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Violência contra as mulheres na pandemia de Covid-19: uma revisão sistemática

Violence against women in the Covid-19 pandemic: a systematic review

Resumo

Objetivo: Identificar a prevalência e os fatores associados à violência contra mulheres durante a pandemia de Covid-19 no mundo. Método: O levantamento foi realizado em outubro de 2021, nos bancos de dados Embase, Scopus e Web of Science, publicados em 2020 e 2021, apenas no idioma inglês. Foram incluídos estudos empíricos, com população feminina, no período da Covid-19, e foram excluídos artigos que incluíam homens ou crianças em sua amostra. Para avaliar a qualidade dos estudos, foi usado o instrumento MMAT, e o resultado final foi organizado e sintetizado a partir de tabelas. Resultados: Foram selecionados 35 artigos, predominaram estudos quantitativos, on-line e investigando violência por parceiro íntimo. A prevalência foi significativa, com aumento e agravamento da violência; os principais fatores associados foram o estresse econômico, a pandemia e relações de gênero. Discussão: O viés de publicação foi estudos publicados apenas em inglês e os resultados envolvem o viés dos estudos primários referente a subnotificação e não generalização das amostras. É possível concluir que a pandemia e as medidas para conter a Covid-19 aumentaram a vulnerabilidade das mulheres coabitadas em ambiente violento.

Palavras-Chave:
Violência contra a mulher; Violência por parceiro íntimo; Covid-19; Pandemia; Vulnerabilidade

Abstract

Objective: To identify the prevalence and factors associated with violence against women during the Covid-19 pandemic in the world. Method: The survey was carried out in October 2021, in the Embase, Scopus and Web of Science databases, published in 2020 and 2021, only in the English language. Empirical studies were included, with a female population, during the Covid-19 period and articles that included men or children in their sample were excluded. To evaluate the quality of the studies, the MMAT instrument was used and the final result was organized and summarized using tables. Results: Thirty-five articles were selected, predominantly quantitative, on-line studies investigating intimate partner violence. The prevalence was significant, with an increase and worsening of violence and the main associated factors were economic stress, the pandemic and gender relations. Discussion: The publication bias was studies published only in English and the results involve the bias of primary studies regarding underreporting and non-generalization of the samples. It is possible to conclude that the pandemic and measures to contain Covid-19 increased the vulnerability of women cohabiting in a violent environment.

Keywords:
Violence against Women; Intimate Partner Violence; Covid-19; Pandemic; Vulnerability

Introdução

Em 31 de dezembro de 2019, houve um alerta de casos de pneumonia grave em Wuhan, na República Popular da China, e foi identificada uma nova cepa em seres humanos chamada Covid-19. Em 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), considerado o mais alto nível de alerta da OMS e até 12 de janeiro de 2022, segundo dados do Our World in Data (2022), já houve 9 milhões de mortes por Covid-19 no mundo. Nessa data, 9,6 bilhões de doses da vacina já foram administradas em todo o mundo, representando 59,7% da população mundial com pelo menos uma dose da vacina (Our World in Data, 2022). Com a diminuição da frequência e gravidade dos casos após a administração da vacina ter contemplado grande parte da população brasileira e mundial, em maio de 2023 a OMS finalmente declarou o fim da ESPII, marcando, finalmente, o final da pandemia de Covid-19 (OMS, 2023).

Durante a pandemia, medidas de segurança precisaram ser tomadas para prevenção do contágio da Covid-19 em todo o mundo, sendo uma delas a permanência em casa e o distanciamento social. Assim, muitos países declararam lockdown, restringindo as pessoas de circularem na rua e incentivando o trabalho em casa, estabelecendo o fechamento de comércios, empresas, faculdades, escolas etc., a fim de reduzir aglomerações. O medo do contágio e as medidas de distanciamento, necessárias para o controle da Covid-19, geraram impactos negativos na saúde física, mental e emocional das pessoas, vulnerabilidade econômica e, dentre outros fatores, uma maior vulnerabilidade à violência doméstica e familiar, sendo mulheres e crianças as principais atingidas em função do confinamento coabitado em ambiente violento e sobrecarga da mulher com tarefas domésticas (Bradbury-Jones; Isham, 2020BRADBURY-JONES, C.; ISHAM, L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs., v. 29, p. 2047-2049, 2020.). Nesse contexto, Bradbury-Jones e Isham (2020BRADBURY-JONES, C.; ISHAM, L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs., v. 29, p. 2047-2049, 2020.) fazem um apanhado na literatura, identificando o aumento da violência doméstica no Reino Unido, Nova Zelândia, Espanha e Brasil.

Monteiro, Hashimoto e Ribeiro (2020), a partir de uma revisão sistemática da literatura, destacam outros fatores de impacto na vida das mulheres que foram agravadas durante as medidas de distanciamento como a sobrecarga por ainda serem as principais cuidadoras das crianças, da casa, do relacionamento e das comunidades, além de serem a maioria na linha de frente do sistema de saúde e destacam que as principais atingidas são as mulheres pobres, negras e com deficiência. As medidas de distanciamento trouxeram visibilidade para as desigualdades de classe e gênero, que já vinham aumentando gradativamente e aumentaram consideravelmente durante a pandemia, apontando o impacto do sistema patriarcal e capitalista que “atomiza, individualiza e privatiza o sofrimento das mulheres, espraiando-se nas instituições e no Estado” (Monteiro; Hashimoto; Ribeiro, 2020, p. 167).

A violência de gênero contra as mulheres é um fenômeno que vem tendo maior visibilidade ao longo dos últimos anos, especialmente a partir dos anos 90, impulsionado por mudanças legislativas (Silva; Krohling, 2019), iniciativas nas políticas públicas e no crescente movimento de mulheres (Pasinato, 2005). Infelizmente, essa realidade permanece preocupante em função da banalização e naturalização dessa violência, fruto da discriminação de gênero decorrente dos estigmas construídos social e culturalmente, representando a mulher como inferior ao homem e violando seus direitos em todas as raças e etnias, idades e classes sociais (Carneiro; Fraga, 2012). Os crimes considerados violência contra as mulheres são atos incentivados pela condição de gênero (Scott, 1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.). Estudos recentes mostram que a violência psicológica dentro de relacionamentos abusivos como ameaças, controle e perseguição, é o tipo de violência mais prevalente na experiência das mulheres (Acosta et al., 2013; Carneiro; Fraga, 2012CARNEIRO, A. A.; FRAGA, C. K. A lei Maria da Penha e a proteção legal à mulher vítima em São Borja no Rio Grande do Sul: da violência denunciada à violência silenciada. Serv. Soc. Soc. São Paulo, v. 110, p. 369-397, 2021.; Moura, 2009MOURA L. B. de A. Ecologia das violências praticadas por parceiros íntimos contra mulheres. Varjão-Distrito Federal, 2009.) e mais legitimado (Arenas-Arroyo, 2020).

Historicamente, houve um importante movimento mundial em âmbito cultural e social que naturalizou a superioridade masculina, branca, heterossexual e elitista, garantindo direitos, poder e privilégios para essa pequena parcela, através da exploração e inferioridade das mulheres, pessoas não-brancas, pessoas não heterossexuais e de classes menos favorecidas. Esse fenômeno se chama patriarcado (Saffioti, 1987SAFFIOTI, H. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987., 2004; Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019). Saffioti (2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abamo, 2004.) nomeia o sistema neoliberal e seus ideais instaurados, que servem como uma engrenagem na manutenção dos objetivos patriarcais, como a máquina do patriarcado. Dessa forma, a máquina do patriarcado funciona como um constructo social responsável por manter essa estrutura viva, independentemente da presença masculina.

A máquina do patriarcado pode ser percebida, por exemplo, no início do movimento feminista, quando ainda era liderado por mulheres brancas da elite, lutando apenas por direitos que atendessem às necessidades desta parcela de mulheres, alimentando o classismo, a desigualdade racial e servindo para os interesses patriarcais (Hooks, 2018HOOKS, B. O Feminismo é para todos: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.). É imprescindível que se considerem esses atravessamentos quando se fala em relações de gênero. O sistema hierarquizante inserido na máquina do patriarcado (Saffioti, 2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abamo, 2004.) e as expectativas de gênero que esperam um papel de dominação e agressividade por parte dos homens e submissão e passividade por parte das mulheres são motivadores e legitimadores da violência contra as mulheres (Carneiro; Fraga, 2012; Saffioti, 2004SAFFIOTI, H. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abamo, 2004.).

AndersonANDERSON, K. M.; RENNER, L. M.; DANIS, F. S. Recovery: Resilience and Growth in the Aftermath of Domestic Violence. Violence Against Women, v. 18, n. 11, p. 1279-1299, 2012.et al. (2012) destacam, a partir de sua pesquisa com mulheres que vivenciam ou vivenciaram violência, que a busca por ajuda, formal ou informal, é um pilar essencial para a recuperação. Como pontuam Habigzang et al. (2018HABIGZANG, L. F. et al. Evaluation of the Impact of a Cognitive-Behavioral Intervention for Women in Domestic Violence Situations in Brazil. Universitas Psychologica, v. 17, n. 3, p. 52-62, 2018.), as mulheres que vivenciam ou vivenciaram violência tendem a apresentar uma saúde mental fragilizada e déficit na qualidade de vida. Isso indica a necessidade de atendimento humanizado e especializado por profissionais de saúde devidamente treinados (Habigzang et al., 2018HABIGZANG, L. F. et al. Evaluation of the Impact of a Cognitive-Behavioral Intervention for Women in Domestic Violence Situations in Brazil. Universitas Psychologica, v. 17, n. 3, p. 52-62, 2018.) e a importância do suporte da rede de apoio no encorajamento em acessar serviços de ajuda e efetivar os procedimentos necessários e amparo emocional.

Apesar dos recursos tecnológicos usados durante o distanciamento social, mulheres que vivem em situação de violência são comumente privadas de acesso a estes recursos e/ou não têm condições financeiras para acessá-los. Esta realidade foi significativamente agravada pelas diretrizes de segurança necessárias na pandemia, influenciando fortemente a segurança, saúde e bem-estar desta população (Bradbury-Jones; Isham, 2020BRADBURY-JONES, C.; ISHAM, L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs., v. 29, p. 2047-2049, 2020.) e trazendo destaque para a importância do acesso a serviços básicos e políticas públicas de qualidade para que as mulheres tenham seus direitos adequadamente atendidos. Para que se construam adaptações efetivas nas diretrizes institucionais e legislativas em momentos de crise – como a pandemia de Covid-19 –, é imprescindível conhecer a realidade das mulheres que vivem em violência por parceiro íntimo e entender como a pandemia e o distanciamento social interferiram nas suas experiências.

A comunidade científica se preocupou em investigar de que forma a pandemia de Covid-19 impactou aspectos relacionados à violência contra as mulheres, considerando que é uma população vulnerabilizada com alto índice de violência ano após ano em todo o mundo (Bradbury-Jones; Isham, 2020BRADBURY-JONES, C.; ISHAM, L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs., v. 29, p. 2047-2049, 2020.; Carneiro; Fraga, 2012; Monteiro; Hashimoto; Ribeiro, 2020). Com essa mesma preocupação e buscando entender este fenômeno em termos globais, a presente revisão sistemática tem como objetivo identificar a prevalência e os fatores associados à situação de violência de gênero contra as mulheres no contexto da pandemia de Covid-19.1 1 Este artigo é resultado da dissertação de mestrado e não há conflitos de interesse por parte das autoras. A pesquisa foi financiada pelo CNPq (132139/2020-0).

Método

Por se tratar de um assunto extremamente atual, optou-se por buscar estudos em todo o mundo, ampliando o entendimento do fenômeno a partir de diferentes culturas e contextos, procurando responder à pergunta: qual a prevalência e os fatores associados da violência contra a mulher durante a pandemia de Covid-19? Os critérios utilizados para inclusão dos artigos foram: 1) a população do estudo ser do gênero feminino; 2) investigar qualquer tipo de violência de gênero contra as mulheres; 3) ser referente ao período de pandemia de Covid-19; 4) ser um estudo empírico; 5) estar publicado no idioma inglês. Os critérios de exclusão foram: 1) a população incluir crianças, adolescentes ou homens; 2) não responder à pergunta do estudo; 3) ser outro tipo de publicação como editoriais ou comentários. Foi utilizada a checklist do protocolo PRISMA (2020), disponível na web, para melhores diretrizes da escrita.

As buscas aconteceram em outubro de 2021 nas bases de dados Embase, Scopus e Web of Science, por serem identificadas como as que possuem maior quantidade de estudos relacionados ao tema após uma busca piloto. Nesta busca, não foram identificados artigos na língua portuguesa que atendessem aos critérios estabelecidos, tampouco publicações na América Central e Caribe, conferidas nas pesquisas realizadas no Lilacs. Sendo assim, optou-se por restringir as buscas à língua inglesa. A estratégia utilizada para a busca foi desenvolvida a partir das palavras-chave referentes a temática e pesquisas nos descritores do MeSH, chegando-se à seguinte estratégia de busca: (“Violence Against Woman” OR “Domestic Violence” OR “Intimate Partner Violence” OR “Violence sexist” OR “Gender-Based Violence” OR “Domestic and Family Violence”) AND (“pandemic” OR “Covid-19” OR “SARS-COV-2” OR “Social Isolation” OR “Lockdown” OR “Social distance”).

Os artigos identificados na busca inicial foram inseridos no software Rayyan, no qual foi realizada a primeira etapa da seleção do material a partir da análise de título e resumo. Essa etapa foi realizada por duas revisoras, de forma cega, e uma terceira revisora realizou os desempates. A segunda etapa se deu a partir da leitura dos artigos na íntegra, também realizado por duas revisoras de forma cega. Na terceira etapa foi desenvolvida uma tabela com as informações consideradas mais relevantes conforme a proposta desta revisão: ano, país, tipo de violência, delineamento, técnica de amostragem, amostra, objetivo, período, raça/etnia e idade e dados socioeconômicos, prevalência, fatores associados, outros resultados, limitações.

Para avaliar a qualidade dos estudos, utilizou-se o Mixed Methods Appraisal Tool (MMAT), conforme a natureza dos estudos. Para a classificação, que inicialmente inclui apenas “não” e “sim” como resposta, foi ampliado para “não”, “parcialmente sim” e “sim”, gerando uma classificação final “nada satisfatório”, “pouco satisfatório”, “satisfatório” e “muito satisfatório”. Essa pequena adaptação foi pensada a partir da sugestão dada pelo MMAT (2020), para adaptar o instrumento conforme a necessidade.

Resultados

Seleção dos artigos

Foram identificados 1.389 artigos na busca em bases de dados. Destes, 1.354 foram excluídos, sendo 799 por duplicata e 555 na análise de títulos e resumos, por serem: 1) população mista incluindo crianças, adolescentes e/ou homens; 2) o objetivo não respondia à pergunta deste estudo: analisavam riscos relacionados exclusivamente à Covid-19, referiam-se à violência geral ou não correspondiam ao período da pandemia de Covid-19; 3) estudos teóricos, comentários ou artigos de opinião. Dos 77 artigos lidos na íntegra, 42 foram excluídos por explicitar dados que não haviam ficado claros no resumo, como 1) amostra final incluir outro tipo de população além do gênero feminino; ou 2) não ser estudo empírico. Dos artigos que investigaram VD, foram mantidos aqueles que se referiam à violência contra as mulheres, filtrando estudos que incluíam violência familiar contra crianças e homens. O fluxograma da seleção está descrito na Figura 1.

Figura 1
Fluxograma da identificação, seleção e inclusão dos artigos para essa revisão sistemática, conforme PRISMA (2020)

Características dos estudos

Mais da metade dos artigos foram publicados em 2021; no entanto, as coletas de dados de todos os estudos ocorreram em 2020, com maior prevalência entre maio e junho, correspondendo ao primeiro lockdown na maioria dos países, e quaro estudos não especificaram os meses da coleta de dados. Apenas um estudo apresentou delineamento longitudinal, sendo os demais com delineamento transversal e prevalecendo estudos quantitativos, no formato on-line, a partir de questionários e com técnica de amostragem por conveniência.

Vinte e cinco estudos realizaram entrevista ou questionário com mulheres e os outros 10 utilizaram outras fontes de dados como prontuário médico (2), ligações de linhas de emergência ou direta (2), relatórios de organizações especializadas (1), cobertura de mídia (2), uso de aplicativo (1) e sistema de segurança público (4), sendo que um mesmo estudo analisou mais de um tipo de dado em sua amostra.

Dentre os estudos realizados a partir de entrevistas ou questionários, prevaleceram amostras de mulheres acima de 18 anos, sendo que um estudo no continente asiático considerou mulheres a partir de 16 anos, por ser comum naquela região as meninas se casarem a partir dessa idade; a média de idade das mulheres de 30 anos prevaleceu. A população das amostras foram mulheres casadas (15), apenas acima de 18 anos (13), gestantes/puérperas (5), imigrantes (2). Não foi possível identificar características em relação à raça com precisão, em função do sigilo dos dados e aos estudos selecionados não terem dado ênfase a esse dado. As condições socioeconômicas acabaram surgindo nos fatores associados, em relação à baixa renda em três estudos, e às limitações do estudo, ao se tratar de população com acesso à internet e com condições de preencher o questionário sozinha.

Para maior transparência dessa revisão sistemática, vamos respeitar a nomenclatura utilizada pelas(os) autoras(es) em relação ao uso de violência doméstica (VD) e violência por parceiro íntimo (VPI), por entender que a VD pode incluir outros vínculos se mantido o conceito de violência de gênero contra as mulheres. Assim, 23 estudos investigaram VPI, nove estudos investigaram VD e três incluíram outras formas de violência.

Os estudos referentes à VPI avaliaram as formas de violência em: física (16), sexual (15), psicológica (7), emocional (6), econômica (3) e verbal (4), sendo um exclusivamente VPI física e cinco estudos realizados a partir de questionários, não especificando a violência por tipos. As características dos estudos estão apresentadas na Tabela 1.

Tabela 1
Tabela 1. Principais características dos estudos selecionados

Em relação aos países de origem, nota-se uma prevalência em países da América do Norte (Canadá, EUA e México) e Ásia (Bangladesh, Egito, Irã, Iraque, Jordânia, Paquistão, Tunísia e Turquia), seguidos da África (Etiópia, Nigéria, República Democrática do Congo), América do Sul (Argentina e Peru), Europa (Espanha e Itália) e Oceania (Austrália), como demonstrado na Figura 2 e detalhado na Tabela 2.

Figura 2
Mapeamento dos estudos selecionados por país de origem
Tabela 2
Número de estudos por país de origem

Prevalência da violência

A percentagem de prevalência identificada num geral variou de 7,1% a 67%, apresentando uma concentração na faixa entre 19% e 40%. Seis estudos trouxeram uma taxa de agravamento dos casos e um artigo levantou a possibilidade de que as medidas impostas pela pandemia tenham dificultado ainda mais o acesso dessa população aos serviços de saúde. Um desses estudos investigou exclusivamente violência física e identificou aumento significativo em relação a casos graves. Doze estudos identificaram aumento na frequência e um identificou diminuição.

Dentre os estudos que investigaram VPI, a prevalência variou de 7,3% a 60%; seis estudos identificaram aumento significativo e quatro identificaram agravamento da violência. Em relação aos cinco estudos que investigaram VPI perinatal, um observou diminuição na prevalência e os outros identificaram prevalência de até 32% em diferentes continentes. O quinto estudo foi o único que analisou a partir de fontes de acesso a serviço com gestantes e identificou um aumento não significativo. A violência psicológica é relatada como a forma de violência mais prevalente em todos os contextos, aparecendo como a mais frequente em nove estudos. Cabe ressaltar que alguns artigos utilizaram a nomenclatura “violência emocional” que, segundo o conceito descrito, foi considerado por este artigo como violência psicológica.

Tabela 3
Principais resultados da análise final dos artigos selecionados

Dentre as mulheres em situação de VPI durante o lockdown, uma percentagem significativa já vivia em situação de violência ou em relacionamentos abusivos. Um estudo na Austrália com 15 mil mulheres identificou que 3% experimentaram VPI pela primeira vez durante o lockdown e 67% vivenciaram novas formas de violência; outro estudo que investigou VPI e crimes sexuais a partir de prontuários hospitalares identificou agravamento dos casos.

Dois estudos trouxeram diminuição na prevalência de VPI: um deles observou diminuição de 65,1% para 50,2% na Jordânia a partir de questionários com mulheres gestantes, e outro foi o estudo mexicano que trouxe como fator associado a proibição da venda de bebida alcoólica durante o lockdown e foi o único que trouxe essa iniciativa governamental. Dos oito estudos que investigaram VD, quatro identificaram aumento da violência em até 48% e um, que investigou VPI juntamente com dados de pensão alimentícia e crimes sexuais, identificou diminuição de 16% da demanda. Três estudos se referiam a mulheres que haviam buscado algum tipo de serviço.

Três estudos investigaram feminicídio, dois não observaram alteração nas taxas de crime e um estudo na Turquia observou diminuição de 57% a 83,8% durante o toque de recolher. Esse estudo associou a diminuição das taxas aos fatores de restrição da mobilidade e a permanência da mulher no casamento (devido a fatores associados à pandemia).

A partir da análise dos estudos, é possível considerar que situações de violência contra as mulheres alcançaram níveis significativos em todo mundo quando se refere à VPI, sobretudo na experiência de mulheres que já viviam em relacionamentos violentos e situações de maior vulnerabilidade. A pandemia se mostrou um agravante neste contexto e destacou necessidades já identificadas anteriormente e ainda com pouco investimento: a revisão e a melhoria na qualidade dos serviços públicos acessados pelas mulheres e a desconstrução de padrões patriarcais que estimulem relações hierarquizadas, opressão e violência de gênero.

Fatores associados à prevalência da violência

Os fatores associados nos estudos foram categorizados em 19 itens, dos quais criamos sete grandes categorias. São elas: estresse econômico (perda ou instabilidade financeira), conflitos conjugais (brigas constantes, relações extraconjugais e outros tipos de conflitos interpessoais), uso de álcool ou outras drogas, pandemia de Covid-19 (confinamento, isolamento social, restrição da mobilidade, estresses relacionados à pandemia), relações de gênero (estereótipos de gênero, casamento arranjado, sobrecarga doméstica da mulher), vulnerabilidade da mulher (gravidez, independência financeira, baixa escolaridade, minorias étnicas, imigração, viver em situação de violência) e subnotificação.

O estresse econômico surgiu como fator associado em mais da metade dos estudos e apresentou atravessamentos com muitos outros fatores. Um deles é o fato de a pandemia ter agravado a situação econômica da população em diversos países, aparecendo igualmente em estudos de todos os continentes, criando uma correlação significativa entre a categoria estresse econômico e pandemia, especialmente em relação ao confinamento. As outras duas categorias com nível significativo de atravessamentos foram relações de gênero e vulnerabilidade, sendo essa última frequentemente ocasionada pelo estresse econômico.

O segundo fator com maior prevalência foi a própria pandemia, especialmente em relação ao confinamento, aparecendo em nove dos 17 estudos. O confinamento em casa com cônjuges agressivos foi um importante fator de aumento da violência para essas mulheres; seis estudos observaram o aumento e agravamento da violência, chegando ao aumento de 53%. Esse fator foi ligeiramente mais presente em estudos da Ásia e África. Feminicídios e crimes sexuais se mantiveram ou diminuíram em estudos com fatores associados à pandemia, especialmente em relação à restrição da mobilidade e medo de contágio em crimes sexuais e restrição da mobilidade e permanência das mulheres nos casamentos em relação ao feminicídio.

O terceiro fator mais prevalente foi relações de gênero, sendo todos nos países asiáticos e africanos. Dos 12 estudos que identificaram este fator, três observaram aumento e agravamento da violência e um estudo com mulheres gestantes associou a tomada de decisão conjunta com menos violência, identificado como um fator protetivo. O uso de álcool e outras drogas foi encontrado em seis estudos e apareceu ligeiramente relacionado ao estresse econômico e relações de gênero.

O fator vulnerabilidade foi encontrado em 10 estudos. Três pesquisas trouxeram questões de minoria étnica/imigração e todos identificaram aumento da violência. Um estudo italiano observou que a quantidade de mulheres italianas era igual ou menor às de imigrantes para VPI e crimes sexuais; e outro estudo tunisiano identificou que 73% das mulheres já viviam em situação de violência.

O último fator encontrado foi relacionado à subnotificação dos casos, evidenciado em três estudos, sendo dois comparando as respostas das mulheres aos seus prontuários médicos e um a partir, exclusivamente, dos relatos das mulheres, chegando a 90%. Outro, que não está incluso nesses três, observou uma diminuição das mulheres na busca por serviços jurídicos, ao mesmo tempo que identificou aumento e agravamento dos casos.

Qualidade dos artigos

Conforme a avaliação realizada da qualidade dos artigos, nove deles foram classificados como muito satisfatórios, 24 como satisfatórios e dois como pouco satisfatórios.

Quanto às limitações dos estudos, em relação a estudos com coleta de dados por questionário, prevaleceram as participantes responderem de forma on-line e sozinhas, população com acesso à internet e viés do autorrelato e, em relação a coleta de dados por outras fontes, prevaleceu a subnotificação dos casos. Todos os estudos apresentaram dificuldade na generalização dos dados e com as medidas da pandemia para a realização da coleta de dados.

Discussão

A coleta de dados realizada pelos estudos desta revisão sistemática ocorreu, majoritariamente, no primeiro semestre de 2021. Nesse período, a OMS divulgou mais de 1,8 milhões de mortes por Covid-19 e uma estimativa de que esse número pudesse ser de quase três milhões, exigindo medidas extremas de cuidado como lockdown nas cidades e fechamento de instituições e serviços à população.

Nesse cenário, a prevalência da violência contra as mulheres foi considerada significativa, apontando para um possível aumento em relação à frequência e gravidade dos casos, sobretudo para VPI e VD e, mais especificamente, violência psicológica. Os fatores associados com maior frequência a situações de violência foram o estresse econômico, questões relacionadas à pandemia e a relações de gênero. A prevalência de feminicídio se manteve estável ou menor nos três estudos que investigaram esse tipo de crime e os fatores associados foram a restrição da mobilidade e, mais especificamente, a maior permanência da mulher em casamentos abusivos. Dados da OMS (2022) estimam que 38% das mortes de mulheres são causadas pelo parceiro masculino e, muitas vezes, motivadas pela não aceitação do término do relacionamento.

Segundo a OMS, a VPI e a violência sexual se configuram como um grande problema de saúde pública e indicam que, aproximadamente, 35% das mulheres já sofreram violência física e/ou sexual e 30% já sofreram essas violências dentro de relacionamentos, corroborando os resultados deste estudo, que identificou a prevalência de violência concentrada entre 19% e 40%. Metade (6) dos estudos que citaram fatores associados à pandemia diretamente identificaram aumento da violência ou agravamento dos casos, incluindo estudos a partir de análise de prontuário médico, entendendo que a pandemia pode ter interferido de forma mais significativa na experiência de mulheres que já viviam em situação de violência, como cita o estudo australiano comparando uma primeira experiência de violência (3%) à novas formas de violência (67%) (Morgan; Boxall, 2020MORGAN, A.; BOXALL, H. Social isolation, time spent at home, financial stress and domestic violence during the COVID-19 pandemic. Trends and Issues in Crime and Criminal Justice, n. 609, p. 1-18, 2020.).

Grande parte dos estudos especificaram a prevalência de VPI a partir de tipos específicos: psicológica, emocional, verbal, física, sexual e econômica e, apesar da diferença de termos, foi possível observar a prevalência da violência emocional/psicológica. Esse é um dos tipos de violência mais banalizados e também mais prevalente, mesmo anterior à pandemia (Acosta et al., 2013; Carneiro; Fraga, 2012; Moura, 2009MOURA L. B. de A. Ecologia das violências praticadas por parceiros íntimos contra mulheres. Varjão-Distrito Federal, 2009.); e segundo Arenas-Arroyo (2020)ARENAS-ARROYO, E.; FERNANDEZ-KRANZ, D.; NOLLENBERGER, N. Intimate partner violence under forced cohabitation and economic stress: Evidence from the COVID-19 pandemic. Journal of Public Economics, v. 194, p. 104350, 2021., é o tipo de VPI mais legitimada pela população e subnotificada nos departamentos policiais.

A violência contra as mulheres tende a ser altamente subnotificada (Moura, 2009MOURA L. B. de A. Ecologia das violências praticadas por parceiros íntimos contra mulheres. Varjão-Distrito Federal, 2009.), convergindo com os resultados desta revisão sistemática, que trouxe esse indicador atrelado à violência psicológica (SediriSEDIRI, S. et al. Women’s mental health: acute impact of COVID-19 pandemic on domestic violence. Archives of Women’s Mental Health, v. 23, n. 6, p. 749-756, 2020. et al., 20202; Tashome et al., 2020) e aos serviços de saúde. Dois estudos (Krishnamurti et al., 2020; TeshomeTESHOME, A. et al. Intimate partner violence among prenatal care attendees amidst the COVID-19 crisis: The incidence in Ethiopia. International Journal of Gynecology Obstetrics, v. 153, n. 1, p. 45-50, 2021. et al., 2020) compararam os relatos das mulheres com seus prontuários hospitalares e identificaram alto índice de subnotificação nos casos. Esse dado leva à discussão sobre a importância do atendimento humanizado e acolhedor a essa população (HabigzangHABIGZANG, L. F.; GOMES, M.; MACIEL, L. Terapia Cognitivo-Comportamental para Mulheres que Sofreram Violência por seus Parceiros íntimos: Estudos de Casos Múltiplos. Ciências Psicológicas, v. 13, n. 2, p. 149-264, 2019. et al., 2018; Habigzang; Petersen; Maciel, 2019) e do treinamento para profissionais da saúde em relação aos sinais, consequências e ações para esse tipo de demanda. Segundo Habigzang, Petersen e Maciel (2019), é necessária a integração de ações interdisciplinares em saúde, políticas públicas, trabalho protetivo em rede e a legislação local efetivamente em vigor.

As relações de gênero alimentadas culturalmente são um importante pilar para o entendimento da violência de gênero contra as mulheres, pois, como colocam Carneiro e Fraga (2012), alavanca a discriminação de gênero e legitima esse tipo de violência. Oito estudos identificaram como fatores associados os estereótipos de gênero, tais como dominação masculina, comunidade tolerante à violência e estigmas relacionados ao papel da mulher e, no contexto pandêmico, afazeres domésticos e familiares relacionados a esse estigma se tornaram uma grande sobrecarga para as mulheres (Monteiro; Hashimoto; Ribeiro, 2020). Esse fator foi especialmente investigado em países do continente africano e asiático, onde a cultura ainda incentiva fortemente casamentos arranjados e precoces (com meninas a partir de 15 anos) e incentivam mulheres a não trabalhar para servir a família, incluindo, comumente, a família extensa. Um estudo de Haq, Raza e Mahmood (2020HAQ, W.; RAZA, S. H.; MAHMOOD, T. The pandemic paradox: domestic violence and happiness of women. Peer J, v. 8, p. e10472, 2020.) citou que mulheres casadas e resistentes aos estereótipos de gênero sofreram maiores níveis de violência durante o lockdown por resistirem à condição de principais (ou únicas) cuidadoras da casa, da família e dos(as) filhos(as).

Apesar de os principais estudos que pontuam as relações de gênero hierarquizantes como um fator significativamente associado sejam no continente africano e asiático, sabe-se que a complexidade em relação à violência de gênero existe, apenas, por ideias de gênero desiguais, expectativas em relação comportamentos sociais e posturas no relacionamento esperados e reforçados culturalmente, legitimando a posição de submissão da mulher, de dominação e agressividade do homem e banalizando situações de violência de gênero, em todos os países e culturas. O presente artigo tem a intenção de pontuar essa problemática em todos os seus termos, sem discriminar e/ou hierarquizar conforme cultura ou região.

É importante ressaltar que questões de interseccionalidade de classe e raça, fruto de um sistema capitalista e patriarcal e essencial na manutenção de um sistema desigual e violento, resultam em diferentes experiências de discriminação e opressão e são, portanto, imprescindíveis na compreensão da violência de gênero (Monteiro; Hashimoto; Ribeiro, 2020; Silveira; Nardi, 2014SILVEIRA, R. S.; NARDI, H. C. Interseccionalidade gênero, raça e etnia e a lei Maria da Penha. Psicologia Sociedade, v. 26, p. 14-24, 2014.; Hooks, 2015; Scott, 1995SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação Realidade, v. 20, n. 2, p. 71-99, 1995.). Infelizmente, não foi possível dimensionar esse dado conforme o esperado a partir dos resultados apresentados pelos estudos e foi com o objetivo de se aproximar ao máximo desses marcadores que optamos por observar fatores de maior vulnerabilidade como minorias étnicas e níveis de escolaridade. A lacuna deixada por tantas pesquisas nos remete à invisibilidade que ainda há, em temáticas relacionadas à realidade das mulheres, ao se tratar raça como um marcador indispensável e a tendência em universalizar a experiência das mulheres, desconsiderando atravessamentos de grande influência.

Considerando marcadores de vulnerabilidade e minorias, dois estudos (NittariNITTARI, G. et al. First Surveillance of Violence against Women during COVID-19 Lockdown: Experience from “Niguarda” Hospital in Milan, Italy. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 7, p. 3801, 2021. et al., 2021; Sabri et al., 2020) se interessaram especificamente na situação das mulheres imigrantes, um estudo investigou a minoria étnica como fator associado à violência (Boxall; Morgan, 2021BOXALL, H.; MORGAN, A. Who is most at risk of physical and sexual partner violence and coercive control during the COVID-19 pandemic? Trends and Issues in Crime and Criminal Justice, n. 618, p. 1-19, 2021.) e cinco estudos investigaram VPI perinatal (AbujilbanABUJILBAN, S et al. Intimate Partner Violence Against Pregnant Jordanian Women at the Time of COVID-19 Pandemic’s Quarantine. Journal of Interpersonal Violence, p. 0886260520984259, 2021. et al., 2021; Krishnamurti et al., 2021; MuldoonMULDOON, K. A. et al. COVID-19 and perinatal intimate partner violence: a cross-sectional survey of pregnant and postpartum individuals in the early stages of the COVID-19 pandemic. BMJ Open, v. 11, n. 5, p. e049295, 2021. et al., 2021; Naghidazeh, 2021; Teshome et al., 2021). Segundo Ortiz-Barredo et al. (2011), esses atravessamentos têm sido uma importante lacuna nas ações das políticas públicas no enfrentamento da violência contra as mulheres no âmbito mundial, configurando uma grande barreira no rompimento da violência e do relacionamento violento e exigindo maior consideração para fins de planejamentos e ações resolutivas.

Sabri et al. (2020SABRI, Bushra et al. Effect of COVID-19 pandemic on women’s health and safety: A study of immigrant survivors of intimate partner violence. Healthcare for Women International, v. 41, n. 11-12, p. 1294-1312, 2020.) acionam um alerta quanto às consequências dos desdobramentos da pandemia na saúde mental, como a ocorrência de estresse, ansiedade e depressão devido ao desemprego, escassez de políticas de seguridade social, isolamento social e falta de espaços comunitários de saúde. Tais fatores convergem com Bradbury-Jones e Isham (2020BRADBURY-JONES, C.; ISHAM, L. The pandemic paradox: the consequences of COVID-19 on domestic violence. J Clin Nurs., v. 29, p. 2047-2049, 2020.), que citam o impacto negativo da saúde mental, física e emocional, além de aspectos de vulnerabilidade econômica e exposição à violência doméstica, combinando com os principais fatores associados encontrados nesta revisão sistemática. É possível observar uma população que já vivia em situação de violência e vulnerabilidade, com saúde mental e condições de acesso a segurança e serviços de saúde comprometidos, em uma situação ainda mais vulnerabilizada em momentos de crise econômica e social. Esse é um fator de grande impacto na vida de mulheres que vivem relacionamentos abusivos ou que estão se recuperando, pois, como afirmam Anderson et al. (2012), o acesso à rede de apoio, tanto formal quanto informal, é essencial para a recuperação dessas mulheres.

Assim sendo, esta revisão sistemática que buscou identificar a prevalência e os fatores associados dos níveis de violência contra as mulheres, encontrou maior quantidade em estudos relacionados à VPI em diferentes populações e países e identificou alto índice de prevalência e provável aumento da violência, especialmente referente à violência psicológica e mulheres que já estavam em situação de violência. Os fatores associados ao agravamento dessa violência foram o estresse econômico, a própria pandemia, em especial o confinamento coabitado, e fatores relacionados a gênero, como o estereótipo em relação ao comportamento e papel doméstico conforme o sexo.2 2 Esta revisão sistemática selecionou apenas estudos escritos no idioma inglês, não incluindo estudos em idiomas originais, apresentando esse viés de publicação. Outra limitação é relacionada ao risco de viés dos estudos primários, considerando riscos de subnotificação dos dados.

Os artigos selecionados para esta revisão sistemática apresentaram qualidade metodológica satisfatória, permitindo uma confiabilidade nos dados e nos resultados finais. Grande parte especificou as limitações do estudo e trouxe pontos importantes para se pensar em novas pesquisas, mas alguns poucos artigos omitiram informações em relação ao método e não foram claros em relação aos resultados. Importante pontuar a lacuna percebido nos estudos em considerar a interseccionalidade de gênero com questões raciais, invisibilizando um dado essencial para o entendimento da realidade das mulheres que viveram ou vivem situações de violência e prejudicando direcionamentos e ações resolutivas para a classe das mulheres. Em relação a futuros estudos, é importante considerar dados referentes ao período pós-lockdown e estudos qualitativos que possam explorar com maior profundidade a experiência dessa população. Também é importante considerar futuros estudos longitudinais, a fim de acompanhar o impacto da pós-pandemia para essas mulheres e o impacto que essa experiência teve na saúde mental dessas mulheres, pensando que a prevalência pode ter se mantido, mas os fatores associados podem ter gerado outros tipos ou agravamento de sintomas.

  • 1
    Este artigo é resultado da dissertação de mestrado e não há conflitos de interesse por parte das autoras. A pesquisa foi financiada pelo CNPq (132139/2020-0).
  • 2
    Esta revisão sistemática selecionou apenas estudos escritos no idioma inglês, não incluindo estudos em idiomas originais, apresentando esse viés de publicação. Outra limitação é relacionada ao risco de viés dos estudos primários, considerando riscos de subnotificação dos dados.

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Editora responsável: Rozeli Porto

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    18 Jul 2022
  • Aceito
    16 Nov 2023
  • Revisado
    18 Ago 2023
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