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Transexualidade e práticas esportivas: uma análise a partir da teoria do reconhecimento

Transsexuality and Sports Practices: An Analysis from the Recognition Theory

Resumo

Este estudo qualitativo investigou a inclusão de pessoas trans no esporte com base na teoria do reconhecimento. Realizado por meio de cinco grupos focais on-line com 32 participantes, identificou-se três eixos temáticos. O primeiro, “Contexto de inserção das pessoas trans no esporte - não reconhecimento”, revela experiências esportivas marcadas por violência e falta de reconhecimento. O segundo, “A urgência da ampliação do debate sobre Esporte”, explora o esporte como forma de socialização e sobrevivência. O terceiro, “Reconhecimento e passabilidade - a cis-heteronormatividade enquanto regulador do reconhecimento”, aborda a ligação entre reconhecimento e conformidade com normas de gênero hegemônico. Apesar das barreiras, a participação das pessoas trans no esporte pode desafiar normas de gênero.

Palavras-chave:
Minorias sexuais e de gênero; Esporte; Teoria do Reconhecimento

Abstract

This qualitative study investigated the inclusion of transgender individuals in sports based on the recognition theory. Conducted through five online focus groups with 32 participants, three thematic axes were identified. The first, “Context of transgender inclusion in sports - non-recognition”, reveals sports experiences marked by violence and lack of recognition. The second, “The urgency of expanding the Sports debate”, explores sports as a form of socialization and survival. The third, “Recognition and passability - cis-heteronormativity as a regulator of recognition”, addresses the link between recognition and compliance with hegemonic gender norms. Despite barriers, the participation of transgender individuals in sports has the potential to challenge gender norms.

Keywords:
Sexual and Gender Minorities; Sports; Recognition Theory

Introdução

As desigualdades relacionadas à população LGBTI+,1 1 Utilizaremos, no decorrer deste texto, a sigla LGBTI+, padronizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) nos referindo à população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexual e demais orientações sexuais e identidades de gênero. em especial com a população trans, são resultado da interseção de diversas formas de discriminação em um contexto complexo, gerando sofrimento, exclusão e profundas disparidades sociais. Essa marginalização surge como uma consequência do rompimento das normas de gênero, que torna as pessoas trans2 2 Pessoas trans é a forma ampliada que será usada ao longo desse trabalho para falar sobre o coletivo das identidades trans que serão mencionadas no decorrer do mesmo e se refere a travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias. os principais alvos de preconceito e discriminação no país (Gross; De Cademartori, 2018GROSS, J.; DE CADEMARTORI, D. M. O direito de existir para a sociedade: cidadania e sexualidade na luta por direito da comunidade LGBT no Brasil. Gênero & Direito, v. 7, n. 3, p. 1-21, 2018.).

Ao abordar a transexualidade, é utilizada a definição de Berenice Bento, que destaca um conflito entre as normas de gênero estabelecidas e a identidade das pessoas trans, divergindo daquela atribuída com base no sexo de nascimento. Pessoas trans enfrentam discriminação e buscam reconhecimento de sua autonomia, identidade e direitos, devido à inadequação à cisnormatividade3 3 A cis-heteronormatividade corresponde às normas político-sociais que impõem práticas e códigos cisgêneros e heterossexuais a todas as pessoas. Refere-se ao ideal normativo de uma sociedade que tem os corpos cis e a heterossexualidade como dispositivos de regulação de desejos, práticas sexuais, expressões e identidades de gênero. de gênero, uma forma de poder que classifica os corpos e muitas vezes não reconhece ou reconhece de maneira inadequada identidades que não se conformam com essa norma (Da Silva, 2020; Butler, 2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.).

As lutas contemporâneas das pessoas trans podem ser ilustradas nas lutas jurídicas de uso do nome social, acesso às terapias hormonais, utilização de banheiros a partir de sua identidade de gênero, entre outros (Coelho et al., 2018COELHO, R. T.; LUZ, E.; COSTA JÚNIOR, E. F. da. Atletas transgêneros: tabu, representatividade, minorias e ciências do esporte. Revista de Trabalhos Acadêmicos UNIVERSO, São Gonçalo, v. 3, n. 5, p. 29-58, 2018.). Nesse sentido, observamos questões ainda pautadas a partir de uma matriz binária e cis-heteronormativa.

A Teoria do Reconhecimento circunscreve-se na teoria crítica e tem sido utilizada para analisar as sociedades contemporâneas (Mattos, 2006MATTOS, P. A sociologia política do reconhecimento: as contribuições de Charles Taylor, Axel Monet e Nancy Fraser. São Paulo: Reconhecimento, 2006.). A partir da ótica da teoria do reconhecimento, pautada por Judith Butler e Paddy McQueen, lançamos enquanto proposta analisar a inserção das pessoas trans nos espaços esportivos. Sob essa ótica, o ato de reconhecer alguém não se limita a corrigir injustiças ou promover inclusão social, mas implica uma revisão profunda de todo o conjunto normativo que determina quem é ou não digno de reconhecimento, quem se ajusta ou não aos padrões e condições de “reconhecibilidade” (McQueen, 2015).

Este trabalho destaca lutas que visam a um reconhecimento que transcende as barreiras de sexo e gênero, atendendo às necessidades das pessoas trans além das questões legais e dos direitos fundamentais. As práticas esportivas englobam diversas facetas, abrangendo aspectos comerciais, culturais, de estilo de vida, econômicos, sociais, educacionais, de saúde e de pesquisa científica (Athayde et al., 2016ATHAYDE, P.; MASCARENHAS, F.; FIGUEIREDO, P. O. F. N.; REIS, N. S. O esporte como direito de cidadania. Pensar a Prática, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 490-501, abr./jun. 2016.). A participação de pessoas trans é especialmente controversa, com o esporte de alto rendimento sendo um ponto central das discussões devido às regulamentações institucionais relacionadas a gênero e sexo. No entanto, é crucial ampliar o diálogo sobre a inclusão das pessoas trans no contexto das práticas esportivas. Assim, este estudo teve como objetivo analisar a inserção das pessoas trans no contexto das práticas esportivas, a partir do aporte conceitual da teoria do reconhecimento.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que utilizou grupos focais online síncronos. A coleta de dados ocorreu por meio da plataforma Cisco Webex Meetings. Os participantes da pesquisa foram atores sociais relacionados ao contexto da transexualidade no esporte, como pessoas trans, atletas e profissionais que estivessem inseridos e atuantes nas práticas esportivas.

O recrutamento dos participantes foi realizado exclusivamente por meio das redes sociais, especificamente no Instagram e WhatsApp, por meio de um convite de acesso público. Os voluntários foram contatados por e-mail, WhatsApp e Instagram, nos quais receberam informações detalhadas sobre o tema, a importância e os objetivos da pesquisa, além de terem acesso e oportunidade de esclarecer dúvidas em relação ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Com o propósito de aprofundar a compreensão dos participantes, foi disponibilizado um link para que eles respondessem a um questionário abrangente, abordando informações sociodemográficas como gênero, raça, educação e renda. Todos os 32 participantes responderam ao questionário na íntegra, o que contribuiu para uma análise completa.

A técnica de grupos focais on-line (GFO), de forma síncrona, usando videoconferência conforme sugerido por Fricker (2012FRICKER, M. Group testimony? The making of a collective good informant. Philosophy and Phenomenological Research, v. 84 n. 2, p. 249-276, 2012.), foi empregada como método de coleta de dados. Os GFO desempenham papel fundamental em pesquisas que abordam questões relacionadas às pessoas trans (Fontenot et al., 2020FONTENOT, H. B. et al. Transgender Youth Experiences and Perspectives Related to HIV Preventive Services. Pediatrics, v. 145, n. 4, 2020.).

Os participantes foram divididos conforme a identidade de gênero e orientação sexual, configurando os cinco grupos seguintes (N=32): G1, mulheres trans (N=09); G2, homens trans (N=5); G3, pessoas cis LGB “atletas” 1 (N=6); G4, profissionais cis LGB (N=7) e G5, profissionais cis heterossexuais (N=5).

Os GFO, com duração média de uma hora e trinta minutos, foram gravados e transcritos na íntegra. Dois pesquisadores fizeram a moderação das discussões, sendo responsáveis pela mediação, registro e aspectos técnicos. O diálogo foi orientado por perguntas norteadoras, incentivando uma interação confortável e aberta. Foi explicado que o silêncio seria considerado concordância, enquanto incentivos foram fornecidos para expressar divergências e aspectos relevantes durante as conversas (Minayo, 2010MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco. 2010.).

Os dados foram analisados por meio da Análise Temática, um método que visa identificar indicadores para compreender a produção e captação dos dados (Minayo, 2010MINAYO, M. C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec-Abrasco. 2010.). O processo envolveu três etapas: a seleção dos documentos, revisão das hipóteses e objetivos iniciais, e a criação de indicadores para orientar a interpretação dos dados. Posteriormente, o material foi explorado para identificar palavras e expressões significativas relacionadas ao conteúdo. Por fim, os resultados foram tratados e interpretados, integrando a teoria e o conteúdo das entrevistas, a fim de agrupar os achados em temas relevantes que enriqueceram a discussão dos resultados (Braun; Clarke, 2006BRAUN, V.; CLARKE, V. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, jan. 2006.).

Os procedimentos éticos realizados em consonância com a legislação brasileira foram seguidos, conforme o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da UFSC, sob o CAAE 24963919.4.0000.0121. Antes de responderem ao questionário sociodemográfico, os participantes foram solicitados a marcar uma caixa na página, indicando seu consentimento para participação, e tiveram acesso ao TCLE.

Resultados e Discussão

Os participantes da pesquisa apresentaram o seguinte perfil sociodemográfico: as idades variaram entre 19 e 34, com média de 27,3 anos. A maior parte da amostra reside em capitais, sendo São Paulo (SP) a mais predominante, seguida por Porto Alegre (RS), Florianópolis (SC) e Curitiba (PR). Quanto à orientação sexual, 56,3% se declararam heterossexuais, 18,8% gays, 15,6% bissexuais, 6,3% lésbicas e pansexuais foram 3,1%. No que tange à expressão de gênero, 53,1% se expressam como mulheres, 40,6% como homens e 6,3% como não-binários. Do conjunto, 78,1% se autodeclaram como branco, 12,5% como preto e 9,4% como pardo. Quanto à escolaridade, 31,3% têm ensino superior incompleto, 21,9% têm o ensino médio ou equivalente, 46,9% têm ensino superior.

A inserção das pessoas trans no contexto das práticas esportivas foi apresentada a partir de temas centrais: 1) Contexto de inserção das pessoas trans no esporte - a experiência do não reconhecimento; 2) A urgência da ampliação do debate sobre esporte - as múltiplas faces do esporte e a possibilidade de reconhecimento; e 3) Reconhecimento e passabilidade - a cis-heteronormatividade como regulador do reconhecimento.

Contexto de inserção das pessoas trans nas práticas esportivas - a experiência do não reconhecimento

A ausência de reconhecimento no contexto da inserção das pessoas trans nas práticas esportivas foi apontada nos diferentes GFO, caracterizada pelas experiências de negação de suas identidades, bem como pela falta de inclusão e equidade nas práticas esportivas. Esses aspectos foram percebidos tanto pelos grupos compostos por pessoas trans, quanto por aqueles formados por profissionais e atletas:

A ciência prova que não há vantagem, né? Então a questão é simplesmente transfobia. Não querem os nossos corpos ocupando esses espaços (GF mulheres trans).

Eu gostava de estar ali, gostava de jogar, mas quando comecei a transição, sentia que as pessoas não queriam que eu estivesse ali. E também porque não poderia competir no time masculino e eu não queria mais competir no feminino. Eu pensei: ‘Não, não me sinto feliz assim, então não vou mais continuar’. E acabei deixando o handebol de lado. Apesar de amar jogar muito (GF homens trans).

Ao comparar os grupos compostos por pessoas trans, percebe-se uma marcante diferenciação nas experiências esportivas vivenciadas por cada um deles. Mulheres trans frequentemente relatam experiências esportivas marcadas pela violência e por questionamentos relacionados a suposta vantagem física, enquanto homens trans, apontam outros desafios, sobretudo, por uma inferioridade física atribuída discursivamente a esses corpos, tais experiências se diferenciam principalmente por questões relacionadas diretamente às normas binárias de gênero.

As questões relacionadas à inclusão de pessoas trans nas práticas esportivas ocorrem em um cenário que enfrenta disparidades ligadas à identidade de gênero, que difere da cisgeneridade, e que também abrange as desigualdades de gênero em relação à predominância ou privilégio do masculino sobre o feminino. Isso se evidencia ao analisarmos as diretrizes esportivas profissionais estabelecidas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), uma autoridade de referência global no esporte, por meio do relatório IOC Consensus Meeting on Sex Reassignment and Hyperandrogenism (novembro de 2015). Esse relatório promoveu alterações nas regulamentações que regem a participação de atletas trans nas Olimpíadas.

Nesse documento, foi estipulado que apenas mulheres transexuais devem manter os níveis de testosterona regulados, ou seja, abaixo de 10 nanomols por litro de sangue nos últimos 12 meses e durante todo o período da competição. Além disso, as mulheres trans devem ser oficialmente reconhecidas como pertencentes ao gênero feminino. Isso representa uma mudança em relação ao decreto anterior, que estabelecia que mulheres transexuais só poderiam competir em eventos femininos após realizarem cirurgia de redesignação sexual. Essas regulamentações apontam para formas de controle dos corpos. Por exemplo, o documento mencionado acima determina que atletas transexuais que desejam competir em equipes femininas devem se submeter a terapia hormonal, mudança de nome e reconhecimento de gênero. Por outro lado, para homens transexuais, o documento não impõe nenhuma exigência específica (Silvestrin; Vaz, 2021SILVESTRIN, J. P.; VAZ, A. F. Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes. Revista Estudos Feministas, v. 29, n. 2, e79366, 2021.).

O corpo do homem trans, ao ser lido socialmente, a partir de uma inteligibilidade binária, é pensado enquanto um corpo “feminino” frágil e que não gera riscos ao tentar ingressar num espaço criado para o masculino. As narrativas apontaram para o esporte enquanto um recurso perpetuado e utilizado para obtenção de um corpo masculinizado, através da obtenção de massa muscular, sendo modalidades específicas, como a musculação, as mais praticadas (Rego, 2014REGO, F. C. V. S. do. Hipertrofia muscular como expressão da masculinidade entre homens transexuais: masculinidades e ética antropológica. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 29, 2014, Natal, UFRN. Anais… Natal: UFRN, 2014, p. 1-20.; Silvestrin; Vaz, 2021SILVESTRIN, J. P.; VAZ, A. F. Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes. Revista Estudos Feministas, v. 29, n. 2, e79366, 2021.; Peçanha; Silva Junior; Soliva, 2024PEÇANHA, L. M. B.; SILVA JUNIOR, A. L.; SOLIVA, T. B. Corpos transmasculinos negros em intersecções estéticas: entrevista com Leonardo Peçanha. Ciência & Saúde Coletiva, v. 29, n. 2, 2024.).

Neste sentido, Camargo (2020CAMARGO, E. S. Pessoas trans no esporte: os jogos da cisnormatividade. 155 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2020.) aponta que os homens trans/transmasculinos não são vistos enquanto uma ameaça no contexto esportivo, por conta da inferioridade atribuída a esses corpos, no entanto, a problemática se encontra na ameaça que representam ao “cistema” sexo/gênero por transgredir as concepções cis-heteronormativas.

As experiências são marcadas por diversas formas de violência, seja pelo não reconhecimento de suas identidades, pela constante indagação sobre a legalidade desses corpos ocuparem esses espaços, pela marginalização dos corpos que não performam características inteligíveis dentro do modelo binário, entre outras.

O esporte imita a vida em sociedade, não querem nossos corpos ocupando esses espaços (GF mulheres trans).

Nos grupos focados nas pessoas trans, emergiram argumentos que revelam a discussão como anterior às práticas esportivas, ou seja, a existência desse grupo por si só já é um constante desafio. Foram apontadas diversas experiências, sobretudo no grupo das mulheres trans e travestis, relatando que a transfobia se dá nos diferentes espaços sociais, sendo o esporte mais um deles.

A nossa vida poderia ser um pouco mais fácil, né? Ou menos difícil, né? E nem sempre a gente vai ter forças realmente para lutar, né? Pra persistir (GF mulheres trans).

No contexto atual, embora as práticas esportivas sejam vistas como espaços importantes, elas ainda perpetuam a exclusão social baseada em uma matriz cis-heteronormativa, que está em voga em um cenário social. Deste modo, as barreiras para a inserção das pessoas trans nessas práticas são anteriores, elas se configuram em um espaço de relações de poder que reproduzem as normas sociais, elas autorizam quem pode ou não ser reconhecido nesse contexto, portanto, “os atos de reconhecimento em si farão parte dos mecanismos de poder através dos quais o sujeito, como entidade reconhecível, é produzido e mantido” (McQueen, 2015).

É importante considerar as reflexões de McQueen (2015), que destaca que identidades transgressoras geram resistência política institucional. Tanto os resultados desta pesquisa quanto a literatura destacam que as pessoas trans, especialmente mulheres trans, enfrentam dificuldades para inserção no contexto esportivo, bem como nos demais espaços sociais. Tal concepção alinha-se ao conceito de McQueen (2015), identificada como o resultado de novas normas governamentais estratégicas que constroem, regulam, censuram e até mesmo apagam grupos específicos. O autor também afirma que desvios da norma são usados para apontar pessoas como marginais e "a exceção", justificando assim sua exclusão e quaisquer omissões resultantes. McQueen (2015) acrescenta, ainda, que a luta pelo reconhecimento das pessoas trans não se limita apenas ao reconhecimento em si, mas abrange uma disputa ontológica sobre o que é digno de reconhecimento.

As pessoas trans, nesse conjunto de grupos minoritários, buscam uma libertação dos padrões hegemônicos pautados pelo autoritarismo das maiorias, sendo fundamental sua representatividade dentro dos mais diferentes setores sociais, pois esta população ainda sofre com a ausência de execução de direitos básicos como: saúde, educação e emprego (Coelho et al., 2018COELHO, R. T.; LUZ, E.; COSTA JÚNIOR, E. F. da. Atletas transgêneros: tabu, representatividade, minorias e ciências do esporte. Revista de Trabalhos Acadêmicos UNIVERSO, São Gonçalo, v. 3, n. 5, p. 29-58, 2018.).

O olhar demonstrado pelos grupos compostos por pessoas cis revelaram uma percepção sobre a transexualidade no esporte pautada a partir de uma matriz cis-heteronormativa e sob uma ótica biológica, sobretudo com base nas supostas vantagens que as mulheres trans possuem ou não, alegando que se existe uma permissão científica que eles não seriam contra, mas que tais condições devem ser estudadas. A importância dessa investigação é sabida e não se tem a intenção de aprofundar neste debate, no entanto, tais posicionamentos demonstram um olhar sob uma matriz cis-heteronormativa, em que as pessoas trans necessitam se adequar aos padrões binários para se inserir em um contexto esportivo.

A participação das pessoas trans em práticas esportivas é influenciada por diferentes atores sociais, como instituições esportivas, torcedores, espectadores e outros não especialistas, o que resulta em um cenário com várias opiniões, muitas delas sem embasamento teórico e frequentemente impregnadas de transfobia. A existência das pessoas trans é uma realidade social que requer um debate consolidado e urgente para possibilitar sua participação plena em todos os espaços (Silvestrin; Vaz, 2021SILVESTRIN, J. P.; VAZ, A. F. Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes. Revista Estudos Feministas, v. 29, n. 2, e79366, 2021.).

A discussão sobre a transexualidade no contexto das práticas esportivas precisa ser debatida entre os diferentes atores e instituições que se relacionam com a temática, pois o reconhecimento sempre consiste em autorreconhecimento e reconhecimento dos outros, de tal forma que as relações de poder desempenham papel importante no estabelecimento das bases sobre as quais as identidades e o sujeito são formados: o reconhecimento não é externo à relação entre sujeito e poder (McQueen, 2015; Butler, 2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.).

As dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans nesse cenário tornam suas vidas menos vivíveis, mas também podem se mostrar enquanto um espaço de subversão dessas identidades. Essas possibilidades e impossibilidades serão debatidas na próxima seção.

A urgência da ampliação do debate sobre esporte - as múltiplas faces do esporte e a possibilidade de reconhecimento

As falas evidenciaram as desigualdades de gênero nas experiências esportivas desde a infância até a vida adulta. Os relatos demonstram manifestações sexistas que começam no esporte escolar, em que os esportes são direcionados separadamente para meninos e meninas, limitando a vivência múltipla de configurações/normas de gênero que são anteriores.

Eu mesmo, quando era obrigado a jogar futebol com garotos, sentia muita raiva por não ter a liberdade de escolher. Isso mostra que a transfobia já está presente nas políticas educacionais e nas aulas de educação física, que estabelecem times separados por gênero sem considerar outras possibilidades (GF mulheres trans).

A importância das práticas esportivas como um direito constitucional e humano é amplamente reconhecida internacionalmente. No entanto, a estrutura binária de gênero no esporte, dividida em categorias feminino e masculino, ainda exclui pessoas que não se encaixam nesse modelo tradicional, como as pessoas trans. A discussão sobre sua inclusão ainda se concentra sobretudo em aspectos biológicos e no esporte de alto rendimento, ignorando outras dimensões desse contexto.

Tais vivências perpassam um contexto de exclusão ao longo dos diferentes níveis, desde a educação física escolar até o esporte amador e de alto rendimento, no qual as pessoas trans enfrentam obstáculos que limitam sua participação plena nesses espaços devido às normas corporais construídas com base em concepções binárias de gênero (Camargo, 2020CAMARGO, E. S. Pessoas trans no esporte: os jogos da cisnormatividade. 155 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, 2020.).

É importante ressaltar a relevância desses apontamentos no debate sobre a inserção das pessoas trans no esporte, pois grande parte da literatura tem como foco o esporte de alto rendimento, deixando de lado as outras possibilidades de inserção, que, se comparadas, se aproximam muito mais dos grupos populacionais, pois fazem parte dos diferentes ciclos de vida. É importante salientar que a prática esportiva é uma atividade diversificada, abrangendo uma variedade de valores, significados e formas. Pode se manifestar em contextos comerciais, industriais, culturais e como parte do estilo de vida, com relevância econômica. Além disso, o esporte é visto como um meio de socialização, educação e formação, uma estratégia para a promoção da saúde e um objeto de investigação científica (Athayde et al., 2016ATHAYDE, P.; MASCARENHAS, F.; FIGUEIREDO, P. O. F. N.; REIS, N. S. O esporte como direito de cidadania. Pensar a Prática, Goiânia, v. 19, n. 2, p. 490-501, abr./jun. 2016.).

De Camargo e Kessler (2017CAMARGO, W. X.; KESSLER, C. S. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 47, p. 191-222, 2017.) pontuam que os corpos que não se enquadram nas proposições dos esportes, são excluídos de qualquer contexto, seja na educação, lazer ou alto rendimento, o que também pode ser estendido para as relações de identidade de gênero e sexualidade.

Exemplo disso são os diversos projetos de leis que buscam cristalizar que o critério único para a definição de gênero em competições esportivas oficiais seja o sexo biológico, como o Projeto de Lei nº 2.200/2019 em âmbito federal, o Projeto de Lei catarinense nº 16/2023 em nível estadual, e legislação já em vigor em Boa Vista (RR). O projeto de caráter nacional apresenta a seguinte ementa “Dispõe sobre a proibição da participação de atletas transexuais do sexo masculino (HOMENS TRAVESTIDOS OU FANTASIADOS DE MULHER)4 4 Grifo nosso. em competições do sexo feminino em todo o Território Nacional”.

Em síntese, a ementa do projeto de caráter nacional explicita uma postura transfóbica, destacando-se pelo profundo apagamento das identidades trans ao proibir, de maneira estigmatizante, a participação de atletas trans em competições em todo o Território Nacional.

Fazendo uma leitura a partir da teoria do conhecimento, McQueen (2015) aponta que as pessoas trans lutam para além de uma demanda para serem reconhecidas, mas sim, uma luta de base ontológica em relação ao que é reconhecível, demonstrando essa exclusão geral, seja lá qual o contexto esportivo analisado.

Sejam os resultados da presente pesquisa ou os encontrados na literatura vão apontar como há diversas tentativas para impossibilitar o acesso das pessoas trans no esporte, sobretudo de uma população que sofre diversos apagamentos sociais, em concordância com o conceito de McQueen (2015) de que se trata de novas elaborações estratégicas das normas que governam, em processos pelos quais grupos específicos são construídos, regulados, censurados e até mesmo apagados.

Os atos que constituem o gênero são regidos por normas institucionalizadas que impõem certos modos de comportamento, pensamento, fala e até moldam nossos corpos. O processo de se tornar um sujeito generificado é altamente regulado e normatizado, e governa o que é considerado inteligível e formas viáveis de identidade. Como resultado, todas as construções positivas das categorias de gênero serão excludentes e contestáveis (Butler, 2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.; McQueen, 2015).

É importante ressaltar que as práticas esportivas foram apontadas como um dispositivo importante na experiência de vida das pessoas trans, sendo uma possibilidade de socialização, de construção de redes de apoio e sobretudo de existência.

Eu usava o esporte como válvula de escape. Era uma forma de extravasar quando me sentia muito ansioso. Jogar futebol ou fazer musculação era uma boa maneira de liberar essa ansiedade e também contribuía para a minha autoestima. Participar de esportes coletivos me permitia interagir com outras pessoas, e isso tinha um impacto significativo na minha autoestima. Para mim, era um reforço positivo nesse sentido (GF homens trans).

Elas foram apontadas como espaços e momentos considerados enquanto válvulas de escape das dificuldades enfrentadas nos diferentes âmbitos de vida. Os benefícios extrapolam a questão física e/ou biológica, apontando uma prática que continuou dando sentido à luta pela existência e como “resistência” em permanecer vivas em uma sociedade que busca a aniquilação dos corpos dissonantes nos menores detalhes.

[...] o esporte, ele fez com que eu tivesse uma possibilidade de ter uma perspectiva diferente daquela que estava imposta para mim, levando em consideração que, de um modo geral, qualquer outra formatação de profissão acaba sendo muito distante (GF mulheres trans).

[...] o esporte para mim, ele me deu uma oportunidade de continuar investindo na Esperança (GF mulheres trans).

Apesar das polêmicas e arbitrariedades envolvendo os corpos trans no contexto esportivo, pautar suas potencialidades é fundamental para avanços dos direitos sociais das pessoas trans, seja no nível amador ou profissional. Assim como os achados deste trabalho, outros estudos apontaram os benefícios da inserção das pessoas trans nas práticas esportivas, sobretudo relacionados ao sentimento de pertencimento e representatividade nesses espaços (Silvestrin; Vaz, 2021SILVESTRIN, J. P.; VAZ, A. F. Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes. Revista Estudos Feministas, v. 29, n. 2, e79366, 2021.; Ferreira; Garcia, 2023FERREIRA, N. K. B. C.; GARCIA, R. M. Homens trans no esporte: o futebol como ferramenta de inclusão social. Revista Mosaico, v. 14, n. 1, p. 37-47, 2023.).

As lutas pela inserção nos esportes de alto rendimento foram consideradas fundamentais, sobretudo por se configurarem como uma possibilidade de inserção no mercado de trabalho, possibilitando uma nova forma de sobrevivência.

[...] uma forma de sobrevivência na sociedade que ela é normativa, que ela exclui a gente e passam que só tenhamos muitas das vezes, 90% das vezes a prostituição como forma de subsistência (GF mulheres trans).

O esporte de alto rendimento se mostra como um palco importante para que a população trans tenha novos referenciais dos espaços que podem ocupar, movimentando a inserção, interesse e promoção de espaços mais inclusivos e preparados. Ainda, sua inserção permite repensar e desestabilizar os conceitos cristalizados de gênero e sua representação dentro do esporte, tendo protagonistas esportivos que fogem do padrão cis-heteronormativo. O esporte desempenha um papel de extrema importância nesse diálogo, pois sua influência social e seu papel inclusivo são elementos de grande relevância.

[...] conseguir a inclusão dentro até mesmo do mercado de trabalho, uma nova forma de conseguir adentrar no mercado de trabalho através do esporte, que é uma coisa muito importante. Eu acho que essa é uma das principais relevâncias de levantarmos a Bandeira para as pessoas que são trans no meio esportivo (GF mulheres trans).

Um dado relevante, quando se pensa nas possibilidades de reconhecimento, é a cidade de nascimento e de residência das pessoas trans participantes do estudo. Embora haja representantes de diferentes cidades e estados (cidade natal), grande parte reside em grandes centros e capitais, buscando novas oportunidades, inclusive no âmbito esportivo. Outros estudos também indicaram essa tendência na população LGBTI+ e, especialmente, na população trans.

É fundamental a expansão dos esportes para dentro do país, sendo uma necessidade para a população em geral. Quando se pensa na população trans, isso é ainda mais urgente. No entanto, dados deste estudo demonstram um enorme despreparo profissional, e mais do que isso, uma sociedade que não reconhece a população trans enquanto pessoas de direito.

A formação adequada dos profissionais que estão envolvidos no contexto esportivo foi apontada como crucial para uma maior possibilidade de inserção e continuidade das pessoas trans no universo esportivo. Houve diversos relatos apontando experiências negativas e de exclusão relacionados a professores, técnicos e outros profissionais; no entanto, há relatos de profissionais que foram responsáveis pelo acolhimento e desenvolvimento de pessoas trans, resultando em benefícios para além do contexto esportivo.

Nós tivemos uma aluna que começou a se reconhecer enquanto uma menina trans durante o período que ela praticava algumas modalidades esportivas conosco... Acho que é assim. Ela se sentia confortável, muito pela relação com os professores. Dessa forma, a gente conseguia proporcionar oportunidades e o refúgio dela era o esporte.... Ela tinha liberação de uso no banheiro feminino, isso era o caos para o restante do clube, mas lutamos por esse direito com ela (GF profissionais cis-hetero).

Sofria preconceito no ensino médio eu tive que me colocar no espaço porque os meninos não estavam respeitando... a atitude do professor foi muito bacana porque ele notou aquilo tudo e que a única vaga garantida era a minha.... nem todos os profissionais de educação física tem esse sentimento, esse feeling para nos incluir. Então eu tive a sorte, tive essa oportunidade de me desenvolver e continuar no esporte por conta dele (GF mulheres trans).

A educação é um espaço com grande potencial para se refletir sobre o binarismo de gênero no contexto esportivo; no entanto, as aulas de educação física, espaços privilegiados na inserção esportiva, costumam perpetuar um olhar sexista e binário em sua prática, restringindo um diálogo mais humanizado e uma prática que reconheça identidades que extrapolam as normas cis-heteronormativas. Para Camargo e Kessler:

A educação física, como subproduto da educação, tem que tentar se livrar das amarras do binarismo de gênero, visto que se num momento anterior era o macho/fêmea (masculino/feminino) que vigorava no âmbito das práticas corporais e esportivas, agora há outros elementos em consideração, outros sujeitos que colocam em pauta uma tensão e que desestabilizam essa relação binária (Camargo; Kessler, 2017CAMARGO, W. X.; KESSLER, C. S. Além do masculino/feminino: gênero, sexualidade, tecnologia e performance no esporte sob perspectiva crítica. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, n. 47, p. 191-222, 2017., p. 143).

Com base nas considerações apresentadas nesta seção, torna-se fundamental expandir o debate sobre as questões de gênero e sexualidade para além da academia. Essa discussão precisa permear os diferentes espaços sociais. Além disso, a inclusão de corpos que transgridem as normas de gênero são fundamentais para questionar e desafiar essas normas e, quem sabe, possibilitar a existência de novas identidades para além do modelo binário. No entanto, até lá, talvez essa discussão não seja possível, considerando o conceito de "abjeto" de Butler, uma vez que essas vidas ainda não são passíveis de luto. Nesse caso, pode não ser possível ter uma inclusão adequada no esporte ou em outros espaços projetados apenas para ‘vidas que importam’.

No entanto, a inclusão desses corpos, mesmo dentro desse controle, possibilita que esses aspectos sejam discutidos e repensados (Silvestrin; Vaz, 2021SILVESTRIN, J. P.; VAZ, A. F. Transmasculinidades no esporte: entre corpos e práticas dissonantes. Revista Estudos Feministas, v. 29, n. 2, e79366, 2021.). Essa discussão, mesmo atravessada por diversos impasses, é fundamental para que haja uma possibilidade de reconhecimento da transexualidade no contexto esportivo. Partindo das relações de poder reivindicadas pelos sistemas normativos vigentes, pode-se pensar possibilidades para o reconhecimento, McQueen (2015) destaca que não é necessário procurar continuamente cultivar identidades imperceptíveis, incoerentes e irreconhecíveis. O autor aponta que, para se obter o reconhecimento, é importante fugir de modelos abstratos. Para o autor, é fundamental refletir sobre os problemas do reconhecimento, mas que para a busca e expansão dos direitos é fundamental pensar em demandas possíveis.

Contudo, a reflexão sobre a ambivalência gerada por esse reconhecimento é fundamental para que as relações de poder e exclusões pautadas nesse novo reconhecimento sejam colocadas em xeque de maneira permanente. Para exemplificar, Zowi Davy (2011DAVY, Z. Recognizing transsexuals: Personal, political and medicolegal embodiment. Aldershot: Ashgate, 2011., p. 13) discorre sobre o efeito ambivalente que o reconhecimento pode trazer; ao ser reconhecido enquanto “transexual”, alguém pode ser percebido como um agente ativo que está buscando alcançar seus objetivos. Ao mesmo tempo, essa identificação pode normalizá-lo dentro de um espectro específico de experiência de gênero por meio do próprio processo de reconhecimento. Isso destaca a dualidade presente nas dinâmicas de reconhecimento, que podem tanto ampliar as possibilidades quanto limitar os indivíduos em seus esforços para construir uma identidade com a qual se identifiquem, fazendo com que outros sujeitos só possam ser reconhecidos a partir da experiência daquela “nova” possibilidade de identidade trans.

Destaca-se que a inserção nas práticas esportivas são uma extensão das lutas por reconhecimento e acesso aos direitos fundamentais. Quando não há igualdade de acesso ao esporte, reflete-se a ausência de inclusão de todos os que o buscam como um direito. Portanto, é crucial abordar o esporte sob a perspectiva da pluralidade e da diversidade, garantindo que ele esteja disponível para toda a sociedade e reconhecendo essa multiplicidade.

Reconhecimento e passabilidade - a cis-heteronormatividade como regulador do reconhecimento

As possibilidades de inserção no contexto esportivo são relacionadas a uma aproximação de um padrão cis-heteronormativo. As narrativas demonstram que as expectativas sociais em torno da expressão de gênero podem se colocar enquanto facilitadores ou barreiras quando se visa a inserção nas práticas esportivas. Essas expectativas sociais apontam para uma regulação, mesmo quando essas identidades são “reconhecidas”.

Também, essa questão da passabilidade no esporte é algo a ser considerado. O que é essa passabilidade? É aquele padrão hetero-cisnormativo que nos é imposto, onde se espera que tenhamos um rosto bonito, quanto mais feminino, entre aspas, né? Para eles, ser mais feminino é o ideal, mas para nós, isso impõe um padrão heteronormativo feminino de mulher cis (GF mulheres trans).

Fazer exercícios, tipo, nessa busca que muitos estão empreendendo, como ser mais musculoso, ter uma aparência mais masculina, usar o esporte como forma de influenciar nossa aparência (GF homens trans).

A passabilidade pode ser entendida enquanto um processo de construção de si a partir de produções possíveis pautadas na heteronormatividade, o que possibilita que as pessoas trans se aproximem de uma experiência social lida enquanto cisgênera, ou seja, os atributos relacionados a expressão de gênero estariam em conformidade com as expectativas sociais binárias, como a voz, roupa, gestos, comportamentos e o sexo. Segundo Tiago Duque (2017DUQUE, T. Gêneros incríveis: um estudo sócio-antropológico sobre as experiências de (não) passar por homem e/ou mulher. Campo Grande: Ed. UFMS, 2017.):

[...] estudar a experiência de passar por implica focar analiticamente no que as pessoas, em determinados contextos e interações, querem e buscam esconder, conhecer, construir, desconstruir, descobrir ou revelar principalmente em termos de ‘sexo’, não exclusivamente em termos de sexualidade e/ou gênero, ainda que os sucessos ou fracassos destes atos passem também por estas duas e outras marcas sociais da diferença (2017, p. 36).

A passabilidade se mostra como um regulador que busca manter uma estrutura heteronormativa dentro dos esportes, ao se enquadrar dentro de um sistema inteligível operante, se possibilita a inserção de corpos dissonantes sem que ocorra uma subversão da cis-heteronormatividade. Sendo assim, essa inserção acontece dentro de um contexto normativo cerceado pela cis-heteronormatividade, ou seja, essa construção social é tão operante na construção das identidades, que ela subverte as “novas” identidades para se adequarem dentro dessa possibilidade (Butler, 2015BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2015.).

A passabilidade ainda é um dispositivo da medicalização da transexualidade, o diagnóstico e tratamento médico e legal da transexualidade é, portanto, um exemplo das formas pelas quais a identidade é normalizada e regulada através do reconhecimento. Quando obrigados a demonstrar sua autenticidade como pessoas trans perante profissionais de saúde, os indivíduos podem enfrentar uma pressão para se conformar a determinadas ideias preconcebidas de masculinidade ou feminilidade. A dificuldade em se adequar a essas normas de gênero pode resultar na recusa de tratamento, o que, por sua vez, pode tornar ainda mais desafiador para as pessoas trans navegarem espaços e interações sociais baseadas no gênero (McQueen, 2015).

É importante destacar que alguns autores ativistas transmasculinos têm utilizado o termo “leitura social” ao invés de “passabilidade”, pois apontam que este último termo dá a ideia de que as pessoas trans querem se passar por algo que elas não são (Neves, 2020NEVES, B. A. Hospitalidade transmasculina e envelhecimento: redes de conversações na/com a saúde e a educação. 2020. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.). No entanto, ressaltamos a utilização do termo “passabilidade”, por se relacionar enquanto um dispositivo de regulação a partir de uma matriz cis-heteronormativa.

A passabilidade operante requer que as mulheres trans estejam em conformidade com um padrão que responda os efeitos da colonização, um exemplo palpável reside na construção da imagem da mulher transexual como estando em maior conformidade com um conceito de feminilidade de matriz branca, uma ideia que se origina da validação de uma identidade já medicalizada. No contexto brasileiro, essa representação colide com a estética e a corporeidade das pessoas travestis, que frequentemente são vinculadas à prostituição nas ruas em um cenário marcado pela racialização e precariedade.

Eu amo minha aparência como uma mulher travesti que sou, me sinto maravilhosa sendo "travecão", como as pessoas costumam falar. Enfim, eu gosto da beleza de ser uma travesti, uma transexual. Mas isso faz com que sejamos mais violentadas no universo do esporte (GF mulheres trans).

Já no contexto dos corpos trans masculinos, a obtenção de hipertrofia muscular, sobretudo em regiões específicas, é um dispositivo apontado enquanto possibilidade para obter a passabilidade. Rego (2014REGO, F. C. V. S. do. Hipertrofia muscular como expressão da masculinidade entre homens transexuais: masculinidades e ética antropológica. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 29, 2014, Natal, UFRN. Anais… Natal: UFRN, 2014, p. 1-20.) apontou, a partir de seu estudo, que a musculação foi a principal ferramenta utilizada para a masculinização dos corpos, tendo relação com os achados desta pesquisa.

Fazer exercícios, tipo, nessa busca que muitos estão empreendendo, como ser mais musculoso, ter uma aparência mais masculina, usar o esporte como forma de influenciar nossa aparência e autoestima. Para mim, foi uma diferença significativa. Eu nunca fui uma pessoa muito forte, mas um pouco antes de começar a tomar hormônios, comecei a frequentar a academia. Foi a primeira vez que levei isso a sério, e gostei, me envolvi (GF homens trans).

Esses achados se relacionam com os apontamentos de Leonardo Peçanha, apontando que os homens trans buscam construir o corpo através dos exercícios físicos, ele destaca que “existe um vínculo muito forte com a construção da corporeidade dos homens trans e a prática de exercícios físicos”, sobretudo pela possibilidade de reconstruir seus corpos (Peçanha; Silva Junior; Soliva, 2024).

O reconhecimento se dá desde que haja uma aproximação às categorias inteligíveis do masculino e feminino hegemônico. Os corpos que não operam os signos, códigos e comportamentos são excluídos, apagados, ignorados e não passíveis de reconhecimento. Butler aponta:

Não ter o reconhecimento social como heterossexual efetivo é perder uma identidade social possível em troca de uma identidade que é radicalmente menos sancionada. O “impensável” está assim plenamente dentro da cultura, mas é plenamente excluído da cultura dominante (Butler, 2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder. São Paulo: Editora Autêntica, 2017., p. 36).

Todo esse sistema gera possibilidades restritas de participações nas práticas esportivas, corpos trans podem ter a possibilidade de participação desde que estejam dentro de padrões estabelecidos, desde leis que regulam a participação no esporte de alto rendimento e refletem nas outras dimensões do esporte, até normas sociais que regulam como esses corpos devem agir (Da Silva, 2021).

Com base nisso, MacQueen (2015, p. 14) aponta que o que é considerado desviante dos conjuntos estabelecidos de normas, posiciona essas pessoas como marginais e "exceção" que justifica a omissão ou exclusão, isso se relaciona com a busca da passabilidade. Ainda sobre esse aspecto, o autor aponta:

Ao colocar o sujeito dentro de uma rede de processos sistemáticos institucionais, materiais e discursivos, podemos destacar de forma mais clara o papel do poder na formação do sujeito e apreciar a importância do reconhecimento institucional na moldagem do horizonte através do qual identidades específicas são tornadas viáveis e inteligíveis (McQueen, 2015, p. 14).

As discussões possibilitadas pelas recentes inclusões de pessoas trans nos esportes de alto rendimento são realizadas majoritariamente sobre uma ótica biológica, não considerando a construção social do sistema sexo-gênero. Os defensores da biologia desempenham papel fundamental na formação dos corpos no âmbito do esporte institucionalizado.

Estudos que enfocam as discrepâncias biológicas muitas vezes reintroduzem os elementos da diferença sexual como validação do gênero. Portanto, o sexo é apresentado como a base da heterossexualização do desejo. Conforme afirmado por Butler (2017BUTLER, J. A vida psíquica do poder. São Paulo: Editora Autêntica, 2017., p. 10): “A sujeição consiste exatamente nessa dependência fundamental de um discurso que nunca escolhemos, mas que, paradoxalmente, dá início e sustenta nossa ação”.

A classificação de atletas com base no sexo, idade e, às vezes, no peso (como visto nas competições de luta), é um exemplo disso. No entanto, ao lado de um corpo frequentemente percebido como uma mera entidade biológica (embora seja uma criação cultural), emerge um corpo que é moldado por uma ampla gama de influências sociais. Portanto, é impossível simplificar o esporte apenas pela divisão sexual no trabalho esportivo.

Partindo desse pressuposto da vantagem, seria possível considerar abordagens alternativas para classificar os atletas com base em critérios específicos do próprio esporte, como altura ou peso, em vez de depender exclusivamente das categorias masculino/feminino. Essa abordagem poderia contribuir para sustentar a ideia de equidade em habilidades esportivas, enquanto eliminaria possíveis barreiras injustas e discriminatórias enfrentadas por atletas (Bianchi, 2017BIANCHI, A. Transgender women in sport. Journal of the Philosophy of Sport, v. 44, n. 2, p. 229-242, 2017.).

Possibilidades de reconhecimento ancoradas na passabilidade se mostram fragilizadas, sendo uma estrutura que poderia, em parte, contribuir para ajudar essas pessoas a se tornarem elegíveis para participar de um recurso escasso e restritivo, não só no âmbito esportivo, mas abrangendo aspectos como a saúde, o direito a uma vida em comunidade e social, os serviços de assistência social e o emprego. Esses fatores apontam para uma exclusão sistemática e estrutural.

Considerações finais

A transexualidade nas práticas esportivas e sua conexão com a reprodução de um ambiente de exclusão social baseado em uma matriz cis-heteronormativa revelam a necessidade de debater esse cenário, buscando desestabilizar as relações discriminatórias presentes nesse contexto.

Destacou-se a importância dos espaços esportivos como locais que podem desempenhar papel relevante na promoção da inclusão social, da diversidade e da igualdade de oportunidades. No entanto, também foi evidente que, apesar desse potencial, os espaços esportivos muitas vezes reproduzem padrões e normas que excluem e marginalizam pessoas com identidades de gênero e orientações sexuais diversas. É preciso questionar as estruturas e normas existentes, buscando criar espaços mais acolhedores, inclusivos e igualitários.

Além disso, a desconstrução da matriz cis-heteronormativa no esporte requer a participação ativa de todas as partes interessadas, incluindo atletas, treinadores, dirigentes, fãs e instituições esportivas. A evasão de indivíduos desses ambientes não se deve apenas à ausência de habilidades físicas e técnicas, mas também à normalização de corpos e habilidades que prevalecem nesses contextos.

Ao utilizar a teoria do reconhecimento como lente de análise, ficou demonstrado que a transexualidade precisa ser vista enquanto uma identidade possível; a partir dessa validação, será possível pensar em um reconhecimento. Enquanto essas desestabilizações não acontecerem, a discussão sobre a inserção das pessoas trans no esporte continuará em uma arena regulada por uma concepção binária.

A busca pela inclusão no cenário das práticas esportivas ocorre por diversas razões. Isso se deve, em parte, à visibilidade que o esporte proporciona, o que, por sua vez, contribui para a causa das pessoas trans na luta por igualdade social. Além disso, a inclusão no mundo esportivo pode representar uma oportunidade de inserção no mercado de trabalho formal, uma vez que a empregabilidade é uma das questões mais urgentes quando se trata da população trans. Também é importante destacar que o esporte pode funcionar como um espaço de socialização e convivência significativo.5 5 J. B. de Oliveira Junior: concepção, coleta e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. R. O. Moretti-Pires: concepção, análise de dados, redação, discussão de resultados e revisão final.

Agradecimentos

Gostaríamos de expressar nossa imensa gratidão a todas as pessoas que participaram desta pesquisa, de maneira direta ou indireta. Agradecemos profundamente às pessoas trans/travestis que, com generosidade, compartilharam suas vivências e proporcionaram muitos ensinamentos ao longo dos grupos focais on-line.

Um agradecimento especial ao grupo de pesquisa EPICENES, cujas contribuições foram inestimáveis. Em particular, agradecemos às pesquisadoras e amigas Vi e Ste, que foram essenciais ao longo da produção deste trabalho. Sem o apoio, dedicação e amizade de vocês, este projeto não teria sido possível.

Referências

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  • 1
    Utilizaremos, no decorrer deste texto, a sigla LGBTI+, padronizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) nos referindo à população lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual, intersexual e demais orientações sexuais e identidades de gênero.
  • 2
    Pessoas trans é a forma ampliada que será usada ao longo desse trabalho para falar sobre o coletivo das identidades trans que serão mencionadas no decorrer do mesmo e se refere a travestis, mulheres transexuais, homens trans, pessoas transmasculinas e não binárias.
  • 3
    A cis-heteronormatividade corresponde às normas político-sociais que impõem práticas e códigos cisgêneros e heterossexuais a todas as pessoas. Refere-se ao ideal normativo de uma sociedade que tem os corpos cis e a heterossexualidade como dispositivos de regulação de desejos, práticas sexuais, expressões e identidades de gênero.
  • 4
    Grifo nosso.
  • 5
    J. B. de Oliveira Junior: concepção, coleta e análise de dados, elaboração do manuscrito, redação, discussão de resultados. R. O. Moretti-Pires: concepção, análise de dados, redação, discussão de resultados e revisão final.

Editor responsável:

Breno de Oliveira Ferreira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2024
  • Revisado
    16 Abr 2024
  • Aceito
    26 Abr 2024
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