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“Falar de mulher preta, isso me atravessa”: observações a partir de vídeos on-line sobre racismo e sofrimento psíquico

“Talking about black women, it crosses me”: observations from online videos about racism and psychological suffering

Resumo

Este artigo é resultado de uma pesquisa que analisou narrativas de mulheres negras sobre as razões e os efeitos de assistirem conteúdos audiovisuais na plataforma YouTube compartilhados por outras mulheres negras sobre racismo e sofrimento. Utilizamos a metodologia qualitativa, que nos permite discutir os múltiplos sentidos atribuídos a essa experiência, relacionando-os com a discussão sobre o sofrimento psíquico advindo do racismo. Notamos que as entrevistadas entraram em contato com uma dimensão coletiva do sofrimento psíquico oriundo do racismo a partir do encontro com as narrativas publicizadas pelas youtubers. Segundo as entrevistadas, ao assistirem os vídeos, o tema do racismo foi tirado do silenciamento e foi possível reconhecer e nomear as violências racistas vividas em seus cotidianos. Através do encontro com esses vídeos, as mulheres puderam refletir sobre seu pertencimento racial, reconhecendo-se como mulheres negras e, portanto, como pertencentes a esse grupo social. Compreendemos que a narrativa individual compartilhada publicamente nos vídeos pôde auxiliar o processo de reconhecimento do racismo cotidiano, da afirmação racial e permitir que o sofrimento psíquico seja racializado.

Palavras-chave:
Racismo; Sofrimento Psíquico; Gênero; Mídias Sociais; Narrativa

Abstract

This article is the result of research that analyzed narratives from black women about the reasons and effects of watching audiovisual content shared by other black women about racism and suffering on the YouTube platform. We use qualitative methodology, which allows us to discuss the multiple meanings attributed to this experience, relating them to the discussion about psychological suffering arising from racism. We noticed that the interviewees met a collective dimension of psychological suffering from racism through their encounters with the narratives published by YouTubers. According to the interviewees, when they watched the videos, the topic of racism was removed from the silencing, and it was possible to recognize and name the racist violence experienced in their daily lives. Through these videos, women could reflect on their racial belonging, identifying themselves as black women and, therefore, as belonging to this social group. We understand that the individual narrative shared publicly in the videos could help the process of recognizing everyday racism and racial affirmation and allowing psychological suffering to be racialized.

Keywords:
Racism; Psychic suffering; Gender; Social media; Narrative

Introdução

Este trabalho é um recorte de uma pesquisa que analisou os efeitos do encontro de mulheres negras com o conteúdo produzido e compartilhado no YouTube, por outras mulheres negras sobre racismo e o sofrimento psíquico dele oriundo. No momento histórico em que vivemos, as redes sociais se inscrevem em nosso cotidiano como mais uma importante ferramenta de formação de subjetividade, o que nos convocou a olhá-las de forma mais atenta, indagando-nos sobre quais são as novas problemáticas que se apresentam na atual interação entre os sujeitos e o meio digital. Nesta seara, nos preocupamos com a relação entre racismo e sofrimento psíquico e, portanto, buscamos observar como tal fato é apresentado nos vídeos compartilhados por youtubers negras e de quais maneiras as mulheres que consomem esse conteúdo se relacionam com a tal experiência.

Partimos da compreensão do sofrimento como um fenômeno individual e coletivo que emerge no interior das redes sócio-históricas, que ativa a busca de sentidos compartilhados e que promove diferentes efeitos de solidariedade, de medo, de recusa, de exclusão (Barros, 2004BARROS, S. Concretizando a transformação paradigmática em saúde mental: a práxis como horizonte para a formação de novos trabalhadores. Tese (Livre-docência). Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.). A subjetividade é aqui compreendida, à maneira de Michel Foucault (1996FOUCAULT, M. Nietzsche a genealogia e a história. In: FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1996.), como uma construção advinda das relações de poder presentes em dado momento histórico imbricadas com as diversas tecnologias que operam em cada período. Nesse sentido, o sujeito não é entendido como instância de fundação, mas como efeito das diversas forças que o atravessam.

As mulheres negras experimentam, em seu cotidiano, uma condição de, no mínimo, dupla vulnerabilidade, uma vez que são oprimidas tanto pelo racismo quanto pelo machismo. São mulheres que vivenciam em seu cotidiano experiências de violências - tanto aquelas que são rapidamente reconhecidas e nomeadas como tal, quanto aquelas que não são assim nomeadas, mas são experimentadas como violência psíquica, que marcam profundamente suas histórias e contribuem para o adoecimento psíquico. Em termos de subjetividade, o racismo é violento, sobretudo ao realizar a internalização compulsória dos ideais de Eu condizentes aos sujeitos brancos, donde os sujeitos negros internalizam a autorrejeição e o auto-ódio, e disso decorre grande parte do sofrimento psíquico característico da população negra (Souza, 2021SOUZA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social no Brasil. São Paulo: Graal, 2021.).

Na pesquisa que originou este artigo, nos perguntamos sobre qual a importância de acompanhar os relatos de outras mulheres sobre experiências racializadas de enfrentamento ao mal-estar, observando, a partir disso, como quem assiste encara as próprias experiências em relação ao tema. Interessava-nos observar se havia a percepção de mudanças em seus cotidianos e de quais maneiras. A partir das narrativas publicizadas no YouTube, analisamos a correlação estabelecida pelas participantes da pesquisa entre o mal-estar subjetivo que experimentaram e as violências racistas que vivenciaram.

Como resultado da pesquisa, encontramos que embora a relação das participantes da pesquisa com os conteúdos publicados pelas youtubers negras não seja unânime para todas elas, foi possível observar que, a partir do encontro com essas narrativas, no YouTube, houve sensação de não estar sozinha com determinada questão subjetiva, de maneira que se pode afirmar que tais vídeos favorecem a criação da abertura do diálogo com outras mulheres negras sobre as questões relativas ao racismo e/ou sofrimento psíquico. No presente artigo, nos aprofundaremos na discussão sobre pertencimento racial, observando a relação entre, de um lado, o reconhecimento de si enquanto mulher negra e o sentimento de pertencimento a um grupo social, e de outro, o enfrentamento ao sofrimento psíquico.

Caminhos metodológicos

Para compreender as relações que as mulheres negras que assistem a vídeos no YouTube sobre racismo e sofrimento estabelecem com o sofrimento psíquico por elas experienciado, realizamos entrevistas com dez mulheres autodeclaradas negras que assistem a vídeos sobre racismo e sofrimento psíquico. Utilizamos o método Histórias de Vida (Bertaux, 1980BERTAUX, D. La perspectiva biografica: validez metodológica y potencialidades. Paris: PUF, 1980.) para captar os relatos das mulheres, pois essa metodologia é caracterizada pela obtenção de dados descritivos através do encontro direto entre pesquisador e a situação a ser observada. Há uma valorização do processo de colheita dos dados, de maneira que a informação obtida pelo entrevistado é priorizada e há preocupação em retratar o ponto de vista de quem diz, isto é, a intenção de compreender os sentidos que os participantes da pesquisa atribuem às coisas e à vida. Um dos interesses em utilizar tal método é a possibilidade de realizar um estudo do cotidiano, aqui compreendido como o lugar onde os acontecimentos podem transformar os sujeitos, tornando possível identificar grupalidades a partir de práticas cotidianas (Spindola; Santos, 2003SPINDOLA, T.; SANTOS, R. Trabalhando com a história de vida: percalços de uma pesquisa (dora?). Revista da Escola de Enfermagem da USP, v. 37, p. 119-126, 2003.). É importante observar que as histórias de vida não falam sozinhas: é preciso compreender o contexto em que se desenvolvem, o tempo histórico e as forças que as atravessam, ou seja, é preciso um conjunto de sentidos que enredam o viver. Dessa maneira, acreditamos ser possível compreender os valores e sentidos que cada uma das entrevistadas utiliza para lidar com os acontecimentos do cotidiano, e os valores que mobilizam as mulheres que acompanham esses vídeos e canais de YouTube.

Vale ressaltar que a chamada inicial realizada para a participação na pesquisa era acerca do conteúdo produzido por youtubers negras sobre racismo e sofrimento psíquico, de maneira que não limitamos qual material se enquadrava nessa categoria. No entanto, as dez entrevistadas citaram vídeos em comuns, de três canais no YouTube, que são produzidos por produtoras de conteúdo negras que possuem entre 26 e 35 anos de idade e possuem canais no YouTube que discorrem sobre diversos assuntos como moda e estilo de vida, e dentre esse conteúdo as youtubers discorrem sobre suas vivências em relação ao racismo e a própria saúde mental.

Outro ponto importante quando realizamos a pesquisa com metodologia de História de Vida é a Análise Temática, que acontece após sucessivas leituras das entrevistas em que se busca descobrir que núcleos de sentido compõem as narrativas de vida. Nessa etapa, observamos os conteúdos semânticos e a frequência trazidos pelas participantes da pesquisa; em seguida, esse material foi sistematizado e organizado em categorias, que foram definidas a partir dos dados obtidos no campo.

A pesquisa foi divulgada em grupos de WhatsApp, a partir de um chamado com o título do projeto, resumo da pesquisa, logotipo da instituição onde o trabalho era realizado e o nome das pesquisadoras envolvidas. Nessa comunicação, havia um hiperlink que direcionava a um formulário on-line. Ao clicar no link, havia novamente os objetivos da pesquisa e uma pergunta se a mulher tinha interesse em ser entrevistada. Caso houvesse, havia um campo para que deixasse seu contato.

Devido à pandemia de Covid-19, as entrevistas foram realizadas em ambiente virtual, na plataforma digital Google Meet, entre os meses de julho e de setembro de 2021. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Fernandes Figueira, sob número do parecer 53592321.7.0000.5269. A participação na entrevista somente ocorreu após assinatura no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes das interlocutoras são fictícios para garantir a privacidade das mesmas.

No momento da entrevista propriamente dita, relatamos o objetivo da pesquisa e utilizamos uma pergunta disparadora: “Esta pesquisa tem como objetivo refletir sobre como as mulheres negras que consomem conteúdo sobre racismo e sofrimento psíquico se relacionam com essa experiência. Você poderia nos contar um pouco sobre sua experiência com esse tema?". A partir daí, a entrevista acontecia de maneira que as participantes pudessem discorrer sobre a própria experiência com o assunto. A pergunta foi propositalmente aberta porque queríamos que as mulheres se sentissem à vontade para falar aquilo que mais lhes tocava no tema geral - racismo e sofrimento psíquico nos vídeos do YouTube.

Entrevistamos dez mulheres, todas cis, que habitam diferentes regiões do Brasil, de forma que as regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Centro-Oeste estão presentes na pesquisa. Tal fato nos permite observar a potência da capilaridade das redes sociais no território nacional. As idades das mulheres variaram entre 25 e 51 anos, e pudemos observar o impacto do fator geracional no uso das redes sociais. Seis das entrevistadas possuem graduação completa e atuam em suas áreas de formação; quatro ainda estão cursando a graduação.

Resultados e Discussão

Conforme indicamos anteriormente, um dos achados da pesquisa foi o efeito dos vídeos assistidos sobre, de um lado, a percepção de si enquanto mulher negra e sua relação com a discriminação que sofriam, e de outro, a produção de um sentimento de pertencimento a um grupo social e sua importância para o enfrentamento do sofrimento psíquico.

As participantes de nossa pesquisa referiram sofrer de diferentes maneiras, devido ao racismo ao longo de suas vidas e que a partir do encontro com as narrativas das influenciadoras negras disponibilizadas no YouTube, conseguiram estabelecer uma correlação entre o mal-estar que sentiam e as violências racistas que experimentaram. Algumas delas entenderam que o seu mal-estar era oriundo do racismo apenas ao verem os vídeos do YouTube e essa “descoberta” lhes trouxe a sensação de pertencimento em relação a um grupo, o das mulheres negras.

Esses achados estão em consonância com o encontrado por Rosa e Santos (2014ROSA, G. A. M.; SANTOS, B. R. Facebook: Negociação de identidades e o medo da violência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 66, p. 18-32, 2014.), que discorrem que a afirmação das identidades de si, a partir dos encontros ocorridos nas redes sociais, acontece a partir da maneira como os sujeitos interagem, valorizando aquilo que é ou não exposto por eles. Para os autores, os usuários tenderiam a se posicionar diante dos fatos, sujeitos ou eventos na medida em que esses posicionamentos possam provocar algum tipo de benefício para os sujeitos envolvidos nas interações.

Se por um lado é preciso reconhecer as raízes históricas do racismo em nosso país, para auxiliar o processo de reconhecimento das diversas facetas com que o racismo se apresenta, entendemos também que, por outro, ouvir e acompanhar narrativas sobre experiências de racismo auxiliam no processo de identificação do racismo.

Isso é precisamente o que diz Luísa:

Uma vez eu estava no colégio, ensino médio assim, e aí era quando eu estava meio que começando a ver sobre essas coisas de YouTube… meu cabelo não era nem um black, era tipo, tava com beleza natural, sabe? e aí ele ficava bem volumoso e tal e aí eu estava na fila da cantina e uma menina que estava na minha frente, que eu não conhecia, nunca tinha visto, ela virou para trás e aí falou do meu cabelo [...] e meteu a mão no meu cabelo e ficou ali parecia que eram tipo 15 minutos só dela com a mão na minha cabeça de um jeito muito estranho sabe, e falando de um jeito estranho e eu só queria comprar o meu lanche e sair dali, mas ela estava, tava que tava pegando na minha cabeça. E isso é uma coisa que eu vi muito, nos vídeos, tipo, na internet as pessoas sempre falam desse exemplo, das pessoas que pegam na sua cabeça sem permissão e que já chegam assim meio que invadindo o seu espaço e naquela época eu só fiquei meio que paralisada, meio que assim “ahaha sim, me solta” mas depois quando eu fui vendo isso da internet as pessoas falando cada vez mais sobre, eu fiquei tipo “caraca cara, é, assim, foi exatamente isso que aconteceu, que droga, eu queria ter feito alguma coisa, sabe?” aí eu aprendi que é racismo…

As entrevistadas nos trouxeram inúmeras situações que ilustravam a dimensão interseccional que compõe a experiência do racismo em nossa sociedade. Nesse sentido, retomamos a reflexão feita por Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), quando se pergunta: “Parece que estamos presos em um dilema teórico: é racismo ou sexismo? (p. 92)”. Segundo a autora, o racismo condiciona a experiência do negro/negra de tal forma que muitas vezes raça é considerado o único aspecto relevante dessas vidas, mas o gênero afeta de maneiras distintas mulheres racialmente diferentes. Segundo Kilomba, as experiências de mulheres negras costumam ser pensadas a partir de um quadro de significações que não contemplam as suas singularidades: ora o debate sobre efeitos do racismo toma como régua o homem cis hetero negro, ora é o debate sobre gênero que universaliza a categoria mulher sobre a égide das experiências de mulheres cis hétero brancas.

A autora afirma que a realidade da mulher negra é um fenômeno híbrido, produto das intersecções das formas de opressão, que não pode ser encarada como camadas de realidades sobrepostas, mas antes como efeito específico radicalmente interseccional. Como diz Kilomba, “formas de opressão não operam em singularidade, elas se cruzam” (p. 58), de modo que, ao viverem simultaneamente opressão racial e de gênero, as experiências de mulheres negras constituem uma singularidade única atravessada pelo racismo genderizado.

Nesse sentido, ao pensarmos a construção social do gênero feminino e da identidade negra, compreendemos que é possível encontrar um hiato no que se refere às referências sociais. Se, de acordo com Souza, a construção da identidade negra é um processo historicamente dificultado pelo racismo à brasileira e se a compreensão do gênero feminino é um processo atravessado pela dominação masculina e ambos são favorecidos pela cultura, então não seria o processo de afirmação da identidade da mulher negra brasileira dificultado, entre outras coisas, pelo silenciamento de mulheres negras, inclusive sobre seus próprios sofrimentos? Em outros termos, nos perguntamos se o fato de as mulheres negras não terem espaço de fala sobre aquilo que lhes atravessa não estaria prejudicando a afirmação da própria negritude. Nossa hipótese é que ouvir narrativas de mulheres negras acerca de diferentes experiências da vida poderia facilitar o processo de afirmação da identidade negra ao tirar essa temática do silenciamento.

Para Souza (2021SOUZA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social no Brasil. São Paulo: Graal, 2021.):

A identidade negra é entendida, aqui, como um processo construído historicamente em uma sociedade que padece de um racismo ambíguo e do mito da democracia racial. Como qualquer processo identitário, ela se constrói no contato com o outro, na negociação, na troca, no conflito e no diálogo. [...] ser negro no Brasil é “tornar-se negro”. (p. 79)

Ainda que saibamos que o processo da afirmação da identidade racial não é linear, nem passível de ser descrito de uma maneira única, é notável que a pressão exercida pelo ideal de brancura e a introjecção da política de embranquecimento tem promovido sofrimento psíquico nas subjetividades negras. A carga histórica marcada pela ideologia do embranquecimento e pelo auto-ódio continua a propagar seus efeitos nos sujeitos.

A ideologia do branqueamento favorece a tendência de que sujeitos negros se direcionem no sentido de corresponder cada vez mais ao ideal do eu, que é um eu branco, e se distanciem daquilo que lhes é característico do povo negro, seja em relação a práticas sociais ou características fenotípicas. O horror da política de embranquecimento tem sido perpetuado através do aparato político-midiático, em que as pessoas brancas são colocadas em lugar de poder e referência em detrimento das pessoas negras, criando no negro o desejo de se aproximar da brancura (Nobles, 2009NOBLES, W. Sakhu Sheti: retomando e reapropriando um foco psicológico afrocentrado. In: NASCIMENTO, E. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. p. 277-298.), como se o branqueamento fosse a única alternativa cabível.

Como um dos efeitos subjetivos da violência racial, pode-se observar a ambivalência afetiva, que é caracterizada por Bicudo (2010BICUDO, V. Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. In: MAIO, M. (Org.). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. São Paulo: Sociologia e Política, 2010, p. 61-164.) como a introjeção da culpa e a projeção da hostilidade em relação a própria negritude. A questão é que a ambivalência afetiva em relação a quem se é frequentemente dá lugar ao auto-ódio, e esse ódio poderia ser compreendido como uma significação de si ancorada na autodepreciação. A autora aponta inúmeros exemplos do auto-ódio, como na frase proferida por um dos participantes de sua pesquisa: “Há pessoas que nos desprezam por a gente ser de cor, e têm razão: os de cor são relaxados” (Bicudo, 2010, p. 65). No exemplo citado, podemos observar que o auto-ódio se constituiu pela aproximação do sujeito com o lugar do seu próprio desprezo; no caso do auto-ódio, o indivíduo constrói uma teia simbólica depreciativa acerca de si mesmo.

Segundo Dunker (2015DUNKER, C. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.), o sintoma, que é aquilo que produz o sofrimento no sujeito neurótico, é agravado pelo nível de identificação do sujeito com o desejo do outro. Para o autor, o sintoma traria a ideia de que algo impediria o sujeito de agir livremente. Em relação à introjeção do ideal do eu branco nos sujeitos negros, a identificação com o desejo do branco produziria um intenso sofrimento e tornaria o sujeito negro refém da ideia de brancura, numa luta incessante por tornar-se algo que ele nunca será.

Uma vez que alguns sujeitos negros utilizam uma “régua branca” para avaliarem a si próprios, é experimentado um sentimento de inferioridade, já que nunca se chegará a próximo a esse ideal. Entendemos que se tornar o agente de sua própria história, garantir o movimento de autodeterminação de negros e negras, é de extrema importância, o que corrobora os achados de Sales (2018SALES, J. Considerações psicanalíticas acerca do racismo no Brasil. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.) sobre a importância da agência do sujeito negro em relação ao seu próprio destino.

Faz-se importante refletir sobre e buscar compreender mais os efeitos não evidentes sobre a subjetividade das pessoas negras ao longo dos muitos anos em que essa temática foi silenciada. Na atualidade, diferentes autores (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.; Nogueira, 2017NOGUEIRA, I. Cor e Inconsciente. In: ABUD, C.; KON, N.; SILVA, M. L. O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2017.; Sales, 2018SALES, J. Considerações psicanalíticas acerca do racismo no Brasil. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.) buscam comunicar a singularidade das estratégias criadas pelos sujeitos para lidar com os preconceitos, e as violências diárias ocorridas devido ao racismo, nos convocando a atentar para o fato de que cada mulher negra atravessa a maré de seu mal-estar da maneira que for possível a ela. No entanto, apoiando-nos no pensamento de Neusa Souza (2021SOUZA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social no Brasil. São Paulo: Graal, 2021.), confiamos que a construção da identidade positivada é um processo necessário para combater os efeitos psíquicos do racismo.

A pesquisadora Tatiana Paz (2019PAZ, T. Narrativas audiovisuais de mulheres negras no youtube e mobilização de processos formativos. Educação & Linguagem, v. 22, n. 1, 2019.) analisou três canais de YouTube que também foram citados pelas integrantes de nossa pesquisa, e observou que as narrativas compartilhadas pelas mulheres negras no YouTube têm como centralidade o fortalecimento da construção da identidade social de mulher negra, e que o fato de o compartilhar na rede possui o potencial de criar novos sentidos para outras mulheres que consumam esse conteúdo.

Neste sentido, observamos neste artigo que as narrativas particulares de reconhecimento e enfrentamento do racismo nas redes sociais podem favorecer a construção da identidade negra em sua positividade. Segundo a entrevistada Valentina:

Eu fui começar a pesquisar mais sobre isso… e começar a querer entender sobre o que é ser uma pessoa parda, o que é ser uma pessoa negra [...] aí eu compreendi que eu sou uma pessoa negra, e eu nunca tinha me reconhecido como. E, talvez isso de querer ser parda a vida toda fosse preconceito também…

Para Souza (2021SOUZA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social no Brasil. São Paulo: Graal, 2021.), uma das formas de autoconhecimento e afirmação de si é possuir um discurso sobre si mesmo e que esse discurso tenha cada vez mais complexidade para tornar-se mais potente. Para a autora, o processo de reparação dos efeitos subjetivos do racismo exige um fortalecimento do Eu direcionado à possibilidade de maior afirmação de si. Tal perspectiva nos auxilia na observação de que, para as mulheres participantes desta pesquisa, assistir aos conteúdos audiovisuais de outras mulheres negras atuou como um elemento a favor da construção da própria identidade negra.

A formulação de narrativas negras a partir de pessoas negras, movimento que tem sido ecoado e multiplicado com as redes sociais, tem possibilitado a emergência de movimentos potentes de descolonização do pensamento, a partir da desconstrução de padrões tidos como normais mas que buscavam apenas afirmar uma centralidade branco/europeia.

As participantes desta pesquisa apontam que a tomada de consciência dos efeitos do racismo em seus cotidianos foi algo que se evidenciou, após assistirem à produção audiovisual de influenciadoras negras, e que o contato com as narrativas de vida de outras mulheres negras foi um movimento necessário para desindividualizar certas questões que antes eram por elas compreendidas como algo que dizia respeito apenas a si próprias. Vemos, assim, a politização e a racialização desses afetos que permitem que as mulheres compreendam a relação deles com o social.

Após o contato com as narrativas de mulheres negras veiculadas no YouTube, percebem que algo que as fazia sofrer e gerava mal-estar e que antes compreendiam como um afeto individual, que deveriam se responsabilizar individualmente, é efeito da dimensão coletiva e da montagem estrutural do racismo.

As redes sociais é que me trouxeram essa percepção, apesar de eu fazer terapia e análise há muitos anos e a pauta saúde mental ser presente na minha família. Foi através das redes sociais que eu comecei a me conscientizar de que existiam coisas específicas de saúde mental de pessoas negras. Então, eu me considero engatinhando ainda nesse tema, nessa percepção. [...] tem algumas coisas que não são muito individuais, né, tem a individualidade de cada um, mas existem questões coletivas que aí que são comuns as pessoas negras. Eu estou engatinhando ainda nesse contato, mas foi, sim, a partir das redes sociais que eu tive esse contato (Beatriz)

Foi possível observar que, a partir do acompanhamento dos vídeos em que mulheres negras falam livremente sobre si, houve a possibilidade de compreender melhor a si mesmas. Ouvir narrativas semelhantes às suas criava a possibilidade de imaginar-se em outro contexto e de projetar outros futuros possíveis. Nas palavras de Luiza:

[...] quando eu comecei a ver os vídeos tipo da Nataly e da Gabi Oliveira eu fiquei muito, muito empolgada, né! De ver as pessoas falando sobre questões raciais e também e poder entender o que se passa mais ou menos comigo porque até esse ponto eu simplesmente estava meio alheia, eu não entendia muito bem como era exatamente a minha vivência, [...] sabe, quando eu olho prá trás eu realmente entendo que se eu hoje tenho a confiança que eu tenho em mim mesma, é porque ao longo desses anos eu tive como entender essas minhas vivências com elas (as youtubers) e aí fui me vendo em outras pessoas também, entendendo quem eu sou, eu acho que isso foi muito importante para mim.

A entrevistada Luiza afirma que tinha aproximadamente 15 anos quando começou a acompanhar o conteúdo digital de influenciadoras negras e que, para ela, esse espaço foi divisor de águas e possibilitou elucidar as questões raciais que ela não compreendia. Embora Luiza seja uma mulher negra, com mães e pais negros, o ambiente social em que ela cresceu era majoritariamente branco. Em sua escola ela era a única aluna negra e as questões sobre raça nunca compareceram nos ambientes em que ela frequentava. Por isso, Luiza considera que o contato com as narrativas pessoais das youtubers a ajudou a construir a compreensão de si mesma como uma mulher negra e de compreender as problemáticas que o racismo impunha à sua existência. Atualmente Luiza tem 27 anos e afirma: “Eu cresci junto com a Nataly! [youtuber], amiga, sabe?”, a possibilidade de ouvir narrativas sobre a intimidade e o cotidiano de outra mulher favoreceu, então, em Luiza, a possibilidade de afirmação da própria identidade.

Para Luiza, o ato de acompanhar as experiências individuais narradas por mulheres negras em suas redes sociais e, principalmente em seus canais de YouTube, foi algo que redimensionou a compreensão que ela tinha de suas próprias questões subjetivas e do mal-estar que experimentava e que era, até então, atribuído exclusivamente a sua responsabilidade individual. Portanto, a entrevistada afirma que foi compreendendo mais de si mesma e das questões que a atravessavam por meio do acompanhamento constante das youtubers.

Bovet, Brito e Lira (2019), em seus estudos sobre o ciberativismo de mulheres negras, corroboram nossos achados a partir do olhar para a maior visibilidade possibilitada pelas redes sociais para o diálogo sobre os impactos dos discursos hegemônicos no silenciamento de mulheres negras. Para os autores, a utilização das redes sociais propicia a criação de um espaço democrático horizontal que, ainda que não seja livre dos atravessamentos causados pelo discurso hegemônico, aumenta a representatividade dentro das mídias sociais alternativas.

Outro caso relevante no que diz respeito ao processo de afirmação da própria identidade e da compreensão de si mesma como uma mulher negra é o da entrevistada Beth, que se apresenta como mulher negra retinta e começa a contar sua história a partir da história de seus pais, que sempre foram militantes do movimento negro e discutiam questões raciais dentro de casa. Beth conta que sua história familiar sempre foi atravessada por questões raciais, principalmente devido ao envolvimento dos pais com a militância negra. Diz que estudou majoritariamente em colégio públicos durante sua infância e que foi no período da graduação que começou a notar que era preterida durante as entrevistas de trabalho e que os colegas brancos costumavam passar na seleção ainda que com currículos menos interessantes que o dela.

Beth afirma que, ao longo de sua vida, começou a apresentar quadros depressivos. Relata que em sua adolescência enfrentou o que hoje poderia ser denominado, segundo ela, como a solidão da mulher negra, mas que na época não tinha nomenclatura e não era discutido nos ambientes que frequentava. Enfrentou algumas crises severas que resultaram em aproximadamente cinco tentativas de suicídios e três internações em clínicas psiquiátricas. Beth observa que embora as discussões sobre raça fossem bastante presentes em seu cotidiano, as implicações delas na vivência singular de cada um não era um assunto debatido: “Apesar da minha família ser uma família engajada, assim, eles não tinham esse conhecimento pra me passar… não sei…”. Observamos aqui o que Dias (2021DIAS, C. R. Racismo e Psicanálise: marcas coloniais na escuta clínica. In: DAVID, E.; ASSUAR, G. A psicanálise na encruzilhada. São Paulo: Hucitec, 2021.) pontua sobre a relação entre o sofrimento psíquico e o racismo ainda não ser uma temática tão debatida ou abordada popularmente. O autor afirma que, devido ao histórico silenciamento do racismo no Brasil, é comum a não compreensão dos efeitos psíquicos do racismo e o fato de tomar outras causas como a questão central do sujeito, algumas vezes causas individualizantes que tornavam o sujeito o único responsável por seu sofrimento. Para o autor, essas discussões são raras até mesmo dentro do próprio campo da Saúde Mental.

A entrevistada salienta que havia a compreensão racial em seu cotidiano, que frequentou diferentes espaços de cuidado em saúde mental - desde terapias individuais até internações em clínicas psiquiátricas, no entanto não aconteciam reflexões sobre os efeitos do racismo na subjetividade de uma pessoa negra. Beth aponta que a conexão entre sofrimento psíquico como um dos efeitos do racismo foi algo que ela observou quando ela começou a acompanhar o conteúdo de uma influenciadora digital negra que discorria sobre suas próprias questões de saúde mental e as relacionava com as violências racistas, sutis ou não, que vinha enfrentando em seu cotidiano:

E aí começou essa coisa de YouTube, né… a gente começou a acompanhar mais isso, eu vi um programa de uma youtuber ou blogueira, chamada Nataly Nery, e tinha uma menina que era blogueira também, de moda, uma menina negra, e aí ela…ela… começou a contar a trajetória dela, de como era difícil conseguir trabalho sendo uma mulher negra [...] até esse vídeo do YouTube, que foi a primeira vez eu tinha visto de uma maneira tão clara né, e realmente que ela tava mal era por isso, sabe…era uma pessoa que tinha a trajetória parecida com a minha, da minha cor, porque tinha isso né… eu vivia num círculo de amizades que não tinham muitas pessoas de cor, então, é…como no Brasil essa questão do racismo é velada, né, as pessoas brancas elas não pensavam sobre… então, assim, as redes sociais… elas me ajudaram, me ajudaram muito…

Há, portanto, para algumas das mulheres entrevistadas, um sentimento de identidade que começou a se construir via identificação com a experiência de opressão racial vivenciada em comum.

Não se trata apenas de nomearem a cor de suas peles, mas de perceberem que muito do mal-estar que as acompanhava era oriundo da experiência de serem negras em um país racista. Tal percepção as colocou em um lugar de maior possibilidade da afirmação da negritude, o que as permitiu criar ferramentas subjetivas e concretas de elaboração do mal-estar. Gaudenzi, Chagas e Castro (2023GAUDENZI, P.; CHAGAS, A.; CASTRO, A. Efeitos subjetivos do racismo e cuidado: vivências e memórias de mulheres negras. Ciência & Saúde Coletiva, v. 28, n. 9, p. 2479-2488, 2023.), com base no pensamento de Souza (2021SOUZA, N. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social no Brasil. São Paulo: Graal, 2021.), afirmam que para tornar-se negro “é preciso criar um lastro relacional que não seja pautado no diagrama colonial e reafirmar a identidade cuja recriação é almejada, com base em narrativas positivas sobre si”.

A cristalização da identidade ou a afirmação de uma identidade a partir do espelhamento do outro é vista por Nicolaci-Costa (2022) e Bucci (2021BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021.) como um dos efeitos negativos resultantes do uso intenso de redes sociais. Podemos pensar que, para aqueles cujas características fenotípicas ou a própria existência era negada e subalternizada, o processo de afirmação da própria identidade pode ser encarado como algo que possibilita a afirmação de vida. Em outros termos, podemos dizer que para as pessoas negras que sempre tiveram como ideal do eu a imagem do branco, a possibilidade de afirmação da própria identidade negra como algo que seja passível de potencialidade pode ser condição de criação de vida, de construção de uma subjetividade criativa e afirmativa do viver.

Scott (1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, p. 5-22, 1995.) reitera a importância de observarmos o valor da autodefinição e da afirmação da própria identidade. Para a autora, as mulheres africanas em diáspora precisam fugir das imagens de controle que foram criadas sobre elas porque “são ideias concebidas para dar sentido a nossa vida diária'' (Scott, 1995, p. 321). Logo, para mulheres negras, o fortalecimento da possibilidade de afirmação de sua identidade enquanto mulher e negra é a possibilidade de positivar sua existência:

Ao contrário das imagens de controle desenvolvidas para as mulheres brancas de classe média, as imagens de controle aplicadas às mulheres negras são tão uniformemente negativas que quase exigem resistência. Para as mulheres negras, o conhecimento construído do “eu” emerge da luta para substituir as imagens de controle pelo conhecimento autodefinido, considerado pessoalmente importante, um conhecimento muitas vezes essencial para a sobrevivência das mulheres negras (p. 184).

Sobre isso, observamos a fala da entrevista Luiza:

Quando eu comecei a assistir YouTube eu era muito novinha, sei lá, 14, 15 anos… até então eu vivia numa bolha de classe média alta branca, só tinha branco no colégio, no clube… quando eu encontrei as mulheres negras que tavam fazendo conteúdo na internet eu fiquei muito empolgada, né… mais do que isso... eu fui me entendendo como mulher negra, vendo minha vivência, vendo como eu era… com certeza a Nataly Nery [youtuber] e vivência dele tem a ver com como eu me entendo mulher preta…

Neste caso, observamos que o processo de autodefinição de Luiza foi bastante atravessado pelos conteúdos produzidos por mulheres negras nas redes, na medida em que a compreensão da própria identidade aconteceu identificada ao processo que era narrado pela YouTuber. Ao longo da entrevista, Luiza discorre sobre a maneira como observou sua relação com as próprias questões relativas ao mal-estar:

Hoje, quando eu olho pra trás eu realmente entendo que se eu tenho a confiança que eu tenho em mim mesma, no meu estudo, se eu sei o que eu quero de trabalho, se eu consigo conversar olhando pra qualquer pessoa na rua, eu acho que é porque ao longo desses anos eu tive como entender as minhas vivências e fui vendo elas [as youtubers] lidando com os problemas e as vivências iguais as minhas, eu acho que isso [o YouTube] foi muito importante pra mim…

Fica evidente, com o relato de Luiza, que é preciso reconhecer o racismo e seus efeitos subjetivos para poder combatê-los. No caso de Luiza, o reconhecimento desses efeitos em sua vida acontece através da observação e do acompanhamento do processo que é narrado por outra pessoa, traçando semelhanças com seu próprio caminhar. O que apontam as entrevistadas é que a produção de caminhos alternativos à idealização da brancura e à superação do auto-ódio se torna mais possível se elaborada de maneira coletiva.

Nossas lutas individuais, quando interligadas a ações em grupo, ganham novo significado. Dado que nossas ações como indivíduos fazem com que deixemos de simplesmente existir no mundo e passemos a ter algum controle sobre ele, elas nos permitem ver a vida cotidiana como um processo e, portanto, como algo passível de mudança (p. 215).

Considerações finais

A partir do encontro com as narrativas das participantes da pesquisa, observamos que a possibilidade de multiplicação das vozes narradoras, com a popularização das redes sociais, propiciou algumas outras possibilidades de representação de si para as populações ditas “minorizadas”.

No Brasil, onde o racismo sempre foi um tema velado, silenciado e muitas vezes tido como queixas vazias de uma minoria populacional, as redes sociais trouxeram o efeito megafone que aconteceu com mulheres negras que se colocaram como influenciadoras digitais ao narrarem a própria vida para um público desconhecido. É possível observar que a possibilidade de acompanhar essas vidas comuns de mulheres negras propiciou, para algumas das mulheres negras que consomem esse conteúdo, um espaço de empoderamento por meio da autodefinição e da possibilidade de afirmação da própria identidade.

O valor da autodefinição como ferramenta para a afirmação da própria identidade é visto como fundamental para algumas feministas negras como Collins (2019COLLINS, P. Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo. São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2019.), Scott (1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, v. 20, n. 2, p. 5-22, 1995.) e Lorde (2007LORDE, A. Sister Outsider: Essays and Speeches. Berkeley: The Crossing Press, 2007.), que entendem que a possibilidade de conexão entre o “eu” de diferentes mulheres negras é a chave para a transformação pessoal e o empoderamento. Collins afirma que a mudança efetiva ocorre através das ações que são possibilitadas a partir dos encontros reais entre mulheres negras. A autora afirma que a identidade do eu se estabelece na relação com o coletivo e a partir do empoderamento individual a posteriori. Assim, uma mulher empoderada e ciente de si mesma agiria em favor de uma comunidade, da comunidade de pessoas negras.

O duplo efeito de assistir a esses vídeos é composto pelo fato de que eles eram inicialmente apenas uma possibilidade de entretenimento, mas se transformam em algo que gera algum tipo de “tristeza e revolta, ainda que passe por um alívio” (Beatriz). O ato de acompanhar essas mulheres e consumir seus conteúdos se torna uma ferramenta para consolidar a própria identidade negra e compreender algumas questões inerentes ao tecido social, o que para as entrevistadas gerava a sensação de revolta. As narrativas compartilhadas pelas influenciadoras negras, nesse caso, ocupam lugar privilegiado como espaço potencializador da compreensão da negritude.1 1 G. H. de P. Santiago e P. Gaudenzi: elaboração da pesquisa, redação e revisão do artigo.

Referências

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  • 1
    G. H. de P. Santiago e P. Gaudenzi: elaboração da pesquisa, redação e revisão do artigo.

Editor responsável:

Tiago Espírito Santo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2024
  • Revisado
    18 Mar 2024
  • Aceito
    02 Abr 2024
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