Saúde Pública, v. 19, n. 35, ago. 2019.
  • GOES, E. F.; NASCIMENTO, E. R. Mulheres negras e brancas e os níveis de acesso aos serviços preventivos de saúde: uma análise sobre as desigualdades. Saúde em Debate, n. 37, v. 99, p. 571-579, dez. 2013.
  • GONZALEZ, L. Racismo E Sexismo Na Cultura Brasileira. Rev Ciências Sociais Hoje. Anpocs, p. 223-243, 1984.
  • GUTIÉRREZ, G.; NIEMANN, Y. F. et al. Presumed Incompetent: The Intersecctins of Race and Class for Women in Academia. Boulder, CO: Utah State University Press, 2012.
  • HANCOCK, A. M. When multiplication doesn’t equal quick addition: Examining intersectionality as a research paradigm. Perspect Polit., v. 5, n. 1, p. 63-79, 2007.
  • HART, J. T. The Inverse Care Law. The Lancet, n. 297, v. 7696, p. 405-412, fev. 1971.
  • KRIEGER, N. Theories for social epidemiology in the 21st century: An ecosocial perspective. Int J Epidemiol., v. 30, n. 4, p. 668-677, 2001.
  • LEAL, M. C. et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública, v. 33, n. , 2017. Supl. 1.
  • LUGONES, M. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, n.9, p. 73-101, Bogotá, 2008.
  • MANN, J. M.; TARANTOLA, D. J. M.; NETTER, T. W. Assessing vulnerability to HIV infection and AIDS. In: MANN, J. M, TARANTOLA, D. J. M, editors. AIDS in the world, the global AIDS policy coalition. Boston: Harvard University Press; 1992. p. 577-602.
  • MATTAR, L. D.; SIMONE, C.; DINIZ G. Hierarquias reprodutivas.Interface, n. 16, p. 107–120, 2012.
  • MCCALL, L.; The Complexity of Intersectionality. Signs J Women Cult Soc., v. 30, n. 3, p. 1771-1800, mar. 2005.
  • MOREIRA, L. E. et al. Mulheres em tempos de pandemia: um ensaio teórico-político sobre a casa e a guerra. Psicologia & Sociedade, v. 32, p. 1-19, nov. 2020.
  • NUNES J. T. et al. Qualidade da assistência pré-natal no Brasil: revisão de artigos publicados de 2005 a 2015. Cad Saúde Coletiva, n. 24, v. 2, p. 252-61, jun. 2016.
  • PISCITELLI, A. Interseccionalidades, categorias de articulaçãoe experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, n. 11, v. 2, p. 263-274, 2008.
  • QUIJANO, A. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Prespectivas latino-americanas. Buenos Aires: editora CLACSO, 2005. p. 227–278.
  • TRAVASSOS, C.; OLIVEIRA, E. X. G.; VIACAVA, F. Geographic and social inequalities in the access to health services in Brazil: 1998 and 2003. Cienc e Saude Coletiva, v. 11, n. 4, p. 975-86.
  • SANTANA, N. M. “Medo do desconhecido” – atenção às gestantes, parturientes e puérperas no contexto da Covid-19. In: Grossi, M. P. & Toniol, R. (orgs.) Cientistas sociais e o coronavírus. Anpocs, Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020, p. 609-614.
  • SOUZA JÚNIOR, P. R. B. et al. Desenho da amostra da Pesquisa Nacional de Saúde 2013. Epidemiol e Serviços Saúde, v. 24, n. 2, p. 207-216, jun. 2015.
  • SOUZAS, R. Relações raça e gênero em jogo : a questão reprodutiva de mulheres negras e brancas. [Tese de doutorado]. Faculdade de Saúde Publica, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
  • SZWARCWALD C. L. et al. Pesquisa Nacional de Saúde no Brasil: concepção e metodologia de aplicação. Cien Saude Colet., v. 19, n. 2, p. 333–342, feb, 2014.
  • THEOPHILO, R. L.; RATTNER, D.; PEREIRA, É. L. The vulnerability of afro-brazilian women in perinatal care in the unified health system: Analysis of the active ombudsman survey. Cienc e Saude Coletiva, v. 1, n. 23, p. 3505s-3516s, Nov. 2018. Supl. 11.
  • TRAVASSOS, C.; OLIVEIRA, E. X. G.; VIACAVA, F. Geographic and social inequalities in the access to health services in Brazil: 1998 and 2003. Cienc e Saude Coletiva, v. 11, n. 4, p. 975–86.
  • VICTORA, C. G. et al. Health conditions and health-policy innovations in Brazil: The way forward. The Lancet, n. 377, p. 2042–2053, 2011.
  • VIELLAS, E. F. et al. Assistência pré-natal no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, p. 85s-100s, ago. 2014. Supl. 1.
  • WERNECK, J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, v. 25, n. 3, p. 535-549, set. 2016.

Tabela Suplementar

Tabela Suplementar Distribuição das mulheres segundo os marcadores sociodemográficos. Brasil, 2013
Marcadores sociodemográficas Distribuição
Amostra analítica Excluídas
n (%) n (%)
Local de residência
Norte/Nordeste/Centro-Oeste 1052 (41,05) 654(39,67)
Sudeste/Sul 438 (58,95) 234 (60,33)
Faixa etária (anos)
=<20 196 (10,72) 124 (8,21)
21-34 1051 (51,15) 635 (54,51)
>=35 243 (38,14) 129 (37,28)
Raça/cor
Branca 503 (45,24) 235 (38,17)
Negra 987 (54,76) 604 (61,83)
Tem companheiro(a)?
Sim 1163 (79,92) 682 (78,67)
Não 327 (20,08) 206 (21,33)
Escolaridade
Sem escolaridade/fund. incompleto 346 (21,15) 195 (25,50)
Fund. completo/médio incompleto 621(41,13) 318 (41,11)
Médio completo ou mais 523 (37,72) 234 (33,39)
Total 1.490 (62,7) 888 (37,3)
  • Fonte: elaboração própria.
  • Editora responsável: Jane Russo

    Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Ago 2024
    • Data do Fascículo
      2024

    Histórico

    • Recebido
      12 Ago 2022
    • Aceito
      28 Jun 2023
    • Revisado
      29 Nov 2022
    PHYSIS - Revista de Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro - UERJ, Rua São Francisco Xavier, 524 - sala 6013-E- Maracanã. 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil, Tel.: (21) 2334-0504 - ramal 268, Web: https://www.ims.uerj.br/publicacoes/physis/ - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: publicacoes@ims.uerj.br