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Gestores da saúde também cuidam? Compreensões do cuidado integral entre gestores de um município do Nordeste brasileiro

Do Health Managers Also Provide Care? Understandings of Comprehensive Care Among Managers in a Municipality in Northeast Brazil

Resumo

O artigo objetiva discutir as diferentes compreensões de gestores da saúde pública acerca do cuidar de si e do outro em uma perspectiva integral. Estudo com abordagem qualitativa do tipo descritiva e exploratória. A coleta de dados foi realizada a partir do método cartográfico. Entrevistaram-se nove gestores no período entre outubro e dezembro de 2022. A análise dos dados se apoiou na análise de conteúdo proposta por Bardin. A partir desta pesquisa, foi possível perceber que há cuidado na hora de acolher, de escutar, de dialogar, de lidar consigo mesmo, com seus familiares e com as coisas do mundo da vida. Há uma nova perspectiva ao compreender que cuidar de si é uma expressão do preocupar-se em cuidar do outro e cuidar do outro pode ser uma face do autocuidado. Esse movimento pendular do cuidado entre o cuidar de si e dos outros acontece na vida dos gestores nem sempre de forma tão fluida, considerando que a instância do cuidar de si mostrou-se fragilizada. Sugere-se investigar os instrumentos e ferramentas para a gestão do cuidado entre os gestores e quais fatores influenciam na sua autonomia e tomada de decisão.

Palavras-chave:
Autocuidado; Gerência em saúde; Saúde pública

Abstract

The article aims to discuss the different understandings of public health managers regarding self-care and care for others from a comprehensive perspective. This study adopts a qualitative approach of a descriptive and exploratory nature. Data collection was carried out using the cartographic method. Nine managers were interviewed between October and December 2022. X Bardin's content analysis supported data analysis. This research allowed to perceive that care occurs in moments of welcoming, listening, dialogue, and dealing with oneself, with family members, and with life's matters. A new perspective emerges from understanding that self-care is an expression of the concern for caring for others and caring for others can be an aspect of self-care. This pendular movement of care between self-care and care for others happens in the lives of managers, not always in a fluid manner, considering that the self-care instance appeared to be weakened. It is suggested to investigate the instruments and tools for care management among managers and which factors influence their autonomy and decision-making.

Keywords:
Self-care; Health management; Public health

Introdução

Existem plurais formas de compreender as dinâmicas do cuidado em saúde. A noção de cuidado se faz presente em vários elementos, desde sua compreensão teórica à sua prática. Ao discutir o cuidado, é necessário relembrar que o sujeito é um ser biológico, social, psicológico, existencial, ambiental, histórico e cultural. As dimensões de cuidado humanas não devem ser compreendidas em caráter cumulativo, mas complementares e interdependentes (Anderson et al., 2016ANDERSON, M.I; RODRIGUES, R.D. O paradigma da complexidade e os conceitos da Medicina integral: saúde, adoecimento e integralidade. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto, Rio de Janeiro, v. 15, n. 3, p. 242-252, 2016.).

Ao discorrer a partir do cuidado, é preciso compreender o meio em que este está inserido. Na sociedade brasileira contemporânea, com fortes aspectos do neoliberalismo econômico, não é incomum ter acesso a literaturas sociológicas ou antropológicas que tratam da “crise do cuidado”. Nesse modelo econômico capitalista, que é o neoliberalismo, a produtividade em prol de maiores índices de financeirização do capital aparece como protagonista e as diversas formas de cuidado (que muitas vezes não apresentam aspecto financeirizado) ficam em segundo plano. Esse formato de condução da sociedade produz uma crise nela mesma, a qual alguns autores apontam a “pobreza de tempo para cuidar” como fator estruturante desse caos social. Toda essa crise se faz em um atrito entre reprodução econômica e as práticas do cuidado, sinalizando uma contradição entre o capital e o cuidado, ou até mesmo, a desarmonia entre a vida pessoal familiar e o trabalho (Fraser, 2016FRASER, N. Contradictions of capital and care. New Left Review, v. 100, p. 99-117, 2016.).

Destaca-se que a maioria dos trabalhos encontrados na literatura discorrem a partir do cuidado em uma perspectiva assistencial na saúde, não se atentando ao cuidado no âmbito da gestão. É preciso compreender como o cuidado se expressa também no âmbito da gestão para se ter uma visão mais integral, considerando a premissa de inseparabilidade entre assistência e gestão.

Entretanto, Gonçalves Jr e Barreto (2021), em meio às entrevistas realizadas se depararam com o seguinte questionamento: os gestores que trabalham no nível central de uma secretaria de saúde se percebem na condição de cuidadores? O cuidado estaria no âmbito dessa categoria profissional ou somente a cargo dos profissionais diretamente ligados à assistência?

Esse equivocado conflito na produção de cuidado entre a gestão e a atenção à saúde já foi estudado por Paulon e Schenkel (2022PAULON, S. M.; SCHENKEL, J. M. Apoio institucional como tecnologia para produção de uma gestão menor na área da saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 32, n. 4, 2022.), que ressaltam que ambas as instâncias são faces de uma mesma moeda. O atual trabalho objetiva discutir as diferentes concepções de cuidado integral na ótica dos gestores, considerando o cuidar de si e do outro, numa perspectiva compreensiva e teórica acerca do cuidado.

Metodologia

Tratou-se de um estudo com abordagem qualitativa do tipo descritiva e exploratória. Quanto à coleta de dados, foi realizada a partir do método cartográfico. No entanto, a cartografia aqui utilizada não foi aquela tradicional que constrói mapas ou representa objetos físicos, mas sim, a cartografia baseada nos princípios da esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari (Barros; Passos, 2012BARROS, R.B.; PASSOS, E. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (orgs.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2012.).

A cartografia enquanto método de pesquisa pode ser considerada uma pesquisa-intervenção, em que o pesquisador e o pesquisado se transformam no processo. A cartografia tem a potência de mapear a dinâmica dos afetos e questões de ordem psicossociais (Deleuze; Guattari,1995DELEUZE; GUATTARI. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.). A intervenção acontece na medida em que o pesquisador compartilha os mesmos espaços que os participantes da pesquisa, estabelece vínculos de confiança e ajuda a co-construir a microrrealidade local. Nesse entrelaçar, o pesquisador se insere no meio e também é afetado por ele, pois estando imerso nessa dinâmica de afetos, elabora novas percepções acerca daquela realidade. Isto porque as experiências compartilhadas entre pesquisador e pesquisado têm o potencial de agir e o intervir na construção de novas realidades (Sade; Ferraz; Rocha, 2016).

É importante ressaltar que o primeiro autor trabalha na Secretaria de Saúde pesquisada e ocupa um cargo na gestão, mas não é coordenador de políticas de saúde. Ou seja, seu cotidiano perpassa pelo vínculo com os gestores entrevistados, permitindo-o “observar mais de perto” e, a partir da intersubjetividade das relações cotidianas, levar o público da pesquisa a refletir sobre o cuidado no âmbito da gestão em saúde.

Do total de 11 gestores, foram entrevistados nove, que assumiam cargos de coordenação de políticas e programas da saúde no Departamento de Atenção à Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de uma cidade do interior pernambucano com cerca de 140 mil habitantes, situada a 45km da capital do estado (IBGE, 2022). A exclusão de duas gestoras se deu por motivo de afastamento por licença-maternidade no período das entrevistas que aconteceu entre outubro e dezembro de 2022.

Na cartografia não se fala em entrevistas, mas em manejo cartográfico das entrevistas. Essa “entrevista visa não a fala na experiência, mas a experiência na fala” (Tedesco; Sade; Caiman, 2016, p.100). De acordo com esses autores, para isso é preciso criar um setting que aproxime os participantes da experiência. Sendo assim, todas as entrevistas ocorreram dentro da Secretaria de Saúde, no horário do expediente de trabalho e a maioria no turno vespertino, por ser considerado o turno “menos corrido”. Antes dessas entrevistas, conversou-se com os participantes sobre a temática do trabalho e pedido para que eles pudessem falar a partir de seu cotidiano naquele ambiente. No instante de pensar e elaborar o roteiro da entrevista, não havia a pretensão de responder às questões, mas sim de sair delas, pensar além, transbordar o senso comum, fugir dos binarismos e sintonizar com as pluralidades de vozes emergentes do encontro que ali estava por vir. Ainda para Tedesco, Sade e Caliman (2016), as entrevistas também têm o potencial de construir novas experiências e realidades - portanto, a elaboração das questões a serem trabalhadas são estratégias para “abertura” dessas possibilidades.

As questões a serem trabalhadas nas entrevistas apoiaram-se nas dimensões propostas por Cecílio (2011CECÍLIO, L.C.O. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 37, p. 589-599, 2011.), que considera desde as dimensões do cuidado de si até o cuidado societal. A partir de então, foi elaborado um roteiro de entrevista semiestruturada que permitisse aos gestores refletir acerca de suas experiências, mas não excluindo a abertura de novas possibilidades de apreensão da realidade. Ao final, a pesquisa chegou às seguintes categorias: percepção dos gestores sobre o cuidado; o cuidado de si; o cuidado do outros e os insights gerados a partir da pesquisa. Questões que permearam a dinâmica dos gêneros e seus papéis sociais foram exemplos de temas que não estavam previstos no roteiro de entrevista inicial e que foram identificados nas falas, sendo, portanto, abordadas neste artigo.

Foi também utilizado diário de campo junto à observação participante como instrumento de apoio para a estruturação de informações e, posteriormente, suas devidas análises.

As entrevistas, com duração entre 25 e 40 minutos, foram conduzidas pelo pesquisador principal e gravadas em áudio. A escolha dos pseudônimos para os entrevistados se deu por nome de planetas em referência à fábula de Hygino que, ao discorrer sobre o cuidado, menciona planetas como personagens (Boff, 1999BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.).

Trata-se de um artigo fruto da dissertação de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Pernambuco. A escolha da cartografia permitiu, por intermédio de suas pistas, capturar os fluxos, dinâmicas e movimentos do cuidado. E a escolha da análise de conteúdo (Bardin, 2011BARDIN, L. Análise de Conteúdo. Lisboa, Portugal. Edições 70, 2011.) permitiu organizar os dados subjetivos e objetivos, categorizando-os e apontando caminhos mais diretivos para o cuidar no âmbito da gestão da saúde.

Este estudo respeitou as diretrizes da Resolução n. 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, que envolve pesquisa com seres humanos, com aprovação pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco sob o protocolo 5.754.245.

Perspectiva de gestores da saúde sobre o cuidado integral

Neste item iremos discorrer sobre os conteúdos que emergiram em contato com os gestores. Ao indagar sobre o que seria o cuidado em uma percepção integral, surgiram as seguintes considerações:

Sempre que eu penso em cuidado, eu penso em algo amplo… acho que o cuidado começa no momento de como você trata, recebe, acolhe as pessoas. (Mercúrio)

O cuidado para mim se manifesta no meu trabalho, desde a hora que eu chego. Para mim o cuidado é muito amplo, desde a minha documentação (risada), eu chego a brincar com alguns colegas, porque eu tenho muito ciúmes dos meus documentos, pois além de envolver certo sigilo, minha coordenação é muito burocrática, tenho muito cuidado de como eu falo com os colegas de trabalho. (Vênus).

O cuidado tem uma dimensão ampla, que perpassa vários setores da vida pessoal e profissional. Outros autores já discutiram o cuidado enquanto expressão de amplitude na vida, como Heidegger (2012) e Ayres (2009AYRES, J. R. C. M. Organização das ações de atenção à saúde: modelos e práticas. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 18, supl. 2, p. 11-23, 2009.). Heidegger traz o cuidado enquanto dimensão que acompanha o humano em toda a sua trajetória de vida (ontológica), em cada ato, cada posicionamento, cada olhar e intencionalidade. Já Ayres refletiu acerca do cuidado a partir do acolhimento e da escuta do outro.

Um outro elemento que surge no conteúdo exposto acima é a noção de cuidado que se torna ligado à compreensão de zelo ou organização com sua documentação. Nesse ponto, o cuidado aqui já começa a tomar uma dimensão mais prática e instrumental no cotidiano dos gestores. Contudo, avançando um pouco mais nesses conteúdos e aprofundando a temática junto ao público da pesquisa, a expressão do cuidado vai ganhando forma e vão aparecendo mais pistas de como ele se manifesta no dia a dia desses gestores.

Penso em relação à atividade física, com relação a minha vestimenta, porque isso também é cuidado... quando penso nos meus filhos, no meu esposo, na minha casa. Como é que está tudo? O que precisa? É isso que eu penso no cuidado, em relação a tudo, com relação à higiene. O cuidado envolve muita coisa, né? Envolve muita coisa quando você pensa no outro ou em você. (Vênus).

No caso acima, a gestora Vênus exemplifica expressões do cuidado no seu cotidiano. Há inclusive o questionamento que a colaboradora realiza “como é que está tudo”? Talvez essa indagação traga à tona um pouco do desafio contemporâneo do cuidar na sociedade, compreendendo que o cuidado está em várias atividades do cotidiano, como: na comunicação, na alimentação, no seio familiar, na estética, no trabalho, no preocupar-se com o outro e consigo mesmo. Os autores Vaz et al. (2007VAZ, P et.al. O fator de risco na mídia. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 11, n. 2, 2007.) apontaram a sensação percebida na sociedade de “quase doença” e essa percepção faz com que os indivíduos estejam o tempo todo cuidando de aspectos da vida para não adoecer, aspectos esses até elencados pela gestora Vênus como: alimentação, atividade física, interação familiar, higiene.

Nessa perspectiva, como poderíamos discorrer sobre a integralidade do cuidado?

Tem a integralidade do cuidado que é focado na rede de serviços do SUS…tem as portas de entrada para conseguir acessar outros dispositivos, outras tecnologias da rede. Mas também tem o cuidado integral no atendimento ao cidadão, aquela coisa de não olhar só aquela parte a ser tratada no momento. (Plutão).

Deve-se pensar em diversas dimensões biopsicossocial e espiritual, levando em consideração todos os fatores que estão relacionados com aquele indivíduo, as relações, onde ele vive, como ele vive a história de vida que ele traz o contexto em que ele nasce, tudo isso dentro de uma perspectiva da longitudinalidade do cuidado, que é pensado nesse cuidado integral ao longo do tempo que é ofertado a esse indivíduo. Então é preciso compreender todas essas dimensões que o cercam. (Netuno).

A partir das informações expostas acima temos a integralidade do cuidado enquanto presença das dimensões biopsicossocial e espiritual do ser humano; das formas de como ele se relaciona com o meio que o cerca; aparece também a longitudinalidade do cuidado evocando a dimensão temporal; assim como o cuidado enquanto ato de vincular-se a outros e a composição da rede de cuidado do SUS.

Com relação a esse elemento da longitudinalidade do cuidado, a gestora Netuno ressalta o vínculo entre a comunidade e os profissionais de saúde. Dessa forma, não é somente articular as diferentes dimensões do cuidado apenas em um momento específico, mas no decorrer do tempo, sendo um exercício diário e permanente.

No mais, como detectamos o cuidado? Como o percebemos e sentimos no nosso dia a dia?

A premissa do cuidado é você conseguir enxergar. Não basta somente ouvir e dizer, é preciso enxergar. Você ir lá e enxergar o que está acontecendo. entender que é um ser humano, é uma vida que a gente não tem como assistir visando um único objetivo... não sei se eu estou conseguindo ser clara. É preciso articular o serviço para contemplar o todo. (Júpiter).

A pessoa, indivíduo, não é visto como peças e sim como um todo, onde a pessoa é única que precisa de diversos tipos de solicitações, como exames, serviços. Por exemplo, ontem fui em um grupo de idosos, onde detectei um senhor que relatou que estava tendo casos de hipoglicemia constante, e pude ver que com essa visita ao grupo constatei um usuário que precisa de um cuidado especial, como voltar ao médico, ir ao nutricionista, então esse olhar além da supervisão é importante para detectar fragilidades, onde você pode atuar de alguma forma para resolver a demanda. (Netuno).

Ao refletir a partir desse conteúdo, há uma provocação pertinente que é a de pensar o cuidado a partir do olhar, da escuta, do sentir, da comunicação. O cuidado nos provoca estarmos presentes na experiência da vida e conectar os pontos da experiência. Tomemos como exemplo o caso pontuado pela gestora Netuno, que a partir de sua observação de um grupo terapêutico, pode ofertar o devido cuidado, além de fazê-la pensar a dinâmica das práticas e serviços de saúde com foco nas necessidades do outro. E para isso é fundamental enxergar o outro, escutá-lo, senti-lo e, em alguns casos, até sofrer junto. Peixoto et al. (2011PEIXOTO, A. J et al. Fenomenologia do cuidado e do cuidar: perspectivas multidisciplinares. Curitiba: Juruá; 2011.), a partir de uma visão fenomenológica do cuidado, trabalham esses aspectos sensoriais para “tocar e sentir o cuidado”. Em alguns exemplos, esses autores descrevem situações em que profissionais de saúde interagem com o usuário e, nesse instante de interação, alguma transformação acontece por um conseguir enxergar, escutar, tocar e sentir o outro em uma dimensão mais profunda que a superficialidade.

Ainda sobre o toque e o cuidado, Moura, Guimarães e Luz (2013) mencionam que o tocar não é somente físico, mas o toque também está presente na troca de olhar, no diálogo, na ambiência do serviço de saúde, na disponibilidade da troca empática e no acolhimento.

Nessa ótica, o cuidar também se expressa e entrelaça à atitude de ter empatia pelo outro. Zuchetto et al. (2019ZUCHETTO, M.A et al. Empatia no processo de cuidado em enfermagem sob a ótica da teoria do reconhecimento: síntese reflexiva. Rev Cuid., Bucaramanga, v. 10, n. 3, e624, Dec. 2019.) discutem, em seus estudos, a empatia na perspectiva do cuidado. Ora, fala-se tanto em reconhecer as dimensões biopsicossocial e espiritual do outro, mas como compreendê-las sem sentir junto? Sem enxergar o mundo a partir da visão de mundo do outro? Sem considerar sua subjetividade? O exercício diário da empatia nos faz refletir sobre esses aspectos.

Talvez, a partir dessa sensibilidade e no ato de estar com o outro, o cuidado possa acontecer em seu máximo potencial. Como exemplo, temos a preocupação que a gestora Júpiter demonstrou em não promover barreiras de acesso ao serviço público, compreendendo que muitas pessoas não conseguem pagar, caso precisem recorrer aos serviços privados. Logo, surge nesse conteúdo algo que Roseni Pinheiro (2003PINHEIRO, R. Integralidade e práticas de saúde: transformação e inovação na incorporação e desenvolvimento de novas tecnologias assistenciais de atenção aos usuários no SUS. Boletim ABEM, Brasília, v. 31, p. 8-11, 2003.) já havia apontado: a perspectiva da integralidade do cuidado, pensado a partir do acesso aos serviços de saúde por determinado público que, em outras situações, não teriam. Pensar o cuidado integral em saúde é pensar em acesso. Qual seria a finalidade de praticar o cuidado integral se o outro não tiver acesso ao serviço?

Voltando a pensar sobre o lugar do cuidado nos diferentes espaços, é necessário refletir sobre o cuidado a partir da gestão, compreender como aqueles que ocupam o cargo de gestores pensam o cuidado ou como executam. É importante tensionar os gestores a refletirem sobre a sua responsabilidade quanto ao cuidar.

Quando iniciei não tinha essa compreensão, achava que quem estava na gestão não cuidava, achava que para eu cuidar eu precisava tá perto do paciente e usuário, mas com o passar do tempo eu pude refletir que nesse lugar eu também consigo cuidar das pessoas, ao pensar nas políticas, ao pensar no fazer, na execução da política, nas necessidades da população, isso também é uma forma de cuidado. Então a partir disso eu sinto que eu também cuido das pessoas, mas me sinto muito mais realizada profissionalmente quando eu consigo ir até esse usuário, para mim fica um cuidado mais palpável. (Urano)

Cuidado, no meu ponto de vista, perpassa pela assistência. Mas pensando direitinho, eu tenho tanta importância quanto o profissional que está lá na ponta. Eu me sinto parte do processo. Muita coisa também só acontece na assistência porque a gestão está implicada. Sem a gestão, tem coisa que não vai pra frente e o gestor precisa atuar. (Marte).

Percebe-se que os gestores Marte e Urano refletiram, no decorrer da entrevista, sobre seus posicionamentos diante do processo de cuidar. Aos poucos, houve o despertar nesses gestores de que gestão e assistência são condições inseparáveis e indissociáveis.

Já vimos anteriormente que somos cuidado e que o cuidado nos acompanha em todos os momentos e fases da vida. No nascer, no engatinhar, no vestir, no alimentar, na adolescência, no casamento, no sucesso, na angústia e até na morte (Heidegger, 2012; Boff, 2012BOFF, L. O cuidado necessário: na vida, na saúde, na educação, na ética e na espiritualidade. Petrópolis: Vozes, 2012.). No mais, parece que alguns autores ainda insistem em questionar o lugar do cuidado na gestão, assim como foi identificado na pesquisa de Gonçalves Jr e Maciel (2021), em que um participante afirmou que os gestores não cuidam. Nos resultados acima, aparecem reflexões sobre a quem pertence o cuidado. Seria o cuidado algo somente da alçada da assistência à saúde? Gestores não cuidam?

Onocko Campos (2013) já sinalizava essa proposição da inseparabilidade da gestão com a atenção à saúde, em que defende que para esse fenômeno acontecer é preciso: 1) um processo de maior abertura à autonomia dos sujeitos implicados no processo de trabalho; 2) maior abertura dos trabalhadores à corresponsabilidade e à cogestão.

Diante do exposto, fica o questionamento: até que ponto há espaços promotores de autonomia dos trabalhadores em seus processos de trabalho? E se não há, quanto maior o hiato entre a gestão e a assistência, menor é o grau de autonomia dos sujeitos?

Para alguns outros gestores, a perspectiva de cuidado na gestão existe quando nesse espaço há a interação dos mesmos com usuários do sistema único de saúde ou a ida ao território, como podemos ver a seguir:

Então para mim, enquanto coordenadora, eu concretizo minha prática nesse cuidado e nesse momento, que junto aos demais profissionais eu vou ao território, faço a discussão do caso, e com isso temos a interdisciplinaridade, a multidisciplinaridade, indo até o domicílio desse usuário, para entender a realidade dele. A partir disso, eu sinto que faço parte do cuidado. (Urano).

Por fim, o cuidado também se molda em algumas situações quanto a um aspecto de “provisão”, como podemos perceber a seguir:

Cuidado, eu sou suspeito pra falar. Na minha vida profissional eu sou gestor e sou enfermeiro. Eu sou coordenado e eu coordeno. No outro vínculo eu sigo o protocolo da instituição e quando eu saio de lá, eu viro a chave, e tenho a oportunidade de “estar como gestor”. Sobre o cuidado, hoje eu trabalho pelo bem-estar dos profissionais que estão comigo. O cuidado é essencial, é dar as condições de trabalho a esses profissionais. Tem profissionais que não tem feriado, não tem final de semana, não tem noite…eu me preocupo se tem água na torneira, se o local de descanso deles está bem-organizado. O trabalho é a segunda casa ou até mesmo a primeira casa de algumas pessoas. Outro cuidado importante é cuidar do psicológico, depressão é a doença do século. A gente precisa ter esse cuidado, fazer treinamentos, sessões de ioga, terapia em grupo. Com isso, o profissional falta menos ao trabalho, te dá mais satisfações. (Saturno).

O cuidado percebido pelo gestor Saturno se assemelha com a dimensão do cuidado profissional proposta por Cecílio (2011CECÍLIO, L.C.O. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 37, p. 589-599, 2011.). Para Cecílio, o cuidado profissional está no âmbito das práticas que acontecem de um profissional para um usuário ou de um profissional para outro profissional. Há nitidamente no conteúdo dito, a preocupação em ofertar um ambiente acolhedor e digno aos seus liderados. Talvez essa experiência de “eu coordeno e sou coordenado”, do gestor Saturno, o torna mais sensível para se colocar no lugar do trabalhador e de se relacionar com outros profissionais.

Vale frisar, ainda, a preocupação e o peso significativo que Saturno aponta para as questões de saúde mental e bem-estar em geral desses profissionais. O artigo de Barbosa et al. (2016) apontou o desafio que é gerir o cuidado em saúde mental no SUS, problemas como comunicação institucional, biopolítica e biopoder não favorecem a implementação de práticas efetivas do cuidado nesse âmbito. Portanto, trabalhar o cuidado profissional, discutido por Cecílio (2011CECÍLIO, L.C.O. Apontamentos teórico-conceituais sobre processos avaliativos considerando as múltiplas dimensões da gestão do cuidado em saúde. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, v. 15, n. 37, p. 589-599, 2011.) no âmbito da saúde mental, se mostra enquanto grande desafio, levando em conta o que Barbosa et al. (2016) ponderam a partir da estrutura no âmbito do cenário de práticas do SUS que se encontra hoje: dificuldades com infraestrutura adequada, falta de ambiência, baixas remunerações e pouca valorização da dimensão subjetiva dos trabalhadores no ambiente laboral.

Dos movimentos pendulares do cuidado no cotidiano dos gestores em saúde

Este tópico da pesquisa discorrerá sobre o cuidado de si, o cuidado com o outro e o cuidado para consigo em uma perspectiva de movimento pendular.

Para que a gente estabeleça o cuidado com o outro a gente precisa se salvar. A gente precisa estar bem para cuidar do outro e isso perpassa a saúde física e mental também. Eu acredito que para sermos cuidadores, precisamos cuidar de nós mesmos. (Mercúrio).

A entrevistada, na discussão do cuidado de si, inevitavelmente evoca a noção de que é necessário estar bem para cuidar do outro. Vasconcelos, Machado e Sousa (2021SOUSA, J. et al. Competências interprofissionais para a gestão do cuidado às condições crônicas na atenção primária em saúde. Revista Ciência Plural, v. 7, n. 3, p. 290-313, 2021.) já discutiram que cuidar do outro é uma forma de cuidar de si, a partir de nossas interações, amizades e laços sociais. Pantoja e Chiesa (2022PANTOJA, P.D.; CHIESA, G. R. Yoga: um método-chave para cuidar de si e do outro. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, 2022.) também apontaram nessa direção ao trazer a essência da prática do Yoga, onde é preciso cuidar de si para ter um corpo e mente saudáveis e consequentemente poder cuidar daqueles ao nosso redor. Porém, não somente no conteúdo dessa gestora podemos constatar essa dinâmica:

Na minha vida, as vezes é bem corrido e eu escolho um dia na semana para cuidar de mim. Faço algumas coisas que não consigo fazer rotineiramente, faço um escalda pés, desligo o celular…são algumas práticas que utilizo para cuidar de mim. A gente precisa estar bem, né? (Plutão).

Para além dos processos de cuidar de si para cuidar do outro, o gestor Plutão traz alguns aspectos práticos de autocuidado. Um ponto a se destacar acima é a compreensão de que o bem-estar individual também compete ao âmbito coletivo. No instante em que meu semelhante está em desequilíbrio, isso pode desequilibrar os demais e, por isso, se dá a importância de pensar também o cuidar de si como uma proposta de saber cuidar do outro ou estar com o outro. Porém, essas compreensões nem sempre chegam à consciência por livre associação; às vezes é necessária a intervenção do outro para que se tenha o “choque” para entender a importância do cuidar de si nessa interação com o outro:

Semana passada eu estava com a minha mãe no geriatra. Eu estava dentro do consultório e o celular começou a chamar insistentemente e era uma pessoa da faculdade. Daí eu pensei que se ela estava insistindo é porque poderia ser algo muito sério. Daí eu peguei o telefone e comecei a responder. Daí o Geriatra olhou pra mim e me chamou atenção por eu estar no celular durante a consulta da minha mãe e não estar ali presente para ela, pois mesmo que seja algo mais urgente, ninguém vai morrer por causa de 30 minutos ou uma hora. Falou-me que é preciso se “desligar” do trabalho e saber dar prioridade às coisas. Essa observação do médico me fez perceber que eu estava tão no automático que nem percebi que eu fiquei boa parte do tempo da consulta respondendo mensagens no celular. (Júpiter).

No decorrer da entrevista, e a partir das percepções do pesquisador obtidas pelo diário de campo, foi notoriamente visível a preocupação e o “choque” da gestora Júpiter com essas pontuações feitas pelo geriatra. Dessa forma, podemos refletir: em algum momento é preciso que o outro me lembre do meu cuidar de si (autocuidado)? Nessa direção, pode-se pensar no conceito de autocuidado apoiado, pensado por Ribeiro et al. (2020RIBEIRO, MA et al. (Re)Organização da Atenção Primária à Saúde para o enfrentamento da Covid-19: Experiência de Sobral- CE. Aps em Revista, v. 2, n. 2, 2020.), o qual remete à ideia de ter o sujeito autonomia para cuidar de si, mas sem desconsiderar a importância de ter um outro que o apoie com um cuidado mais especializado do ponto de vista técnico. O cuidar de si não é uma instância isolada, a nossa relação com os outros também aponta para uma melhor qualidade do cuidado de si.

Já outros gestores até identificam a importância de cuidar, no entanto, parece que o dia a dia corrido da gestão e das outras funções sociais os tiram desse eixo:

Ultimamente, tenho me cuidado pouco. Eu reconheço. É uma correria grande, principalmente por gerir o SUS, né? Eu vou tentar me desligar um pouco agora em janeiro de 2023, porque senão eu vou começar o próximo ano ou o carnaval e eu vou enlouquecer. Estou de férias do outro serviço, é preciso organizar meus horários para ficar mais com a minha família. Eu pratico esportes, não como nada exagerado, difícil eu ter dor de cabeça ou adoecer. Eu poderia me cuidar melhor? Poderia. (Saturno).

Percebe-se uma angústia nesses entrevistados, quando se menciona o tempo do autocuidado que não está sendo prioritário no dia a dia. Percebe-se o comprometimento em cuidar do outro em detrimento de cuidar de si. Essa organização e definição de limites parece transgredir os limites entre a vida pessoal e a profissional desses gestores, e isso, aos poucos, os adoece, de forma silenciosa, crônica, refletindo bem este movimento pendular do cuidado que oscila em diferentes direções do cuidado e do descuidado.

Esse movimento pendular e complexo do cuidado acontece na vida dos gestores nem sempre de forma saudável, pois a dedicação exagerada à gestão dos serviços de saúde pode desequilibrar esse movimento entre o dar e o receber cuidado. Ahnert et al. (2020) denunciam o potencial adoecedor do cuidado naqueles que cuidam em demasiado, como cuidadores familiares ou cuidadores técnicos, por exemplo. E volta-se àquela pergunta: quem cuida do cuidador quando ele adoece? Aliás, o cuidador cuida de si quando está doente?

Tenho me cuidado muito pouco, comecei terapia muitas vezes e parei, priorizando outras coisas, começo academia, coloco na agenda e de tudo acontece e não consigo cumprir, então tenho sido falha com meu autocuidado, em algumas semanas começo uma alimentação balanceada, se der tempo eu me cuido e se não der eu cuido depois. (Netuno)

Eu penso que no dia a dia a gente não para pra pensar sobre o que estamos precisando, faço aqui uma reflexão que deveria pensar mais sobre isso no meu dia. (Terra)

Será que há uma hierarquia inconsciente nesses trabalhadores da saúde que insistem em colocar o outro e as atribuições do dia a dia como fatores primordiais e essenciais que disputam com o cuidado de si, sendo que esse último parece sempre entrar na “lista de espera” ficando sempre para depois? Será que nesse movimento pendular do cuidado, eu cuido do outro de forma tão devota que em algum momento, eu preciso parar para cuidar de mim e voltar ao início do ciclo? O que nos para no dia a dia? A doença?

Contudo, fecharemos esse trecho com a fala de Figueiredo (2007FIGUEIREDO, L. C. A metapsicologia do cuidado. Psyche (Sao Paulo), v. 11, n. 21, p. 13-30, dez. 2007., p. 20) para refletir sobre o excesso do cuidar na vida:

Até de doce de coco, que é bom, a gente enjoa. Os excessos da implicação são bem mais graves do que um mero mal-estar gástrico. Quando a intersubjetividade transobjetiva, domina em excesso, configura-se uma experiência de engolfamento totalitário e claustrofóbico. É o cuidado que não dá sossego, sufoca.

O autor reflete, em seu texto, que cuidar é bom e compara o cuidado com algo “doce”. Porém, condena seus excessos e que isso poderia ser sufocante ou até doentio para aqueles que cuidam. O envolvimento exagerado com o cuidar do outro pode fazer emergir uma dimensão adoecedora e sombria do cuidado.

Pensando e refletindo sobre o cuidar do outro: a ótica dos gestores

Em várias passagens dos subtópicos anteriores, percebe-se o engajamento dos gestores voltados ao cuidar dos outros. Inclusive numa proporção que chega a esquecer do cuidar de si ou a postergar para um momento que nem sempre chega. Por isso, a partir de agora, iremos compreender como esses gestores cuidam.

Cuido da melhor forma, interessante, né? Por exemplo, na equipe eu vejo as formas de cada um e como cada um é, alguns são mais sensíveis outros mais ostensivos, então procuro tratar todos da melhor forma possível, dentro do perfil, acolhendo ideias. As pessoas próximas como minha filha, esposo eu preciso deixar os cuidados em dia, meu esposo nem tanto, o cachorro, está sempre com o banho em dia, as vacinas em dia, minha casa também. (Netuno)

Netuno aponta a dimensão personalizada do cuidado, pois afirma que investiga como cada sujeito é. No entanto, nessas duas respostas é possível evidenciar o aspecto família. Qual a relação entre cuidar do outro e a dimensão familiar? Figueiredo (2007FIGUEIREDO, L. C. A metapsicologia do cuidado. Psyche (Sao Paulo), v. 11, n. 21, p. 13-30, dez. 2007.) destaca que há formas de alteridades do cuidar na vida dos sujeitos. Pais, profissionais de saúde e professores são exemplos de que o indivíduo pode se relacionar e apreender como o cuidado se apresenta. A partir de então, o autor destaca que os pais ou a família são o primeiro modelo e contato da expressão de cuidado que as pessoas têm e, por isso, a relação da família para com a atitude de cuidar é tão íntima. No mais, Stam e Mioto (2003) já refletiram que o contato com o indivíduo pode levar a pistas do funcionamento da família, assim como compreender a família nos leva a um melhor entendimento do indivíduo.

Há, contudo, outros elementos que fazem esses gestores refletirem sobre determinados aspectos na hora de pensar a forma como cuidam dos outros.

Eu prezo pelo reconhecimento. Os profissionais de saúde salvam vidas e a gente poderia reconhecer melhor os profissionais, falo isso como gestor e como enfermeiro. E não é só financeiramente, é também elogios. (Saturno)

Saturno evidencia outros elementos que os demais gestores não tocaram: reconhecimento profissional na forma de elogios, remuneração e a valorização dos trabalhadores. No geral, pensando no contexto da entrevista, Saturno reflete bastante sobre a sua relação com os trabalhadores.

Os estudos de Guimarães e Souza Neto (2021GUIMARÃES, J. V. F; SOUZA NETO, E.N. Bem-estar e satisfação no trabalho: uma revisão da literatura atual. Revista Científica da Unirios, v. 2, p. 279-301, 2021.) trazem elementos que propiciam o sentimento de satisfação e bem-estar no ambiente de trabalho. Itens como diálogo mais horizontalizado; atitudes positivas em relação ao outro e a si mesmo; remuneração adequada às atividades desempenhadas; pagamento de horas extras de forma financeirizada e não meramente com folgas posteriores; plano de cargos e carreiras que ofereça possibilidade de visão futura e menor instabilidade quanto ao vínculo laboral foram dimensões apontadas neste estudo que contribuem para o bem-estar de profissionais.

Uma reflexão que não pode passar despercebida e que podemos fazer a partir das informações expostas até aqui é a questão de gênero e cuidado. A maioria dos entrevistados é do sexo feminino e mãe, e há sempre uma ligação entre a atitude de cuidar e conteúdos que remetem à família (mãe, filhos, marido). Sobre essa questão, Silva et al. (2021SILVA, J. M. S.; CARDOSO, V. C.; ABREU, K. E.; SILVA, L. S. A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia. Revista Feminismos, [S. l.], v. 8, n. 3, 2021.) já mencionaram essa sobrecarga de cuidado em profissionais do sexo feminino e que são mães. De certa forma, os gestores do sexo masculino citam a família como elemento para se reservar algum tempo para “estar com”; já as gestoras do sexo feminino geralmente lançam essa questão enquanto dimensão de preocupação e de que é preciso ainda “fazer” tantas outras coisas ao chegar em casa.

Ainda sobre os estudos de Silva et al. (2021SILVA, J. M. S.; CARDOSO, V. C.; ABREU, K. E.; SILVA, L. S. A feminização do cuidado e a sobrecarga da mulher-mãe na pandemia. Revista Feminismos, [S. l.], v. 8, n. 3, 2021.), corroborados por Cisne e Santos (2018CISNE, M.; SANTOS, S. M. M. Feminismo, diversidade sexual e Serviço Social. São Paulo: Cortez, 2018.), o cuidado continua sendo visto pelo imaginário social como “naturalmente feminino” e que essa visão decorre de construções sócio-históricas das desigualdades entre os sexos nas relações sociais a partir de uma sociedade permeada pelo patriarcado.

Nessas dinâmicas, Fraser (2016FRASER, N. Contradictions of capital and care. New Left Review, v. 100, p. 99-117, 2016.) já apontava essa questão do papel social do cuidado ficar a cargo das mulheres, sobrecarregando-as, na medida em que a crise do cuidado se instala no momento em que as mulheres passam a conquistar o mercado de trabalho, e ambos os sexos voltam-se mais à reprodução econômica, deixando a reprodução social em segundo plano. Segundo Souto e Moreira (2021SOUTO, K.; MOREIRA, M. R. Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: protagonismo do movimento de mulheres. Saúde em Debate, v. 45, p. 832-846, 2021.) as mulheres são a principal força de trabalho na assistência e na gestão do SUS, dessa forma é necessário pensar uma dinâmica de cotidiano e processo de trabalho que considere a crescente inserção desse sexo e suas múltiplas implicações biopsicossociais que a sobrecarga de papéis sociais impõe.

No mais, seguindo com as temáticas trazidas pelos gestores, ainda nesse subtítulo, temos a fala da gestora Terra ao ser perguntada como ela cuida:

Eu acho que perguntando, foi isso que logo me veio à cabeça, perguntando como as pessoas estão. Tento ter muito cuidado com a minha fala ou ato porque pode causar dor ou mal-estar no outro. (Terra).

Há uma simplicidade na resposta acima, mas, por outro lado, não diminui sua grandeza. Talvez a melhor atitude na hora de cuidar seja partir do princípio do “não saber”. Talvez a princípio eu não saiba quem é o outro, o que ele precisa ou o que é melhor para ele. É comum ver alguns profissionais da saúde incorporarem o lugar hegemônico do “saber técnico-científico” e isso cria uma hierarquia e micropolítica de poder na interação com o outro, que nem sempre beneficia o encontro de duas pessoas que estão em um processo de cuidado. Para Penaforte (2022PENAFORTE, T. R. O Sujeito e seu cuidado: a questão da adesão à medicação. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 32, n. 3, 2022.), o modelo de cuidado biomédico reafirma a condição do profissional de saúde enquanto detentor do saber/poder e marginaliza o usuário da tomada de decisão na clínica.

O cuidar não está livre das implicações dessas relações de poder. Discutir clínica e práticas em saúde é também um movimento de compreender a dicotomia entre aquele que se coloca como o detentor do saber e aquele a ser cuidado. No mais, alguns trabalhos já vêm questionando e refletindo sobre essa dinâmica e apontando que é preciso “dar um passo atrás” e valorizar a subjetividade do outro, entendendo que o outro é especialista de si e que, possivelmente, nós não temos conhecimento prévio do mundo subjetivo do outro, até o momento do encontro (Bustamante; McCallum, 2014BUSTAMANTE, V; MCCALLUM, C. Cuidado e construção social da pessoa: contribuições para uma teoria geral. Physis Revista de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 673-692, 2014.).

Contudo, compreender o cuidado em suas relações de poder e de forma biopsicossocial nos revela um desafio: o de pensar o cuidado à saúde em sua dimensão política. Sim, política! Pois é preciso ter uma percepção da vida que perpasse um sujeito crítico da realidade, levando-se em conta a compreensão de que a saúde se traduz em um desafio na esfera histórica, social e econômica. E os desafios na saúde pública são muitos, na medida em que, de acordo com Magagnin et al. (2018MAGAGNIN, A. B. et al. O enfermeiro enquanto ser político-social: perspectivas de um profissional em transformação. Ciência, Cuidado e Saúde, v. 17, n. 1, 2018.), o SUS sofre com desfinanciamento, precarização do trabalho e menores graus de autonomia dos sujeitos.

Conclusões

Tecendo os comentários finais a respeito dessa jornada, vamos caminhando e “desacelerando”. Esse desacelerar não remete a um movimento que tem como diretriz um estacionamento, mas uma redução de velocidade para que possamos refletir juntos.

A partir desta pesquisa, foi possível ter contato com as expressões do cuidado manifestadas por esses gestores. Há cuidado na hora de acolher, escutar, dialogar, negociar, de lidar consigo mesmo, com seus familiares e com as coisas do mundo da vida.

Houve uma concepção aparentemente paradoxal para os entrevistados quando eles foram provocados pelo pesquisador a refletirem sobre o cuidado em suas vidas. Eles expressaram o entendimento de que cuidar de si pode se apresentar enquanto preocupação e motivação para cuidar do outro, e cuidar do outro pode ser uma via para estimular o autocuidado.

Por outro lado, nem só de gestão vivem os gestores. Todos vieram de atividades assistenciais e grande parte, além de gestor e profissional de saúde, também é professor ou “mãe”. Parece que, em algum momento, essas atividades triangulam e há uma sobreposição de uma “atuação social” sobre a outra, gerando uma percepção de sobrecarga.

Sugerem-se estudos que explorem a tomada de consciência de autonomia por parte dos profissionais de saúde em relação ao cuidar de si e do outro para melhor compreender o cuidado no âmbito da gestão, pois para uma maior aproximação entre a gestão e a atenção à saúde, é necessário haver maior abertura à autonomia dos sujeitos implicados no processo de trabalho.1 1 J. S. Gonçalves Júnior: pesquisa e redação do artigo. M. B Guimarães: orientação da pesquisa.

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  • 1
    J. S. Gonçalves Júnior: pesquisa e redação do artigo. M. B Guimarães: orientação da pesquisa.

Editora responsável:

Tatiana Wargas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    31 Jul 2023
  • Revisado
    14 Nov 2023
  • Aceito
    22 Fev 2024
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