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Trabalho e saúde de entregadores de aplicativo em uma cidade do Nordeste brasileiro

Work and health of app deliverers in a northeastern Brazilian city

Resumo

A pesquisa tem por objetivo analisar a relação trabalho-saúde de entregadores de aplicativo de Arapiraca/Alagoas. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada a partir de 10 entrevistas com entregadores. As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas sob a perspectiva do materialismo histórico-dialético. Três categorias emergiram da análise: migração e instabilidade no trabalho; adoecimento e risco de morte; e preconceito e sofrimento mental. O trabalho dos entregadores de aplicativo representa uma nova forma de a precarização do trabalho se expressar, que converge com outras problemáticas típicas de processos de urbanização e gera instabilidade em diversas esferas da vida dos trabalhadores. Essa dinâmica repercute na saúde, a exemplo dos riscos de acidentes no trânsito, problemas osteomusculares e de saúde mental.

Palavras-chave:
Migração; Precarização do trabalho; Saúde do trabalhador; Trabalho; Uberização

Abstract

The research aims to analyze the work-health relationship of app delivery drivers in Arapiraca/Alagoas/Brazil. This is a qualitative research study based on 10 interviews with application deliverers. The interviews were recorded, transcribed, and analyzed from the perspective of historical-dialectical materialism. Three categories emerged from the analysis: migration and instability of work; illness and risk of death; and prejudice and mental suffering. The work of app delivery drivers is a new way of expressing the precariousness of work, which converges with other problems typical of urbanization processes and generates instability in various spheres of workers’ lives. This dynamic has repercussions on health, such as the risk of traffic accidents, musculoskeletal problems, and mental health problems.

Keywords:
Migration; Work precarization; Worker’s Health; Work; Uberization

Introdução

Esta pesquisa se dedica à temática da precarização do trabalho, mais especificamente à sua mais recente forma de expressão, a uberização. O foco do estudo está nos desdobramentos para a saúde dos trabalhadores, no caso em questão, entregadores de aplicativo da cidade de Arapiraca, Alagoas, Brasil.

De início, cumpre observar que, recentemente, o trabalho de entregadores realizado a partir de plataformas digitais tem chamado a atenção da mídia, da ciência e da sociedade em geral (a exemplo do que ocorreu na pandemia de Covid-19) (Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.). Ainda que esteja sendo uma problemática bastante discutida no campo acadêmico, no campo do direito trabalhista e da sociologia do trabalho, é relevante agregar estudos empíricos que se estruturem a partir da perspectiva do campo da saúde do trabalhador, como argumentaram Uchôa-de-Oliveira (2020) e Souza (2021) em reflexões recentes. Essa perspectiva amplia o debate para além da questão do vínculo trabalhista e do fato de haver ou não responsabilidade da empresa que gere o aplicativo, uma vez que traz elementos concretos sobre as consequências à saúde, colocando o próprio trabalhador no centro do processo de investigação e podendo realizar conexões com outros processos típicos da cidade, do mundo do trabalho e do mundo da saúde.

Ademais, é preciso esclarecer que, nesta pesquisa, entendemos que a uberização é a nova face de um velho problema, porquanto representa o ponto culminante do avanço histórico da precarização do trabalho, nesse caso, cada vez mais mediada por uma tecnologia de racionalidade reificadora (Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.; Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.).

A precarização do trabalho, segundo Alves (2007ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina/Bauru: Praxis/Canal 6, 2007.), constitui um processo social estrutural, inerente ao modo de produção capitalista. O pressuposto da precarização está no fato de que, no modo de produção capitalista efetivam-se mecanismos de exploração sobre a classe trabalhadora e que resultam, sumariamente, de um lado, no acúmulo de riqueza da classe que explora (capitalistas) e, do outro, na pauperização daqueles que produzem a riqueza (trabalhadores), ao venderem a sua força de trabalho. Nessa relação desigual, obviamente, surgem desdobramentos jurídico-políticos, reguladores das tensões daí advindas. O movimento de avanços e retrocessos nessa seara (via luta de classes) consubstancia o caráter precário do trabalho, conquanto a classe produtora da riqueza se vê jurídico-politicamente em desvantagem, o que reflete, por sua vez, sua desvantagem econômica.

Nesse entendimento, a precarização do trabalho consiste na esfera de reposição jurídico-política do caráter exploratório e desigual do modo de produção capitalista. Em outras palavras, ainda que a precarização do trabalho seja de caráter estrutural, forjada no processo de exploração do trabalho, ela ganha clarividência no campo do direito, por exemplo, quando os trabalhadores perdem direitos trabalhistas, o que, por sua vez, movimenta disputas jurídicas e reflete certa conjuntura política, a exemplo do atual avanço das contrarreformas neoliberais. Trata-se de uma reposição porque as metamorfoses do mundo do trabalho exigem metamorfoses em outras esferas, a exemplo do direito e da política, mas, em geral, repondo a velha subordinação da dinâmica social à dinâmica do capital, agora em nova roupagem.

Por conta disso, é na segunda metade do século XX que a precarização assume maior eminência, pois passa a exercer papel central na reprodução do padrão de acumulação flexível adotado pelo sistema do capital, a partir de sua crise estrutural, na década de 1970 (Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.). O padrão de acumulação flexível surge como contrapartida do capital ante sua crise estrutural, marcadamente manifesta pela obsolescência do padrão rígido de acumulação via taylorismo/fordismo (pós-Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 1970). A partir da década de 1970, com a superprodução e superacumulação geradas pela produção em massa do taylorismo/fordismo, o capital se viu diante de seus limites absolutos, com uma crise generalizada puxando para baixo as taxas médias de lucros quando comparadas aos patamares dos anos anteriores (Antunes, 2009ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.).

O padrão flexível rompe com a ideia de produção massificada de produtos/serviços padronizados, trazendo a ideia do just-in-time (produção no tempo certo, sob demanda). Além disso, passa a demandar e formar trabalhadores polivalentes, qualificados para mudarem de função de acordo com as demandas do mercado. São trabalhadores emulados a envolverem sua subjetividade no processo, usando sua criatividade a serviço da dinâmica flexível da produção, o que vai de encontro ao padrão de controle rígido de tempos e movimentos do taylorismo/fordismo, quando a subjetividade do trabalhador era engessada e alheia ao conjunto do processo (Alves, 2007ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina/Bauru: Praxis/Canal 6, 2007.; Antunes, 2009ANTUNES, R. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2009.; Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.).

Até por isso, a figura do gerente prescritor/controlador de atividades se torna obsoleta, pois o autocontrole dos teams de produção se faz pela introjeção subjetiva da ideia de que o bem da empresa é o bem do próprio trabalhador. Com efeito, ainda que essa nova forma de envolver a subjetividade do trabalhador pareça ser algo positivo, marcando uma suposta reconexão do produtor direto com o seu trabalho, ela se mostra uma forma mais eficiente de aumentar a produtividade, logo, com taxas maiores de exploração. Isso porque não se trata do exercício da livre criatividade do trabalhador, mas da captura da sua criatividade em prol dos interesses do capital, interesses esses que são antagônicos aos essenciais interesses da classe trabalhadora (Alves, 2007ALVES, G. Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho. 2. ed. Londrina/Bauru: Praxis/Canal 6, 2007.).

Não à toa, os trabalhadores são cada vez mais convencidos de que não são trabalhadores, mas colaboradores (em um primeiro momento) ou, após as reformas trabalhistas, empreendedores individuais, freelancers, autogestores do seu trabalho etc. (Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.; Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.). A questão da reforma da legislação trabalhista é decisiva para viabilizar a flexibilidade do padrão de acumulação, uma vez que implica a ruptura da relação tradicional entre patrão e empregado, via contrato de trabalho, abrindo margem ao crescimento de outras modalidades, como a contratação de prestadores de serviço por tempo determinado, terceirizações etc. Nesse ponto reside a pedra de toque da ampliação da precarização do trabalho a partir da década de 1970, uma vez que abriu espaço para relações informais ou supostamente estabelecidas entre livres agentes no mercado, mas que, em um dos polos é geralmente representada pelo antigo trabalhador assalariado, agora desprovido de direitos trabalhistas e “fantasiado” de empreendedor individual.

Com a ruptura dos direitos trabalhistas e ampliação da falácia da modernização do trabalho, o grande capital lucra triplamente, porque, além de diminuir os gastos com obrigações trabalhistas; transfere custos de estruturação/organização dos serviços para esses supostos empreendedores; e gera uma concorrência e insegurança entre eles, regulando para baixo os valores a serem pagos na prestação do serviço (Souza, 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021.).

É no bojo dessa metamorfose histórica que a uberização comparece como ponto culminante, coadunado todos os elementos anteriores, mas conferindo eminência à mediação das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), a serviço da precarização e do controle do trabalhador. Em síntese, pode-se dizer que o processo de uberização consiste na ampliação dos vínculos, relações e organização do trabalho mediado por plataformas digitais, ambientes nos quais o consumidor estabelece contato com o “prestador de serviço”, ambos cadastrados e tendo seus dados armazenados por essas plataformas (Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3, p. 41-51, 2019.). Duas consequências importantes: primeiro, esse “prestador de serviço” (motorista, entregador de mercadorias, profissional de elétrica e hidráulica, empregada doméstica entre outras atividades) não é considerado empregado/funcionário da empresa detentora da plataforma, mas uma espécie de autogestor do seu trabalho; segundo, os grupos tecnológicos, apesar de propagarem a falácia do “trabalho sem patrões”, exercem o controle sobre todo o processo, sobretudo pela manipulação dos dados que armazena, mediante o uso de algoritmos consubstanciados via inteligência artificial, o que significa controlar a distribuição espaço-temporal das atividades, criar um sistema de avaliação utilizado para filtrar determinadas oportunidades, assim como definir os valores a serem pagos.

Na prática, essas duas consequências convergem para a caracterização de uma nova face da perpetuação da exploração do trabalho por meio de vínculos precários, escamoteados pelo subterfúgio do “trabalho sem patrões”, mas que, efetivamente, configuram-se, em geral, como atividades de baixos rendimentos, altas jornadas, desproteção da saúde e ausência de direitos trabalhistas (porquanto não exista vínculo trabalhista reconhecido, na maioria dos casos). Com efeito, trata-se de estratégia que potencializa os lucros dos grandes grupos tecnológicos, livres de responsabilidades trabalhistas e fiscais, bem como de vários custos, transferidos para o trabalhador, a exemplo da compra e manutenção de alguns meios de trabalho (celular, internet, carro, moto ou bicicleta etc.) (Antunes, 2019ANTUNES, R. Proletariado digital, serviços e valor. In: ANTUNES, R. (org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil IV: trabalho digital, autogestão e expropriação da vida: o mosaico da exploração. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 15-2.).

Pelo pioneirismo da Uber, com o serviço de motoristas, em inícios da segunda década dos anos 2000, o processo recebeu a denominação de “uberização”, mas não se restringe a essa empresa, nem se trata de algo inteiramente novo, mas apenas a sofisticação tecnológica da precarização do trabalho inerente ao capitalismo e hipertrofiada desde meados da década de 1970.

Com a disseminação do modelo, a popularização de atividades desenvolvidas com motocicletas e bicicletas foi rápida, uma vez que representa uma alternativa mais barata do que as atividades executadas por meio de automóveis. Nessas atividades, geralmente são indivíduos de baixa renda e que trabalham entregando refeições para clientes que solicitam o serviço por meio de aplicativos de celular/plataformas, nas quais há um catálogo de restaurantes cadastrados. Porém, a expansão do modelo abrange a entrega de todo tipo de mercadoria, substituindo a figura do entregador fixo (contratado pelo restaurante ou loja) pela figura do que se convencionou chamar de entregador de aplicativo.

Esses trabalhadores, obviamente, precisam se cadastrar no aplicativo/plataforma e não recebem o pagamento da entrega diretamente do cliente, porque esse valor é repassado para a empresa do aplicativo ou para o restaurante, a depender do modelo implantado, o que significa dizer (na maioria dos casos), que do valor da entrega se descontam taxas que diminuem o pagamento do entregador, sendo recolhidas pelas empresas envolvidas.

Em algumas cidades do Nordeste brasileiro, é comum uma maior frequência na utilização de motocicleta como meio de transporte, inclusive como meio de trabalho, na tentativa de fugir do desemprego. Entre essas cidades, podemos situar Arapiraca, no estado de Alagoas (AL), conhecida pela contundente presença das motocicletas em seu trânsito. Para se ter ideia:

A frota alagoana de motocicletas/motonetas aumentou 408,29% entre 2001 e 2010, com um índice de motorização (nº veículos por 1000 habitantes) alcançando 47,22. Nesse mesmo período, Arapiraca, segundo município mais populoso do estado e cuja região de saúde apresentou as maiores taxas de mortalidade e risco, o índice de motorização foi 137,95 motocicletas para cada mil habitantes (Souza et al., 2021SOUZA, D. O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, p. e00311143, 2021., p. 1.506).

Por conseguinte, trata-se de um contexto bastante propício para o desenvolvimento da uberização do trabalho “sobre duas rodas”, especialmente com o uso das motocicletas, foco desta pesquisa. Não por um acaso, a cidade de Arapiraca também apresenta considerável taxa de mortalidade relacionada aos acidentes com moto, uma vez que girou em torno de 6,9/100.000 habitantes no período entre 2001 e 2015 (Souza et al., 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.).

Uchôa-de-Oliveira (2020) destaca que a uberização do trabalho tem provocado graves problemas de saúde, tanto na dimensão física, quanto na dimensão mental. A autora argumenta que são frequentes os casos de desgaste mental, ansiedade, estresse e outros problemas de ordem psicológica, típicos das novas metamorfoses do trabalho. Essa relação com o trabalho reforça a tese da determinação social da saúde, conforme Breilh (2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, v. 31, supl. 1, p. 13-27, 2013.), na qual as relações sociais de produção assumem papel decisivo nos processos saúde-doença. Na questão da saúde dos trabalhadores, essa premissa se expressa com a clarividência da mediação de classe, tendo em vista os trabalhadores serem aqueles que efetivamente produzem, mas que perdem a sua saúde no processo de produção (Souza, 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.). São premissas importantes para a investigação dos novos fenômenos ligados à relação trabalho-saúde.

Considerando essas premissas, pressupomos que, diante da “explosão” do trabalho uberizado, ser entregador de aplicativo não consiste em destino incomum aos motociclistas de Arapiraca, assim como podem ser frequentes as consequências para a saúde, a exemplo dos acidentes de trânsito. Por conta disso, convém o seguinte questionamento: como é o trabalho de motociclistas-entregadores de aplicativo em Arapiraca-AL? A essa questão, sucede-se outra: quais os efeitos desse tipo de trabalho sobre a saúde, segundo a perspectiva dos próprios trabalhadores? Levando em conta essas questões, a presente pesquisa tem por objetivo analisar a relação trabalho-saúde de entregadores de aplicativo de Arapiraca, a partir da perspectiva dos trabalhadores.

Metodologia

Trata-se de pesquisa descritiva, de abordagem qualitativa, uma vez que se debruça sobre a dimensão subjetiva dos sujeitos que experimentam o processo social investigado, de modo que, ao mesmo tempo, não se desconecte a investigação das determinações objetivas da realidade.

O cenário de pesquisa consiste na cidade de Arapiraca-AL, no Nordeste brasileiro. Com população de 234.309 (valor estimado em 2021), é a segunda maior cidade de seu estado, atrás apenas de Maceió, a capital. Seu produto interno bruto (PIB) per capita é de R$ 19.389,15 (valor calculado em 2018) e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) é de 0,649 (valor registrado em 2010), o que fazem de Arapiraca uma cidade bem situada na realidade do interior nordestino, sendo referência regional em termo econômicos, políticos e culturais (IBGE, 2021).

A cidade possui algumas ruas, nos bairros centrais, com maior concentração de restaurantes. Próximo a esses estabelecimentos, têm-se reunido grupos de motociclistas, geralmente entregadores, à espera da chamada no aplicativo. Esses motociclistas foram os sujeitos desta pesquisa, entrevistados a partir de um roteiro semiestruturado de entrevista, elaborado pelos pesquisadores, contendo algumas questões objetivas para caracterizar o respondente e, substancialmente, contando com questões abertas sobre o trabalho e a saúde dos entregadores.

Os critérios de inclusão foram: ser maior de idade, voluntário e trabalhar como entregador de aplicativo há, pelo menos, seis meses. Esses trabalhadores foram abordados previamente nos pontos nos quais se reúnem na cidade, sendo convidados para entrevista posterior. As entrevistas foram presenciais, em local e horário acordados previamente. Ao todo, foram entrevistados 10 entregadores entre março e novembro de 2022. As entrevistas duraram entre 23 e 65 minutos e tiveram sua quantidade delimitada pelo critério da saturação das informações. O entregador que concordou em participar de forma voluntária, assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o que também autorizava a gravação da entrevista.

O material gravado passou por transcrição integral e foi submetido a uma análise de seu conteúdo a partir da perspectiva materialista histórico-dialética. Para tanto, depreenderam-se as dimensões imanentes das respostas (expressa nos núcleos temáticos mais frequentes e mais significativos ante o objetivo do estudo), assim como suas conexões com a universalidade do mundo do trabalho, contemporaneamente. Esta, por sua vez, foi trazida ao debate por meio de categorias marxistas da crítica da economia política, como “exploração”, “precarização do trabalho” e “uberização”. Também nos pautamos por categorias teóricas da Saúde Coletiva, como “processo saúde-doença” (Laurell, 1982LAURELL, A. C. La salud-enfermedad como proceso social. Revista Latinoamericana de Salud, n. 2, p. 7-25, 1982.), “determinação social da saúde” (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, v. 31, supl. 1, p. 13-27, 2013.) e “questão da saúde dos trabalhadores” de Souza (2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.).

Por fim, salientamos que a pesquisa cumpriu as determinações éticas das Resoluções n. 466 de 2012 e n. 510 de 2016, ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa.

Resultados

Os participantes da pesquisa foram, predominantemente, do gênero masculino, com média de idade de 33,5 anos (mínima de 21 e máxima de 39), cor de pele parda (80%) e residentes em Arapiraca. Apenas dois entregadores moram em distritos considerados rurais, pertencentes à Arapiraca, mas vão ao centro da cidade para trabalhar.

O tempo de trabalho como entregador de aplicativo varia entre 6 meses e 4 anos e 2 meses, sendo que sete já tiveram outras ocupações e para três deles, a atuação como entregador de aplicativo consiste no primeiro trabalho. Cumpre observar que, em nossa aproximação com o campo de pesquisa, identificamos a existência da formação de grupos informais de entregadores, organizados a partir de uma rede social que lhes permite atender pedidos de entrega por fora da dinâmica das grandes plataformas digitais. Todos os entrevistados faziam parte de um dos dois grupos que identificamos, mas mantêm a atuação dupla; isto é, recebem demandas pelo grupo da rede social e pelo aplicativo.1 1 Diante desse elemento novo, desconhecido por nós à época da elaboração do projeto desta pesquisa, fez-se necessário uma adaptação metodológica para investigar o funcionamento dos grupos. Essa etapa preliminar da investigação gerou resultados compilados em outro artigo (no prelo).

Seus rendimentos oscilam entre R$ 1.500,00 e R$ 4.000,00 com entregas, sendo que cinco deles complementam a renda com outras atividades. O rendimento depende da quantidade de entregas que, de acordo com os relatos dos entregadores, varia de 8 a 30 entregas por dia, com valores de R$ 5,00 a R$ 8,00, a depender da localidade da entrega. Para seis deles, a maior parte dos rendimentos é oriunda do grupo informal na rede social e os outros quatro entregadores consideram que a origem de sua renda se divide, de forma equilibrada, entre as demandas do grupo informal e as demandas dos aplicativos.

A experiência desses trabalhadores é heterogênea, mas apresenta alguns traços comuns. Nesta pesquisa, buscamos nos debruçar sobre os elementos comuns que revelassem a relação trabalho-saúde. Para tanto, depreendemos três categorias temáticas a partir das entrevistas: migração e instabilidade no trabalho; adoecimento e risco de morte; e preconceito e sofrimento mental.

Chamou-nos atenção o fato de que alguns trabalhadores tinham relação com processos migratórios, fruto do processo de urbanização. São indivíduos migrantes ou filhos de migrantes, que saíram de regiões rurais para tentar nova vida na cidade. Vejamos os seguintes trechos de entrevistas, selecionados na categoria migração e instabilidade no trabalho:

Meus pais contam que saíram do sítio porque o fumo caiu muito. Antes sempre tinha trabalho na roça, mas depois que o fumo parou, tiveram que arrumar outro emprego. [...] Meu pai tinha um cumpade em Arapiraca que era pedreiro. [...] ficaram na casa dele e meu pai ficou trabaiando de servente com o cumpade. Até hoje ele faz de tudo, foi aprendendo e hoje mexe com elétrica, hidráulica, constrói, faz de tudo. Mas nem sempre tem serviço, tem ano que é bom, tem ano que fica sem pegar nada, aí a gente tem que se virar. Eu mermu já fui porteiro, ajudava nas obras, trabalhei em supermercado e agora comprei essa moto pra fazer entrega (E2).

A gente é de Petrolina. Lá a gente plantava verdura, banana. Eu vinha dar feira aqui em Arapiraca e decidi ficar por aqui. [...] Trabalho na feira ainda, daqui e em outras que tem na região, mas não planto mais [...] só vendo. Moro na cidade com a mulé e dois filhos. [...] graças a Deus eles me ajudam muito na feira. A gente tem feira na segunda, quinta e sábado. Nos dias que não tou na feira, eu vou pra base fazer entrega. Meu [filho] mais velho já tá querendo uma moto pra fazer isso também. Todo dinheiro a mais é uma bença (E9).

As histórias de E2 e E9 revelam que a migração da zona rural à urbana é uma alternativa à decadência da atividade agrícola que desempenhavam, atraídos por uma promessa de melhores oportunidades de trabalho e de vida. O trecho da entrevista de E2 também revela que o processo de migração possui efeitos que transcendem gerações, pois contribui para certa instabilidade laboral e, consequentemente, da vida familiar, instabilidade que se estende para os filhos dos migrantes, nas suas próprias histórias laborais.

Os efeitos do processo de urbanização vão além do êxodo rural no sentido tradicional de abandonar à zona rural e passar a viver na cidade, pois constatamos que há uma sobreposição entre campo e cidade. Em cidades de médio porte do Nordeste brasileiro, a exemplo de Arapiraca, é comum existirem zonas de transição que possuem atividades agrícolas sendo desenvolvidas, mas que se localizam próximas à zona urbana. Isso pode estar ligado à existência de uma força de trabalho que procura emprego na cidade, mas que permanece residindo na zona rural ou zona de transição, como no caso de E3: “eu moro na Bananeira, é sítio de Arapiraca. Lá ainda tem roça, mas a gente prefere buscar algo melhor na cidade. Eu quero estudar, mas primeiro preciso juntar dinheiro e ajudar em casa”.

Em todo caso, há uma certa instabilidade na vida e no trabalho desses indivíduos, o que se mostra relacionado a condições de trabalho inadequadas, geradoras de adoecimento. Elementos sobre o processo de adoecimento podem ser inferidos dos relatos selecionados na categoria Adoecimento e risco de morte. No relato de E8, revela-se a concretização do risco de acidente de trânsito:

Tá vendo essa cicatriz aqui [perto do olho], foi um acidente, quase fiquei cego. O pior que todo mundo pensa que o errado é o motoboy, mas foi o motorista bêbado do carro que passou errado no cruzamento. Me pegou de cheio e eu fiquei lá. [...] ele fugiu [...] quem me socorreu foi o povo que chamou a SAMU, [...] nem grupo nem aplicativo quer saber não (E8).

E8 revela a gravidade do acidente, que poderia ocasionar sequela grave, além da falta de assistência por parte de quem gere os serviços de entrega. As consequências para a saúde vão além do acidente em si, pois se constituem como repercussões da dinâmica do trabalho em médio e longo prazos, como no caso das doenças osteomusculares, notadamente problemas na coluna relacionados à posição adotada para conduzir a moto: “Minha coluna é arrebentada, é muito tempo sentado, né? (E1)”. Na fala de E6, confirma-se a questão de dores na coluna: “Sinto dor na coluna, no ombro, dor de cabeça é todo dia. E num vou em médico não, que num dá tempo. Um dia que você perde no médico, é menos 100, 200 conto que você deixa de ganhar” (E6).

A entrevista de E6 revela como diferentes problemas vão convergindo, a exemplo de dores na coluna, no ombro e na cabeça, agravando-se, sobretudo porque os entregadores precisam aproveitar o tempo para fazer o máximo de entregas possíveis, o que, muitas vezes, impele-os a negligenciar outras questões, como procurar atendimento de saúde. A questão do tempo ganha eminência em outras falas, associadas à pressa, estresse e cobranças, a exemplo do que relata E2: “Olhe, é muito estresse. O corre é demais, é pressão do cliente. Se atrasa a entrega, o dono do restaurante também cobra, se a embalagem estraga, é um problema pra nós”.

A exposição contínua a essas exigências e cobranças, com aceleramento do ritmo de trabalho, pode estar relacionada a outros problemas de saúde física, conforme entrevista de E7, quando faz referência à hipertensão arterial: “Tenho pressão alta. [...] É, tem dia que a pressão sobe por causa do trabalho”. Ainda que não se possa afirmar que a hipertensão tenha se originado devido ao trabalho, E7 deixa claro que o trabalho contribui para a elevação de sua pressão arterial.

Compondo esse heterogêneo panorama de consequências à saúde, observamos a exposição à violência urbana, destacada por E2:

[...] Também tem as quebrada, tem lugar que nem pego mais pra fazer entrega porque sei que é perigo ir pra lá. Eu chego em casa e não durmo de nervoso. Chego meia noite, mas só consigo dormir de 3 às 6 da manhã (E2).

“Quebrada” é um termo popular para designar regiões de difícil acesso e que, em geral, tem altos índices de violência. A exposição a essa situação forja o sentimento de insegurança e medo, o que E2 associou à dificuldade que possui para dormir. A questão do sono está inserida no âmbito do sofrimento mental, situando-se na interface do que abordamos na terceira categoria delimitada, Preconceito e sofrimento mental. Nesta categoria, sobressai-se a relação com o preconceito, tanto dentro da dinâmica do trabalho (a exemplo da não valorização e/ou discriminação oriunda dos clientes e empresários) quanto na vida fora do trabalho, como se a condição de ser entregador configurasse um estigma que dificulta relações em outras esferas da vida. Vejamos alguns trechos que exemplificam a existência do preconceito, dentro e fora das relações de trabalho:

A gente é discriminado [...] é o dono do restaurante que é ignorante, é o cliente que fica com medo da gente quando vai abrir a porta, até a polícia me para na rua [...] quando ver que é de cor, aí pronto (E3).

Vixe! Tem gente que nem olha na nossa cara, não dá um boa noite nem um obrigado. [...] Eu fico triste e penso assim, só vou fazer entrega porque preciso, mas se pudesse, pulava fora (E4).

Eu mermu [sic] conheci uma moça que não me quis depois que eu disse que era entregador. Pô [sic], é um trampo honesto, a gente rala pra [palavra inapropriada omitida], mas o povo pensa que a gente é vagabundo, bandido (E5).

Eu fico revoltado porque a gente não é valorizado, todo mundo monta n’agente. Os donos pisa em cima, o administrador do grupo também, o aplicativo paga uma mixaria, só Deus. A gente saí de cabeça quente, principalmente porque sofre tudo isso e chega em casa, não dá pra pagar as conta (E10).

Percebe-se a diversidade de formas de preconceito e violência, chegando até a obstar relações afetivas, como relatado por E5, ou determinando práticas discriminatórias de outras instituições, como no caso da polícia na narrativa de E3. Este relato assume importância no campo do racismo, considerando que E3 declara que a sua cor é parda, raça negra, e deixa claro que, na sua percepção, é parado pelos policiais devido à sua cor/raça. São elementos que podem desencadear sofrimento mental, conforme debateremos.

Discussão

Como expomos na introdução deste artigo, a precarização do trabalho ganha eminência com a reestruturação produtiva, a partir da década 1970. Mais do que isso, ela comparece como peça-chave para o regime de acumulação flexível, contribuindo para propagar a instabilidade no mundo do trabalho e, portanto, fazendo dela uma espécie de mola propulsora do modo de produção e reprodução.

O fenômeno da flexibilidade-instabilidade do trabalho está em determinação recíproca com a reprodução social em geral, pois se reflete em todas as esferas da vida. Considerando esse processo de mútua determinação entre produção e reprodução (embora haja predominância da produção), esta pesquisa corrobora a perspectiva de que o processo de urbanização (que modifica a relação entre cidade e campo) coloca elementos importantes para pensar a formação da classe trabalhadora e como ela fica mais ou menos vulnerável às metamorfoses do mundo do trabalho.

A partir dos elementos suscitados pela categoria Migração e instabilidade no trabalho, salienta-se que as transformações da relação entre cidade e campo não dizem respeito, apenas, ao êxodo rural típico do início da industrialização em algumas nações, nem à simples expansão da cidade substituindo o campo. Para Milton Santos (2000), os processos de urbanização tardios implicaram uma modificação na forma convencional de se pensar o espaço, superando a dicotomia urbano e rural, pois, nesses casos, estabeleceu-se uma dinâmica na qual existem regiões agrícolas que contém cidades e espaços urbanos que possuem atividades rurais, em uma espécie de imbricamento.

Essa sobreposição não exclui a existência, concomitante, da migração de trabalhadores dos setores agrícolas em busca de trabalhos em outros setores nos espaços urbanos. Desse ponto, também se destaca a particularidade da pauperização do trabalhador rural, imerso em processos de desigualdade e desemprego, contrastantes com o acúmulo de riqueza de latifundiários e empresários do agronegócio em geral (Santos, 2006SANTOS, M. A Natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 2006.).

Não obstante, a urbanização contemporânea também extrapola a ideia clássica da cidade que gira em torno da indústria, até porque, como já mencionamos, surgem cidades dentro das regiões agrícolas. Além disso, quando se trata da periferia do capital (com fluxos inferiores de economia urbana), esse processo assume a forma do que Santos (2006SANTOS, M. A Natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 2006.) chamou de urbanização terciária, uma vez que a constituição da cidade tem no crescimento do setor de serviços e do comércio a sua pedra de toque. Esse processo é típico das cidades de médio porte, com considerável presença no processo histórico do Nordeste brasileiro, o que coloca elementos importantes para entendermos o caso aqui investigado. Não à toa, as oportunidades de trabalho (fora do setor agrícola) estão, predominantemente, ligadas ao setor terciário, sendo que, geralmente, caracterizadas por: deterioração dos postos de trabalho, variação de salários, desigualdade de renda e populações com dificuldade de acesso a bens e serviços de qualidade (Santos, 2017).

Não se trata, portanto, de um processo de expansão urbana que vem acompanhado de oportunidades de emprego (estável), nos termos do tradicional contrato de trabalho, mas, sim, de trabalhos instáveis, informais e subempregos que oscilam de acordo com a sazonalidade de certos ramos produtivos, ora atraindo, ora expelindo trabalhadores do mercado de trabalho. Como é típico da periferia do capital, ocorre uma refuncionalização da informalidade já presente historicamente, forjando espaços urbanos com certa vocação para a incorporar elementos da acumulação flexível, no sentido de legitimar o traço histórico da informalidade, mas, em geral, sem o mesmo desenvolvimento tecnológico do centro do capital.

Para Marinucci (2017MARINUCCI, R. Migrações e trabalho: precarização, discriminação e resistência. REMHU: Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, v. 25, n. 49, pp. 7-11, 2017.) e Pauli et al. (2021PAULI, J. et al. Relationship between precarious work and racism for migrants in Brazil. Cadernos EBAPE.BR, v. 19, n. 2, p. 234-251, 2021.), a migração contribui de forma decisiva para a forma como o trabalhador se insere no mercado de trabalho da nova região, cidade ou país que passa a viver. Em geral, são trabalhadores vítimas de xenofobia, racismo e outros preconceitos, deixando-os mais suscetíveis a aceitar formas precárias de trabalho, sobretudo porque sua condição de migrante coloca-se como obstáculo aos empregos formais, com proteção social.

A migração se coloca como elemento componente da determinação do trabalho precarizado e, de certa forma, no caso aqui estudado, é incorporado por ele. A isso, somam-se o desgaste e adoecimento que tem caracterizado qualquer trabalho precário, como ponto nevrálgico da determinação social da questão da saúde dos trabalhadores2 2 A questão da saúde dos trabalhadores, para Souza (2019) é expressão do antagonismo entre capital e trabalho, coadunando as facetas biológica e social do conjunto dos problemas de saúde enfrentados pela classe trabalhadora. Esse caráter universal assume formas particulares no tempo, no espaço e nos vários extratos de classe ou categorias profissionais, a exemplo do que temos constatado com os entregadores de aplicativo. Nesse caso particular, é possível constatar as marcas universais do antagonismo entre capital e trabalho, mas com diversas mediações: a plataforma digital, a falácia da autogestão, a organização territorial etc. , na contemporaneidade (Souza, 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.).

A precarização do trabalho, em geral, tem sido apontada como um fator que torna a saúde dos trabalhadores invisível, a exemplo dos terceirizados, que convivem no mesmo espaço de trabalhadores efetivos de certas empresas, mas sem a mesma assistência à saúde (quando há) (Druck, 1999DRUCK, M. G. Terceirização: (des)fordizando a fábrica. Salvador: EDUFBA, 1999.); além do alto patamar de adoecimento, especialmente ligado ao desgaste provocado pelas longas jornadas, ritmo intenso, baixos rendimentos, ausência de direitos trabalhistas/previdenciários e incertezas da dinâmica laboral (Souza, 2020SOUZA, D. O. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serviço Social & Sociedade, n. 137, p. 174-191, 2020.).

Já no campo das particularidades do adoecimento de motociclistas, ressalta-se a questão dos acidentes de trânsito (Souza et al., 2020SOUZA, D. O. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serviço Social & Sociedade, n. 137, p. 174-191, 2020.), com considerável mortalidade e sequelas para o aparelho locomotor, o que inviabiliza o retorno ao trabalho (Debieux et al., 2010DEBIEUX, P. et al. Lesões do aparelho locomotor nos acidentes com motocicleta. Acta Ortopédica Brasileira, v. 18, n. 6, p. 353-356, 2010.). A nosso ver, essa questão precisa ser tratada naquilo que lhe determina, para o que a perspectiva dos motociclistas é imprescindível. Nessa direção, constatamos o estudo de Silva et al. (2008SILVA, D. W. et al. Condições de trabalho e riscos no trânsito urbano na ótica de trabalhadores motociclistas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 18, n. 2, p. 339-360, 2008.), uma vez que os autores apresentam a ótica de alguns desses trabalhadores sobre os motivos que geram os acidentes, quando se destaca situações como a cobrança das empresas e dos clientes para que as entregas sejam rápidas, o que implica, por sua vez, a adoção de comportamentos de risco no trânsito, modulados pela pressa.

Essa questão tem alguma visibilidade na literatura científica (Souza et al., 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.; Souza et al., 2021), mas propomos aqui uma ampliação na direção da integralidade da saúde desses motociclistas, abrangendo questões nem sempre enfatizadas. Como vimos nesta pesquisa, além dos relatos sobre a questão dos acidentes, com risco de morte, há uma série de outros problemas relevantes, a exemplo de dores musculoesqueléticas, perigos que vão além do trânsito, como no caso de entregas em regiões violentas ou o trabalho sendo corresponsável por doenças que não, necessariamente, são do trabalho (mas que são potencializadas por ele), a exemplo da hipertensão arterial, citada por E7.

A pressão por produtividade (entregas rápidas) não figura apenas como um fator causal dos acidentes, pois também afeta a saúde psicoemocional do entregador, a exemplo do que fala E2 sobre o estresse e os problemas para dormir. Essa questão é latente para a saúde dos trabalhadores contemporâneos, pois a organização do trabalho, na acumulação flexível, tem como trunfo a captura da subjetividade dos trabalhadores. A gestão dos teams pelo estresse, as crises de adaptação geradas pela polivalência, o estímulo à competitividade, a ideia de ser empreendedor de si mesmo etc. geram uma espiral de promessas frustradas, desembocando em subjetividades destroçadas, o que consubstancia o alto patamar de adoecimento psicoemocional (Alves, 2005ALVES, G. Trabalho, corpo e subjetividade: toyotismo e formas de precariedade no capitalismo global. Trabalho, educação e saúde, v. 3, n. 2, p. 409-428, 2005.; Seligmann-Silva, 2011; Antunes; Praun, 2017; Souza, 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.).

A captura da subjetividade, somada ao desgaste provocado pelo trabalho penoso, com longas jornadas, marca a atividade dos entregadores, como confirmamos na presente investigação. Trata-se de processo multifacetado e que acumula elementos sinérgicos para a degradação, como no caso do sofrimento mental oriundo dos preconceitos. Na pesquisa, verificamos que os entregadores sofrem preconceito de classe, sendo invisíveis ou considerados pessoas não confiáveis simplesmente pela atividade que desempenham. Constata-se que há o acúmulo dos preconceitos típicos que acometem os migrantes, com as questões estruturais do racismo ligadas à população negra (Pauli et al., 2021PAULI, J. et al. Relationship between precarious work and racism for migrants in Brazil. Cadernos EBAPE.BR, v. 19, n. 2, p. 234-251, 2021.).

Vale destacar que a formação social alagoana tem, em sua essência, a participação da população negra e, inclusive, marcada pela tradição do Quilombo dos Palmares, que foi o maior do Brasil. Como afirmam Fernandes et al. (2010), essa particularidade marca a dialética entre a construção de uma identidade política e a luta pelo reconhecimento, o que implica a luta antirracista. Com isso, presumimos que essa particularidade ecoa socialmente, fazendo-se presente (de diferentes maneiras) em vários extratos da classe trabalhadora, assim como, de algum modo, esteve presente na fala E3 quando menciona a repressão policial.

Pieterse et al. (2012PIETERSE, A. et al. Perceived racism and mental health among black American adults: A meta-analytic review. Journal of Counseling Psychology, v. 59, n. 1, p. 1-9, 2012.) demonstraram que o racismo (isso vale para outras formas de discriminação e opressão) produzem um fardo psicológico para os oprimidos, podendo gerar dificuldades nas relações pessoais (inclusive no trabalho) até problemas graves de saúde mental (depressão, burnout, ideação suicida etc.). Esse elemento corrobora a assertiva de que os problemas psicoemocionais despontam como a expressão mais grave da questão da saúde dos trabalhadores na atualidade, com estreita relação com a precarização do trabalho, entendida, também, como forma de controle da subjetividade dos trabalhadores (Souza, 2019SOUZA, D. O. Saúde do(s) trabalhador(es): análise ontológica da “questão” e do “campo”. Maceió: Edufal, 2019.).

A relação trabalho-saúde no caso dos entregadores contribui para fortalecer o entendimento de que o processo saúde-doença é determinando socialmente, com centralidade para o complexo do trabalho, por nele se constituírem as bases do ser social. Além disso, sem desconsiderar essa centralidade, o processo de determinação social não pode ser tomado como algo mecânico, mas como uma processualidade dialética, porque histórica; portanto, multidimensional (Breilh, 2013BREILH, J. La determinación social de la salud como herramienta de transformación hacia una nueva salud pública (salud colectiva). Revista Facultad Nacional de Salud Pública, v. 31, supl. 1, p. 13-27, 2013.; Souza, 2020SOUZA, D. O. O caráter ontológico da determinação social da saúde. Serviço Social & Sociedade, n. 137, p. 174-191, 2020.). Como constatado aqui, há significativa relação entre as alterações no mundo do trabalho e a saúde dos trabalhadores, mediada por várias particularidades: os processos migratórios, a problemática do trânsito, a violência urbana, a refuncionalização da informalidade, o preconceito de classe, o racismo estrutural, entre outras questões que não pudemos alcançar. O esforço coletivo para entender as múltiplas dimensões desse processo, na perspectiva da práxis (investigação para a transformação social, desde a perspectiva dos próprios trabalhadores) deve ser aprofundado, sempre na direção de articular os casos particulares à universalidade do processo histórico que os determina.

Considerações finais

Diante do exposto, constatamos que a evolução da tecnologia promoveu alterações na dinâmica de acumulação de capital, tornando-a mais complexa. É notório que o conjunto dos problemas a serem enfrentados na sociedade, notadamente no que concerne ao processo de uberização, possui uma base material constituída nos interesses capitalistas, muito bem representados pelos proprietários/acionistas das grandes plataformas/aplicativos. É evidente, portanto, que o avanço das forças produtivas, aliado a fatores socioculturais, leva o trabalhador à fictícia sensação de ser o seu próprio chefe, o que culmina em relações trabalhistas ainda mais precárias.

Além disso, cumpre destacar que as metamorfoses do mundo do trabalho assumem particularidades a depender da dinâmica territorial em que se desenvolvem. Como vimos, esse estudo sugere que o tipo de processo de urbanização (reflexo do tipo de formação social) contribui para que o mundo do trabalho seja ainda mais instável, absorvendo as inovações tecnológicas em meio a um mosaico que coaduna a velha informalidade com os processos recentes de uberização.

Essa dinâmica repercute na saúde, com destaque para o risco de morte ao qual estão submetidos os motociclistas (entregadores). Portanto, esta pesquisa traz experiências que corroboram a condição de exploração e desvalorização existente entre os entregadores de aplicativo, porquanto estejam à margem da sociedade e suscetíveis ao desgaste, adoecimento, acidentes de trânsito, preconceitos diversos e sofrimento mental.

Pela complexidade do processo, a investigação/intervenção no trabalho e na saúde dos entregadores requer articulação das áreas do trabalho, da saúde, dos estudos sobre território entre outras, sempre tomando as reais necessidades da classe trabalhadora como horizonte, no sentido de se opor à sua exploração e degradação.3 3 D. O. Souza: concepção e projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. W. T. B. Rodrigues e E. P. de A. Santos: análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada; responsáveis por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

Agradecimentos

Os autores agradecem à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Alagoas (Fapeal), pelo auxílio à pesquisa consentido via Edital 003/2022 - Auxílio à Pesquisa Humanidades, processo E:60030.0000001400/2022.

Referências

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  • 1
    Diante desse elemento novo, desconhecido por nós à época da elaboração do projeto desta pesquisa, fez-se necessário uma adaptação metodológica para investigar o funcionamento dos grupos. Essa etapa preliminar da investigação gerou resultados compilados em outro artigo (no prelo).
  • 2
    A questão da saúde dos trabalhadores, para Souza (2019) é expressão do antagonismo entre capital e trabalho, coadunando as facetas biológica e social do conjunto dos problemas de saúde enfrentados pela classe trabalhadora. Esse caráter universal assume formas particulares no tempo, no espaço e nos vários extratos de classe ou categorias profissionais, a exemplo do que temos constatado com os entregadores de aplicativo. Nesse caso particular, é possível constatar as marcas universais do antagonismo entre capital e trabalho, mas com diversas mediações: a plataforma digital, a falácia da autogestão, a organização territorial etc.
  • 3
    D. O. Souza: concepção e projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada; responsável por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra. W. T. B. Rodrigues e E. P. de A. Santos: análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; aprovação final da versão a ser publicada; responsáveis por todos os aspectos do trabalho na garantia da exatidão e integridade de qualquer parte da obra.

Editor responsável:

Rogério Azize

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2023
  • Revisado
    25 Jan 2024
  • Aceito
    20 Fev 2024
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