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Educação interprofissional e educação permanente em saúde como estratégia para a construção de cuidado integral na Rede de Atenção Psicossocial

Interprofessional education and permanent health education as a strategy for building comprehensive care in the Psychosocial Care Network

Resumo

O estudo descreve a Educação Interprofissional e os processos de Educação Permanente em Saúde na implantação de um Centro de Atenção Psicossocial para produção de cuidado em saúde mental. Destaca-se o contexto da interiorização da rede de atenção psicossocial, que ganhou impulso através da descentralização dos serviços de saúde em regiões compostas por municípios com menos de 15 mil habitantes. A metodologia utilizada foi embasada na análise institucional, socioclínica institucional, pesquisa-intervenção, com uma perspectiva teórica qualitativa. A construção dos dados ocorreu através das rodas de conversa com os profissionais do CAPS e participação observante com registro em diários de pesquisa. Os dados apontaram a educação interprofissional e educação permanente como estratégias de formação profissional no processo de trabalho, possibilitando reflexões e ações no cenário de prática voltado para além da intervenção psiquiátrica e da prescrição de psicotrópicos.

Palavras-chave:
educação interprofissional; educação permanente em saúde; atenção psicossocial, Análise Institucional

Abstract

The study describes Interprofessional Education and Permanent Health Education processes in the implementation of a Psychosocial Care Center for the production of mental health care. The context of the interiorization of the psychosocial care network, which gained momentum through the decentralization of health services in regions composed of municipalities with less than 15 thousand inhabitants, stands out. The methodology was based on institutional analysis, institutional socioclinics, research-intervention, with a qualitative theoretical perspective. Data construction comprised conversation circles with CAPS professionals and observant participation registered in research journals. The data pointed to interprofessional education and permanent education as professional training strategies in the work process, allowing for reflections and actions in the practice scenario beyond psychiatric intervention and the prescription of psychotropic drugs.

Keywords:
interprofessional education; permanent health education; psychosocial care; Institutional Analysis

Introdução

A necessidade urgente de se discutir a formação dos profissionais de saúde, assim como os modelos de gestão e atenção para garantir o direito universal à saúde para todos e defesa da vida, fomentou a criação da Política Nacional de Humanização (PNH) pelo Ministério da Saúde em 2003, que objetiva produzir novas formas de gerir e cuidar da saúde (BRASIL, 2004aBRASIL. Ministério da Saúde. HumanizaSUS: equipe de referência e apoio matricial. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde, 2004a.). E em 2004 foi instituída a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde (EPS) para aproximar as ações e serviços das instituições formadoras, objetivando promover mudanças na formação dos profissionais e provocar alterações nas práticas dominantes dos sistemas de saúde, através da problematização de suas próprias práticas e do trabalho em equipe (BRASIL, 2004b______. Ministério da Saúde. Portaria nº 198 GM/MS, de 13 de fevereiro de 2004. Institui a Política Nacional de Educação Permanente em Saúde como estratégia do Sistema Único de Saúde para a formação e o desenvolvimento de trabalhadores para o setor e dá outras providências. Diário Oficial da União, 13 fev, 2004b.).

A educação interprofissional também tem sido discutida com o intuito de superar os obstáculos que dificultam o acesso aos serviços de saúde de forma integral e com qualidade. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define a educação interprofissional como uma troca entre duas ou mais profissões que aprendem sobre os outros com os outros e entre si para possibilitar a colaboração eficaz e melhorar os resultados na saúde (OMS, 2010ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Marco para Ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa. Genebra: OMS, 2010.).

As discussões sobre a formação de profissionais para o Sistema Único de Saúde (SUS) não são novas, mas ainda se fazem presente devido ao distanciamento entre as práticas de ensino teórico e o cotidiano do trabalho nos serviços de saúde, sendo uma preocupação entre gestores, instituições educativas e profissionais que fazem parte da saúde pública e educação (VASCONCELOS; NICOLOTTI; SILVA; PEREIRA, 2016VASCONCELOS, M.F.F. et al. Entre políticas (EPS - Educação Permanente em Saúde e PNH - Política Nacional de Humanização): por um modo de formar no/para o Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botucatu), v. 20, n. 59, p. 981-9, 2016.). Feuerwerker (2014FEUERWERKER, L.C.M. Micropolítica do trabalho e o cuidado em saúde. In: ______. (Org.). Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; p. 35-66, 2014.) destaca que desde o movimento da reforma sanitária já era discutida a necessidade de mudanças na formação profissional para saúde, e que a Constituição Federal traz, em seu artigo 200, que uma das competências do SUS é ordenar a formação de recursos humanos na área da saúde.

Concomitantemente ao movimento da Reforma Sanitária, surgiu o movimento da Reforma Psiquiátrica, que teve início no Brasil no final da década de 1970, apresentando-se como crítica ao modelo psiquiátrico clássico e na busca por transformação dos modos operantes sobre a loucura (AMARANTE, 2010AMARANTE, P. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010.), além de ter como objetivo melhorar as condições de saúde e de vida das pessoas com sofrimento mental. Esse movimento trouxe avanços que culminaram numa política de atenção à saúde mental baseada no paradigma da Atenção Psicossocial, e instituiu uma rede de serviços substitutivos de base comunitária e territorial, com descentralização e regionalização dos serviços de saúde. Esse cenário favoreceu a articulação de redes regionais de saúde em regiões compostas por municípios com menos de 15 mil habitantes.

A criação de dispositivos assistenciais como o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) instituiu uma nova forma de trabalho e de cuidado que geram desafios a serem enfrentados pelas equipes multiprofissionais. Os desafios presentes no trabalho demandam dos profissionais cuidados que produzem conhecimento em ato (ABRAHÃO, AZEVEDO; GOMES, 2017ABRAHÃO, A.L; AZEVEDO, F.F.M; GOMES, M.P.C. A produção do conhecimento em saúde mental e o processo de trabalho no Centro de Atenção Psicossocial. Trab. educ. saúde. v.15, n. 1, p. 55-71, 2017.). Ou seja, aprendizagens no próprio serviço, com as experiências concretas dos sujeitos.

Além disso, os profissionais, em sua maioria, não foram formados com base no paradigma da atenção psicossocial, o que demanda estratégias formativas e capazes de transformar a cultura profissional, muitas vezes centrada no modelo asilar. Assim, os esforços de educação seriam voltados para a desinstitucionalização da formação médico-asilar dos profissionais, ao passo que se desinstitucionaliza a loucura como fundamento principal. Sendo assim, os processos formativos educacionais precisam estar sintonizados com os esforços de transformação da realidade sociocultural no sentido da desinstitucionalização da loucura.

Essas mudanças necessárias colocaram em cena o tema de uma formação mais contextualizada com as problemáticas e modos de funcionamento loco-regionais, exigindo a desconstrução de práticas baseadas em modelos instituídos de cuidado centrados no trabalho individualizado, fragmentado, mecanizado, que acarreta especialismos; assim como mudanças na formação dos profissionais que são majoritariamente feitas em serviços asilares e em cidades de médio e grande porte. Há uma aposta na EPS e na Educação Interprofissional para superar o modelo hegemônico e produzir cuidado integral, construído a partir das práticas concretas dos profissionais junto aos sujeitos. O cuidado em saúde é dinâmico e, a medida que os profissionais de saúde constroem dispositivos de reflexão sobre as práticas que envolvem um saber/fazer no cotidiano, há possibilidades de mudanças na construção do cuidado.

Este artigo é fruto de uma pesquisa de mestrado da primeira autora, que busca investigar como ocorrem os processos de educação permanente e trabalho interprofissional em uma equipe do CAPS I em municípios de pequeno porte no Piauí, para produção de cuidado e análise das demandas de saúde mental. Nessa perspectiva, optamos por utilizar como referencial teórico-metodológico a Análise Institucional. Nesse referencial a instituição não é algo concreto e observável, mas sim uma dinâmica contraditória que vai se construindo pela história e tempo nas relações entre os seres humanos, normas e dispositivos de mediação, de tal modo que, mesmo que não seja perceptível, está constantemente em movimento. A instituição compreende um movimento que gera o instituinte e instituído que emana no processo de institucionalização. Entende-se como instituído a ordem estabelecida, que tenta produzir certa imobilidade, tende a permanecer estático e conservador. A contestação do que está posto define-se como instituinte, pois este surge como um processo mobilizado por forças desejantes e revolucionárias que buscam construir novas instituições ou transformá-las. Já a institucionalização é o resultado deste processo, corresponde ao devir e à história, sendo produto contraditório do instituído e do instituinte (LOURAU, 1996LOURAU, R. Análise institucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.; BAREMBLITT, 2002BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari; 2002.).

A instituição possui uma função regulamentadora que direciona as atividades humanas, e é concretizada através de organizações ou estabelecimentos (BAREMBLITT, 2002BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari; 2002.). Os CAPS se constituem como estabelecimentos centrais que materializam a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e tornam evidentes movimentos instituintes, como o trabalho interprofissional e o cuidado integral, e instituídos, que podemos observar através da clínica manicomial e trabalho uniprofissional e fragmentado. Investigar este estabelecimento em que operam várias instituições, dentre elas o cuidado e o trabalho, torna-se relevante para conhecer processos de educação interprofissional e educação permanente na construção do cuidado em saúde mental nas cidades de pequeno porte.

Nessa perspectiva, faz-se necessário compreender as implicações que estão presentes no processo de investigação. Como coloca Lourau (1993______. René Lourau na UERJ - Análise Institucional e Práticas de Pesquisa. Rio de Janeiro: Eduerj, 1993.), a pesquisa não é apenas uma reprodução mecânica, ela é atravessada por diversas estratégias que ajudam a direcioná-la, havendo assim uma “inseparabilidade entre nossas implicações enquanto pesquisadores e a institucionalização da pesquisa” (p.112). Assim, a implicação é permeada pelas relações que os indivíduos desenvolvem com as instituições, incluindo-se aqui a instituição pesquisa.

Deste modo, algumas das implicações e atravessamentos que constituem o desejo da realização deste estudo fazem parte do percurso enquanto profissional de saúde da primeira autora. As implicações profissionais que envolvem processos de Educação Permanente e Educação Interprofissional (EIP) surgem quando ela iniciou o curso de graduação em Psicologia em 2008, com a participação em projetos de extensão que envolviam duas ou mais profissões, e vivências práticas em serviços de saúde pública da região. Posteriormente, vieram a inserção em uma Residência Multiprofissional em Saúde da Família, no ano de 2013, e uma formação em serviço com profissionais de diferentes áreas, além da participação no curso EPS em Movimento (2014), do qual participaram também como tutora e como educadores a segunda autora e o terceiro autor, intensificando os processos de educação permanente e educação interprofissional. E, no ano de 2015, ao ser contratada pela Secretaria de Saúde de um município de pequeno porte no Piauí para ser psicóloga de um CAPS, impuseram-se mais questionamentos. Isso porque o serviço implantado no qual a pesquisadora foi inserida como psicóloga está localizado em uma cidade com menos de 15 mil habitantes, e as experiências vivenciadas durante sua formação foram em cidades de médio porte. Além disso, inquietações vieram pelo fato de a política de saúde mental ser limitada à implantação deste tipo de serviço em municípios com mais de 15 mil habitantes, constituindo uma novidade para os envolvidos e desafiante pela falta de referências na própria formulação da política. Esses questionamentos e inquietações fizeram nascer o desejo de realizar este estudo.

O percurso enquanto profissional da saúde mental − participando de uma equipe nova, que estava construindo e aprendendo com os profissionais do próprio serviço a práxis de cuidado em saúde mental, com base nas experiências concretas do cotidiano − suscitou o interesse em desenvolver este estudo. O objetivo foi provocar entre os profissionais reflexões sobre os processos de educação permanente e trabalho interprofissional em saúde, visando contribuir para o desenvolvimento de um cuidado integral em saúde mental nas pequenas cidades.

Metodologia

Foram adotados os pressupostos teóricos e metodológicos da Análise Institucional. O desenvolvimento conceitual da análise institucional se deu inicialmente na França na década de 1960, e nos últimos anos apresenta-se como relevante instrumental para a investigação de pesquisas da Saúde Coletiva (L’ABBATE, 2013L’ABBATE, S. Análise institucional e saúde coletiva no Brasil. In: L’ABBATE, S.; MOURÃO, L.C.; PEZZATO, L.M. (Orgs.). Análise institucional e saúde coletiva: uma articulação em processo. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 31-88.).

Trata-se de pesquisa-intervenção, com uma perspectiva teórica qualitativa, realizada de março a junho de 2018. A pesquisa-intervenção consiste numa forma de investigação participativa, com interferências coletivas na busca de transformação social. Esta perspectiva se afasta de qualquer referência sobre uma possível neutralidade que possa haver nas pesquisas. E considera ainda que é em meio às práticas sócio-históricas que o conhecimento se produz (AGUIAR; ROCHA, 2007AGUIAR, K.F; ROCHA, M.L. Micropolítica e o exercício da pesquisa-intervenção Referenciais e dispositivos em análise. Psicologia, Ciência e Profissão. Rio de Janeiro. n. 27, v.4, p. 648-663, 2007.). Nessa perspectiva, o pesquisador deve analisar suas implicações em meio ao problema observado, pois apresenta um papel de participante no contexto em que a pesquisa é desenvolvida, possibilitando assim interações que produzem conhecimento e mudanças de uma dada realidade (PEZZATO; PRADO, 2013PEZZATO, M.L.E.; PRADO, G.V.T. Análise institucional e saúde coletiva no Brasil. In: L’ABBATE, S.; MOURÃO, L.C.; PEZZATO, M.L.E (Orgs.). Pesquisa-ação e pesquisa-intervenção: aproximações, distanciamentos, conjugações. São Paulo: Hucitec, 2013. p. 149-179.).

O processo de investigação ocorreu através da socioclínica institucional, que se baseia em características que determinam a relação entre sujeito e objeto e o modo como os sujeitos estão implicados na instituição. Monceau (2013MONCEAU, G. Análise institucional & saúde coletiva. In: L’ABBATE, S; MOURÃO, L.C.; PEZZATO, L.M (Org.). A socioclínica institucional para pesquisas em educação e em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2013. p. 91-103., p. 93) apresentou oito características, como princípios organizadores desta abordagem de pesquisa, que são: 1) análise da encomenda e das demandas; 2) participação dos sujeitos na abordagem; 3) trabalho dos analisadores; 4) análise das transformações que se produzem à medida que o trabalho avança; 5) aplicação das modalidades de restituição que desenvolvem os resultados provisórios do trabalho dos participantes; 6) análise das implicações primárias e das implicações secundárias do pesquisador e do outros participantes; 7) intenção de produção de conhecimento; e 8) atenção aos contextos e as interferências institucionais nas quais estão implicados os pesquisadores e outros participantes. Estas características metodológicas são uma forma de se aproximar das questões sociais e de se relacionar com os sujeitos e objetos, de modo a facilitar a investigação a ser realizada.

O cenário do estudo foi um município de pequeno porte do Estado do Piauí, com uma população de 10.953 habitantes (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores Sociais Municipais, (2010). Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em: 1 nov. 2018.
http://censo2010.ibge.gov.br/resultados....
). A rede de saúde do município é composta por seis Equipes de Saúde da Família, sendo quatro na zona urbana e duas na zona rural, quatro Equipes de Saúde Bucal, uma equipe de Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), um Hospital Municipal, e um CAPS I.

A pesquisa foi realizada com os trabalhadores que atuam no CAPS I, que foi implantado através de consorcio entre dois municípios, o já citado, onde está instalado o serviço, e outro, que conta com 6.193 habitantes. Somando a população dos dois municípios, o serviço é responsável por uma população de 17.146 habitantes (IBGE, 2010INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Indicadores Sociais Municipais, (2010). Disponível em: <http://censo2010.ibge.gov.br/resultados.html>. Acesso em: 1 nov. 2018.
http://censo2010.ibge.gov.br/resultados....
). Participaram da pesquisa 12 profissionais de diferentes áreas. O critério para participar do estudo era ser profissional que fazia parte do quadro do CAPS, podendo ser de nível médio e superior.

Os dados foram construídos por meio de três rodas de conversa com os profissionais do serviço e a participação observante com registro em diários de pesquisa, para descrever formas de cuidado realizado pela equipe. As rodas de conversas ocorreram nos meses de abril, maio e junho de 2018, e funcionaram como dispositivos de produção da pesquisa, ao passo que constituíram uma intervenção para a promoção de espaços de educação interprofissional no serviço. O fato de a primeira pesquisadora fazer parte da equipe investigada, como psicóloga do serviço, foi um facilitador para o desenvolvimento da pesquisa.

A forma como as instituições perpassam a construção de cuidado gera infinitos sentimentos, contradições, curiosidades e desejos. As experiências neste campo provocaram o desejo de uma prática investigativa motivando a construção do campo de pesquisa. Como coloca MONCEAU (2015______. Técnicas socioclínicas para a análise institucional das práticas sociais. Psicologia em Revista. Belo Horizonte, v. 21, n. 1, p. 197-217, 2015.) “a implicação profissional é o conjunto das relações que o sujeito estabelece com a profissão (pensada como instituição com sua dinâmica própria) à qual ele pertence, e com as outras instituições nas quais, ou em ligação às quais, ele exerce sua profissão” (p. 198).

A análise da implicação é indispensável na análise institucional, é um processo reflexivo e coletivo, que pode ser distinguido de duas formas, a implicação primária e a secundária. A implicação primária pode ser definida como a relação do pesquisador com a pesquisa em si. Já a implicação secundária resulta dos atravessamentos que perpassam as diversas relações que temos com as instituições (MONCEAU, 2008______. Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Fractal: Revista de Psicologia, v. 20, n. 1, p. 19-26, 2008.; LOURAU, 1996LOURAU, R. Análise institucional. 2a ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.). Assim, a pesquisadora enquanto profissional do serviço lançou mão da análise de suas implicações de modo a sustentar o processo socioanalítico na pesquisa, tendo o espaço do grupo de pesquisa e orientação como intercessor nesse processo.

A pesquisa obedeceu à Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde-CNS e à Resolução 510 de 2016. Levando em consideração as exigências contidas nestas resoluções que regulamentam a pesquisa com seres humanos, priorizando assim os aspectos éticos no estudo. O projeto foi submetido à Plataforma Brasil, protocolado sob nº CAEE 83066318.6.0000.5214, obtendo aprovação em 06/03/2018. Os participantes da pesquisa autorizaram sua participação através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

A análise dos dados ocorreu através da construção e elucidação dos analisadores. Para MONCEAU (2013MONCEAU, G. Análise institucional & saúde coletiva. In: L’ABBATE, S; MOURÃO, L.C.; PEZZATO, L.M (Org.). A socioclínica institucional para pesquisas em educação e em saúde. São Paulo: Editora Hucitec, 2013. p. 91-103.) “um analisador é tudo aquilo que apoia a análise das dinâmicas institucionais, independente da modalidade de trabalho socioclínico” (p. 98). Diante de um analisador, não há como os sujeitos se excluírem das tomadas de posições, e assim tornam visíveis suas implicações e os modos de agir (DOBIES; L’ABBATE, 2016DOBIES, D.V.; L’ABBATE, S. A resistência como analisador da saúde mental em campinas (SP): contribuições da análise institucional. Saúde em Debate, v. 40, n. 110, p. 120-133, 2016.). A construção e elucidação dos analisadores ocorreu a partir das reflexões que a pesquisadora desenvolveu a partir da sua leitura dos diários de campo da observação participante, dos momentos junto com o grupo de participantes e dos momentos junto com os colaboradores no grupo de pesquisa e orientação. O trabalho de análise é sempre um trabalho de construção individual e coletivo ao mesmo tempo.

Resultados e Discussão

Destacam-se abaixo os resultados que apontam para diferentes aspectos com relação às concepções elucidadas pelos profissionais sobre os processos de educação permanente em saúde na prática da atenção psicossocial em um CAPS localizado em uma cidade de pequeno porte. A participação dos profissionais no dispositivo de intervenção permitiu entrar em contato com lembranças de como desenvolviam os primeiros cuidados em saúde mental, a troca de experiência entre os profissionais e o reconhecimento da construção de conhecimento que ocorre no próprio serviço, nas trocas interprofissionais.

A partir das reflexões e análise dos relatos com base nas rodas de conversas, registros dos diários e participação observante, foi possível identificar os seguintes eixos temáticos: educação permanente em saúde na construção da atenção psicossocial em um CAPS de uma cidade de pequeno porte; trabalho interprofissional no contexto da interiorização; e educação permanente e trabalho interprofissional para a construção de um cuidado integral.

Educação Permanente em Saúde na construção da atenção psicossocial em um CAPS de uma cidade de pequeno porte

São inegáveis as conquistas alcançadas através da Reforma Psiquiátrica que impulsionou a inserção de serviços de saúde mental em diferentes cenários, como é o caso das pequenas cidades que antes não contavam com serviços dessa ordem e passaram a ser contempladas com dispositivos como o CAPS. Contudo, atualmente, o campo da saúde vivencia uma conjuntura de desmonte e silenciamento; como exemplo, o congelamento dos gastos públicos, a proposta de planos populares de saúde, o retrocesso proposto no âmbito da Reforma Psiquiátrica através da Portaria nº 3588, de 21 de dezembro de 2017 e, recentemente, a Nota Técnica nº 11/2019. Dessa forma, as institucionalizações desses equipamentos em diferentes contextos não garantem a efetivação de práticas inovadoras e desinstitucionalizantes na saúde mental.

A construção dos dispositivos para a realização do estudo permitiu que as instituições de atenção psicossocial, educação permanente e educação interprofissional surgissem, possibilitando aos profissionais falas sobre o que estava oculto na instituição, elucidando a atenção psicossocial como espaço estratégico para a construção de conhecimento e revelando limites do saber fazer na saúde. A maioria dos profissionais que participaram da pesquisa fazia parte da equipe do CAPS desde sua implantação, em 2014. Os trabalhadores relataram que, inicialmente, não tinham conhecimento de como o CAPS funcionava e foram aprendendo na construção do próprio serviço, justificavam estes não saber por ser um serviço novo na cidade e por possuírem uma formação que não contemplava as discussões em torno da saúde mental, como podemos observar no seguinte relato:

No início a gente ficou apreensivo por ser um serviço novo, e a gente não saber como ia ser, mas a gente foi construindo, desenvolvendo e fomos aprendendo com o tempo, às vezes, surgem coisas no serviço que a gente fica sem saber como ia fazer, mas é aquela coisa: o CAPS é um constante aprendizado. (Participante 01)

Nota-se a insegurança dos profissionais na implantação do serviço em relação ao que deveriam fazer, mas também se apresenta um movimento dos trabalhadores na busca de suporte para orientar como devia ocorrer a construção do cuidado em saúde mental. Podemos apontar este movimento como um processo de educação permanente, que ocorre na concretude das realidades dos serviços de saúde. Esse processo elucida o descompasso do aporte teórico-prático vivenciado durante as formações acadêmicas, pois as pesquisas apontam que prevalece nas instituições formadoras dos cursos de saúde o modelo tradicional do ensino, biomédico, cartesiano, pautado em tecnologias duras, sendo necessárias mudanças nos projetos político-pedagógicos dos cursos com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e em conformidade com os princípios do SUS (FERREIRA et al, 2015FERREIRA, V.S.C. et al. Modos de cuidar e educar a partir do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde. Interface (Botucatu), v. 19, n. 1, p. 857-68, 2015.; JUNQUEIRA; COTTA, 2014JUNQUEIRA, T.S.; COTTA, R.M.M. Matriz de ações de alimentação e nutrição na Atenção Básica de Saúde: referencial para a formação do nutricionista no contexto da educação por competências. Ciênc. saúde coletiva. v.19, n. 5, p. 1459-1474, 2014.; FINKLER; CAETANO; RAMOS, 2014FINKLER, M.; CAETANO, J.C.; RAMOS, F.R.S. Modelos, mercado e poder: elementos do currículo oculto que se revelam na formação em odontologia. Trab. Educ. Saúde, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, p. 343-361, 2014.; BRAID; MACHADO; ARANHA, 2012BRAID, L.M.C; MACHADO, M.F.A.S.; ARANHA, A.C. Estado da arte das pesquisas sobre currículo em cursos de formação de profissionais da área da saúde: um levantamento a partir de artigos publicados entre 2005 e 2011. Interface (Botucatu). v. 16, n. 42, p. 679-92, 2012.; ROSA et al, 2015ROSA, R.P.F. et al. Construindo saberes no trabalho em saúde mental: experiências de formação em saúde. Interface (Botucatu), v. 19, p. 1, p. 931-940, 2015.). Além disso, a interiorização e a ampliação do acesso à saúde e à educação não garantem que políticas inclusivas, mesmo no contexto do interior, se “interiorizem” de forma a serem social e culturalmente sensíveis às demandas locais e regionais mais distantes das capitais.

Batista e Gonçalves (2011BATISTA, K.B.C.; GONÇALVES, O.S.J. Formação dos profissionais de saúde para o SUS: significado e cuidado. Saúde sociedade. São Paulo, v. 20, n.4, p. 884-899, 2011.) colocam que a formação profissional deve ser pautada em metodologias de ensino-aprendizagem que vão além do saber técnico-científico, abrangendo o desenvolvimento de habilidades para lidar com a dimensão subjetiva do ser humano: a do usuário, das comunidades, dos colegas de trabalho e a sua própria. Um dos pontos recorrentes nas falas dos profissionais era sobre a falta de capacitação para atuação no serviço de saúde mental, assim como uma formação insuficiente para atuação neste campo. Uma das profissionais relatou que a única capacitação que tiveram foi com a psicóloga contratada na época da implantação, a qual convocou todos os agentes de saúde da cidade, explicou como o CAPS funcionava, e como a equipe deveria fazer para identificar os usuários que necessitavam do serviço. Depois desse encontro, as agentes de saúde passaram a encaminhar os usuários das suas áreas, que realizavam o acompanhamento em outras cidades ou que necessitavam do serviço. Houve também uma reunião com o secretário de Saúde do município conveniado, que passou a encaminhar os usuários do outro município.

A gente tinha uma psicóloga que fez uma capacitação e chamou todos os agentes de saúde da cidade. Ela nos reuniu para orientar sobre como funcionavam os CAPS, explicando quem os profissionais deveriam procurar primeiro, porque nós ainda não tínhamos os pacientes. Para fazer a busca dos pacientes precisamos das agentes de saúde para iniciar o trabalho, aí foi indo. As agentes de saúde foram vendo as pessoas que tinham necessidades da área delas e foi encaminhado, e assim começou e a gente começou por um bom tempo só com triagem, encaminhando pro médico. Depois fizemos umas visitas, depois começamos a iniciar as oficinas, teve a oficina de dança, depois entrou a artesã, depois começou a funcionar. (Participante 02).

Os primeiros cuidados ofertados aos usuários eram a triagem e o atendimento médico ou psicológico. Os profissionais reconheceram que o processo de institucionalização do serviço foi marcado por um modelo instituído centrado nos especialismos e fragmentação do cuidado. Relataram que tinham muitas dúvidas, a triagem era realizada apenas pela assistente social ou psicóloga, a equipe não sabia se os outros profissionais poderiam realizar; e, como a assistente social estava sobrecarregada, foram buscar ajuda com os profissionais de um CAPS de uma cidade vizinha em um município de médio porte.

No começo nós tínhamos muitas dúvidas, sempre nos questionando se o que estávamos fazendo estava certo ou errado. Nas triagens a gente tinha muitas dúvidas, e eu lembro que a gente se deslocou uma vez para o CAPS de uma cidade vizinha para pedir apoio, a gente tava tendo dificuldade de saber a partir de qual idade as crianças podiam ser atendidas no CAPS, dúvidas de materiais que estávamos usando. E os profissionais de lá nos ajudaram muito, nos mostraram o serviço e como funcionava, tiraram nossas dúvidas. (Participante 03).

Observa-se que as principais dificuldades que surgiram na implantação do serviço intensificavam-se devido à falta de experiência e suporte teórico-prático no campo da saúde mental. Os profissionais relataram dificuldade de articulação em rede com outros serviços do município. Diziam que quando precisavam do apoio de médicos da Atenção Básica com algum paciente em crise, eles se negavam por não serem psiquiatras. Outra dificuldade era a falta de suporte por parte da gestão; os recursos materiais eram escassos, além de inicialmente ocorrer atraso do pagamento de salário, e isso dificultava a permanência de profissionais da área de Medicina e Psicologia, pois estes vinham de outras cidades, e terminavam por não permanecerem muito tempo no serviço.

E outra dificuldade nossa é que na hora que um paciente entrava em crise e não tinha médico no CAPS e nós ia (sic) atrás do médico da atenção básica, tinha médico que se recusava por não ser psiquiatra. (Participante 03).

Observa-se que essa falta de suporte revela certo descaso por parte da gestão em relação à saúde mental, que a deixava na mão dos profissionais sem dar um direcionamento e com suporte fragilizado para a construção do cuidado em saúde mental no município. No entanto, os trabalhadores colocaram que, frente a tantas adversidades, se fortaleciam por meio da união da equipe e, para lidar com as dificuldades que surgiam, relataram que realizavam reuniões de equipe, objetivando buscar apoio uns nos outros e solucionar os desafios existentes. Podemos observar no seguinte relato:

A gente ia se reunindo. Eu me lembro, a gente se reunia e conversava sobre o que estava dando certo e o que não estava. Com problematização e reflexão de algumas práticas que aconteciam e não tinham bons resultados, a gente ia buscando melhorar o serviço. Aí foi onde a gente foi aprendendo, com aquilo que não tínhamos bons resultados, a gente foi aprendendo foi no dia a dia (sic). (Participante 4).

As incertezas que surgiam sobre o trabalho que estavam desenvolvendo, e a busca por saber se estavam caminhando em uma perspectiva de acordo com a proposta da atenção psicossocial, provocavam na equipe movimentos de autoanálise e autogestão. A autoanálise pode ser definida como um movimento coletivo onde os próprios trabalhadores, frente a seus problemas, necessidades, desejos e interesses se articulam de modo a compreender, elucidar e tentar produzir formas de superar as dificuldades que enfrentam e melhorar as situações do cotidiano. A organização do serviço (autogestão) acaba sendo consequência e paralela à autoanálise, e todo esse processo só é possível de ser realizado devido ao próprio seio heterogêneo do coletivo interessado (BAREMBLITT, 2002BAREMBLITT, G.F. Compêndio de análise institucional e outras correntes: Teoria e prática. Belo Horizonte, MG: Instituto Felix Guattari; 2002.).

A construção das instituições é marcada pela produção de subjetividades, pois, ao mesmo tempo em que a instituição é fabricada por trabalhadores, gestores e usuários que colocam em ação as normas e regras; eles também se constroem nesse processo. Tal processo pode ser observado com a construção desse serviço (FORTUNA; MONCEAU; VALENTIM; MENNANI, 2014FORTUNA, C.M. et al. Uma pesquisa socioclínica na França: notas sobre a Análise Institucional. Fractal, Rev. Psicol., v. 26, n. 2, p. 255-266, 2014.). Observa-se que os profissionais reconheciam os espaços de troca e reflexão de suas práticas concretas como espaços que permitem a busca de apoio e ampliação das ofertas de cuidado. A educação permanente opera nesses encontros, pois ela deve ser utilizada como dispositivo para fabricar coletivos, propiciar a reflexão sobre o cotidiano, produzir alteridade para analisar as práticas e criar espaços para que novos pactos de organização do trabalho possam ser produzidos (MERHY; FEUERWERKER; CECCIM, 2006MERHY, E.E.; FEUERWERKER, L.C.M.; CECCIM, R.B. Educación Permanente en Salud: una estrategia para intervenir en la micropolítica del trabajo en salud. Salud Colectiva. Buenos Aires, v. 2, n. 2, p. 147-160, 2006.).

Podemos observar que a construção do dispositivo para a investigação da pesquisa permitiu que os profissionais compartilhassem experiências, e lembranças de como ocorrem os processos de educação permanente no serviço. Para Ceccim (2005CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface (Botucatu), v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005.), a Educação Permanente em Saúde ocorre pelas relações concretas em um mundo real que possibilita a formação de espaços coletivos e possibilita a reflexão e avaliação de sentidos produzidos no cotidiano.

Trabalho interprofissional no contexto da interiorização

Desenvolver um trabalho de saúde mental em uma cidade pequena apresenta suas singularidades, que são relevantes de conhecer, para perceber as aproximações e distanciamentos dos cuidados ofertados nos grandes centros. A construção de um trabalho interprofissional foi reconhecida pelos pesquisados como os momentos que desenvolviam atividades coletivas através de oficinas, visitas domiciliares, atendimento compartilhado, construção de Projeto Terapêutico Singular.

No entanto, os profissionais relataram que, inicialmente, enfrentaram algumas dificuldades, pois o fato de ser um serviço localizado no interior e de a maioria dos trabalhadores ser moradora da cidade trouxe problematizações e descrença da população em relação ao trabalho da equipe. Os trabalhadores colocaram que, devido a cidade ser pequena, onde “todas as pessoas se conheciam”, foi percebido como algo negativo pela população. Estes relatavam que o serviço poderia não dar certo pelo fato de as pessoas se conhecerem e pelo quadro de profissionais ser predominantemente de pessoas da cidade.

As pessoas falavam que ninguém ia querer. Ninguém ia confiar. Que as pessoas tinham vergonha por ser um serviço sigiloso, que não ia dar certo porque só era de profissionais daqui, né? (sic). (Participante 5).

No entanto, durante a participação observante alguns registros descreviam a aproximação dos usuários com os profissionais, facilitado pela convivência em outros espaços, como vizinhança, vínculos comuns (igrejas, eventos culturais), relações construídas a partir do próprio serviço. Tais encontros possibilitaram a construção de redes de cuidado no território e a articulação de diferentes recursos materiais e humanos para o cuidado em saúde mental. A singularidade de trabalhar em uma cidade pequena acabou revelando através das falas dos profissionais que isso os ajudava na aproximação com os usuários e no reconhecimento do contexto em que estavam inseridos, onde moravam, quem eram seus familiares, a situação socioeconômica, os espaços que frequentam, ou seja, na criação de vínculo.

Outra dificuldade apontada pelos profissionais se referia ao estigma de frequentar um serviço de saúde mental. Os profissionais relataram que muitas pessoas que necessitavam do serviço se sentiam desmotivadas a buscar ajuda devido à população tratar como um local para loucos. Alguns tinham medo de serem trancados no serviço; outros, das pessoas saberem que frequentavam o serviço, como podemos observar no seguinte relato:

A gente vê o estigma que tem, a equipe é boa, os atendimentos são bons, mas o CAPS traz um estigma muito grande e eu vejo que nós conseguimos trabalhar em cima disso. Eu lembro que uma das primeiras pessoas que atendi tava se tremendo de medo, pensando que eu ia trancar ela, e é muito interessante porque com o passar do tempo a gente vê a diferença do trabalho que vai sendo construído também (sic). (Participante 6).

Os profissionais colocaram que muitos estigmas foram trabalhados de forma coletiva nos grupos onde problematizavam algumas concepções que eram colocadas de forma individual ou coletiva. Interessante observar que, mesmo sendo um novo serviço, o estigma manicomial se mantinha presente na forma como as pessoas falavam sobre o serviço.

O desenvolvimento de assembleias onde foram convidados usuários e familiares para explicar como deveria ser o desenvolvimento do trabalho do CAPS, que não estava centrado apenas no atendimento clínico, impulsionou uma maior interação profissionais-profissionais, profissional-usuários e usuários-usuários, ajudando na desconstrução de alguns estigmas. Essa ação foi reconhecida pelos profissionais como um importante momento, que possibilitou ampliar as concepções sobre o cuidado em saúde mental e ofertar diferentes formas de cuidado como oficinas (canto, música, artesanato, alongamento), terapia comunitária integrativa, festas comemorativas, entre outras, sendo um convite para as pessoas que desejassem fazer parte de atividades coletivas, que passaram a ocorrer semanalmente. Além de um acompanhamento clínico, a oferta de cuidados grupais por diferentes profissionais possibilitou encontros, troca de experiência, transformação, construção e desconstrução de saberes e cuidados.

Pensar sobre o processo de trabalho que a própria equipe estava construindo ajudou a revelar que buscavam desconstruir pensamentos institucionalizados sobre a loucura, não apenas entre usuários e familiares, mas entre os próprios profissionais e moradores da cidade na busca de construir relações instituintes que não desmerecessem a importância do cuidado mental. Observa-se que os processos de educação permanente podem ser potencializados no trabalho interprofissional através de intervenções coletivas que acontecem no cotidiano, pois a realidade vivida nos serviços força a pensar diversos modos de operar.

A aposta na ruptura do paradigma manicomial requer acreditar na produção de cuidado por trabalhadores de saúde mental, que quebrem esta lógica através do trabalho vivo, tecnológico e micropolítico, impulsionando a produção de vida em qualquer lugar. Dessa forma, se faz necessário uma “revolução cultural” entre os vários sujeitos e atores sociais para que seja possível compreender o sofrimento humano em sua multiplicidade e complexidade, com articulações multi, interdisciplinar e interprofissional, buscando compreender através de um campo social mais inclusivo e integral (MERHY, 2004MERHY, E. E. O CAPS e seus trabalhadores: no olho do furacão antimanicomial. Alegria e alívio como dispositivos analisadores. (2004).).

E é neste caminho que a interprofissionalidade se torna necessária nos serviços de saúde, pois busca a construção de conhecimento humano em sua integralidade e leva a uma perspectiva de convergência e interação dialética dos conhecimentos específicos (SIMÃO et al, 2017SIMÃO, V.M. et al. Exposição de uma prática de ensino e cuidado inter e multiprofissional. In: DIAS, T.G.; OLIVEIRA, D.C. (Orgs.). Vivências da formação de profissionais de saúde: aventuras e percursos de educação pelo trabalho. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2017.). Assim, as discussões, aproximações e trocas de opiniões de diferentes trabalhadores possibilitam a construção junto aos usuários de práticas em saúde mental mais integral, e contextualizada com a realidade concreta das pessoas.

Educação permanente e trabalho interprofissional para a construção de um cuidado integral

A educação e a prática interprofissionais em saúde (EIP e PIP) são consideradas temas emergentes para serem pensados no trabalho em equipe, pois contribuem para a organização dos serviços de saúde. Além de permitirem a problematização e deslocamento da fragmentação do conhecimento e das práticas de cuidado, podem fortalecer práticas mais articuladas e integradas através da flexibilização dos papéis dos profissionais e da otimização do processo de saúde na busca por serviços mais resolutivos e de qualidade (OMS, 2010ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Marco para Ação em Educação Interprofissional e Prática Colaborativa. Genebra: OMS, 2010.; PEDUZZI, 2013PEDUZZI, M. et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. esc. Enferm., v. 47, n.4, p. 977-983, 2013.).

O trabalho colaborativo, em atividades que são compartilhadas com outros profissionais, pode possibilitar um olhar mais integral e um cuidado mais efetivo. Além disso, no presente estudo os profissionais ressaltaram a importância da troca de saberes entre diferentes categorias para a construção de um cuidado mais integral, como podemos observar nas seguintes narrativas:

Eu sei que a educadora física tem a especialidade dela, eu tenho a minha, a psicóloga tem a dela, a técnica de enfermagem tem a dela e cada um tem a sua. Mas eu vejo muita união no nosso trabalho, a gente compartilha o que sabe, cresce a equipe, e a gente pode ofertar um melhor cuidado aos pacientes. (Participante 7).

A discussão entre diversos profissionais com opiniões e diferentes pontos de vista contribui para uma visão mais ampla, apesar de não ser completa, do que o olhar apenas de um profissional. Desta forma, o trabalho interprofissional possibilita a construção de espaço de liberdade, com várias opiniões e visões e que proporcionam aos trabalhadores de saúde ver uma realidade de maneira mais rica e mais integral (PEDUZZI, 2013PEDUZZI, M. et al. Educação interprofissional: formação de profissionais de saúde para o trabalho em equipe com foco nos usuários. Rev. esc. Enferm., v. 47, n.4, p. 977-983, 2013.; JUNQUEIRA, 2013JUNQUEIRA, V. O SUS em Debate: Redes de Atenção em Saúde e o Trabalho Interprofissional. VII Ciclo de Aulas Abertas no IPUSP. São Paulo, 2013.).

Os profissionais relataram as reuniões de equipes como espaços de reflexões que possibilitavam mudanças nas práticas de saúde, além do desenvolvimento de atividades grupais como oficinas, atendimentos compartilhados, visita domiciliar e construção de projeto terapêutico singular como potencializadores para a educação interprofissional. A elucidação de experiências que utilizam, através da Educação Permanente em Saúde, foi percebida pela equipe como algo que trazia contribuição para a reflexão e mudanças nas práticas de atenção em saúde.

Com as reuniões de equipe, fomos colocando o que não estava dando certo no nosso trabalho, aí foi melhorando. Agora quando um traz uma ideia o outro complementa, são coisas assim, um ajuda o outro e desenvolvemos um bom trabalho. (Participante 2)

Pesquisas apontam o trabalho interprofissional como um espaço privilegiado, que permite que profissionais de uma equipe multiprofissional interajam e se organizem considerando as diferentes visões da realidade e melhorando a qualidade dos cuidados ofertados. É um lugar privilegiado para que aconteça o princípio da integralidade (CECCIM, 2005CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface (Botucatu), v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005.; SEVERO; SEMINOTTI, 2008SEVERO, S.B.; SEMINOTTI, N. Integralidade e transdisciplinaridade em equipes multiprofissionais na saúde coletiva. Ciência & Saúde Coletiva, v. 15, n. 1, p. 1685-1698, 2008.; SPINK, 2003SPINK, M.J.P. Saúde: um campo transdisciplinar? In: ______. (Org.). Psicologia Social e Saúde: práticas, saberes e sentidos. Petrópolis: Vozes; 2003.; MERHY; 1997MERHY, E.E. Em busca da qualidade dos serviços de saúde: os serviços de porta aberta para a saúde e o modelo tecno-assistencial em defesa da vida. In: CECÍLIO, L.C.O. (Org.). Inventando a mudança na saúde. 2ª ed. São Paulo: Hucitec, 1997.). No entanto, o estudo realizado por Jafelice e Marcolan (2018JAFELICE, G.T.; MARCOLAN, J.F. O trabalho multiprofissional nos Centros de Atenção Psicossocial de São Paulo. Rev. Bras. Enferm., v. 71, n. 5, p. 2259-66, 2018.) aponta que as propostas de integração disciplinar ainda são pouco problematizadas, na realidade dos serviços, pelos profissionais de saúde.

Os profissionais relataram a falta de espaços formais para a discussão de casos, apontaram que aconteciam na prática concreta: “é algo informal, acontece ali no cotidiano, junto à equipe, quando acontece algo a gente se reúne pra ver o que podemos fazer” (Participante 08). Destaca-se que, apesar de os profissionais identificarem espaços em que ocorrem a educação interprofissional nos processos de educação permanente, havia a necessidade de implantar em suas agendas espaços formais para o seu desenvolvimento, como podemos observar na seguinte fala: “Eu acho que é uma falha nossa, que nós devemos marcar um dia para discutir os casos que chegam ao serviço, nossas angustias” (Participante 09).

Tais questões trazem a importância de haver um cuidado que não recuse a potência do grupo e as implicações cotidianas vivenciadas no serviço de saúde, ao ser supervalorizado apenas um saber mais tradicional, entendendo que não é negando a importância da formalização dos processos de ensino e aprendizagem, mas sim validar os conhecimentos empíricos (SILVA; KNOBLOCH, 2016SILVA, D.L.S.; KNOBLOCH, F. A equipe enquanto lugar de formação: a educação permanente em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas. Interface (Botucatu), v. 20, v. 57, p. 325-335, 2016.). Sem dúvida, a ampliação de espaços para problematização das situações-problema de saúde que emergem no cotidiano do trabalho vivo em saúde é necessária, além de momentos para sistematização das experiências e teorizações dos processos instituintes e inventivos, sem necessariamente reduzir a potência do dispositivo Educação Permanente em Saúde à educação formal.

A construção de espaços que permitem aos profissionais refletirem sobre os processos de trabalho, troca de experiências, afetações e informações com base na realidade em que estão inseridos possibilita que os trabalhadores percebam estratégias coletivas para a produção do cuidado. Isso permite transformações do conhecimento e da prática profissional, produzindo assim espaços coletivos de educação permanente em saúde (CECCIM, 2005CECCIM, R.B. Educação permanente em saúde: desafio ambicioso e necessário. Interface (Botucatu), v. 9, n. 16, p. 161-177, 2005.).

Considerações finais

A realização deste estudo possibilitou que os profissionais revelassem falas muitas vezes não ditas, colocando assim em evidência processos de educação permanente e educação interprofissional no contexto das pequenas cidades do interior. Permitiu que os profissionais vivenciassem os processos de ensino/aprendizagem e reconhecessem diferentes formas de construção de conhecimento que ocorrem no próprio serviço. A percepção da retomada da própria construção do serviço e do desenvolvimento dos profissionais ao longo do tempo permitiu ampliar as reflexões sobre a educação permanente através de espaços coletivos em serviços de saúde mental, trazendo os processos de autogestão da própria equipe.

A realidade dos serviços de saúde mental exige dos profissionais “desaprendizagens” e construção de conhecimento que acontecem em ato, e neste contexto as equipes multiprofissionais podem ser potencializadoras ao utilizar processos de educação interprofissional com seus diferentes olhares nos espaços de Educação Permanente em Saúde. Dessa forma, através de práticas colaborativas para um fortalecimento e a construção de trabalhos mais integrais em saúde. É importante ressaltar que, apesar de o cotidiano dos serviços públicos estar atravessado por processos de aprendizagem, e desses processos estarem para além de políticas ministeriais, faz-se importante que o Ministério da Saúde invista para efetivação desses processos, valorizando as experiências concretas dos profissionais.

Pretendemos que esta pesquisa contribua para novos estudos que busquem investigar as práticas e as vivências dos profissionais de saúde na atual realidade brasileira e latino-americana, para assim contribuir com a construção de conhecimentos capazes de qualificar a atenção em saúde mental nos mais diferentes cenários alcançados pela Reforma Psiquiátrica.1 F. M. S. de Sousa realizou a pesquisa de campo e a construção do artigo. A. K. de S. Severo, A. V. F. da Silva e A. K. de M. A. Amorim participaram da discussão dos resultados, revisão e aprovação da versão final do texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    27 Fev 2019
  • Aceito
    06 Jun 2019
  • Revisado
    21 Jan 2020
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