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Implicações da precarização do trabalho para gestão laboral e do cuidado na Atenção Psicossocial Territorial

Implications of precarious work for labor management and care in Territorial Psychosocial Care

Resumo

Este artigo busca identificar a influência dos múltiplos tipos de vínculos trabalhistas para a supervisão clínico-institucional e a gestão do cuidado em saúde mental na Atenção Psicossocial Territorial. Trata-se de estudo de caso único, exploratório, descritivo e analítico crítico, com abordagem qualitativa, realizado com 15 profissionais de seis Centros de Atenção Psicossocial, localizados em uma Área Descentralizada de Saúde no Ceará, por meio da aplicação de Entrevista Projetiva. A análise se deu pelo uso do IRAMUTEQ e a contextualização pela Teoria da Complexidade. A compreensão do fenômeno sugere que os principais efeitos vivenciados pelos trabalhadores tem como causa real a precarização do trabalho, para além da multiplicidade dos vínculos existentes em uma mesma equipe, os quais estão sujeitos à desvalorização, enquanto instrumentos de práticas que subvertem a produção do trabalho baseado na supervisão clínico-institucional e na gestão do cuidado em saúde mental. Fica evidente que os múltiplos vínculos trabalhistas revelam a emergência sobre as reais condições laborais a que esses trabalhadores estão expostos, repercutindo na não concretização da atenção à saúde mental.

Palavras-chave:
Precarização do Trabalho; Centros de Atenção Psicossocial; Gestão em Saúde

Abstract

This article aims to identify the influence of multiple types of employment relationships for clinical-institutional supervision and mental health care management in Territorial Psychosocial Care. This is a single case study, exploratory, descriptive, and critically analytical, with a qualitative approach. Conducted with 15 professionals from six Psychosocial Care Centers, located in a Decentralized Health Area in Ceará, through the application of Projective Interview. The analysis was carried out using IRAMUTEQ and contextualization using Complexity Theory. The understanding of the phenomenon suggests that the main effects experienced by the workers have the precariousness of work as a real cause, in addition to the multiplicity of existing bonds in the same team, which are subject to devaluation, as instruments of practices that subvert the production of work. work based on clinical institutional supervision and mental health care management. The multiple employment relationships reveal the emergence of the real working conditions that these workers are exposed to, with repercussions for the non-fulfillment of mental health care.

Keywords:
Work Precariousness; Psychosocial Care Centers; Health Management

Introdução

Trabalhar no campo da Saúde Mental, tendo como base o modelo de Atenção Psicossocial Territorial (APT), requer práticas intensamente relacionais entre as categorias profissionais, com ênfase em Enfermagem, Serviço Social, Medicina, Psicologia, Terapia Ocupacional, Farmácia e Pedagogia, entre outras, que estão envolvidas com a gestão e a atenção.

O modelo de APT visa superar a assistência direta curativista e organopositivista, por reconhecer as singularidades e pluralidades da complexidade dos processos saúde/doença, quando se torna fundamental reconhecer o lugar de fala dos sujeitos, em meio às desigualdades sociais e às condições de sobrevivência e do existir (Sampaio; Guimarães; Abreu, 2019SAMPAIO, J. J. C.; GUIMÃES, J. M. X.; ABREU, L. M. Supervisão clínico-institucional e a organização da Atenção Psicossocial no Ceará. Fortaleza: EdUECE, 2019.).

O caminho assistencial proposto pode ser construído pela Supervisão Clínico-Institucional (Sampaio; Guimarães; Abreu, 2019SAMPAIO, J. J. C.; GUIMÃES, J. M. X.; ABREU, L. M. Supervisão clínico-institucional e a organização da Atenção Psicossocial no Ceará. Fortaleza: EdUECE, 2019.) e a Gestão do Cuidado em Saúde Mental (Guimarães, 2012), enquanto elementos estratégicos que buscam consolidar a APT, em que a Supervisão Clínico-Institucional deve ser considerada instrumento ético-político que coloca em discussão o protagonismo dos sujeitos que materializam a APT, tais como gestores, trabalhadores, usuários, familiares, a própria cultura institucional e organizacional dos serviços. Em ações de valorização e qualificação dos trabalhadores da gestão e atenção, em consonância com o Movimento Brasileiro de Reforma Psiquiátrica (MBRP) e da política oriunda deste no Sistema Único de Saúde (SUS).

Já a Gestão do Cuidado em Saúde Mental traz para o trabalho na APT um conjunto de teorias e práticas organizacionais, que constituem a produção de práticas coletivas, colaborativas e interdisciplinares de saúde mental, organizando as relações entre usuários-familiares-cuidadores-profissionais-comunidades diante da coordenação, planejamento, ação, articulação, empatia e avaliação dos processos administrativos do trabalho em ato (Guimarães, 2012GUIMARÃES, J. M. X. Inovação e gestão em serviços de saúde mental: incorporação de tecnologias e reinvenção no cotidiano dos Centros de Atenção Psicossocial (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade Estadual do Ceará, Fortaleza, 2012. http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/UECE0_cafda669bcf897041c88a1e536b3e5ab
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).

No fazer cotidiano, os trabalhadores da APT vivenciam diversas ambiguidades e contradições relacionadas à prática das políticas públicas trabalhistas e de saúde. A maior contradição que este estudo traz para a problematização em tela está no campo da precarização do trabalho, disseminada na gestão pública que realiza os princípios neoliberais, os quais submete os trabalhadores a um mercado selvagem, que não assegura salários regulares e realiza contratos de trabalho flexíveis, carga horária exaustiva, sobrecarga laboral, não garantia de férias e/ou décimo terceiro salário, seguro social contra demissão e segurança ocupacional (Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.; Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.; Lima; Sampaio; Souza, 2023LIMA, I. C. S.; SAMPAIO, J. J. C.; SOUZA, K. C. A. A complexidade do trabalho precário na Atenção Psicossocial Territorial: reflexão crítica sobre o contexto brasileiro. Saúde Debate, v. 47, n. 136, p. 215-226, 2023.).

Na roupagem neoliberal, o trabalho em saúde mental ganha status produtivista (Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.), distanciando-se da essência da Política Nacional de Saúde Mental, expressa na Lei nº 10.216 (2001), da Portaria nº 336 (2002), a qual instituiu os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas diversas modalidades de atenção, bem como da Portaria Ministerial nº 3.088 (2011), que institui a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Ambas as políticas de saúde mental supracitadas, em seu caráter essencial sobre a complexidade do processo saúde/doença mental, protagonismo dos sujeitos, singularidades e pluralidades dos contextos sociais e valorização do trabalhador da saúde mental, foram subvertidas por uma Reforma Trabalhista iniciada em 2017, tendo como base na Lei nº 13.467 (2017), a qual incorpora nos serviços públicos as principais tendências do capitalismo flexível global, reduzindo o poder do Estado sobre a regulação e a garantia dos direitos dos trabalhadores (Alves, 2018ALVES, G. A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI; Reforma trabalhista: a nova ofensiva neoliberal no Brasil. In: CASULO, A. C. et al. (Orgs.). Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018. p. 14-62.).

O estudo é justificado, considerando o percurso descrito acima, o qual tem influenciado no aumento da jornada de trabalho, com a sobrecarga e sobreposição de ações diante de novas exigências de competências e habilidades do trabalhador, que é pressionado para que sejam produzidos número e acertos sobre os atendimentos realizados (Alves, 2018ALVES, G. A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI; Reforma trabalhista: a nova ofensiva neoliberal no Brasil. In: CASULO, A. C. et al. (Orgs.). Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018. p. 14-62.; Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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; Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.; Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.). Nesse ínterim, a capacidade sobre a autorreflexão crítica dos trabalhadores da APT é fragilizada, enquanto Dasein,1 1 Dasein é a relação do próprio ser e do seu devir no mundo existencial. Em Ser e Tempo, Heidegger (2005) propõe a reflexão e a compressão do homem, pelo Dasein, como ser-no-mundo, em seu devir histórico, cultural e social em meio a dialética do fenômeno em campo abstrato e concreto. ser e estar no mundo, no devir existencial-laboral. A investigação dessa temática propicia o reconhecimento do problema, enquanto fenômeno concreto, permitindo que os sujeitos envolvidos se reorganizem enquanto classe trabalhadora em busca de melhores condições de trabalho, influenciando positivamente na assistência prestada nos CAPS. Produção científica relevante, diante da escassez de estudos relacionados com a precarização do trabalho na APT.

Ao considerar as implicações da precarização do trabalho no desenvolvimento dos processos laborais, observa-se que o trabalhador precisa se submeter a múltiplos vínculos para sua sobrevivência. Portanto, o presente estudo busca identificar a influência dos múltiplos tipos de vínculos trabalhistas para a supervisão clínico-institucional e a gestão do cuidado em saúde mental na APT.

Tem-se, aqui, uma possibilidade para a construção de uma abordagem teórica alicerçada no pensamento complexo (Morin, 2000MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.; 2002; 2015) enquanto caminho singular e plural, individual e coletivo, criativo e transformador. Isso tenderá a favorecer a compreensão dos elementos que constituem o problema sobre o trabalho e os elementos dele derivados, os quais interferem direta e indiretamente na Supervisão Clínico-Institucional e na Gestão do Cuidado em Saúde Mental na APT.

Método

Trata-se de estudo de caso único, de caráter exploratório, descritivo e analítico crítico. De acordo com Yin (2015YIN, R. K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. São Paulo: Bookman, 2015.), existe complexa relação com o objetivo deste estudo, o qual busca identificar a influência dos múltiplos tipos de vínculos trabalhistas para a supervisão clínico-institucional e a gestão do cuidado em saúde mental na Atenção Psicossocial Territorial. Trata-se de condição crítica, peculiar, comum e reveladora sobre como a precarização do trabalho pode afetar o desenvolvimento laboral dos CAPS.

O estudo teve como contexto o trabalho desenvolvido em seis CAPS da Área Descentralizada de Saúde (ADS) de Crateús, a qual compõe a Região de Saúde (RS) Norte do estado do Ceará. Desde 2019, por meio da Portaria nº 2.108, destacada no Relatório de Gestão de 2019 (Ceará, 2019), o Governo do Estado vem inovando na descentralização das RS, garantindo maior autonomia e governabilidade para o nível local.

Atualmente, o Ceará encontra-se subdividido em cinco RS: Fortaleza, Norte, Sertão Central, Cariri e Litoral Leste-Jaguaribe. Cada RS é composta por agrupamentos de ADS, que são conjuntos de municípios por características socioeconômicas, culturais e geográficas, em que a gestão no nível estadual é desenvolvida entre Coordenação da ADS, Superintendências Regionais de Saúde e Secretária de Saúde do Estado do Ceará (SESA).

A ADS de Crateús é composta por 11 municípios, com porte populacional total de 300.372 mil habitantes, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022) para o ano de 2022. O município de Crateús é a sede da ADS de sua RS, dos quais cinco possuem CAPS do tipo I: Crateús, Monsenhor Tabosa, Nova Russas, Novo Oriente e Tamboril. Este último possui mais um CAPS do tipo infantil, totalizando seis CAPS. Os demais municípios - Ararendá, Independência, Ipaporanga, Ipueiras, Poranga e Quiterianópolis - não possuem CAPS, usufruindo, por meio de acordos intermunicipais, do atendimento de seus usuários nos CAPS dos municípios vizinhos.

Participaram do estudo 15 profissionais, organizados em dois grupos, a saber: Coordenadores - três enfermeiros e dois assistentes sociais; e profissionais da assistência - sete psicólogos, um enfermeiro, um terapeuta ocupacional, um assistente social. Esse número foi fixado por saturação de informações cedidas, diante do objeto estudado, quando as repetições de sentidos e/ou ausência de questionamentos se tornaram reais (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.). Destes, sete eram concursados, cinco possuíam vínculo por contrato temporário e três eram contratados por cooperativa. A renda média, considerando o valor de R$ 1.212,00 do salário mínimo vigente no período do estudo, ficou entre dois a três salários mínimos para dez participantes, chegando a cinco salários mínimos para cinco profissionais.

Foi aplicada, enquanto técnica de coleta de informações, a Entrevista Projetiva Semiestruturada Individual, com o auxílio do WhatsApp, Google Meet e Google Forms, no período de março a julho de 2022. Essa tática centra o diálogo na técnica baseada no uso de recursos visuais, quando o entrevistador pode fazer uso de imagens que despertem no entrevistado uma reflexão crítica sobre o objeto estudado (Minayo, 2014MINAYO, M. C. S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec, 2014.). Isso permite que a temática e o objetivo do estudo sejam facilmente assimilados, favorecendo um novo despertar problematizador.

A utilização dos aplicativos de coleta de informações e comunicação foi necessária, pois nesse período era exigido o isolamento social, enquanto medida de proteção e controle da transmissão e contaminação pela Covid-19. Logo, toda a comunicação entre pesquisador e participantes foi desenvolvida com o uso do WhatsApp, o roteiro da Entrevista Projetiva Semiestruturada Individual foi elaborado no Google Forms e sua reprodução e gravação pelo uso do Google Meet. É importante ressaltar que o estudo foi totalmente realizado no período da pandemia de Covid-19, sendo condição única e especial para o agravamento dos aspectos relacionados com a precarização do trabalho nos CAPS.

O processamento das informações se deu após a transcrição na íntegra das falas, em corpora textuais sistematizados manualmente conforme questões temáticas e processados com o auxílio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires-IRAMUTEQ (Ratinaud; Marchand, 2012RATINAUD, P.; MARCHAND, P. Application de la méthode ALCESTE aux de “gros” corpus et stabilité des “mondes lexicaux”: analyse du “CableGate” avec IraMuTeQ. Journé es internationales d’Analyse statistique des Données Textuelles, 2012. p. 835-844.). Este permitiu a realização da análise estatística dos corpora textuais, qualificando o processo de categorização qualitativa pela evocação dos vocábulos mais falados (Camargo; Justo, 2013CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para Uso do Software de Análise Textual IRAMUTEQ, 2013.). Sua escolha se deu por ser de acesso gratuito, o que permitiu o processamento de informações sem interferências do pesquisador, garantindo um grau de isenção do analisador sobre a formação dos núcleos temáticos centrais, importantes para a compreensão da temática investigada.

O IRAMUTEQ é um programa livre que se ancora no software R, permitindo o processamento e análise estatística de textos produzidos, possibilitando os seguintes tipos de análise: pesquisa de especificidades de grupos, classificação hierárquica descendente, análise de similitude e nuvem de palavras (Ratinaud; Marchand, 2012RATINAUD, P.; MARCHAND, P. Application de la méthode ALCESTE aux de “gros” corpus et stabilité des “mondes lexicaux”: analyse du “CableGate” avec IraMuTeQ. Journé es internationales d’Analyse statistique des Données Textuelles, 2012. p. 835-844.).

Neste estudo será apresentada apenas a Classificação Hierárquica Descendente-CHD utilizando o método estatístico inferencial do Qui-quadrado do IRAMUTEQ 0.7 alpha 2 (Salviati, 2017), do corpus gerado a partir dos 15 textos, oriundos das entrevistas projetivas dos profissionais dos CAPS, por meio das seis classes geradas, que deram origem a três categorias: condições trabalhistas na APT; sobrecarga laboral na APT; e repercussões da precarização do trabalho para a APT. A escolha da CHD se deu por essa técnica possibilitar a formação de categorias temáticas, com base na frequência das palavras em formas reduzidas, contribuindo de modo substancial para uma análise direcionada das temáticas mais relevantes.

As informações foram analisadas à luz da Teoria da Complexidade de Edgard Morin (2000MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000., 2002, 2015), considerando os princípios: sistêmico, hologramático, círculo retroativo, círculo recursivo, dialógico e da autonomia/independência e da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento.

Os aspectos éticos legais foram seguidos conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS, 2012), e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará, sob parecer nº 4.784.241. O consentimento informado dos participantes e a confidencialidade foram mantidos por meio da assinatura digital dos Termos de Consentimento Livre e Esclarecido. Foram, portanto, resguardados legalmente o anonimato, o sigilo e a possibilidade de desistência em participar do estudo. As entrevistas foram identificadas pela criação de códigos, correspondentes à letra P = profissional, com a sigla CAPS e a ordem de entrevista, como no exemplo a seguir: PCAPS1.

Resultados e Discussão

Caracterização das classes e categorias temáticas

O corpus geral foi constituído por 15 textos, oriundos das entrevistas, processados e separados em 558 segmentos de textos (ST), com aproveitamento de 474 ST (84,9%), o que estabelece confiabilidade para os estudos que utilizam o Qui-quadrado IRAMUTEQ 0.7 alpha 2, como ferramenta de processamento de informações (Salviati, 2017). Esse processamento gerou seis classes, sendo a classe 6 (21,7%) a de maior representatividade. Na Figura 1, pode-se visualizar o dendograma que demonstra as classes/categorias advindas das análises lexicais.

Figura 1
Dendograma com as análises das entrevistas pelo método de Classificação Hierárquica Descendente do IRAMUTEQ

As seis classes geradas pelo IRAMUTEQ deram origem a três categorias, idealizadas pelo pesquisador, as quais serão discutidas, a seguir:

  • Condições trabalhistas na APT, compostas pelas classes 1, 2 e 5, põem em discussão os elementos da precarização do trabalho em campo concreto;

  • Sobrecarga laboral na APT, formada pela classe 6, traz para a discussão subsídios que tornam a sobrecarga do trabalho uma constante dentro dos processos de trabalho desenvolvidos nos CAPS;

  • Repercussões da precarização do trabalho para a APT, formada pelas classes 3 e 4, delineiam as implicações advindas da precarização do trabalho para o desenvolvimento da Supervisão Clínico-Institucional e da Gestão do Cuidado em Saúde Mental na APT frente ao trabalho interdisciplinar em rede.

Condições trabalhistas na Atenção Psicossocial Territorial

Esta categoria temática possui sustentação em 47,3% dos segmentos textuais presentes no corpus deste estudo. Nela os participantes relatam as condições trabalhistas a que estão expostos diante dos contratos diretos com a administração pública e as cooperativas, frente a desvalorização, alienação e incertezas contratuais. Houve predomínio das seguintes palavras: direito, férias, incerteza, décimo terceiro, final de contrato, contratar, tomar, lado, você, colocar, resolver, sugar, trabalhador e gestor.

Diante da problematização dos direitos trabalhistas, foram feitas reflexões de acordo com o princípio hologramático e sistêmico. Para discutir a alienação do trabalhador,2 2 A alienação, para Marx, é compreendida como a relação contraditória do trabalhador com o produto de seu trabalho e a relação do trabalhador ao ato de produção. É um processo de objetivação, tornando o homem estranho a si mesmo, aos outros homens e ao ambiente em que vive, onde ocorre a apropriação como alienação, e a alienação como apropriação, em um processo de manipulação, de uma falsa realidade e da aparência, em contraposição ao mundo da essência. Que irá se materializar diante da alienação concreta, ligadas aos modos de produção das condições de existência e/ou da alienação genérica, universal, ligada à capacidade humana de subjetivar o mundo objetivo, por meio de símbolos. Gerando a possibilidade de os símbolos entrarem em contradição com as coisas simbolizadas (Marx, 2002). pensou-se o uso do círculo retroativo. Frente aos ditames contratuais, foi feita a aplicação do pensamento dialógico e da autonomia/independência. Desta forma, a construção do pensamento complexo é desenvolvida enquanto aparato teórico-metodológico para interpretação das informações (Morin, 2000MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000., 2002, 2015).

Iniciamos a análise crítica pelo primeiro embate de forças entre trabalhadores e empregadores, diante dos impactos da Reforma Trabalhista sobre os direitos contratuais e/ou a ausência destes para os trabalhadores dos CAPS. Segundo o princípio hologramático (Morin, 2002MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.), as falas são fonte de informações que os participantes do estudo puderam demonstrar em todo o contexto, exatamente por compreenderem como o fenômeno pode ser vivido e interpretado pelos sujeitos em suas singularidades, podendo ser afetados de formas semelhante, como observado a seguir.

Os profissionais que são contratados não têm direito a férias e ao décimo terceiro. O mês de dezembro é o período do recesso, eles não recebem. Mas eles precisam trabalhar. Eles precisam do trabalho, quem é contatado e cooperado tem que se submeter a isso, sem direitos como férias, décimo terceiro, insalubridade. (PCAPS1)

Não recebemos nenhum direito trabalhista, como na CLT. Não temos direito a férias. Nossas férias é a demissão no final do ano, para sermos recontratados em março. Existem as negociatas: para te manter [contratada] eles dizem que vai ter que diminuir um tanto do salário. (PCAPS5)

Eles acabam amarrando a gente. Eu percebi que não é interessante ter concurso público, porque eles querem os empregos como contrato. Olha, nessa Região [de Saúde] toda, quantos contratados tem, eles forçam as pessoas a levantarem a bandeira nas políticas, mas você fica sem autonomia. (PCAPS11)

A densidade dos relatos traz para reflexão evidências sobre a influência das forças impostas pelos empregadores, basicamente as prefeituras municipais, sobre o trabalho dos profissionais dos CAPS, como capital de política eleitoral ou partidária, porém subtraindo direitos como férias, décimo terceiro e insalubridade. Tais contratos desvalorizam os profissionais, como relatado por PCAPS13.

O cooperado contratado recebe até mil reais a menos do que o concursado. Quem está ganhando nesse caso é só o gestor [...] (PCAPS13)

Na perspectiva sistêmica, tais relações estão interligadas de forma contínua pela coexistência das forças de atração e repulsa necessárias para a existência do fenômeno (Morin, 2015MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.). Neste caso, a relação opressiva do empregador sobre o trabalhador, diante da necessidade de sobrevivência em um contexto de precarização das condições de trabalho, fica bem representada no dito popular lembrado por PCAPS3 como: “Manda quem pode e obedece quem tem juízo”. É uma realidade que desdobra outra: a impossibilidade de exercício pleno dos objetivos do trabalho de atenção psicossocial. Para se manter nesse emprego, tem que obedecer e aceitar a perda de direitos e contratos de 10 meses. Isso fere a dignidade humana do trabalhador, o existir enquanto ser autônomo e agente transformador, inserido em um serviço de saúde mental que tem como premissa epistemológica a APT.

É, portanto, contraditória a existência de processos que precarizam e desvalorizam o trabalho e o trabalhador, quando o objetivo do trabalho visa a dignidade da vida e do trabalho do paciente que procura o CAPS. A contradição se aprofunda quando se reflete sobre a própria essência do fazer da APT, por ser paradigma da busca de compreensão da saúde mental dos sujeitos, pela superação do organopositivismo, da medicalização e do assistencialismo. Tais práticas são vividas nos modelos Asilar e Psiquiátrico Clássico, que não ofertavam saúde mental com universalidade, equidade e integralidade (Sampaio; Guimarães; Abreu, 2019SAMPAIO, J. J. C.; GUIMÃES, J. M. X.; ABREU, L. M. Supervisão clínico-institucional e a organização da Atenção Psicossocial no Ceará. Fortaleza: EdUECE, 2019.).

Tanto a Saúde Mental, como a Humanização da Atenção e da Gestão em Saúde estão estruturadas e consolidadas legalmente enquanto políticas públicas no SUS. É a possibilidade de inverter essa lógica para uma atenção que busca ser humanizada, a qual deve envolver a força de trabalho para além dos usuários da rede, pelo reconhecimento do modo de produção subjetivo, criativo, coletivo e interdisciplinar proposto pela APT, o qual deve se estruturar institucionalmente pela valorização, garantia de autonomia e protagonismo desses atores. No entanto, o que se pratica é o oposto.

Nessa perspectiva, diferentemente de outros sistemas neoliberais, como visto por Casulo et al., (2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.) e Lima, Sampaio e Souza (2023LIMA, I. C. S.; SAMPAIO, J. J. C.; SOUZA, K. C. A. A complexidade do trabalho precário na Atenção Psicossocial Territorial: reflexão crítica sobre o contexto brasileiro. Saúde Debate, v. 47, n. 136, p. 215-226, 2023.), há o falso pretexto da meritocracia e da valorização pela produção do trabalhador, em um esforço contínuo e incansável para ser visto, reconhecido e valorizado, pois se trata de um mérito. O caso em questão é mais grave, pois ele desconsidera, inclusive, a capacidade de produção dos trabalhadores para o SUS, em que o valor do sujeito, nesse contexto, deixa de ser medido até pelo que ele é capaz de realizar.

Neste jogo de opressão, o que tem hegemonia é a perda da identidade de classe e de categoria profissional, subvertida pelo fardo gerado pela ordem neoliberal do não devir a ser, como PCAPS 5 afirma: “Temos que ficar, porque em todo canto está assim”. Isso torna a verdade do fenômeno uma constante universal. Tensiona-se para uma anomia geral que enfraquece o agrupamento da classe, os processos de discussão e reinvindicação dos direitos trabalhistas e a consequente valorização dos trabalhadores, diante do aprisionamento que a flexibilização dos contratos de trabalho traz para a APT.

Esses são os elementos da precarização do trabalho, formados pela expansão da flexibilização dos contratos por meio da terceirização dos serviços, seja pelo contrato direto com o gestor municipal, cooperativas ou Organizações Sociais (OS), que buscam reduzir os custos do trabalho pelo rebaixamento de salários, pela intensificação do trabalho e pela fragmentação temporal. Os trabalhadores se tornam totalmente reféns, devido às inseguranças derivadas do vínculo frágil de emprego (Campos, 2018CAMPOS, A. G. Efeitos da terceirização sobre a saúde e segurança no trabalho: estimativas com base nos afastamentos. In: CAMOS, A. C. Terceirização do trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018. p. 187-203. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8708/2/EfeitosTerc.pdf
https://repositorio.ipea.gov.br/bitstrea...
; Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.; Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.).

O que se identifica no caso investigado é a suposta existência de uma unanimidade sobre o perfil das gestões municipais da saúde, diante da incorporação dos aspectos legalmente instituídos pela terceirização do trabalho, expressos na Lei nº 13.467/2017. Apesar de ser gestão pública, com financiamento federal, a mesma é entregue às lógicas de contratação que os municípios praticarem, com formas de contratação que violam a dignidade humana do trabalhador e, em última instância, a qualidade de seu trabalho, o benefício à clientela - portanto, a qualidade do SUS. O sistema é mantido em funcionamento permanente, criando o cenário geral de um real concreto, no qual os trabalhadores não têm possibilidades de intervir.

As tendências impostas pelo neoliberalismo no Brasil vêm garantindo aos empregadores, públicos ou privados, a autonomia sobre as formas e regras contratuais, pelo enfraquecimento do que se tinha antes quanto aos acordos entre patronato e classes trabalhadora, pela representação sindical. Em sua nova versão, tais acordos podem ser feitos diretamente entre empregador e empregado, não havendo, portanto, equidade de forças, como percebido por PCAPS 13: “Reforma Trabalhista foi para esse dinheiro ser negociado direto com o funcionário, aí vem a lei e a prática da lei [do mais forte]”.

O que se espera dos trabalhadores é um comportamento adaptativo, resiliente inesgotável, diante das demandas exigidas pelo mercado de trabalho daquele setor produtivo e pelas necessidades pessoais dos empregadores/gestores, frente à ocupação almejada, para que se possa pertencer a uma dada classe com um ideário e símbolos ideológicos (Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.). É uma ação contraditória, diante de um serviço que nasce de movimentos sociais e trabalhistas, sob política progressista, com um pensar crítico-reflexivo, que deveria romper com as más condições do trabalho em saúde mental, diante da exclusão de si e dos usuários.

Assim, as políticas neoliberais se voltam contra a forma estável dos vínculos empregatícios, como a Consolidação das Leis Trabalhistas-CLT e os concursos públicos. Essas formas de seguridade trabalhista são representadas por uma liderança de classe, a qual possui o direito de voz em prol da valorização da classe, diante de possível confronto com os empregadores (Alves, 2018ALVES, G. A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI; Reforma trabalhista: a nova ofensiva neoliberal no Brasil. In: CASULO, A. C. et al. (Orgs.). Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018. p. 14-62.; Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.; Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.).

São estas forças que impelem a maior extensão e o aprofundamento da alienação, como visto por PCAPS6 - “Existe uma naturalização do retrocesso” -, o qual pode ser explicado pelo princípio do círculo recursivo. Segundo Morin (2002MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.), esse é um sistema no qual os efeitos de um fenômeno são causadores e produtores do círculo, pela repercussão mútua das partes predominantes no todo dominável. É a não problematização do contexto vivido que tenderá ao permanente movimento do círculo de alienação, como percebido a seguir.

Não conseguia ver isso, agora você me pôs a pensar nisso. Não me via afetada pela Reforma Trabalhista. Estou sendo afetada agora por estas perguntas. Agora é como se fosse um start, é como se refletisse no dia a dia do trabalho. É isso mesmo, quem quiser o emprego tem que sair dos direitos, quem quiser sobreviver [...] seja para conseguir se alimentar [...] muitas vezes você se submete a fazer funções, tais coisas, por necessidade. Se você fica sem emprego, nem alimentação você vai conseguir. (PCAPS7)

O que se observa na fala de PCAPS7 é que a Reforma Trabalhista criou, a partir do slogan da “modernização dos direitos trabalhistas”, um processo de assimilação do ideal de “modernização” por parte dos trabalhadores como algo bom, preciso e necessário para a existência do trabalho. Subjaz uma produção da autodestruição das condições do trabalho, criando uma nova forma de produzir e reproduzir, de modo heterogêneo e não linear, a capacidade de acumular riqueza na mão dos empregadores, pela redução da força das organizações de massa (Lima; Sampaio; Souza, 2023LIMA, I. C. S.; SAMPAIO, J. J. C.; SOUZA, K. C. A. A complexidade do trabalho precário na Atenção Psicossocial Territorial: reflexão crítica sobre o contexto brasileiro. Saúde Debate, v. 47, n. 136, p. 215-226, 2023.).

O processo ganha ímpeto diante das necessidades do existir, não só na perspectiva do ser trabalhador, mas como sujeito, mesmo que sujeitado, que deveria implicar o existir enquanto vida, pelas necessidades humanas básicas de alimentar-se, vestir, morar, proteger a saúde e criar relações significativas. Tais condições derivadas da terceirização dos contratos de trabalho, respaldada pela Reforma Trabalhista, tendem a implicar diretamente na anomia paralisante do MBRP no atual momento, diante das condições precárias do trabalho e da incapacidade de mobilização, pela naturalização da autonomia na precariedade (Lee, 2016LEE, C.K. Precarization or Empowerment: reflections on recent labor unrest in China. Journal of Asian Studies, v. 75, n. 2, p. 317-33, 2016. https://doi.org/10.1017/S0021911815002132
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).

A sensação de instrumentalidade da prática é resistida pelos profissionais concursados dos CAPS. Chamaremos de forças reativas, pela segurança que este tipo de vínculo garante ao trabalhador, pois é servidor público, e não prestador público de serviço. Os servidores públicos apresentam melhores condições políticas, dada a segurança jurídica, para enfrentar a trama engendrada pelos legisladores e administradores do SUS. Esse processo de embate vem do que Morin (2000MORIN, E. A cabeça bem-feita: repensar a reforma e reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.) traz enquanto pensamento dialógico, o qual busca compreender os pontos de tensão, reconhecendo as forças que possibilitam que as reais proposições sejam expostas e discutidas, rompendo-se com o antagonismo gerado pelo aprofundamento da alienação, que tornava invisível o foco das contradições.

Nós éramos celetistas, agora não somos mais regidos pela CLT, pois concursados. Agora como servidores públicos, respondemos ao Estatuto, embora aprovado sem diálogo com os servidores, em uma sessão da câmara sem a participação de ninguém. Estão muito explicitas as sansões e penalidades no Estatuto. [...] a gestão e os trabalhadores precisam discutir os direitos, como por exemplo a Previdência [...] (Mas) tem questões obscuras. Uma palavra dita, que seja levada para gestão de uma forma equivocada, pode colocar em risco a autonomia do profissional. Isso põe em risco, pois somos trabalhadores e precisamos pagar nossas contas, eu penso que, em algum momento, o trabalhador vai ficar calado, vai evitar falar, eu penso que isso é ruim. (PCAPS2)

Eu senti na pele o que é não ter garantia dos direitos, o fato de não ter um Plano de Cargos e Carreiras não me garante sair do trabalho para estudar. Com isso tive que abdicar das férias e aumentar o número de atendimentos individuais. Ainda sofri pequenos assédios morais, que foram bem desconfortáveis, teve descontos salariais, até o acordo ser fechado, mesmo sendo concursada. Imagina com quem não é efetivo, o que pode acontecer mais. (PCAPS9)

Mesmo cercado por diversas forças opositoras, o concurso público garante um dado grau de segurança e autonomia dos corpos, para que estes consigam se auto-organizar diante das condições impostas. A autonomia/independência princípios possibilitam a capacidade adaptativa que tais profissionais possuem para enfrentar o contexto (Morin, 2002MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.). Porém, o que se observa, ao considerar as falas de PCAPS 2 e PCAPS9, é que este princípio só se desenvolve em sua plenitude diante de uma cultura institucional de segurança legal.

Apesar de a precarização do trabalho estar mais próxima dos vínculos frágeis e flexíveis, compreende-se que, no caso pesquisado, tais condições reverberam nos profissionais com vínculos estáveis de trabalho, como nos concursados. Isso vai ao encontro do que Santos et al. (2020SANTOS, T. A. et al. Associação entre variáveis relacionadas à precarização e afastamento do trabalho no campo da enfermagem. Ciência & Saúde Coletiva, 25(1), 123-133, 2020. https://doi.org/10.1590/1413-81232020251.28242019
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) afirmam, que os trabalhadores de modo geral compartilham as mesmas angústias, pois eles tendem a vivenciar além das condições da precarização da infraestrutura dos serviços, os ditames sobre seus corpos diante da violação de seus direitos, mesmo enquanto trabalhadores concursados.

Os trabalhadores passam a compreender o trabalho apenas como tática de sobrevivência, independentemente do tipo de vínculo. A diferença está no grau de autonomia e independência que os profissionais concursados possuem diante de seus corpos e do trabalho produzido por eles. Esse vínculo ainda garante segurança para discutir, problematizar e lutar por valorização e melhores condições laborais para que a vida possa existir além do trabalho.

Todos os trabalhadores da APT, sejam contratados, cooperados e/ou concursados, vivenciam a precarização do trabalho. Segundo Standing (2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.), quando os sujeitos se encontram sob pressões e regras trabalhistas que ferem a constituição da identidade, não favorecem a qualificação e não permitem conceber o trabalho enquanto bem estável com a perspectiva de crescimento futuro do devir, você está fazendo parte de uma nova classe em formação, consequente à universalização do trabalho precário, independentemente do vínculo legal e do tamanho da renda auferida. Em comum, há a insegurança, a impotência e o ímpeto da fragmentação do processo de compreender o mundo.

Sobrecarga laboral na Atenção Psicossocial Territorial

Formado pela categoria temática 6, este tema possui 21,7% dos seguimentos textuais e põe em discussão os elementos que fragilizam os processos de trabalho individual e coletivos nos CAPS, resultante da sobrecarga de trabalho. Apresentam-se, no campo da representatividade temática, as seguintes palavras: psiquiatra, esperar, atendimento, fila, demanda, dia, prejudica, quantidade e demorar.

Os fatos/fenômenos por trás das palavras podem ser discutidos a partir do princípio do círculo recursivo, o qual propõe o desenvolvimento do pensamento complexo por meio do reconhecimento dos efeitos de um evento, enquanto causadores e produtores ininterruptos de um círculo, no qual os elementos são essenciais para a automanutenção (Morin, 2015MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2015.), conforme as falas a seguir:

Os profissionais são sobrecarregados ao extremo [...] pela quantidade de prontuários e a escassez de serviços opcionais para tratar os pacientes. (PCAPS1)

Estamos quase com dez mil prontuários, na maioria das vezes eu não consigo estar pelo menos uma vez por semana na casa do mesmo paciente. A psicóloga não consegue fazer o atendimento do mesmo caso semanal. Os casos graves ficam quinzenais e os menos graves mensais. (PCAPS2)

Infelizmente, ocorre uma espera grande, porque a demanda é grande, e o psiquiatra só atua um dia e meio. A gente vê que há médico que só vem um dia na semana (...) (Isso) não vai suprir a necessidade, pois não é só atendimento de rotina, tem as crises, tem casos da justiça, além das perícias. (PCAPS4)

Na questão da Terapia Ocupacional e da Psicologia temos fila [...] o que fazemos para não gerar uma espera grande é manter o paciente sempre em atendimento por outros profissionais [...] fazemos com que as crianças rodem no atendimento entre todos os membros da equipe. Tem os ofícios do Fórum, eu tento fazer o máximo [...] isso sobrecarga [...] a juíza disse que o CAPS tem que resolver. (CAPS10)

O pouco treinamento existente para os demais profissionais da Rede de Atenção à Saúde gera sobrecarga. Eles direcionam muito para o psicólogo do CAPS, eu vejo que muitas demandas davam para serem trabalhadas pela Psicologia Escolar ou pela Atenção Primária, como no NASF e na Saúde da Família. (CAPS13)

As falas acima denotam uma situação de sobrecarga no trabalho que é constante na rotina dos CAPS. Os modos de organização da atenção oferecida nesses serviços estão sendo subvertidos por causas externas, ainda não claras para os profissionais, que associam os efeitos da sobrecarga de trabalho a circunstâncias: quantidade de prontuários (demanda), escassez de serviços opcionais para tratar os pacientes (estrutura da RAPS), carga horária insuficiente do profissional psiquiatra (adesão do médico ao serviço), centralidade do fazer do CAPS no CAPS (isolamento institucional), treinamento insuficiente dos profissionais da APS e do sistema de ensino para acolher os problemas de saúde mental (deficiência da intersetorialidade e da educação permanente em saúde).

O trabalhador do CAPS confunde-se com a determinação complexa pelas causas aparentes de impacto imediato, o qual tende a criar uma verdade paralela, que oculta o real concreto, pelo irreal dito, por meio das ambiguidades da relação efeito-causa. O trabalhador não concebe a causa real (desestruturação do aparelho legal do Estado), que se expressa na sobrecarga e se faz pela desregulamentação do trabalho, dita flexibilização, pela desestruturação do aparelho legal do Estado, pelo subfinanciamento do SUS, em particular da RAPS. Em 2017, foi aprovada pela Comissão Intergestora Tripartite (CIT) a Resolução nº 32/2017, que inicia um abrupto processo de desfinanciamento dos CAPS e resgata o financiamento do modelo manicomial, dando início a um percurso de desmontagem de todo o processo construído pelo MBRP (Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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).

O retrocesso foi consolidado em 2022 pela extinção da Coordenadoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde, por meio do Decreto nº 11.098 (2022), a partir do qual a Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas e a RAPS fica subordinada à Secretaria de Atenção Primária à Saúde. Isso caracteriza claramente uma Contrarreforma Psiquiátrica, pois administrativamente a APS constitui ponto da RAPS, não possuindo capacidade para gerir seu sistema. Em 2023, o mesmo foi revogado pelo Decreto nº 11.391 (Brasil, 2023), porém seus efeitos ainda não foram superados.

Para além destes pontos, tem-se a desregulamentação dos direitos trabalhistas (Alves, 2018ALVES, G. A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI; Reforma trabalhista: a nova ofensiva neoliberal no Brasil. In: CASULO, A. C. et al. (Orgs.). Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018. p. 14-62.; Casulo et al., 2018CASULO, A. C. et al. Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018.; Standing, 2019STANDING, G. O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo: Autêntica Editora, 2019.), com impactos expressivos na sobrecarga constante dos profissionais, devido ao modelo em implementação regido pelo trabalho precarizado na APT. Assim, a causa prima é a própria caracterização atual do trabalho no SUS, a qual vai se manifestar pelos múltiplos vínculos de trabalho em uma mesma instituição, pela insuficiência de mão de obra diante da demanda existente do território, pela radicalização do gasto mínimo diante da produção máxima (Amarante; Nunes, 2018AMARANTE, P.; NUNES, M. O. A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios. Ciência & Saúde Coletiva, v. 23, n. 6, p. 2067-2074, 2018. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.07082018
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). Esses efeitos resultam em intensa jornada laboral com sobrecarga, fragmentação e desqualificação do manejo clínico adequado dos sujeitos e promoção de saúde adequada aos coletivos (Barros; Bernardo, 2017BARROS, A. C. F.; BERNARDO, M. H. A lógica neoliberal na saúde pública e suas repercussões para a saúde mental de trabalhadores de CAPS. Revista de Psicologia da UNESP, v. 16, n. 1, p. 60-74, 2017. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/revpsico/v16n1/v16n1a05.pdf
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).

É necessário e urgente enfrentar a causa prima que vem repercutindo na sobrecarga laboral dos trabalhadores da APT, pela retomada do processo social-democrata de instalação da APT, como preconizada pelo MBRP e pela responsabilização compartilhada dos gestores, trabalhadores, justiça, e demais pontos interinstitucionais que se agregam e devem ser corresponsáveis dos serviços produzidos pela APT.

A garantia da estrutura fundamental para a existência da APT ampara a consolidação e a melhoria das condições do trabalho em Saúde Mental e na valorização dos trabalhadores. Logo, a discussão para a existência do trabalho na APT, requer amparo dos Ministérios da Justiça e do Trabalho, os quais juntos com o Legislativo devem iniciar agenda progressiva no campo dos direitos e da seguridade social que garanta os direitos trabalhistas, saúde e segurança ocupacional, aos trabalhadores da APT e às comunidades sob seus cuidados.

Um debate público se faz urgente sobre a retomada da concretização e do financiamento da APT, conforme a Lei nº 10.216/2001, a Portaria nº 336/2002, que institui e amplia a implantação nacional dos CAPS, a Portaria nº 3.088/2011, que estabelece a organização e gestão da RAPS, e o Decreto nº 7.508/2011, que regulamenta a Lei Orgânica da Saúde (LOS) nº 8.080/1990, que versa sobre planejamento, organização, gestão, avaliação e atenção no SUS.

Nesse ínterim, é essencial rever as formas trabalhistas legais, como os múltiplos vínculos laborais, que estão existindo e coexistindo na APT, no modo como a RAPS está estruturada atualmente, pois apenas a expansão dos CAPS não tem potência para transformar do trabalho em saúde mental (Quinderé et al., 2010QUINDERÉ, P. H. D. et al. A convivência entre os modelos asilar e psicossocial: saúde mental em Fortaleza-CE. Saúde em Debate, v. 34, n. 84, p. 137-47, 2010. https://www.redalyc.org/pdf/4063/406341770016.pdf
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). Exatamente por não se constituírem como elementos isolados dentro de um processo transformador, plural, múltiplo, em territórios distintos e campos políticos, culturais, econômicos e sociais diversos (Nunes; Guimarães; Sampaio, 2016NUNES, J. M. S.; GUIMARÃES, J. M. X.; SAMPAIO, J. J. C. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1213-1232, 2016. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000400008
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; Lima; Sampaio; Souza, 2023LIMA, I. C. S.; SAMPAIO, J. J. C.; SOUZA, K. C. A. A complexidade do trabalho precário na Atenção Psicossocial Territorial: reflexão crítica sobre o contexto brasileiro. Saúde Debate, v. 47, n. 136, p. 215-226, 2023.).

Repercussões da precarização do trabalho para a Atenção Psicossocial Territorial

Esta categoria temática corresponde a 31% dos seguimentos textuais, que representam as classes 3 e 4. Apresenta como principais termos: Reforma Psiquiátrica, família, saúde, paciente, saúde mental, rede, Saúde da Família, entre outros, conforme detalhado na Figura 1. Ela propõe contextualizar o efeito-causa da precarização do trabalho na APT, sobre o desenvolvimento da Supervisão Clínico-Institucional e da Gestão do Cuidado em Saúde Mental do trabalho em rede, por meio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, enquanto princípio complexo.

Como todo espaço opressor, tem como tendência retirar o poder do outro. Quando retiram nosso poder, adoecemos. Então, a Reforma Trabalhista vem prejudicando os vínculos trabalhistas para um lado, o lado do trabalhador. Colocando-nos mais susceptíveis às situações de riscos físicos e psicológicos. Com a não perspectiva de crescimento, com sentimento de desesperança e isso gera diversos gatilhos e adoecimento psíquico. (PCAPS8)

A Reforma Trabalhista vem afetando da seguinte maneira [...] olha nessa região toda, quantos contratados tem, eles forçam as pessoas a levantarem a bandeira nas políticas, você fica sem autonomia. Você pega um gestor que ele só ver a visão assistencialista, você pega uma profissional contratada, ela pensa numa saúde mental integral, criação de grupos, assembleias no CAPS. O gestor diz não, você vai só atender. O profissional vai só atender, porque ela fica com medo de perder o emprego, ela precisa dar comida para os filhos. Isso acaba precarizando o trabalhador, afeta o processo de trabalho, afeta à saúde mental do trabalhador, isso afeta sua autonomia. (PCAPS11)

Os relatos indicam uma Saúde do Trabalhador precarizada enquanto política pública de Estado, cujos princípios deveriam prover a proteção dos profissionais, mas estão sendo suplantados pelas condições dos novos modos de existir como sujeitados, não mais sujeitos transformadores.

O percurso reformista do trabalho recria uma falsa nova forma do trabalho, ancorada em preceitos antigos, que impacta diretamente e de modo prejudicial na concretização da APT. O contexto não permite o trabalho interdisciplinar, integrador, includente, de base territorial, pelos profissionais dos CAPS. Na nova roupagem de um serviço que não aprisiona os usuários de maneira física, o foco da assistência retoma os tratamentos com ênfase na individualidade, na produção da consulta e na valorização das soluções fármaco-biológicas, características do modelo psiquiátrico clássico.

Tais práticas, apesar de não aprisionarem os usuários fisicamente dentro dos CAPS, tendem a aprisioná-los de modo químico, pela ênfase dada na produção da assistência curativista-farmacológica, reverberando na prisão simbólica da exclusão social, pelos percursos e seus rótulos - neste caso semelhante ao modelo asilar. O usuário sai da cela fechada, mas fica num labirinto que, embora a céu aberto, não permite saída.

Dado o interespelhamento, a relação entre subjetividades e entre cidadanias, os trabalhadores também se tornam reféns dos labirintos, como CAPS 11 destaca: “O profissional fica com medo de perder o emprego. Ele precisa dar comida para os filhos”. Situação de insegurança trabalhista que faz com que estes se vejam permissivos a concretizar modelos e condutas assistencialistas que não constituem atenção, por não superarem a assistência direta, nem cuidados psicossociais, pois não conseguem enfrentar as práticas organopositivista e medicamentosas.

Tais condições implicam diretamente a APT, que deveria ser prestada pelos profissionais dos CAPS, exatamente pela precarização do trabalho afetar os processos da Supervisão Clínico-Institucional e da Gestão do Cuidado em Saúde Mental, em seus diversos núcleos produtivos, os quais deveriam se auto-organizar diante dos processos emancipatórios que a dimensão legal do direito trabalhista deveria prover (Lei nº 8.080/1990), como se vislumbra nos relatos de PCAPS9, PCAPS 10 e PCAPS 12.

Isso implica na assistência, você tinha uma profissional totalmente implicada, que queria construir coisas coletivas, pronta para se colocar à disposição, para trabalhar junto, para mobilizar a rede, e hoje, não tenho mais essa disponibilidade. Eu vi que nenhum trabalho que eu fizesse daria conta, além de [não] ser digno de respeito. (PCAPS9)

Fragiliza a atenção à saúde pelo medo que eles têm de ser demitidos. O concursado pode dar a cara a tapa. A saúde mental não possui o lugar que ela merece [...] eu já penso em sair daqui para algo mais seguro, porque aqui eles não querem mudanças. (PCAPS10)

Acho que prejudica a assistência, por conta da evolução do paciente, porque se você acompanha a cada quinze dias, não é a mesma coisa que semanalmente. Se o psiquiatra passa uma medicação, para voltar daqui a quinze dias, e ele não tem a vaga para retornar, só com mais de vinte ou trinta dias, acaba que o paciente desiste. Para as crianças isso é um problema, elas não vão evoluir como é para evoluir. O vínculo com a criança e os pais é sempre rompido. (CAPS12)

É possível compreender que a produção coletiva, colaborativa e interdisciplinar em saúde mental é afetada onde existem grandes dificuldades para organizar os processos de trabalho, até chegar à concretização sensível junto aos usuários. Este modo de gestão, que não se assemelha com a Supervisão Clínico-Institucional e a Gestão do Cuidado em Saúde Mental, enquanto núcleos estruturantes da APT, rompe com a organização e a criação dos vínculos entre usuários-familiares-cuidadores-comunidades-profissionais.

Em um percurso de fragmentação não linear, pois cada serviço do SUS será afetado de diferentes formas e intensidades, a desregulamentação do trabalho que opera a Reforma Trabalhista, ainda em vigor, produz cisões, que desorganizam as relações e as comunicações necessárias para a plena funcionalidade da RAPS, enquanto trabalho coletivo e colaborativo, como visto por PCAPS1.

Há falta da responsabilidade de cada instituição, quando trabalhamos em rede, cada um tem seu papel, a assistência tem seu papel, a educação tem seu papel. Percebo que quando a gente precisa de ações entre redes para estar trabalhando saúde mental é algo muito difícil, existe uma certa luta, desinteresse. É como se a saúde mental fosse feita apenas no CAPS. (PCAPS1)

O processo se torna desintegrador para as práticas interdisciplinares e intrassetoriais necessárias para a concretização da RAPS, enquanto estrutura criada pelo modelo de APT, que busca integrar os diversos dispositivos para além da rede SUS, na garantia da atenção universal, equânime e integral, conforme as Leis nºs 8.080/1990 e 10.216/2001.

Ademais, o que se observa sobre a forma como a APT vem sendo implementada, por meio dos CAPS, no caso em análise, é a preponderância dos elementos que constituem a precarização do trabalho de modo concreto. Cria-se uma falsa ideia sobre a responsabilidade e o fazer único e indivisível, enquanto especialidade médica, que centra a doença mental na exclusão de um tipo de serviço, pelo isolamento deste da rede à qual pertence, por considerar que há um lugar para a doença mental e este lugar isolado é o CAPS (Nunes; Guimarães; Sampaio, 2016NUNES, J. M. S.; GUIMARÃES, J. M. X.; SAMPAIO, J. J. C. A produção do cuidado em saúde mental: avanços e desafios à implantação do modelo de atenção psicossocial territorial. Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1213-1232, 2016. https://doi.org/10.1590/S0103-73312016000400008
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; Lima; Sampaio; Souza, 2023LIMA, I. C. S.; SAMPAIO, J. J. C.; SOUZA, K. C. A. A complexidade do trabalho precário na Atenção Psicossocial Territorial: reflexão crítica sobre o contexto brasileiro. Saúde Debate, v. 47, n. 136, p. 215-226, 2023.).

Quando reintroduzimos estas reflexões críticas no todo, considerando sua diversidade e unicidade, compreende-se que a lógica que alicerça a Supervisão Clínico-Institucional e a Gestão do Cuidado em Saúde Mental está sendo fragilizada pelos ataques aos direitos dos trabalhadores de saúde, mesmo quando servidores públicos, e pelo subfinanciamento da RAPS (Campos, 2018CAMPOS, A. G. Efeitos da terceirização sobre a saúde e segurança no trabalho: estimativas com base nos afastamentos. In: CAMOS, A. C. Terceirização do trabalho no Brasil: novas e distintas perspectivas para o debate. Brasília: Ipea, 2018. p. 187-203. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/8708/2/EfeitosTerc.pdf
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). Tais ataques estratégicos apresentam uma cascata de efeitos e pseudoefeitos que ocultam a matriz de determinação daquilo que é vivenciado pelos trabalhadores dos CAPS, tomando efeitos como causas e ações circunstanciais como estratégicas.

Considerações finais

A precarização do trabalho na APT vem se tornando hegemônica, comum e transversal, com características mais agudas que nas demais redes de atenção à saúde, pois a produção de Saúde Mental pelos trabalhadores dos CAPS não deveria ter outro valor senão o valor humano e civilizatório de uso. De modo concreto, compreende-se que os múltiplos tipos de vínculos materializam as condições do trabalho precário, os quais repercutem na concretização dos princípios da APT, firmadas em seus elementos estruturantes, como a Supervisão Clínico-Institucional e a Gestão do Cuidado em Saúde Mental.

A flexibilização dos contratos de trabalho não assegura consistência no acesso e usufruto dos direitos trabalhistas e sociais, como férias, décimo terceiro ou a renovação dos contratos, o que tende a gerar anseios sobre a incerteza de sua continuidade. Como implicar-se em projeto terapêutico que vai demandar pelo menos 18 meses, se o contrato de trabalho prevê 10 meses, por exemplo? Aprisionam-se o usuário e o trabalhador, com todo o modo de existir, inclusive o das respectivas famílias, que dependem do trabalho destes para coexistirem em sociedade. As afetações também são sofridas pelos servidores públicos, os quais sofrem constantes ataques aos seus direitos, antes respeitados, agora suplantados por novas regras estabelecidas fora dos ambientes colegiados de decisão. Nesta conformação, ambos os vínculos trabalhistas estão expostos e são afetados pela precarização do trabalho, em graus e maneiras distintas.

O que se observa é a generalização do encarceramento dos trabalhadores, pela perda da autonomia, característica comum ao grupo, devido às condições do trabalho precarizado legalmente instituído pelo Estado no SUS. Provoca-se, deste modo, a falsa impressão de que o efeito (sobrecarga de trabalho) é resultante de alguma causa isolada (quantidade de usuários, estrutura da RAPS, adesão do médico ao serviço, isolamento institucional do CAPS, deficiência de Educação Permanente). Na verdade, todas essas causas e efeitos fazem parte do grupo efeito. A causa central e prima está na precarização do trabalho e em seus modos de exploração, desvalorização, insegurança, fragmentação do cuidado e isolamento dos sujeitados, não atores-sujeitos.

Assim, os múltiplos vínculos trabalhistas revelam a emergência sobre as reais condições laborais a que tais profissionais estão sendo expostos dia a dia nos CAPS do caso estudado. Percurso este que poderá ser rompido com a retomada de diversas frentes progressistas que retomem o MBRP, no campo político e legislativo do trabalho e da atenção à saúde no SUS. Aos profissionais que estão vivenciando a precarização do trabalho na APT, é preciso formar uma identidade de classe territorial e em Rede de Saúde. Unificar todos os CAPS em um só grupo, para que, assim, uma nova identidade possa surgir diante da problematização de seus contextos. Isso promoverá uma reestruturação das forças, com novas possibilidades e frente amplas de luta possam combater as contrarreformas que impactam negativamente nos modos de existir e viver.

O estudo teve como principais limitações a própria complexidade do tema investigado, considerando que precisaríamos da participação de trabalhadores que vivem e vivenciam as diversas características da precarização do trabalho na APT. Este é motivo de recusa em ceder entrevista, por parte dos profissionais, por medo de perderem o trabalho (renda), mesmo com a garantia de anonimato. No entanto, esse fato não prejudicou a coleta de informações, diante do critério de saturação, mas demonstra e reafirma a importância em abrir esse espaço de discussão.3 3 I. C. S. Lima: concepção, projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. J. J. C. Sampaio e K. C. A. Souza: revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada.

Referências

  • ALVES, G. A nova precariedade salarial e o sociometabolismo do trabalho no século XXI; Reforma trabalhista: a nova ofensiva neoliberal no Brasil. In: CASULO, A. C. et al. (Orgs.). Precarização do trabalho e Saúde Mental: o Brasil da era neoliberal. São Paulo: Canal 6, 2018. p. 14-62.
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  • 2
    A alienação, para Marx, é compreendida como a relação contraditória do trabalhador com o produto de seu trabalho e a relação do trabalhador ao ato de produção. É um processo de objetivação, tornando o homem estranho a si mesmo, aos outros homens e ao ambiente em que vive, onde ocorre a apropriação como alienação, e a alienação como apropriação, em um processo de manipulação, de uma falsa realidade e da aparência, em contraposição ao mundo da essência. Que irá se materializar diante da alienação concreta, ligadas aos modos de produção das condições de existência e/ou da alienação genérica, universal, ligada à capacidade humana de subjetivar o mundo objetivo, por meio de símbolos. Gerando a possibilidade de os símbolos entrarem em contradição com as coisas simbolizadas (Marx, 2002).
  • 3
    I. C. S. Lima: concepção, projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. J. J. C. Sampaio e K. C. A. Souza: revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada.

Editora responsável:

Tatiana Wargas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2023
  • Revisado
    05 Dez 2023
  • Aceito
    04 Fev 2024
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