Recente estudo de análise do discurso observou, com inédita propriedade, a questão da culpa no sujeito preventivo provocada pelas campanhas publicitárias de combate ao Aedes aegypti no Brasil (PEREIRA, 2017PEREIRA, A. C. Discurso e sentido nas campanhas publicitárias sobre “doenças tropicais” transmitidas pelo Aedes aegypti. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 1225-1241, 2017.). No entanto, essa culpabilização tem impacto e contornos relevantes à luz das ações de controle do A. aegypti no país que compreensivelmente passaram despercebidas pelo estudo da análise do discurso e mesmo pela literatura relacionada à participação popular.
Diante dos obstáculos sociais e ambientais que dificultam ou impossibilitam a eficácia das ações de controle do A. aegypti nas cidades brasileiras, as consequências das mensagens que levam à culpabilização da população, ou sujeito preventivo, possuem impacto negativo pouco percebido e, portanto, pouco discutido na literatura. Compreender a importância dessas consequências e o contexto em que se inserem pode oferecer valiosa contribuição para a urgente necessidade de rever as tradicionais estratégias e crenças usadas nos programas oficiais de controle do A. aegypti.
Nesse sentido, é imprescindível revisitar os trabalhos de Valla (VALLA et al., 1993VALLA, V. V.; CARVALHO, M.; ASSIS, M. Participação popular e os serviços de saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1993.; VALLA, 1998VALLA, V. V. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cadernos de Saúde Pública, v. 14, Supl. 2, p. 7-18, 1998. ) que, há mais de 25 anos, já delimitavam e problematizavam a culpabilização da população:
[...] ao se chamar a população a combater o mosquito, os governos individualizavam a questão: o culpado direto pela doença seria o mosquito transmissor e o culpado indireto seria a população, se contraísse a doença, por não ter seguido corretamente os conselhos de prevenção e combate ao mosquito e à doença. É o que se chama culpabilização das vítimas para esconder o mal funcionamento dos serviços públicos e o descompromisso dos governos com tais serviços. (VALLA et al. 1993VALLA, V. V.; CARVALHO, M.; ASSIS, M. Participação popular e os serviços de saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1993., p.26-27).
Do ponto de vista teórico das ações de controle, as campanhas publicitárias se baseiam no consenso de que a melhor estratégia para o controle do A. aegypti é priorizar a eliminação dos criadouros urbanos através das ações de manejo ambiental; e que essas ações devem ser promovidas, o mais possível, pelo envolvimento comunitário. É nesse sentido que os esforços publicitários buscam, como objetivo, incentivar e promover esse envolvimento. No entanto, o efetivo envolvimento popular na eliminação dos criadouros domésticos não é tão factível como fazem supor as informações vinculadas pela mídia, às vezes, de forma ingênua ou banal, tais como “é fácil controlar” ou “basta gastar 10 minutos por semana”.
Se adotarmos um olhar um pouco mais atento, não é difícil perceber a ingenuidade e inadequação dessas orientações, devido às várias limitações físicas ou psicológicas nos cidadãos que podem dificultar ou mesmo impedir que eliminem muitos dos criadouros em suas casas e espaços próximos. Limitações como peso (obesidade), idade (idosos), doenças, deficiências ou limitações físicas (doenças na coluna, artrites, acometidos por AVC, amputados, etc.), síndromes, demências, psicoses, fobias e tantas outras possíveis que dificultam ou impedem as pessoas de vistoriar todos os criadouros domésticos como ralos, caixas d’água, calhas, sótãos, poços, cisternas, entulhos nos quintais desprotegidos das chuvas, dentre outros. É preciso observar ainda que, não raro, muitos dos criadouros do A. aegypti estão em locais de difícil acesso (WERMELINGER et al., 2008WERMELINGER, E. D. et al. Avaliação do acesso aos criadouros do Aedes aegypti por agentes de saúde do programa saúde da família no município do Rio de Janeiro. Revisa Baiana de Saúde Pública, v. 32, n. 2, p. 151-158, 2008.). Especiais dificuldades estão nas galerias e espaços subterrâneos, como bueiros, poços e galerias de drenagem, cujo acesso é difícil até mesmo para os profissionais controladores. As pendências (imóveis permanentemente fechados ou que não se consegue permissão para vistoriar) (WERMELINGER et al., 2008) são, talvez, o principal obstáculo das equipes de saúde responsáveis pelo combate ao A. aegypti, sobretudo em áreas urbanas violentas, e os cidadãos comuns também não podem ser responsabilizados pela eliminação desses focos. Alguns estudos realizados no Brasil demonstraram que a assimilação de conhecimentos adequados não reverte a eliminação efetiva e suficiente dos criadouros (CHIARAVALLOTI NETO, 1997CHIARAVALLOTI NETO, F. Conhecimentos da população sobre dengue, seus vetores e medidas de controle em São José do Rio Preto, São Paulo. Cadernos de Saúde Pública, v. 13, n. 3, p. 447-453, 1997.; CHIARAVALLOTI NETO et al., 1998CHIARAVALLOTI NETO, F.; MORAES, M. S.; FERNANDES, M. A. Avaliação dos resultados de atividades de incentivo à participação da comunidade no controle da dengue em um bairro periférico do Município de São José do Rio Preto, São Paulo, e da relação entre conhecimentos e práticas desta população. Cadernos de Saúde Pública, v. 14, supl. 2, p. 101-109, 1998.; CLARO et al., 2004CLARO, L. B. L.; TOMASSINI, H. C. B.; ROSA, M. L. G. Prevenção e controle da dengue: uma revisão sobre conhecimentos, crenças e práticas da população. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 6, p. 1447-1457, 2004.).
Essa culpabilização acaba servindo, de forma subliminar, como álibi para a inércia dos órgãos responsáveis, como observaram Valla et al. (1993VALLA, V. V.; CARVALHO, M.; ASSIS, M. Participação popular e os serviços de saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1993.). O sentimento de culpa parece ofuscar a consciência coletiva sobre a responsabilidade dos governos na obrigação de buscar soluções alternativas factíveis e efetivas, em termos profiláticos, para o controle do A. aegypti nas realidades urbanas brasileiras e, para isso, admitir os fracassos das crenças e programas oficiais.
Outro possível impacto negativo causado pelas informações vinculadas para o controle social do A. aegypti está no forte caráter individualista das ações preconizadas, como também observaram Valla e colaboradores (1993VALLA, V. V.; CARVALHO, M.; ASSIS, M. Participação popular e os serviços de saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1993.). A culpabilização é fortemente provocada por mensagens de conotação individualista, em que cada um deve isoladamente fazer sua parte. Esse individualismo sinaliza o conceito oposto do que poderia ser a melhor estratégia de ação para contornar os sérios e complexos obstáculos pessoais, sociais e ambientais, que são as ações coletivas, colaborativas ou cooperativas. Estas ações possuem um imenso potencial de contornar esses obstáculos, observando as realidades locais com soluções factíveis, eficazes e duradouras para a eliminação dos criadouros. Exemplos: um vizinho de um casal de idosos pode, de forma colaborativa, com facilidade, vistoriar a cisterna ou caixa d’água dos idosos e providenciar adequada vedação; através de um pequeno mutirão, é possível limpar e remover o lixo com focos dos mosquitos de um terreno, ou arrumar o entulho de um morador, ou várias outras ações cooperativas. Todas essas ações podem alcançar soluções factíveis e, não raro, sem custos. Deveriam ser incentivadas, orientadas e auxiliadas pelos serviços públicos controladores de vetores.
É pertinente ressalvar que, com boa frequência, no Brasil há espaços que vêm sendo marcados por um cotidiano de violações de direitos e confrontos entre grupos civis armados e entre estes e as forças de segurança pública, o que pode representar um entrave na construção coletiva dos cidadãos. No entanto, existe relato do desenvolvimento de ações cooperativas até mesmo entre adversários, com base na reciprocidade (AXELROD, 2010AXELROD, R. A Evolução da Cooperação. São Paulo: Leopardo, 2010.). Assim, problemas coletivos que afetam todos os indivíduos de uma mesma comunidade mutuamente identificada em determinado território, em geral impondo a condição de vítima a todos, podem gerar condições propícias para que esses indivíduos aceitem e mesmo desejem enfrentar tais problemas de forma colaborativa e cooperativa, suspendendo desavenças e disputas, com base numa legítima vontade comum de transformar a realidade.
É factível admitir, portanto, o enorme potencial das ações colaborativas e cooperativas para a população eliminar os criadouros do A. aegypti e contornar os obstáculos pessoais, sociais e ambientais nas cidades brasileiras, sobretudo em áreas socialmente vulneráveis. Infelizmente, as informações e conceitos vinculados pela mídia não direcionam as ações para explorar esse potencial, como ainda provocam o injusto sentimento de culpabilização.
Referências
- AXELROD, R. A Evolução da Cooperação. São Paulo: Leopardo, 2010.
- CHIARAVALLOTI NETO, F. Conhecimentos da população sobre dengue, seus vetores e medidas de controle em São José do Rio Preto, São Paulo. Cadernos de Saúde Pública, v. 13, n. 3, p. 447-453, 1997.
- CHIARAVALLOTI NETO, F.; MORAES, M. S.; FERNANDES, M. A. Avaliação dos resultados de atividades de incentivo à participação da comunidade no controle da dengue em um bairro periférico do Município de São José do Rio Preto, São Paulo, e da relação entre conhecimentos e práticas desta população. Cadernos de Saúde Pública, v. 14, supl. 2, p. 101-109, 1998.
- CLARO, L. B. L.; TOMASSINI, H. C. B.; ROSA, M. L. G. Prevenção e controle da dengue: uma revisão sobre conhecimentos, crenças e práticas da população. Cadernos de Saúde Pública, v. 20, n. 6, p. 1447-1457, 2004.
- PEREIRA, A. C. Discurso e sentido nas campanhas publicitárias sobre “doenças tropicais” transmitidas pelo Aedes aegypti. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 27, n. 4, p. 1225-1241, 2017.
- VALLA, V. V.; CARVALHO, M.; ASSIS, M. Participação popular e os serviços de saúde: o controle social como exercício da cidadania. Rio de Janeiro: ENSP/Fiocruz, 1993.
- VALLA, V. V. Sobre a participação popular: uma questão de perspectiva. Cadernos de Saúde Pública, v. 14, Supl. 2, p. 7-18, 1998.
- WERMELINGER, E. D. et al. Avaliação do acesso aos criadouros do Aedes aegypti por agentes de saúde do programa saúde da família no município do Rio de Janeiro. Revisa Baiana de Saúde Pública, v. 32, n. 2, p. 151-158, 2008.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2018
Histórico
-
Recebido
26 Jun 2018 -
Aceito
08 Out 2018