Resumo
Compreender os sentidos e significados atribuídos às vivências cotidianas de usuárias e profissionais da atenção primária à saúde (APS), em serviços públicos de assistência materna, é o objetivo deste artigo. Trata-se de estudo de abordagem qualitativa a partir do relato desses sujeitos sobre suas interações. Foram realizados grupos focais com 56 mulheres, de classes populares, de 17-35 anos, majoritariamente autoidentificadas como pretas ou pardas; e 115 profissionais da APS, em duas cidades de um estado do nordeste brasileiro. O tema “violência” emergiu espontaneamente em discussões sobre direitos na gestação, parto e puerpério. As mulheres relataram dificuldades no acesso e problemas na qualidade dos serviços ofertados. As relações hierárquicas e assimétricas entre profissionais e usuárias são atravessadas por uma violência simbólica, naturalizada, institucionalmente legitimada, que se reproduz em um jogo de (des)responsabilização dos profissionais. Como resposta, usuárias recorrem ao controle das emoções e à violência. A depender do contexto, a violência é mais ou menos explícita, atuando como um fio condutor, uma linguagem simbólica, presente na relação usuárias-profissionais de saúde. O cotidiano é marcado por práticas violentas que geram violência como resposta e revelam o não reconhecimento da mulher como sujeito integral e de direitos.
Palavras-Chave:
Violência; Saúde Materna; Atenção Primária à Saúde; Serviços de Saúde Materna
Abstract
The aim of this article is to understand the senses and meanings attributed to the daily experiences of primary health care (PHC) users and practitioners in public maternal care services. This is a qualitative study based on these individuals' accounts of their interactions. Focus groups were held with 56 working class women, aged 17-35, mostly self-identified as black or brown, and 115 PHC practitioners, in two cities in a northeastern Brazilian state. The theme of "violence" emerged spontaneously in discussions about rights during pregnancy, childbirth and the puerperium. The women reported difficulties in access and problems with the quality of the services offered. The hierarchical and asymmetrical relations between practitioners and users are crossed by symbolic, naturalized and institutionally legitimized violence, which is reproduced in a game of (dis)accountability on the part of the practitioners. In response, users resort to controlling their emotions and resorting to violence. Depending on the context, violence is more or less explicit, acting as a common thread, a symbolic language, present in the relationship between users and health practitioners. Daily life is marked by violent practices that generate violence as a response and reveal the failure to recognize women as integral subjects with rights.
Keywords:
Violence; Maternal Health; Primary Health Care; Maternal Health Services
Introdução
Com a promulgação da Constituição de 1988 e, posteriormente, a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS), ocorreram profundas alterações nas políticas de saúde brasileiras e significativa expansão da Atenção Primária à Saúde (APS). Uma nova concepção de seguridade social, como expressão dos direitos sociais inerentes à cidadania, integrando saúde, previdência e assistência, reconhecia o direito à saúde como um dever do Estado, garantido por um conjunto de políticas econômicas e sociais (Paim, 2013PAIM, J. S. A Constituição Cidadã e os 25 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 29, n. 10, p. 1927-1953, 2013.).
A Estratégia Saúde da Família (ESF), reordenadora do modelo assistencial, teve como objetivo ampliar o acesso ao sistema de saúde e fortalecer as ações de prevenção de doenças e promoção da saúde (Andrade et al., 2018ANDRADE, M. V. et al. Transition to universal primary health care coverage in Brazil: Analysis of uptake and expansion patterns of Brazil’s Family Health Strategy (1998-2012). PLoS One. San Francisco, v. 13, n. 8, p. e0201723, 2018.). Maior número de programas para redução da mortalidade materna visava à melhoria das condições de vida e saúde de mulheres e, consequentemente, de crianças (Leal et al., 2018LEAL, M. do C. et al. Saúde reprodutiva, materna, neonatal e infantil nos 30 anos do Sistema Único de Saúde (SUS). Ciência e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1915-1928, 2018.).
A criação do Programa Nacional de Humanização do Pré-Natal e Nascimento (PNHPN), pela Portaria nº 569 de 1/6/2000, objetivava reduzir as altas taxas de morbimortalidade materna, perinatal e neonatal no país (Santos Neto et al., 2008). Baseado no direito ao acesso de gestantes e recém-nascidos à assistência à saúde, o PNHPN propunha assegurar a integralidade da assistência na gestação, de risco habitual e alto risco, com investimentos e custeios necessários. Todavia, a ampliação do acesso e da cobertura ocorreu de modo diverso, reproduzindo desigualdades já existentes nas diferentes regiões do país (Mario et al., 2019).
No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM) visava à melhoria na atenção obstétrica, ao abortamento inseguro, planejamento familiar e combate à violência doméstica e sexual contra a mulher (Brasil, 2004BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Política nacional de atenção integral à saúde da mulher: plano de ação 2004-2007. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2004.). O documento faz referência à violência institucional contra as mulheres nos serviços de saúde, traduzida no retardo do atendimento, falta de interesse das equipes em escutar e orientar as mulheres ou mesmo na discriminação explícita com palavras e atitudes condenatórias.
Ainda como estratégia para garantia de direitos, a Rede Cegonha prioriza implementar cuidados a partir do pré-natal, que inclui avaliação e classificação de risco e vulnerabilidade, dentre outras ações. Há, também, proposta de vinculação da gestante à unidade de referência e transporte seguro durante esse período, bem como segurança no parto e nascimento e qualidade na atenção à saúde das crianças de zero a 24 meses (Vilela et al., 2021VILELA, M. E. de A. et al. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 789-800, 2021.).
A despeito das mudanças no sistema e políticas de saúde brasileiras, assim como os efeitos provocados a partir da ampliação da assistência à saúde, permanecem expressões de violência contra a mulher nos mais diversos serviços que, devido à constância e alta distribuição, são caracterizadas como de natureza institucional (Azeredo; Schraiber, 2017AZEREDO, Y. N.; SCHRAIBER, L. B. Violência institucional e humanização em saúde: apontamentos para o debate. Ciência e Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 22, n. 9, p. 3013-3022, 2017.). Esta situação é ainda mais agravada com a pobreza, cristalizando-se nas altas taxas de morbidade e mortalidade materna e infantil, especialmente, no Norte e Nordeste do país. Diniz et al. (2016DINIZ, C. S. G. et al. A vagina-escola: seminário interdisciplinar sobre violência contra a mulher no ensino das profissões de saúde. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 20, n. 56, p. 253-259, 2016.) asseveram que as políticas dirigidas à mudança da assistência ao parto tiveram efeito limitado, o que é ilustrado também pelo aumento das cesáreas e da prematuridade. Diante disso, os movimentos sociais têm atuado junto a instâncias como o Ministério Público na busca por coibir abusos e práticas que afetem os direitos femininos, denunciando intervenções e violências ocorridas no parto em todo o país.
Na área da Saúde Coletiva, Minayo (1999), Deslandes (2002DESLANDES, S. F. Frágeis deuses: profissionais da emergência entre os danos da violência e a recriação da vida. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002.), Schraiber (2005), Sarti (2009SARTI, C. A. Corpo, violência e saúde: a produção da vítima. Revista Latinoamericana, Sexualidad, Salud y Sociedad. Rio de Janeiro, n. 1, p. 89-103, 2009.), Villela (2000VILLELA, W. Saúde integral, reprodutiva e sexual da mulher: Redefinindo o objeto de trabalho a partir do conceito de gênero e da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento. In: COLETIVO FEMINISTA SEXUALIDADE E SAÚDE. Blogpost. São Paulo: Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, 2000. Disponível em: https://www.mulheres.org.br/wp-content/uploads/2020/02/saude-integral-sexual-mulher.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.
https://www.mulheres.org.br/wp-content/u...
), Leite et al. (2022LEITE, T. H. et al. Desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para a epidemiologia e a saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 483-491, 2022.), entre outros, pontuam que a entrada da temática da violência está associada à demanda por “direitos”, caracterizando uma abordagem distinta das “causas externas” adotadas nos estudos e dados epidemiológicos.
A violência é considerada fator de risco para diversos agravos à saúde da mulher, repercute em alta demanda por serviços de saúde e infringe princípios bioéticos (Lévesque; Ferron-Parayre, 2021LÉVESQUE, S.; FERRON-PARAYRE, A. To use or not to use the term “obstetric violence”: commentary on the article by Swartz and Lappeman. Violence Against Women. Thousand Oaks, v. 27, n. 8, p. 1009-1018, 2021.; Martín-Badia et al., 2021MARTÍN-BADIA, J. et al. Obstetric violence as an infringement on basic bioethical principles: reflections inspired by focus groups with midwives. International Journal of Environmental Research and Public Health. Basel, v. 18, n. 23, p. 12553, 2021.; Martinez-Vásquez et al., 2021). No âmbito institucional, a violência presente na relação profissional de saúde-usuária tem sido descrita e analisada a partir das próprias práticas de saúde (Aguiar; D’Oliveira, 2011AGUIAR, J. M. de; D’OLIVEIRA, A. F. P. L. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 15, n. 36, p. 79-92, 2011.; Tobasía-Hege et al., 2019TOBASÍA-HEGE, C. et al. Irrespeto y maltrato durante el parto y el aborto en América Latina: revisión sistemática y metaanálisis. Revista Panamericana de Salud Publica. Washington, DC, v. p. 1-14, 2019.).
Comentários agressivos, xingamentos, ameaças, discriminação racial e socioeconômica, exames de toque abusivos, agressão física e psicológica são relatados por mulheres que deram à luz em várias cidades do Brasil (Aguiar; D’Oliveira, 2011AGUIAR, J. M. de; D’OLIVEIRA, A. F. P. L. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 15, n. 36, p. 79-92, 2011.; Andrade et al., 2016ANDRADE, P. de O. N. et al. Factors associated with obstetric abuse in vaginal birth care at a high-complexity maternity unit in Recife, Pernambuco. Revista Brasileira de Saúde Materno-Infantil. Recife, v. 16, n. 1, p. 29-37, 2016.; Diniz et al., 2015DINIZ, S. G. et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in Brazil: origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its prevention. Journal of Human Growth and Development. São Paulo, v. 25, n. 3, p. 377-384, 2015.; Guillén, 2015GUILLÉN, F. What is obstetric violence? Some social, ethical and legal aspects. Dilemata International Journal of Applied Ethics. Donostia, v. 7, n. 18, p. 113-128, 2015.; Rodrigues et al., 2017RODRIGUES, F. A. et al. Violence obstetric in the parturition process in maternities linked to the Stork Network. Reprodução e Climatério. Rio de Janeiro, v. 32, n. 2, p. 78-84, 2017.; Sena; Tesser, 2017SENA, L. M.; TESSER, C. D. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: Relato de duas experiências. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 21, n. 60, p. 209-220, 2017.; Torres; Santos; Vargens, 2008). A violência contra a mulher se expressa pelo trato desrespeitoso de profissionais, pelo uso considerado abusivo de medicalização e pela patologização do parto (Leite et al., 2022LEITE, T. H. et al. Desrespeitos e abusos, maus tratos e violência obstétrica: um desafio para a epidemiologia e a saúde pública no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 27, n. 2, p. 483-491, 2022.; Tobasía-Hege et al., 2019TOBASÍA-HEGE, C. et al. Irrespeto y maltrato durante el parto y el aborto en América Latina: revisión sistemática y metaanálisis. Revista Panamericana de Salud Publica. Washington, DC, v. p. 1-14, 2019.).
O estudo ora apresentado busca descrever e analisar o relato de profissionais de saúde da APS e de usuárias acerca do cotidiano vivenciado no período de gestação, parto e puerpério, como perspectivas situadas em diálogo. As usuárias abordam a relação com profissionais da APS e da maternidade. Os profissionais relatam a relação deles com as usuárias na(s) gestação(ões) e no puerpério e o que sabem ou “ouviram falar” sobre o que ocorreu na maternidade. Esta análise pretende problematizar a partir de situações concretas as tensões presentes no debate mais amplo sobre violência, saúde e direitos.
Método
Trata-se de estudo qualitativo, exploratório e analítico, integrante do projeto intitulado “Envolvendo Usuários para Melhoria da Qualidade dos Serviços e Garantia de Direitos: fortalecendo o sistema de cuidados de saúde materno-infantil nos primeiros 1000 dias no Brasil (EU QUERO)”, parceria entre Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Universidade Federal de Goiás (UFG) e University of Southampton (Rodrigues et al., 2023RODRIGUES, C. B. et al. Prenatal care and human rights: Addressing the gap between medical and legal frameworks and the experience of women in Brazil. PLoS One, v. 18, p. e0281581, 2023.).
A pesquisa de campo foi realizada entre janeiro e maio de 2019, em Unidades de Atenção Primária à Saúde (UAPS), situadas em duas cidades de um estado do Nordeste brasileiro, na capital (quatro) e no interior do estado (nove).
A equipe foi integrada por três pesquisadoras (médica, psicóloga e antropóloga) docentes, doutoras em Saúde Coletiva, com experiência em pesquisa qualitativa, oito discentes de graduação na área da saúde e quatro de pós-graduação em Saúde Coletiva.
A entrada em campo iniciou-se por meio de contato com gestores de saúde do estado, dos municípios e, posteriormente, das respectivas UAPS. Realizaram-se visitas exploratórias e, juntamente com profissionais de saúde, foram selecionadas gestantes e/ou mulheres com filhos de até dois anos de idade, usuárias das unidades pesquisadas.
A amostra foi escolhida considerando residência no município, diferenças etárias, número de filhos e disponibilidade para participar da pesquisa. Dentre os profissionais de saúde, todos foram convidados, excetuando os licenciados, em férias e com atuação recente na unidade (menos de um mês).
Na capital, oito Grupos Focais (GF) foram realizados e 12 no interior (Figura 1). Não houve recusa à participação no estudo. Inicialmente, os GF aglutinaram, de um lado, mulheres e agentes comunitários de saúde (ACS); e de outro, demais profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, dentistas e técnicos).
A proposta de reunir usuárias e ACS estava associada à ideia de pertencimento a um mesmo território, uma comunidade. Todavia, após a realização dos dois primeiros encontros, tanto no interior quanto na capital, optou-se por modificar essa composição, separando grupos de usuárias de ACS. Esta nova organização possibilitou às usuárias falarem mais abertamente, inclusive com críticas aos profissionais. Naquele contexto, o “nós” e o “eles” estava marcado mais pela relação profissional de saúde-usuária do que por uma relação entre os “de dentro” e os “de fora” da comunidade”. Compreender essa divisão possibilitou problematizar a intersubjetividade na relação pesquisador-pesquisado e a produção de dados da pesquisa. Para garantir um lugar de fala dos ACS, estes foram separados das usuárias em ambos os municípios. A composição nos dois espaços pesquisados foi rigorosamente a mesma, o que permitiu comparabilidade desses contextos.
Os GF tiveram duração média de 90 minutos e foram realizados nas próprias UAPS, com exceção de dois GF no interior, que aconteceram em uma escola. A mudança de espaço social, no entanto, não modificou a relação hierarquizada entre profissionais de ensino superior e os de nível técnico. As atividades foram gravadas e os trechos apresentados correspondem ao material transcrito.
Em termos epistemológicos, buscou-se acessar a representação que os sujeitos fazem acerca da realidade vivida, bem como da interação assimétrica com o “outro”, como na relação entre usuárias e profissionais de saúde. Para interpretação dos dados, pretendeu-se, a partir de análise sociológica, compreender as práticas, os valores e os significados atribuídos ao contexto e, sobretudo, às interações entre esses atores (Victora; Knauth; Hassen, 2000; Goldenberg, 2013GOLDENBERG, M. A arte de pesquisar. Como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Record, 2013.). Considerou-se que as experiências de pré-natal, parto e puerpério são individuais, mas os sentidos e significados são compartilhados coletivamente por mulheres com propriedades sociais próximas e discutidos sob a ótica dos profissionais que partilham de contexto social distinto (Rezende, 2019REZENDE, C. B. Histórias de superação: parto, experiência e emoção. Horiz. antropol. Porto Alegre, ano 25, n. 54, p. 203-225, 2019.).
Realizaram-se leituras sucessivas do material transcrito, assim como oficinas de análise com o grupo de pesquisadoras. Inicialmente, os conteúdos foram sistematizados a partir da descrição dos serviços e assistência praticada nas unidades de atenção primárias e maternidades. Em seguida, os resultados foram organizados nos seguintes eixos temáticos: assistência à saúde materna e violência como fio condutor; dinâmica das relações assimétricas entre profissionais e usuárias; controle de emoções e violência como linguagem.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário vinculado à Universidade Federal do Maranhão, conforme CAAE nº 92281818.9.1001.5086. Para resguardar o sigilo e a confidencialidade das informações do material coletado, os GF foram codificados (capital ou interior) e numerados; a identidade dos participantes foi omitida: mulheres foram representadas por M, profissionais de saúde por P e ACS, sendo a numeração relativa à sequência temporal dos GF realizados.
Resultados e Discussão
Participaram do estudo 56 mulheres (Tabela 1) e 114 trabalhadores de saúde (Tabela 2). Em ambos os municípios, os GF das usuárias assemelharam-se, por vezes, a rodas de conversas. Nestas, as experiências individuais na assistência e relações com profissionais de saúde foram compartilhadas coletivamente pelas participantes. As mulheres do interior relataram mais entraves ao acesso aos serviços de saúde quando comparado às da capital, sobretudo no que tange à distância geográfica e ao número de profissionais nas UAPS. O momento do parto nas maternidades foi descrito, de modo geral, como um evento marcado pela violência, situação que foi também reconhecida pelos demais participantes da pesquisa. Para transitar nesses cenários e assegurar seus direitos, as usuárias parecem recorrer tanto ao silenciamento, expresso por um controle de suas emoções, quanto a gritos e ameaças, configurando uma linguagem mediada pela violência, praticada pelos profissionais, resistida e, às vezes, reagida por parturientes e seus familiares.
Para os profissionais, foi necessário insistir que nossa pesquisa não tinha caráter avaliativo. Observou-se, nos GF com profissionais, uma atitude de responsabilização das usuárias, descritas como desinteressadas pelo cumprimento da agenda de consultas, principalmente do pré-natal e puericultura e demais cuidados maternos. Nos GF, o papel do ACS no acompanhamento da comunidade, as dificuldades encontradas no exercício profissional e relativas à rede de atenção e gestão pública foram discutidos. No interior, as questões logísticas que limitam o acesso à UAPS ganharam destaque.
Nos GF de profissionais, médicos exerciam uma liderança, seguidos por enfermeiras e dentistas, tanto na capital quanto no interior. Os ACS e técnicos ocupavam posição subordinada em termos de classe social, mas os primeiros se posicionavam, enquanto os técnicos pouco se manifestavam. Embora não ocupem posição hegemônica no saber biomédico, os ACS possuíam vínculos de trabalho mais estáveis, porque eram concursados; além disso, viviam no território e trabalhavam há mais tempo que os demais. Também contavam com atuantes instituições representativas da categoria profissional. No município do interior, a secretária de Saúde era uma ACS no momento da pesquisa.
A hierarquia entre os profissionais de nível superior e médio se fez presente no cenário da pesquisa, apontando a diferença de posição relativa dos atores sociais expressa literalmente no discurso. A manifestação de conflitos simbólicos reproduzidos no contexto pesquisado faz pensar nos instrumentos de legitimação de dominação de uma classe sobre outra, denominada violência simbólica (BOURDIEU, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Edições 70, 2011.). Poder falar e sentir-se autorizado a falar em nome do grupo marcou a distinção entre a eloquência e o mutismo.
Assistência à saúde materna e violência como fio condutor
Foi possível identificar diferenças nos relatos dos GF realizados no interior do estado e na capital. As usuárias do interior relataram intensas dificuldades de mobilidade no território devido à distância entre o domicílio e a UAPS. Além das mulheres, os profissionais e ACS também reconheceram esse aspecto como uma barreira inclusive para sua prática profissional, gerando obstáculos nas consultas de pré-natal e puericultura. A falta de transporte em algumas localidades foi vista como fator que intensifica os entraves para a garantia do acesso e continuidade no cuidado e assistência à saúde materna.
Que nem a gente lá, não tem um transporte, assim, fixo. (Interior2 M9).
[consultas de pré-natal] [...] as áreas mais distantes como a minha, isso às vezes dificulta tanto pra gente se deslocar quanto também pra mãe se deslocar (Interior2 ACS17).
As situações de peregrinação das usuárias se intensificam durante o trabalho de parto, revelando descompasso entre a lógica institucional das maternidades (vinculação e disponibilidade na rede) e a demanda de mulheres. A dificuldade de transporte, o tempo de deslocamento até os serviços de saúde somam-se à relação distanciada com a equipe, sobretudo, o médico. A região tinha apenas um hospital geral com cinco leitos destinados à obstetrícia (Brasil, 2021) que, na ocasião da pesquisa, estava em reforma. O acompanhamento das gestantes classificadas durante o pré-natal como de alto risco era realizado em maternidades nas cidades vizinhas ou na capital.
Vale ressaltar que os avanços no acesso à saúde materna são recentes e a organização dos serviços na rede de atenção tem sido potencializada nos últimos anos no contexto estudado, sobretudo, a partir da Rede Cegonha, com ações voltadas à qualificação da atenção ao parto e nascimento e pautadas nos direitos de mulheres e crianças até os dois anos de idade (Vilela et al., 2021VILELA, M. E. de A. et al. Avaliação da atenção ao parto e nascimento nas maternidades da Rede Cegonha: os caminhos metodológicos. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 789-800, 2021.).
Profissionais do interior apresentaram postura crítica com relação às usuárias que demandavam sua mediação no acesso a serviços, denominada de favor, criticando-as por não fazerem valer sua posição de sujeitos de direito. Os ACS da região reconheceram situações de discriminações vivenciadas pelas mulheres nas instituições de saúde quando buscavam efetivar seus direitos. Já na capital, o direito à saúde foi visto como elemento que está subordinado aos recursos insuficientes do município.
[...] A gente observa que as pessoas estão muito ainda pela história do favor. “Porque eu não conheço ninguém lá [no hospital]. Eu preciso de ajuda pro meu filho”. (Interior1 P9).
[...] essa questão das mães quando precisam, em trabalho de parto, né? A gente vê que elas em algumas repartições sofrem até discriminações, passam por situações bem difíceis mesmo, né? (Interior2 ACS14)
[...] às vezes, ocorrem algumas coisas que, assim, fogem do controle da gente. Então, assim, a gente oferece, dentro das possibilidades do que a gente tem, o que o município disponibiliza para gente (Capital2 P4).
Os profissionais entrevistados, em geral, demonstraram mais solidariedade às usuárias quando a temática da assistência materna estava relacionada às maternidades, principalmente ao mencionar as práticas relativas ao parto e o quanto tudo isso gerava desconforto para as pacientes.
Carência de materiais básicos de hotelaria, condições de higiene consideradas insatisfatórias e precariedade na estrutura hospitalar caracterizam o cenário, segundo as usuárias da capital e do interior.
Não basta a gente estar dentro do hospital, ele tem que estar pelo menos limpinho... tudo organizado, com os materiais [...] (Capital1 M1).
É uma coisa que falta muito, essa parte dos panos, utensílios. Não que a gente não tenha que levar nosso lençolzinho com nosso cheirinho, mas... é qualquer área dentro do hospital, você já tem que levar tudo [referindo-se às toalhas e lençóis], porque não tem (Interior5 M5).
[...] Chega aqui ao hospital, [o profissional pergunta]: “você não trouxe colcha? Você não trouxe toalha? Você não trouxe roupa?”. [Aqui] Não tem. (Interior3 M5).
Essa situação pode ser vista como risco adicional para saúde das mulheres e, consequentemente, das crianças, além de provocar insegurança e intensificar o sofrimento. Assim, em que medida as dificuldades vivenciadas na busca por assistência apontadas pelas mulheres e reconhecidas pelos profissionais de saúde e ACS constituem prática naturalizada de violação de direitos? As barreiras no acesso aos serviços e a escassez de materiais apontaram uma lógica institucional, seja das UAPS ou das maternidades, que tem a violência como prática cotidiana.
O cuidado em saúde durante o ciclo gravídico-puerperal, garantido constitucionalmente como direito e reconhecido, ao menos no discurso, por profissionais, é marcado por práticas discriminatórias de gênero, classe social e raça/etnia ocorridas nas maternidades públicas. Tais atos são nomeados por Aguiar e D’Oliveira (2011AGUIAR, J. M. de; D’OLIVEIRA, A. F. P. L. Violência institucional em maternidades públicas sob a ótica das usuárias. Interface-Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 15, n. 36, p. 79-92, 2011.) de violência institucional. As diferenças – ser mulher, pobre, negra e de baixa escolaridade – são transformadas em desigualdades, revelando relação hierárquica, na qual a paciente não é tratada como sujeito de suas próprias escolhas e decisões.
Trata-se de uma violência invisibilizada, por vezes, não nomeada enquanto tal, por ser naturalizada nas práticas e rotinas assistenciais. Os interesses institucionais sobrepõem-se às necessidades das parturientes. O que as mulheres dizem saber e sentir sobre o próprio corpo tende a ser desprezado num contexto em que os saberes dos profissionais são determinantes e a tecnologia e o saber médico enaltecidos.
A oferta de serviços de saúde durante a gestação, parto e puerpério revela práticas em que a violência não é reconhecida, sobretudo, pelos profissionais de saúde. Mais do que críticas com relação às estruturas precárias dos serviços de saúde e o funcionamento deste, é na relação com profissionais que a violência corrobora a desvalorização do protagonismo das usuárias (Kiss; Schraiber, 2011KISS, L.; SCHRAIBER, L. Temas médico-sociais e a intervenção em saúde: a violência contra mulheres no discurso dos profissionais. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 16, n. 3, p. 1943-1952, 2011.).
A violência institucional na assistência à saúde vem sendo discutida e denunciada pela academia e pelos movimentos sociais há algumas décadas. A persistência de práticas que priorizam procedimentos ao invés de sujeitos parece indicar que estão há muito enraizadas nas relações entre profissionais e usuárias. Além disso, encontram-se superpostos outros marcadores sociais da diferença como raça/ etnia, classe e gênero.
Dinâmica das relações assimétricas entre profissionais e usuárias
Quando abordaram as experiências nas UAPS, as mulheres da capital relacionaram a noção de cuidado à expectativa de ser ouvida pelos profissionais, esclarecer dúvidas, pontuando a importância do diálogo. Tanto as usuárias da capital quanto as do interior relataram atos perpetrados pelos profissionais nas maternidades que incluem desde reprimendas com relação aos gritos de dor durante as contrações até a sensação de abandono como punição pelo comportamento considerado escandaloso. Na perspectiva das mulheres, os profissionais as repreendem, ignoram, abandonam. As experiências de cuidado revelaram mais constrangimento e maus tratos do que acolhimento.
Porque elas enfermeira(o)s e técnica(o)s] gostam... elas me deixaram trancada lá no quarto gritando (Capital2 M2).
[...] Eu fui costurada sem anestesia, sem nada! Te juro! Foi a enfermeira que me atendeu, a médica estava dormindo, a médica. Ela me cortou errado, tá doido, muito sangue! [...]. (Interior2 M11).
Os GF possibilitaram momentos de trocas de experiências no pré-parto e parto entre as mulheres que denunciaram medos e desrespeitos e também reações, no grito, à violência praticada contra elas tanto na capital quanto no interior do estado. Identificou-se um descompasso entre a expectativa que as usuárias tinham dos atendimentos e o que era disponibilizado no momento da consulta do pré-natal, puericultura e nas maternidades.
As usuárias verbalizaram falta de diálogo e acolhimento, os profissionais da capital e do interior falaram de um desinteresse “cultural” das mulheres na busca por informações. Para estes, o que era valorizado pelas usuárias centralizava-se na prática médica prescritiva e medicamentosa. Na visão de médicos, enfermeiras, dentistas, as usuárias dão pouca importância ao material e às orientações recebidas verbalmente durante as consultas e em palestras.
É falta de interesse! E é, tipo assim, quando a gente vê que tem algum estímulo, tem consulta, aí elas vêm. Vai dar um kit de enxoval, aí elas vêm. Então, quando tem essa coisa de dar alguma coisa em troca, aí elas são mais… (Capital2 P2).
É... cultural. Se você não escrever nada, [se ela] não levar nenhum papel da consulta, ela diz assim: “Ah, fui lá só pra ela olhar (Capital1 P4).
Médico que não passa remédio, não presta (Capital1 P15).
Na perspectiva de ACS do interior, a distância geográfica e a carência de transporte consistem em barreiras de acesso ao pré-natal, assim como a escassez de profissionais. O descompasso entre as orientações transmitidas e a falta de médicos para o atendimento é visto como uma situação que “coloca em xeque” sua credibilidade profissional. Os maus tratos ocorridos no parto e a falta de informações são vistos como violações aos direitos à saúde das mulheres. A essencialização da noção da cultura não faz parte do repertório de acusação de um suposto desinteresse por parte das usuárias.
Na visão das usuárias, a centralidade da figura do médico, em relação aos demais integrantes da equipe, é percebida pelos profissionais como uma desvalorização dos saberes e das práticas multidisciplinares e interprofissionais. Tal olhar reforça a assimetria na relação entre os profissionais e destes com as usuárias, corroborando com o viés biomédico em detrimento dos cuidados biopsicossociais que valorizam a integralidade do sujeito.
Camargo Júnior (2005CAMARGO JÚNIOR, K. R. de. A biomedicina. Physis: Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 15, p. 177-201, 2005. Suplemento. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-73312005000300009&script=sci_abstract&tlng=ES. Acesso em: 21 jan. 2021.
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S01...
) dirige-se à racionalidade biomédica como produtora de discursos com validade universal, com modelos e leis de aplicação geral que não se relacionam às questões subjetivas em torno do sujeito. Neste paradigma, o nascimento é visto como mais um procedimento técnico e o parto é medicalizado.
O modelo hegemônico de assistência à saúde materna, intervencionista, utiliza procedimentos e tecnologias médicas, desvinculados das boas práticas e, por vezes, das evidências científicas (Nicida et al., 2020NICIDA, L. R. A. et al. Medicalização do parto: os sentidos atribuídos pela literatura de assistência ao parto no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 25, n. 11, p. 4531-4546, 2020.). A isto se soma relações de autoridade e de hierarquia entre os profissionais, centralizadas na figura do médico, as quais implicam perda do protagonismo da mulher, como apontado nos achados da pesquisa.
Rohden (2001ROHDEN, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.) discute a constituição dos saberes sobre o corpo feminino, como objeto de intervenções médicas, e a medicalização da maternidade. Deslandes (2006DESLANDES, S. F. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006., p. 34), ao tratar do debate em torno da humanização em saúde, destaca a permanência de estruturas que alicerçam a produção de cuidado, reproduzindo e atualizando dinâmicas relacionais excludentes. Refere-se à “lógica da formação profissional na área biomédica, a organização dos serviços, as estruturas de hierarquia social e da provisão de cuidados” como fatores de ordem estrutural, bem como as relações de conflito, cooperação e subordinação entre profissionais e pacientes que vem a constituir práticas em que a violência é naturalizada.
Assim, o não reconhecimento do sujeito em uma racionalidade em que as pessoas são vistas como conjunto de necessidades padronizadas e atendidas por serviços igualmente estandardizados pode propiciar interação acessória, dispensável ou mesmo ausente. Essa lógica de funcionamento relaciona-se à violação dos direitos em saúde nesses cenários, na medida em que não considera atender demandas e expectativas dos usuários (Deslandes, 2006DESLANDES, S. F. Humanização dos cuidados em saúde: conceitos, dilemas e práticas. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2006.).
Bourdieu (2021BOURDIEU, P. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2021., p. 64), ao tecer considerações sobre a violência simbólica, pontua que “se institui por intermédio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante”, de modo que essa relação desigual é vista como natural, não reconhecida e, portanto, invisível. Forma incorporada na relação de dominação que somente pode ser compreendida ao observarmos os efeitos duradouros que a ordem social exerce sobre as mulheres, submissão feminina, à força simbólica sobre os corpos destas.
As usuárias da capital queixaram-se da ausência de comunicação e demandas não atendidas durante os atendimentos, enquanto os profissionais sinalizaram o desinteresse das mulheres em buscar mais informações e seguir as recomendações da equipe de saúde, compreendida além da figura do médico. No interior, relatos de repreensões intensificam a relação hierárquica saber-poder. Nessa interação, a violência simbólica, observada como uma forma de responsabilização, presente nas relações assimétricas entre profissionais e usuárias processa-se pelo ato de (des)conhecimento que se efetiva aquém da consciência e da vontade, como pontua o autor supracitado. Exerce seu “poder hipnótico” a todas suas manifestações, ameaças, censuras e ordens para perpetuação (Bourdieu, 2011BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Edições 70, 2011., p. 4).
Os conflitos simbólicos presentes na vida cotidiana se constituem através das relações de poder, cuja eficácia se exerce porque é ignorada como arbitrária, por ser uma forma transformada, transfigurada e, por assim dizer, legitimada de outras formas de poder. Atualizados nas relações assimétricas entre profissionais de saúde e usuárias, a violência simbólica encontra-se entranhada na assistência à saúde materna.
Controle de emoções e a violência como linguagem
A partir do relato sobre o que as usuárias compreendiam como direitos, experiências vivenciadas nas instituições de saúde foram rememoradas e, então, revelados um modo de proceder e uma linguagem pautada na violência, diante do imperativo de que a dor não devia ser expressa, mas controlada, sobretudo, na maternidade. As dificuldades no acesso aos serviços se intensificaram no interior no estado, seja pela limitação de recursos materiais e poucos profissionais, seja por barreiras no deslocamento.
Tanto no interior quanto na capital, os profissionais da APS reconheceram situações de violência na assistência à saúde materna, quando abordaram as práticas nas maternidades. Porém, pouco problematizaram sobre as relações assimétricas construídas nas instituições de saúde em que atuam e o quanto a lógica institucional naturaliza e invisibiliza a violência. As usuárias demonstraram conhecer direitos, porém para acessá-los, recorriam à linguagem da violência como prática que precisavam adotar para serem respeitadas pelos profissionais de saúde.
Eu tenho medo é de parir. Não sei como é que vai ser…Levo meu marido que ele bota logo terror ... Chega no hospital, se não fizer um escândalo logo, não é atendido, não. Hoje em dia, é assim. (Capital2 M3).
No caso, eu tive que dar uma de louca! De grossa, porque senão: “Olha minha filha, eu tenho direito, você quer o quê? Que eu lhe denuncie? Você que sabe! Eu estou aqui berrando ‘aaah!’ eu estou com dor, mas eu vou bem ali na delegacia. (Interior3 M4).
Os relatos sobre o medo de parir e de não ser bem atendida na maternidade vêm acompanhados da estratégia adotada para fazer valer seus direitos: o escândalo e a ameaça. Ao confrontar-se com entraves nos serviços, a resposta é “botar logo o terror”, fazendo uso da linguagem da violência. Segundo Aguiar e d´Oliveira (2011), o tratamento grosseiro acompanhado de ameaças constitui abuso verbal, sendo, portanto, considerada uma forma de violência.
Além do medo, a solidão, a dor, o silenciamento do sofrimento e outros maus-tratos fazem parte da experiência de usuárias, especialmente do interior, das maternidades:
[...] sofri algumas, algumas, torturas porque é aquela: “Ah, quando fez não gritou, agora para que gritar”? Tive aquela penitência de ficar sozinha na sala, me deixaram sozinha... falavam muito para mim calar minha boca... (Interior3 M2).
Cala a boca? Nessa hora, ninguém cala a boca. (Interior3 M4).
Os profissionais da APS das unidades pesquisadas confirmam a percepção de que há violência nos serviços de assistência materna, descrevendo situações de peregrinação da mulher em trabalho de parto, assim como negligência, procedimentos invasivos, considerados desnecessários, e humilhações nas maternidades. Visão também ressaltada pelos ACS.
Aí, esses hospitais pequenos. Como são os nossos casos. Não tem ultrassom [...] Então, chega lá só com o olhar! ‘Não é hora’... Aí, você vai para casa... Vai três, quatro vezes para casa. Aí, às vezes, quando volta, o bebê já está em sofrimento. Então, eu acho que está rolando aí um pouquinho de negligência também de alguns profissionais, não são todos. Mas, a gente sabe que tem sim (Interior1 P9).
Se eu recebo uma paciente aqui, e eu sei que essa paciente vai complicar, eu não tenho para onde correr. Se lá me fecham as portas [maternidade], aqui [na UBS] não adianta abrir. É esse o grande problema. Então, eu falo o seguinte: direito, direito de quê? (Capital1 P15).
Porque é uma coisa horrível. Horrível! Tem profissional que não chega nem... é um destratamento, uma ignorância, não tenho nem palavra para isso (Interior3 ACS6).
[...] as mulheres não precisariam passar por… vamos dizer… tantas humilhações. Por que isso é ser humilhada, né? Humilhada dentro do hospital pra ter criança (Interior3 ACS6).
Nos GF, reuniram-se mulheres com diferentes experiências de maternidade. Frequentemente, as “veteranas” assumiam o protagonismo das falas e informavam às “novatas” como se comportar, sobretudo, na hora do parto. É possível falar de regras, negociadas ou não, que são impostas na parturição: comportamentos, modos e estratégias para fazer valer os direitos, seja pela ameaça ou mesmo denúncia, recaindo, mais uma vez, em formas de violência.
Tornquist (2003TORNQUIST, C. S. Paradoxos da humanização em uma maternidade no Brasil. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 19, p. S419-S427, 2003. Suplemento 2., p. 24) assinala que mulheres de classes médias e de grupos populares demonstram grande preocupação com a performance em termos do controle das emoções nas maternidades, de forma a não expressar a dor e, assim: “não gritar, não entrar em desespero, obedecer às ordens médicas, acatar os conselhos da equipe”. Situações que ultrapassam os limites do comportamento esperado acabam por gerar forte tensão entre os profissionais e podem levar a mudanças, como aceleração do trabalho de parto, alteração do tipo de parto.
Acerca da episiotomia, mulheres entrevistadas referiram ter “levado aquele corte sem necessidade” (Capital2 M2). Esta prática apareceu na pesquisa como parte da rotina de parturição. A incisão cirúrgica, mencionada nos relatos, foi utilizada durante o parto vaginal, a fim de obter a expansão perineal para passagem do feto, mesmo sendo indicada apenas em casos seletivos e não rotineiros. As situações em que o procedimento não é comunicado e autorizado, configuram violência obstétrica, assim como violência contra a autonomia da mulher e sua integridade (Freitas et al., 2020FREITAS, M. T. de et al. Os limites entre a episiotomia de rotina e a violência obstétrica. Rev Eletrônica Acervo Científico, São Paulo, v. 13, p. 1-7, 2020. Disponível em: https://acervomais.com.br/index.php/cientifico/article/view/4696/2924. Acesso em: 25 jan. 2021.). Estão associados a potenciais riscos e sequelas, constituindo, também, prática de não reconhecimento dos direitos reprodutivos femininos (Sena; Tesser, 2017SENA, L. M.; TESSER, C. D. Violência obstétrica no Brasil e o ciberativismo de mulheres mães: Relato de duas experiências. Interface - Comunicação, Saúde, Educação. Botucatu, v. 21, n. 60, p. 209-220, 2017.).
Os relatos das usuárias dizem respeito às experiências sofridas e suas respostas para reivindicar suas necessidades de cuidado. Por parte dos profissionais, há o reconhecimento de práticas violentas quando relatam o que acontece nas maternidades, mas o mesmo não acontece quando descrevem as relações com as usuárias da APS. Da violência obstétrica discutida e midiatizada, à violência invisibilizada, não nomeada e naturalizada pela lógica institucional, assistimos à reprodução de práticas, pouco (re)conhecidas e problematizadas, presentes na rotina de serviços de assistência materna. Como apontado na pesquisa, essas práticas são ainda mais intensas nos relatos das mulheres e profissionais do interior do estado.
Considerações finais
Os relatos põem em evidência uma dinâmica de funcionamento dos serviços que revelam relações desiguais e assimétricas de poder, impactando na qualidade do que é ofertado e em um modo de responsabilização das usuárias pelos profissionais de saúde no que tange aos desfechos. Expectativas não atendidas, demandas negligenciadas, assim como práticas violentas geraram reações como resposta.
Esses conflitos simbólicos reproduzidos no contexto de pesquisa ressaltam os instrumentos de legitimação de dominação de uma classe sobre outra, assim como a interseccionalidade das questões de gênero e raça. Ameaças, denúncias e percalços nos serviços durante a gestação, o parto e puerpério deflagram que a violência é utilizada como recurso para fazer valer o que essas usuárias entendiam por direitos, sendo, portanto, um fio condutor na assistência à saúde materna.
A interação com profissionais de saúde é marcada pela presença de uma violência naturalizada acentuada no interior do estado nordestino por um contexto de dificuldades expresso por ausências de transporte, de falta de vacinas, medicações, ultrassons e hotelaria inadequada nas maternidades. Intensificando os entraves no acesso aos serviços de saúde, quando comparado às vivências na capital.
Olhar para a especificidade dos relatos acerca do cotidiano na assistência à saúde materna, em contexto de pobreza, incluindo relações mediadas por uma gramática da violência, pode contribuir para a compreensão de dificuldades e desafios concretos à implementação de direitos reprodutivos.
O compromisso com as noções de saúde, direito universal, justiça social, entre outros, exige a compreensão do jogo de forças políticas que, a despeito dos esforços no sentido da diminuição da desigualdade social nas últimas décadas, vêm recentemente extinguindo direitos sociais historicamente conquistados em nosso país. Não se trata apenas de pensar a promoção de equidade em termos programáticos, mas de encarar os modos como culturalmente a diversidade (classe, gênero, raça/etnia, dentre outras) é legitimada como desigualdade social. Os casos concretos nos ajudam a problematizar a complexidade das relações sociais entre sujeitos coletivos e também os desafios da democratização de saberes e práticas de saúde.
Agradecimento
Os autores agradecem o apoio financeiro do Medical Research Council (MRC) [Grant number MR/R022933/1, United Kingdom] e da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento do Maranhão Científico e Tecnológico do Maranhão (FAPEMA) [Chamada FAPEMA nº009/2018-COOPI-00710/18, bolsa BEPP-01803/21]. Agradecem também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) [processos 306592/2018-5, 314939/2020-2 e 308917/2021-9] e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) [finance code 001] pelo apoio à publicação científica. Os financiadores não tiveram nenhum papel no desenho do estudo, coleta de dados ou análise; nem nas decisões relativas a publicação e preparação do manuscrito.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
15 Dez 2022 -
Aceito
25 Abr 2023 -
Revisado
23 Mar 2023