Resumo:
Os cantos yãmĩy, constantemente atualizados por grupos indígenas de língua maxakali, correspondem a miríades de seres extraordinários caros a uma esfera mítica. Fixos, perenes, apresentando pouco espaço para a improvisação, os yãmĩy são ao mesmo tempo marcados por uma disposição à dissolução ou a uma revisão permanente da forma, à medida em que se amplia o recorte analítico. O fluxo decorrente de uma trama citacional cerrada, com polarizações localizadas e constantemente ressignificadas, transforma as sequências de objetos diacrônicos em verdadeiras pulsações de zonas desenhadas diante de um fundo contínuo, à imagem de "diferenças internas" ou "superposições intensivas de estados heterogêneos" (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).
Palavras-chave: música ameríndia; cantos yãmĩymaxakali/tikmũ'ũn ; dinamismo dos objetos musicais
Abstract:
The yãmĩy chants, constantly actualized by maxakali speaking indigenous groups, correspond to a myriad of extraordinary beings, which are related to a mythic sphere. Fixed, perennial, and showing little space for improvisation, the yãmĩy chants are marked by both a disposition to dissolution and a constant revision of form as the analytical angle expands. The flux that follows a densely quotational tapestry, with local and constantly re-signified polarizations, transforms the sequences of diachronic objects into true pulse zones, designed over a continuous background, in the mode of "internal differences" or "intensive superpositions of heterogeneous states" (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).
Keywords: Amerindian music; yãmĩymaxakali/tikmũ'ũn chants; dynamism of musical objects
1 - Duas palavras em torno dos cantos "yãmĩy"
Diferentes autores vêm constatando a centralidade do trabalho acústico em diversos aspectos da vida daqueles que hoje são identificados, num plano intercultural, como maxakali ou tikmũ'ũn. A partir de diferentes focos específicos, assistimos a uma série de escritos onde a descrição e análise de práticas ligadas aos chamados "yãmĩy" se esforça em fazer justiça à importância que os próprios atores envolvidos lhes atribuem (ALVARES, 1992; CAMPELO, 2009; JAMAL, 2012; POPOVICH, 1988; ROMERO, 2015; ROSSE, 2013; TUGNY, 2011; TUGNY et al., 2009a e 2009b; VASCONCELOS, 2015; além de vídeos como MAXAKALI G. et al., 2009; MAXAKALI I., 2007; MAXAKALI M. et al., 2009; MAXAKALI J., MAXAKALI M. e VASCONCELOS, 2015; entre outros).
Os yãmĩy seriam o que podemos definir, dentro do horizonte indígena das terras baixas sul-americanas, como espíritos. Trata-se de um número não totalizável de seres ocupando diferentes camadas do cosmos, notadamente o céu, a floresta, o fundo das águas ou a intimidade dos cabelos dos humanos ordinários. De forma frequente, ainda que efêmera, os yãmĩy visitam os humanos deste mundo, em suas aldeias, em seus sonhos e pensamentos. Estes espíritos seriam a face subjetiva ou a possibilidade relacional daqueles na maior parte do tempo percebidos como outros: mortos ou ex-parentes, lugares, seres inanimados ou inorgânicos, gentes estrangeiras, bichos, astros celestes, máquinas, personagens míticos sem equivalentes diretos no plano experiencial imediato, animam entre outros os agentes extraordinários cuja materialização primeira se dá em modalidade musical, através de cantos.
Cabe aos homens e mulheres ordinários proporcionar o encontro constante com estes visitantes, acolhidos com carinho como filhos adotivos. Se os homens locais dedicam um esforço particular à articulação musical propriamente dita, acessorando os repertórios que equivalem às próprias vozes dos yãmĩy, as mulheres se responsabilizam pelo papel não menos central de alimentá-los, de dançar com eles, de se colocarem diante deles, estabelecendo um verdadeiro contraponto entre as esferas comunicacionais, ligadas pela tradução perspectivista em grande parte sonora.
Em consonância com o que parece constituir um traço recorrente da musicalidade ameríndia, os yãmĩy são melhor definidos em sua profusão. Inumeráveis, a apreciação de cantos em suas individualidades não parece apresentar um real rendimento. Retomando BASTOS, numa caracterização abrangente das músicas na grande Amazônia, "tudo leva a crer (...) que peças isoladas de música não parecem fazer muito sentido na região" (2007, p.299).
Apesar do grande número de repertórios e da extensão de cada um deles, os cantos yãmĩy equivalem a estruturas fixas, movimentando um trabalho amplo de memória e definição identitária. A maior parte dos cantos possuem "donos", indivíduos tikmũ'ũn mantendo uma relação especial com aqueles que seriam seus próprios yãmĩy ou os yãmĩy de sua família, herdados e legados dentro de linhagens familiais, acentuando assim contornos de grupos de parentesco. A idealização da imagem da alteridade assumida por esses seres delimita ainda em grande parte os traçados sociológicos de um "nós" imediatamente mais amplo.
A classificação dos yãmĩy é marcada por um tipo de impessoalidade, apresentando categorias mais do que nomes próprios. Essas mesmas categorias são ainda mobilizadas por meio de frequentes modulações de abrangência, um termo se referindo ora a uma peça, ora a um conjunto delas, ora finalmente a várias horas de atividade musical. Quando se fala de um yãmĩy em particular, seu nome guarda um sentido coletivo latente, sua voz se desdobrando permanentemente em muitas outras. De forma comparável à dos xapiri com os quais se dão os pajés yanomami, "quando se diz o nome de um espírito xapiri, não se evoca um só espírito, mas uma multidão de imagens semelhantes. Cada nome é único, mas os xapiri que ele designa são inumeráveis" (KOPENAWA e ALBERT 2010, p.99, tradução minha).
Não cabe aqui desenvolver uma glosa detalhada em torno da definição dos cantos/yãmĩy ou uma lista de nomes importantes dentro deste universo. Os interessados poderão recorrer a quadros a um só tempo mais gerais e aprofundados em TUGNY et al., 2009a ou b e ROSSE, 2013, entre outros.
Os aspectos parciais aludidos à guisa de apresentação constituem, entretanto, um ponto de partida mínimo ao comentário de alguns traços na enunciação de dois segmentos de cantos yãmĩy tratados a seguir. Esses segmentos são excertos de um repertório maior, ligado às yãmĩy de nome Kõmãyxop, duas mulheres de cabelos longos, uma delas identificada pela cor vermelha e a outra pela cor preta, vivendo na floresta ou no fundo das águas de um rio, encontradas pelos ancestrais tikmũ'ũn num plano mítico e que, a partir daí, vêm periodicamente às suas aldeias atualizar o mesmo encontro prototípico, onde cantos estrangeiros são trocados por alimentos, onde humanidades heterogêneas se equalizam durante e através de uma série de cantos, danças, refeições e outros gestos cerimoniais compartilhados.
2 - Um segmento da yãmĩy Kõmãyxop Preta
Em publicação anterior, pude contribuir à apresentação de um extenso registro sonoro dos cantos kõmãyxop, acompanhados da transcrição e tradução portuguesa de seus conteúdos verbais (MAXAKALI e ROSSE, 2011). Proponho a seguir a retomada de dois fragmentos desse repertório maior, o primeiro tirado dos cantos da chamada Kõmãyxop Preta (Kõmãyxop Mũnĩy), e o segundo dos cantos de seu duplo, Kõmãyxop Vermelha ('Kõmãyxop Ãta ou Xut Ta).
A observação desse material servirá na tentativa em se formular um diálogo entre traços composicionais recorrentes e uma caracterização mais abrangente da figura dos yãmĩy ou dos "espíritos" ameríndios, sua qualidade subjetiva, dinâmica ou agentiva.
Os cantos são relativamente curtos e obedecem a uma estrutura formal prévia invariável. Essa estrutura apresenta a alternância entre seções não exclusivas, retomadas entre cantos vizinhos, e seções individuais a cada um deles, obedecendo a um esquema "introdução - estrofe - interlúdio - estrofe - coda", a seção "primeira estrofe - interlúdio" podendo ou não ser suprimida.
A "estrofe" seria o espaço para os traços singulares de cada canto, as seções "introdução", "interlúdio" e "coda" atravessando vários vizinhos imediatos antes de ceder a novas versões. A estrofe seria ainda marcada por enunciados lexicais, enquanto o bloco formado pelas seções compartilhadas se estrutura a partir de termos fixos mas desprovidos de qualquer conteúdo semântico.
Dois grupos cantores masculinos se alternam na articulação de cada uma das peças, numa dinâmica responsorial. As vozes, em uníssono, têm por ideal uma textura homogênea.
Os materiais musicais iniciais são minimalistas, o registro melódico se restringindo a escalas dotadas de poucas alturas, sobre formulações poéticas curtas e reiteradas. A rítmica é predominantemente declamatória, os apoios não coincidindo com subdivisões regulares de uma unidade maior qualquer.
ROMERO, respaldado por Isael MAXAKALI, parte da tradução literal das partículas formadoras do termo yãmĩy - onde o enfatizador "yã" é seguido do verbo "mĩy / fazer" - para frisar sua associação à própria qualidade transformacional, àquilo que "está formando, formando, mas ainda não acabou..." (2015, p.82). O conteúdo verbal veiculado pelos cantos que acompanharemos a seguir, fundido ao estilo minimalista numa escala micro-formal, seria amplamente congruente com tal definição, apresentando formulações breves e fragmentárias, como num vislumbre parcial ou passageiro de um dado quadro.
Começamos assim nossa breve apreciação musical (Figura 1 a Figura 5) por uma imagem verbal condensada em poucas linhas, poucas alturas, que se abrem a seguir, à medida que se avança no repertório, na construção de novos enunciados.
2.1 - Os cantos de 1 a 5
Os cinco cantos iniciais enumeram quatro espécies animais diferentes, sem traços comuns aparentes - pica-pau, papa-mel, sucuri e cotia. A estrutura rítmico-melódica é praticamente a mesma para todo o conjunto: duas alturas com intervalo de uma terça menor, a mais grave sendo frequentemente pronunciada em vibrato, articuladas em três sentenças distintas que correspondem aos três versos de cada estrofe. Com a exceção praticamente única dos versos "xapux nã mi" dos cantos 1 e 2 e de "mõ xanet/mõ xanet nãmi" de 3, o contorno é idêntico para as quatro peças, que se diferenciam pelos conteúdos verbais exclusivos.
Apesar da primeira impressão, os quatro sujeitos mobilizados compartilham entre si alguns traços comuns: todos os quatro - pica-pau, papa-mel, sucuri e cotia - são apresentados em plena refeição: os dois primeiros bebem suco de mel; a terceira devora seu próprio marido, informação indireta acessível apenas a um público com conhecimento prévio da mitologia associada aos cantos; a última come "sua comida", num tom genérico.
Sem que ela seja explicitada verbalmente, a aproximação entre pica-pau e papa-mel remete ao ponto de vista da abelha, para a qual ambos os sujeitos seriam análogos. Um como outro dividem uma mesma imagem: eles veem a narradora/cantora (kõmãyxop ao mesmo tempo em que abelha) do "meio de um pequeno bando", eles se viram e veem ao encontro do seu suco de mel. Ambos estão, finalmente, "agarrados na árvore", postura anunciada no último verso de cada estrofe exclusiva1.
O primeiro verso da sucuri se constrói sobre um deslocamento prosódico onde as palavras "kãyãta" e "xeka" são seccionadas em benefício da regularidade métrica. Ainda que em 4 o conteúdo verbal seja muito diferente daquele do primeiro verso dos cantos 1/2 ou 3, mantém-se mesmo assim a partícula final "te". A sucuri guarda também em relação aos cantos que a precedem a indicação de uma posição "nãmi" / "deitada sobre uma superfície" - vertical e elevada num dos casos (a árvore), horizontal e baixa no outro (no chão). Finalmente, a sucuri e o papa-mel "xanet" / "gritam".
A cotia seria talvez o sujeito mais singular do grupo. Além dos traços gerais compartilhados - linha rítmico-melódica e referência à comida - ela conserva o ergativo "te", que marca o sujeito, e que aparece no final do primeiro verso, fazendo dele uma sílaba pedal que atravessa os quatro cantos.
Assiste-se aqui a um sistema de empréstimos ou de zonas de contato estabelecidas em passagens e proporções variáveis. Os materiais comuns entre as partes exclusivas dos cantos não se encontram num lugar ou apresentam um tamanho regulares. A exceção melódica dos versos "xapux nãmi" e "mõ xanet nãmi" dos cantos 1/2 e 3, respectivamente, ou a singularidade de 5 acentuam tal disposição.
O que os aproximadamente 170 cantos do momento cerimonial iniciado aqui vão mostrar é a multiplicação do processo de imbricação dinâmico a uma escala inter-subconjuntos de cantos.
Poderíamos propor uma divisão desta fatia do repertório kõmãyxop em blocos contendo, cada um, várias suites diferentes, dentro das quais são compartilhados materiais, notadamente entre as partes comuns (introdução, interlúdio, coda). Os subgrupos de cantos se diferenciariam assim antes de mais nada pelos conteúdos das partes exclusivas. Para se ter uma ideia, a introdução adotada de 1 a 4 será a mesma para todas as peças até 692, delineando um primeiro bloco homogêneo onde vão, porém, desfilar não menos que 16 suites diferentes. Os interlúdios e as codas, na maior parte dos casos, serão também idênticos. Outras vezes, eles se abrem em versões variadas, retomando, porém, uma parte importante dos materiais vizinhos, como veremos a seguir.
2.2 - Os cantos de 6 a 11
A suite 6-11 se articula a partir de uma forte referência musical aos cantos imediatamente anteriores: mesma introdução, enquanto a parte central e a coda são transformadas pela incorporação de dois versos iniciais.
A estrofe ou o interlúdio de 6 são formados cada um pela citação de linhas rítmico-melódicas de 5, às quais se associam novas linhas. 6 retoma assim o contorno onipresente na estrofe de 5, bem como os contornos dos três versos do interlúdio (Figura 6, parte sobre fundo cinza), que ele precede com enunciados originais.
7 amplifica a estrofe de 6, que ele dobra. O processo de dobramento reserva entretanto espaço a uma pequena diferenciação: as duas últimas sílabas da primeira tomada são melodicamente modificadas em sua repetição (Figura 7, detalhes sobre fundo cinza).
No plano fonético, assistimos a uma transformação em relação à estrutura precedente: "mõxip / intermitente" de 6 se torna "xaxip / direto" em 7 (Figura 7, sobre fundo cinza).
8 retorna a uma versão sucinta da estrofe. Ele modifica o contorno melódico do primeiro verso, mas mantém a silhueta "centro-baixo-centro-baixo" do segundo. No início da segunda linha do interlúdio, 8 articula duas vezes a primeira nota, e não uma só como em 7 (Figura 8).
A estrofe de 9 equivale à versão ampliada da de 8, à qual ela acrescenta um ritornello simples. O interlúdio, por sua vez, é em 9 amplificado por uma linha suplementar (Figura 9).
10 retorna a uma versão breve da estrofe e à versão do interlúdio com cinco versos/linhas melódicas (e não seis, como em 9) (Figura 10).
11 equivale à aumentação ou amplificação de 10, relação já estabelecida pelo par precedente 8-9. No lugar de um simples dobramento (como em 8-9), assistimos à adição de detalhes suplementares numa maior irregularidade da progressão. Na segunda linha do interlúdio, 11 opera assim uma multiplicação por três do primeiro motivo em "alto-alto-centro" (Figura 11).
2.3 - Os cantos 12 a 13
12 rompe com a tendência global acumulativa e retorna à versão inicial do interlúdio. Sua estrofe apresenta linhas melódicas novas, mesmo se a última delas é diretamente tirada dos contornos do interlúdio (Figura 12).
"'ĩkox", que adquire aqui o sentido de "cantar", corresponderia literalmente a "boca".
A pequena série 12-13 mostra um enunciado verbal inédito - "se quiser cantar". Paralelamente, ela estabelece toda uma série de ramificações citacionais: o fragmento de verso "xaxip hã nũ / vem direto" de 7 é retomado, ainda que ele adquira meio ao novo contexto uma tradução diferente - "se arruma e vem". Ela lembra a série 6-11 pela inversão, em 12, do movimento ascendente presente nas letras de 8/9 ("vai subindo"). Em 13, cuja estrofe traz os versos "se quiser cantar / pinta de urucum / pinta o rosto de vermelho, se arruma e vem", o rosto vermelho (presente já em 8/9) se aproxima da cor das flores da begônia de 10 e 11.
De forma sintética, vemos que o desenvolvimento melódico repousa aqui sobre mudanças sistemáticas mas a cada vez modestas. Essas mudanças apresentam soluções que primam por um ritmo irregular. Ainda quando se assiste a uma espécie de progressão (presente entre 5 e 11), ela se faz com a ajuda de diferentes operações: num momento se retoma uma linha à qual se associam novas linhas, em outro momento se repete uma linha, mudando ou não um detalhe interno, em seguida se repete não uma linha, mas um motivo, etc.
Além disso, tais mudanças se desprendem em grande parte não da implementação de novos materiais mas do remanejamento de citações ou de estruturas retomadas num círculo imediato.
Mesmo assim, e considerando agora também o contexto verbal de cada peça, a linha composta por elementos imediatos quase equivalentes leva na realidade, ao longo de seu prolongamento, a intervalos variados. A fluidez e a equivalência transformacional estendida na passagem direta entre os diferentes objetos conduz, numa escala imediatamente maior, a um novo enquadramento das zonas virtuais que serviam de matriz aos cantos.
Apenas no espaço desenhado entre 5 e 12, passamos assim por três "zonas" ou "suites" diferentes, polarizando cada qual um conjunto ligeiramente deslocado de traços: 5 seria o último canto da suite 1-5, marcada pela ideia de "alimento" e por uma armadura rítmico-melódica interna que é comum a todos os cantos; 6 e 11 representariam os limites de uma suite caracterizada pela cor "vermelha" bem como por uma progressão ou acumulação musical a partir da armadura de 1-5; e 12 seria o primeiro canto da suitecomposta por 12-13, onde se levanta a ideia autorreferencial de "canto" e se retorna a uma armadura mais sucinta (mas guardando laços com os cantos precedentes).
Se cada zona possui um número de particularidades que a singulariza, ela guarda ao mesmo tempo temas comuns com as outras, de onde a ideia de um novo enquadramento ou de um deslocamento muito mais do que de uma mudança categórica de paradigmas (Figura 13).
2.4 - Os cantos 14 a 21
De um ponto de vista verbal, os dois primeiros cantos do subgrupo 14-21 vão continuar o tema "se quiser cantar" do subgrupo imediatamente anterior (12-13), com a pequena modificação literária "se elequiser cantar" (Figura 14). A partícula "'õm" traduzida aqui por "ele" (e que aparecerá em seguida como "aquele") vai marcar quase todas as estrofes exclusivas dos cantos 14-21, ausentando-se apenas neste último.
A partir do canto 16, a temática verbal se volta a uma pequena lista de yãmĩy presentes em outras cerimônias - mĩm topa / picapauzinho-de-testa-pintada, Veniliornis maculifrons (16/17); xupapox / lontra (18); xamoka / cachoeira (19) - além de kup tap mã nãg / urubu pequeno (20) e putuxo tix nãk / tesoura-do-brejo, Gubernetes yetapa (21).
A mudança da temática verbal se dá sobre uma sensível continuidade melódica, a principal alteração equivalendo, a partir do canto 16, à simples eliminação da primeira nota/sílaba do segundo e quarto versos da estrofe (Figura 15).
2.5 - Os cantos 22 a 27 e 28 a 33
A série 22-27 toma de empréstimo a quase totalidade dos versos da série precedente, aos quais se aplicam novos contornos melódicos. Os únicos versos que não são retomadas são aqueles dos cantos 14-15, precisamente os que estabeleciam, a seu turno, a aproximação mais direta com a série 12-13. Este procedimento sistematiza então uma operação de imbricações entre os conteúdos dos polos opostos, por assim dizer, de cada conjunto: enquanto os blocos de cantos contrastam entre si através de identidades melódicas bem delimitadas, eles se articulam por empréstimos verbais entre suas respectivas extremidades.
Tais imbricações se prolongam ainda à série 28-33 que, a partir de uma nova versão melódica, escolhe sua temática verbal em continuidade com os últimos cantos da série diretamente anterior (guardando assim a menção ornitológica de 26 e 27).
Esta dinâmica poderia ser definida igualmente como um fluxo onde um termo comum justifica a transformação de um outro. Guarda-se uma imagem e muda-se o conteúdo melódico, guarda-se um conteúdo melódico e muda-se a imagem, guarda-se uma imagem e muda-se a fórmula verbal, a cor de uma pintura corporal (9) sugere uma flor (10), o cenário autorreferente à cerimônia em que se canta (14-15) sugere cenas de outras cerimônias (16-19), um yãmĩy pássaro (16-17) sugere outro pássaro (20), que se desdobra em seguida numa dezena de espécies diferentes (até 33).
2.6 - Os cantos 34 a 39, 40 a 45 e 46 a 51
As suites que se seguem, 34-39, 40-45, 46-51, confirmariam a mesma ideia (Figura 16). A lista de pássaros onde paramos (28-33) se abre ainda em variações melódicas (34-39, 40-45, 46-51), ao fim das quais o nome de uma espécie específica ("azulão / Cyanoloxia brissonii " em 40 e 41) declina em seu diminutivo, em referência a uma espécie semelhante de um ponto de vista cromático ("azulinho / Cyanoloxia glaucocaerulea" em 46), que dá ensejo por sua vez a uma variação taxonômica ("passarinho meu priminho" de 47 fazendo referência a uma qualquer espécie semelhante à do enunciador implícito "azulinho"), etc.
Excerto Kõmãyxop Preta, cantos representativos de quatro suites. Em 46, o termo "kõnãy", homônimo ao vocativo deixado deliberadamente sem tradução ("kõmãy" em maxakali corrente), equivale a "água" - "kõnãg" em maxakali corrente -, cuja imagem se desdobra em "rio" e "margem".
Seguindo estas transformações, encontramo-nos diante de um tipo de linearidade, exceto pelo fato de, a cada um de seus pontos de articulação, existir uma abertura nas possibilidades de direção a ser tomada: os termos cambiantes são imprevisíveis, eles passam de um domínio a outro - às vezes literário, outras vezes melódico, ou ainda plástico, seguindo uma imagem ou uma qualidade dessa imagem (Figura 17).
Subscrevo assim de perto o que TUGNY, considerando a qualidade da ordenação ou do agrupamento dos cantos do yamĩy morcego/xũnĩm, chamou de vicinalidade. Guiada em parte por seu conteúdo verbal, a autora descreve a passagem entre os diferentes cantos tendo por articulação singularidades capazes de atribuir novas direções ao discurso:
(...) Algumas vezes o canto metálico de um pássaro ferreiro [araponga] conduz ao homem branco trabalhando o machado, depois à foice e, em seguida, conduz a temas como a cachaça, o boi, o revólver. Outras vezes percebemos que estamos em um ambiente de copa das árvores onde se encadeiam cantos de macacos sobre os galhos, morcegos comendo frutas, ouriços, papa-méis. As singularidades que permitem a conexão de um canto ao outro podem ser de diferentes ordens. Aqui vimos o exemplo da proximidade do espaço (a copa das árvores), da semelhança entre sonoridades (o canto do pássaro ferreiro e o som do labor do metal por um homem não índio), de seus predicados (as armas do homem não índio: o metal, a cachaça, os bois). Os cantos então se aglutinam em torno de variados tipos de proximidade, podem seguir diferentes percursos, de acordo com encadeamentos que fazem com certas qualidades aglutinantes" (2011, p. 197). "(...) Existe sempre algo, ou várias coisas, se transformando entre um canto e outro. Existe sempre um ponto de proximidade, uma vicinalidade que tem o potencial de dar origem a uma nova direção (2011 p.198).
Este processo de ordenamento e de abertura discursiva de acordo com singularidades dadas entre os objetos levaria, como em kõmãyxop, a segmentos formais que privilegiam a mudança contínua: "Entendo que é possível pensar desta forma a sequência de uma noite de cantos: uma transformação contínua, uma 'linha mutante'. Um procedimento incessante de aproximação, aglutinação e diluição" (TUGNY, 2011, p.198)3.
2.7 - Pontos de contato entre vizinhos distantes: cantos 64 a 66, 52 a 55, 56 a 57, 58 a 59, 60 a 61, 62 a 63 e 67 a 69
Paralelamente a esta primeira forma de "vicinalidade" (adotando a expressão de TUGNY), existem ainda nós entre fragmentos de cantos afastados temporalmente uns dos outros, acrescentando uma camada de citações entre, desta vez, vizinhos distantes4. Se tomarmos como medida de comparação temas verbais, a série 64-66, que se segue diretamente a 46-51 e que versa sobre temas vegetais - planta, casca de pau, poaia - equivaleria a uma cesura dentro do tema "pássaros", retomado nas suites seguintes: 52-55, 56-57, 58-59, 60-61 e 62-63. Um eco à cesura vegetal vai rebater precisamente em 67-69, ou seja, ao fim de um intervalo de cinco suites.
Poderíamos caminhar assim, de eco em eco, à "direita" e à "esquerda" sem sair do segmento kõmãyxop sobrevoado até aqui (cantos 1 a 69):
- a imagem de integrar um coletivo "xop hã" (de araçaris-bananas) de 56-57, 58-59, 60-61 e 62-63 remete a uma imagem análoga "yãy tu" (com diferentes espécies de pássaros) de 40-45 e ainda ao pequeno bando "mũ' ĩ nõg xop" de 1, 2 e 3 (pica-pau e papa-mel)5 (Figura 18);
- a referência à boca/comida de 1-5 remete à boca/canto de "se quiser cantar/se ele quiser cantar" de 12-13 e 14-15, ou ao bico/céu da boca de 30-31 e 33, 36-37 e 39, 42-43 e 45, 48-49 e 51 (Figura 19);
- o bico/céu da boca preto da araponga e do japu ou simplesmente o preto das penas do guaxe em 48-50, 42-44, 36-38 e 30-32 remetem ao preto do urubu de 26 ou 20 (Figura 20);
- o urucum/vermelho das pinturas corporais em 6-9 retorna ainda, com fórmulas diferentes, em 13 ou 14, e lembra o bico vermelho do bicudo-encarnado fêmea de 33, 39, 45 e 51 (Figura 21);
- o termo "yĩ xux", azul ou verde de acordo com o caso, passa de uma folha e da poaia em 67 e 69 (e voltamos ao ponto de partida) ao araçari-banana em 52, 54, 56, 58, 60 e 62, novamente a folha/poaia/planta em 64, 66 e 67, em seguida a azulinho em 46, e a azulão em 40, 34 e 28 (Figura 22);
- as margens de 46-51 concordariam com lontra/xupapox ou cachoeira/xamoka de 24-25 e 18-19, ou ainda com a água da glosa de 6 (kõmãy que carrega água) e de 4 (sucuri) (Figura 23);
- a tristeza/choro das lontras de 18 e 24 concordariam, muito mais longe, com a tristeza e as lágrimas do araçari-banana em 52-55, 56-57, 58-59, 60-61 e 62-63 (Figura 24);
- o ato de virar a cabeça de lado dos diferentes sujeitos entre 28-29, 31-32, 34-35, 37-38, 40-41 e 43-44 lembra o movimento de "virar-se" em 1-3 (Figura 25);
- a postura "nã mi", corpo que repousa sobre uma superfície ou paralelo a ela, passa de 1-4 ("pica-pau agarrado num tronco de árvore" ou "sucuri no chão") a 28-66 ("pássaros deitados" ou "plantas que se espalham pelo chão") (Figura 26).
Assistimos a partir daí à emergência de diferentes níveis de leitura simultâneos à pronunciação de cada canto. Ao elo imediato de um objeto com seus vizinhos diretos, entre os quais se desenham linhas de continuação temática a nível verbal e não-verbal, se adicionam novas referências, desta vez de forma não linear, entre vizinhos remotos.
É verdade que o discurso global prevê o advento de novos materiais6. Eles emergem, porém, através do alargamento de um círculo cujas conexões internas permanecem num estado de rearranjo constante.
Trata-se, por um lado, de uma música onde a ideia de mudança gradativa é valorizada. Ouvimos cantos que se desenvolvem a partir de um movimento de diferenciação por vezes sutil a partir de cantos vizinhos. A reconfiguração de uma dada peça pelo simples evento de ritornelliinternos (relação estabelecida entre 1 e 2, por exemplo), as variações de breves contornos dentro de uma linha melódica (entre 1 e 6, por exemplo), a modificação de um termo verbal em um verso (entre 6 e 7), a modulação das séries de cantos através de um processo de flutuação de um parâmetro a partir da ancoragem de um segundo, correspondem todos a procedimentos composicionais que primam pela gradação no desenvolvimento do discurso.
Por graduais que elas sejam, estas mudanças são, no entanto, realizadas a partir de uma evolução dinâmica, imprevisível, arredia a percursos preconcebidos. Ao contrário, a forma global oscila ao sabor das correntezas e apresenta membros de proporções e qualidades muito heterogêneas - séries compostas por dois cantos, outras por mais de uma dezena, variações que passam de uma dimensão melódica às durações, das durações às letras ou ainda a imagens que, num primeiro momento, eram apenas secundárias. Essa irregularidade traz um caráter virtualmente infinito às variações, como se elas pudessem ser estendidas indefinidamente.
A gradação possui aqui menos um sentido acumulativo que transformacional. O que prima é a sustentação de um estado de diferenciação a nível dos menores intervalos. Assiste-se assim à coabitação de variações com forte teor em redundância, onde a dissonância das pequenas lacunas serve deliberadamente de motor produtivo.
A saliência desta imagem se dá em parte pelo próprio contraste que ela estabelece com a divisão muitas vezes operada em nossa sociedade entre as concepções de reprodução e criação. Uma simples atenção ao valor da inovação radical e constante em meio a uma parte importante das músicas clássicas ocidentais do século XX serviria de referência à amplitude deste contraste.
O ritmo dos pequenos desvios, cuidadosamente cultivados pela música kõmãyxop acompanhada até aqui e realizados através de uma linha diacrônica, repercute então sobre uma extensão material do tempo, sem a qual a multiplicação da diferença seria restrita.
Mas a longa duração parece se associar ainda a uma outra qualidade do sistema. Ela seria um substrato suplementar da subjetividade dos cantos e de sua experiência, na medida em que o prolongamento das estruturas se dá pela acentuação da dissolução dos objetos. Aqui, se vê/escuta de dentro. As tomadas globais são limitadas e dificultadas pelo remanejo constante dos materiais e pela ressurgimento de temas que poderiam ser considerados já concluídos. O prolongamento material serve de suporte à fluidez da forma ou à falta de coagulação de cada objeto, levando a uma aversão das categorizações externas coerentes7. A eficácia de uma categorização seria aqui diretamente proporcional à sua capacidade de remontar às proporções mais básicas, aos detalhes mais sutis.
Talvez resulte daí a organicidade de uma forma irredutível à síntese. Procedimentos da microestrutura podem ter um valor retórico idêntico àquele de procedimentos encontrados num nível formal superior (ver a "isonomia" ou "(...) relação de pertinência estrutural entre sequências, que se caracterizam como transformações (no sentido de Lévi-Strauss) de uma estrutura (...)" em BASTOS, 2007, p.300). Uma composição constantemente achatada, onde diferentes cantos ou conjuntos de cantos ocupam lugares hierarquicamente equivalentes no discurso.
3 - Um segmento da yãmĩy Kõmãyxop Vermelha
Proponho a observação de um segundo e último excerto do repertório das yãmĩy kõmãyxop, contrastante com o primeiro talvez menos em estilo do que em seu ritmo transformacional geral.
3.1 - Os cantos 1 a 57
Os três primeiros cantos dentro do novo bloco parecem derivar de um mesmo enunciado, desvendando a cada retomada um segmento suplementar, inicialmente deixado de lado. Esta expansão da forma se dá a nível das partes lexicais - a introdução, o interlúdio e a codapermanecendo fixos.
A primeira peça (1) mostra uma estrofe (chamemos de "A"), composta por dois versos - "kõnãy me mõy - kõmãy, vá nos passos dela / ĩy mõ koxi - venham ficar em minha casa". Ela se articula sobre o contorno melódico "Figura 27).", onde os dois graus se mantêm à distância de uma terça menor ligeiramente comprimida (
A peça seguinte (2), desenha uma estrutura "AB", onde B nada mais é do que a associação de uma nova linha melódica "Figura 28)." aos dois versos iniciais de A (
O canto 3, por sua vez, adiciona uma repetição de A à fórmula, num resultado "AAB" (Figura 29).
As letras, traduzidas por "kõmãy, vá nos passos dela / venham ficar em minha casa", põem em cena o convite dirigido às kõmãyxop. A primeira pessoa seria aqui a do anfitrião local, humano deste mundo, que mostra o caminho, que pede a uma das yãmĩy que siga a outra, e que se hospedem em sua casa.
Os cantos 4 e 5 concluem a progressão na apresentação de uma estrutura, que é desvendada finalmente por inteiro. Eles retornam respectivamente aos cantos 2 e 3, introduzindo ali um verso complementar no meio de cada "A". O resultado seria então, para 4, "A'B" (Figura 30), e para 5, "A'A'B" (Figura 31).
A estrutura final, "A'A'B" servirá de modelo para a série que se estende até o canto 57. O verso central introduzido em cada A, ao contrário dos dois outros, vai trazer conteúdos verbais exclusivos a cada peça. Apesar de constantemente renovado, o novo verso segue uma fórmula pedal, à qual acrescenta imagens diferentes, mas conectadas a um fundo semântico maior.
O convite interespecífico "kõmãy, vá nos passos dela / venham ficar em minha casa" é assim entrecortado pela rememoração de termos próprios a cada canto, ligados à aldeia e à vida doméstica, começando pela da família próxima: "ĩy tut yũm ma - lá onde está minha mãe". O bordão composto por "lá onde está..." vai ser em seguida complementado por novos sujeitos verbais - "meu pai", "o kõmãy", "seu pai", etc.
O processo de transformação destes sujeitos será construído num fluxo contínuo, guiado por duas linhas de força paralelas. Por um lado, as modulações de um sujeito a outro se apoiam em qualidades comuns entre imagens verbais de cantos diretamente vizinhos. Por outro lado, elas serão animadas pelas proximidades sonoras entre palavras-chave pelas quais se pronunciam as mesmas imagens.
Mesmo que ele seja aqui mais intenso, o primeiro processo já nos é familiar. Ele materializa um encadeamento de imagens onde cada par de elos da corrente é ligado por aspectos comuns direta ou indiretamente levantados. Assistiremos a três subgrupos bastante homogêneos deste ponto de vista. O primeiro corresponderia aos cantos 5 a 12, tendo por eixo temático alguns laços de parentesco. A familiarização dos yãmĩyconvidados na aldeia é explicitamente marcada pela identificação dos aldeães como seus "pais" e "mães", além do tratamento dos aldeães entre si pelo vocativo "kõmãy". A sequência "minha mãe", "meu pai", "o kõmãy", "seu pai", "yãmĩy", "yãmĩy cachoeira", mostra assim uma continuidade temática.
O subgrupo seguinte, cantos 13 a 28, trata sobretudo de uma matéria prima - o algodão - e de técnicas de uso associadas - filagem e tecelagem -, caras ao universo feminino. Ele começa justamente pela referência feminina "a vagina", seguida de "o algodão", "a rede grande", "a rede pequena", "a tipoia", "a tipoia carregada", "a tipoia pendurada", "a bolsa", "a touca de algodão", "a touca de algodão vestindo a cabeça", "o fio enrolado na flecha", "a filagem", "a fibra da embaúba", "as mechas de algodão" e "o fio".
O terceiro e último dos subgrupos vai do canto 29 ao 57. Mais longo, ele será também mais complexo no processo de mutação das imagens que, ao fim do percurso, atingem uma zona sensivelmente distante da inicial. Este distanciamento é, entretanto, resultado de associações sempre presentes num nível localizado, ainda que as características comuns que justificam a mudança de uma imagem sejam elas também progressivamente modificadas. Veremos o "pé de urucum" se desdobrar primeiro em diferentes formas e utilizações - "pé de urucum erguido", "suas folhas no alto da árvore", "as frutas no alto da árvore" e "as cascas secas" igualmente no alto da árvore, "a coagem da borra do suco de urucum", "o urucum maduro no alto da árvore", "a tinta do urucum" ou "a resina do urucum". Através da cor vermelha, o círculo em torno do urucum se transpõe ao passarinho tiê-sangue (Aramphocelus bresilius, macho), cujas penas são de um rubro acentuado. A mesma cor serve ainda de ponte para imagens ligadas à argila e à lama - "a panela de barro", "o leito do rio", "a areia no fundo do rio". O tema fluvial e o seguinte, em referência à casa, são articulados por dois elementos simultâneos. A imagem da argila lembra, de um lado, uma técnica de fabricação das paredes, onde o esqueleto em madeira é chumbado de terra vermelha úmida (pau-a-pique). De outro lado, a fórmula "lá onde está meu rio" (40) poderia ser lida simplesmente como a menção de uma kõmãyxop à própria casa, subaquática segundo uma das versões de seu mito fundador. "Meu rio", nesse caso, seria a versão kõmãyxop para "minha casa", tema prolongado pela enumeração de partes e materiais de construção - "a parede", "a cama", "o telhado", "o pau seco tombado", "o pau seco enganchado", "o pau seco erguido". Finalmente, a verticalidade da madeira dá lugar ao céu e a uma série meteorológica que inclui "a noite", "o jupará de pé" (mamífero de hábitos noturnos e que utiliza frequentemente a postura em pé, com apoio apenas sobre as patas anteriores), "o dia", "quase amanhecendo", "a névoa", "o orvalho", "a lua", "o sol nascente".
Se a imbricação entre determinados aspectos das imagens levantadas pelas letras já nos era familiar, o segundo mecanismo por meio do qual se orientam as transformações das imagens é, por sua vez, original. O mesmo segmento composto pelos cantos 5 a 57 vai mostrar, como anunciei logo antes, um fluxo transformacional paralelo balizado pela musicalidade das palavras8. Os versos exclusivos a cada canto remetem a uma evolução onde as expressões fazem prova de uma extrema inércia fonética. Para citar apenas, por enquanto, os primeiros cantos (5-14), teríamos assim os fragmentos seguintes: "ĩy tut" [iŋˈtɯɤɘ], "ĩy tak" [iŋˈtak̚], "kõmãk " [komãk̚], "xe tak " [tʃeˈtak̚], "yã mẽy" [ɲãˈmej] (exceção), “xa mok” [tʃabok̚], “tux muk ” [tɯjˈbɯk̚], “tux tok” [tɯjˈtok̚](eu sublinho).
Tais transformações provêm inicialmente de um léxico aberto. A partir do canto de número 15, elas serão reforçadas pelo jogo de declinações do verbo "ma". Todos os versos exclusivos (cada verso central da estrofe A) são até aqui realizados a partir de uma fórmula invariavelmente polissilábica ("ĩy tut yũm ma", "ĩy tak yũm ma", "kõmãk yũm ma", etc.), terminando pelo verbo "ma", traduzido grosso modo por "ser". Este verbo é, entretanto, modificado de acordo com a posição física adotada pelo sujeito no momento da enunciação. A conjugação não será a mesma se o sujeito verbal estiver "deitado / mi ma", "sentado / yũm ma", "de pé / xip ma" ou "suspenso / xup ma". Cada conjugação vai aglutinar informações suplementares ao verbo que, em diversos casos, será traduzido diferentemente do simples "ser". Enquanto "nãn kup yũm ma" é traduzido simplesmente como "lá onde está o pé de urucum", "nãn kup xip ma" é traduzido por "lá onde se levanta o pé de urucum".
Este recurso é aqui empregado como uma função orgânica do sistema variacional. As posições (tangíveis) dos sujeitos de cada imagem são responsáveis pela proliferação de pequenos intervalos, à guiza daqueles entre um mesmo sujeito com diferentes disposições - "a tipoia", "a tipoia carregada" e "a tipoia pendurada" - tanto quanto entre sujeitos diferentes e uma mesma disposição - "o pau seco erguido" e "a noite" ou ainda "o jupará de pé". Mas as posições dos sujeitos com suas partículas específicas correspondentes se implicam igualmente num movimento intenso de modificação plástica da palavra.
Assim, se retomarmos a série a partir do canto 14 e até a 57, guardando um olhar voltado para a sonoridade dos versos modificados, veremos ainda desfilar dezenas de associações, mostrando um potencial tímbrico ou propriamente musical importante, ainda que independente de vetores rítmicos, melódicos, de amplitude, etc. (Eu sublinho.)
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kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
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kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
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kõnãy me mõy / kõmãy, vá nos passos dela
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ĩy tut yũm ma / lá onde está minha mãe
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ĩy tut yũm ma / lá onde está minha mãe
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ĩy tak yũm ma / lá onde está minha mãe
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ĩy tak yũm ma / lá onde está meu pai
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kõmãk yũm ma / lá onde está o kõmãy
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xe tak yũm ma / lá onde está seu pai
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xe tak yũm ma / lá onde está seu pai
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yã mẽy yũm ma / lá onde está yãmĩy
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xa mok yũm ma / lá onde está a cachoeira
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tux muk yũm ma / lá onde está a vagina
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tux tok yũm ma / lá onde está o algodão
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tux tox xup ma / lá onde se estende a rede grande
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tut pe xup ma / lá onde se estende a rede pequena
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tux pe yũm ma / lá onde está guardada a tipoia
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tux pe xip ma / lá onde se carrega a tipoia
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tux pe xup ma / lá onde está pendurada a tipoia
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tut kox yũm ma / lá onde está a bolsa
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tux kox yũm ma / lá onde está a touca de algodão
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tux kox xip ma / lá onde se usa a touca de algodão
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tux kox xup ma / lá onde se usa a touca de algodão
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tux hĩy xip ma / lá onde estão enrolando fio na flecha
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tux nĩy yũm ma / lá onde estão fazendo fio
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tux hi xip ma / lá onde estão tirando a fibra da embaúba
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tux hox yũm ma / lá onde estão as mechas de algodão
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'ã hit yũm ma / lá onde está o fio
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nãn kup yũm ma / lá onde está o pé de urucum
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nãn kup xip ma / lá onde se levanta o pé de urucum
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nãnxuxxip ma / lá onde se levantam as folhas do urucum
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nãn tut xip ma / lá onde se levantam as frutas do urucum
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nãnxaxxip ma / lá onde se levantam as cascas secas do urucum
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nãn xap xip ma / lá onde se coa a borra do urucum
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nãn tap xip ma / lá onde se levanta o urucum maduro
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nãn kuk xup ma / lá onde está a tinta do urucum
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nãn tok yũm ma / lá onde está a resina do urucum
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nãn xat xip ma / lá onde se levanta o tiê-sangue
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na ix yũm ma / lá onde está a panela de barro
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ĩy kukxup ma / lá onde corre meu rio
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'ã mot mi ma / lá no fundo onde está a areia
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'ĩymet yũm ma / lá onde está minha casa
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mĩm xap yũm ma / lá onde está a casa
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mĩm xapxipma / lá onde está a parede
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mĩm xap mi ma / lá onde está a cama
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mĩm xapxupma / lá onde está o telhado
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mĩm tap mi ma / lá onde tombou o pau seco
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mĩm tap xup ma / lá onde ficou enganchado o pau seco
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mĩm tap xip ma / lá onde está de pé o pau seco
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ãm nĩy xup ma / lá onde está a noite
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'ãmtapxip ma / lá onde se levanta o jupará
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hãm tup xup ma / lá onde está o dia
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hãm xox xip ma / lá onde está quase amanhecendo
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hãm hox xup ma / lá onde está nublado
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hãm hep xup ma / lá onde paira o orvalho
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ãk mãn yũm ma / lá junto da lua
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xãy nẽy xip ma / lá onde se levanta o sol
Se então este material se constitui a partir de uma forte propensão às variações mais sutis, que fazem com que dois cantos muitas vezes se diferenciem apenas pela leve modificação de uma palavra, ele mostra também uma propensão à condensação ou às referências múltiplas de um mesmo enunciado. As linhas de transformação seguem ao mesmo tempo uma primeira orientação semântica, uma segunda orientação fonética, além de se situarem invariavelmente dentro de uma temática autorreferencial à cerimônia kõmãyxop e à vida em aldeia. Três linhas diretivas são assim trilhadas simultaneamente por cada um dos cantos, exibindo uma composição "minimalista".
De forma congruente, TUGNY descreve formas de acumulação semântica e de localização do enunciador encontradas nas letras de cantos dos yãmĩymorcego/xũnĩm e macaco/po'op (ou popxop), evidenciadas ainda por ilustrações gráficas de atores locais (2011, p.119-124). A autora cita por exemplo as palavras de dois cantos de po'op tratando da alimentação do urubu e de uma mudança de perspectiva: as larvas de bambu ingeridas pelo urubu em sua perspectiva humana são ao mesmo tempo larvas de carniça. Um desenho realizado à guiza de comentário desta passagem reúne, em um espaço pictórico único,
"os vários eventos que se cruzam neste canto: enquanto dança e canta na aldeia, os Po'op, transformados em urubus, comem larvas de taquara (morotós), mas os humanos veem esses alimentos como cobras [vermes em carcaças de serpente podres]. Dupla localização da pessoa que canta - na aldeia dançando e próximo às taquaras - e duplo olhar sobre o que se dá a ver pelo canto, uma larva de taquara e uma cobra" (TUGNY, 2011, p.120).
3.2 - Variação na invariância. Cinco novas versões da suite inicial: cantos 58-109, 110-161, 162-211, 212-261, 262-313
O primeiro jorro produtivo deste novo excerto musical, composto por um meio cento de peças, servirá em seguida de fator para uma série de novos desdobramentos, a partir de variações extra verbais. A lista inicial de imagens/fórmulas verbais exclusivas a cada canto será retomada na íntegra (com divergências desprezíveis) em outras cinco suites(num total de seis versões), através de um trabalho de remodelagem eminentemente formal9. A série de micro-paralelismos desenhados de um canto a outro se abre agora em uma nova série de blocos macro-paralelísticos.
De um ponto de vista material, muitos desses cantos não são efetivamente articulados durante uma cerimônia kõmãyxop. O tempo disponível não seria ali suficiente. Por uma questão de clareza analítica, mantenho aqui as versões ideais de cada suite, mesmo sabendo que na prática elas dão lugar a membros fragmentados: o plano tangível fragmentado mantém como lógica subjacente o roteiro virtual estendido.
A segunda versão (58-109) produz uma nova armadura estrutural que, em seguida, será ela mesma retomada por meio da variação melódica de um verso, dando origem à terceira versão(110-161). A moldura inicial (1-57) será assim substituída por uma segunda (58-109), e a segunda terá o conteúdo musical ligeiramente modificado para produzir uma terceira (110-161).
Ainda que a segunda e terceira versõessejam formalmente originais, elas retomam materiais e se orientam segundo uma linha próxima em relação ao modelo rítmico e melódico da primeira versão.
Além da remodelagem do fundo verbal que acolhe as imagens individuais a cada peça, assistiremos a uma mudança de disposição principalmente dentro das partes exclusivas: em vez de uma ordenação "abc abc ac", presente a partir do canto número 5 (Figura 32), teremos a partir de 58 simplesmente "aabc" (Figura 33). (A rotina do segundo grupo cantor é igualmente modificada. Excepcionalmente, ele não retoma cada canto em sua integralidade mas apenas a partir da segunda metade.)
O primeiro dos dois versos formando o mote contínuo da primeira versão "kõnãy me mõy / ĩy mõ koxi" é alterado a partir da segunda. No lugar dele, vamos ouvir "kõnãy yãm mẽ'ẽ mõ / 'ĩy mõ ko xi a". Existe uma afinidade fonética entre os fragmentos "me mõy" e o substituto "yãm mẽ'ẽ mõ", além de compartilharem um mesmo campo semântico, o verbo "mõ" ou "mõy", traduzido por "vir" ou "ir", sendo ali simplesmente conjugado em duas pessoas diferentes: "me mõy" seria a forma imperativa na segunda pessoa do singular, a expressão do pai ou mãe de kõmãyxop que diz a ela "vai"; enquanto "yãm mẽ'ẽ mõ" (em maxakali corrente "yũ mã mõ") equivaleria ao imperativo na primeira pessoa do plural, uma kõmãyxop que diz à outra "vamos".
Finalmente, "me mõy" traz à cena uma personagem fisicamente "atrás da outra", enquanto "yãm mẽ'ẽ mõ" as dispõe uma "ao lado da outra". Como havíamos notado com os marcadores "deitado/mi", "sentado/yũm", "erguido/xip" ou "suspenso/xup", empregados em torno do verbo "estar/ma", a variação da posição física dos sujeitos é mais uma vez um traço destacado das imagens.
O segundo verso, por sua vez, é modificado apenas pela adição de uma sílaba final "a", não lexical, que ajusta seu tamanho ao do verso precedente.
Assistimos assim a uma dinâmica próxima das transformações dos versos exclusivos observados nos cantos da primeira versão: concatenação fonética e semântica ou visual (através do apelo imagético das palavras).
A terceira versão (110-161) parte de um parentesco formal ainda mais significativo já que, como havia comentado, a diferenciação entre as séries vai repousar tão somente sobre uma fina variação melódica. A segunda versão mostra, sobre os versos "kõnãy yãm mẽ'ẽ mõ", um contorno melódico concentrado em dois graus "terceira adiciona um terceiro som à escala "Figura 34).", enquanto a ". A distinção entre os cantos de uma ou outra série repousa inteiramente sobre esta remodelação localizada da linha rítmica e melódica de um verso (
Não entrarei em detalhes na construção da quarta, quinta e sexta versões a partir da lista de imagens indo de "lá onde está minha mãe", "lá onde está meu pai" até "lá junto da lua" e "lá onde se levanta o sol". Elas seguem modificações estilisticamente homogêneas às anteriores. Comento rapidamente apenas um traço saliente: estes três segmentos vão apresentar um aspecto acumulativo dos versos lexicais (ver quadro logo adiante).
Enquanto as versões anteriores traziam versos invariavelmente curtos, compostos por uma única oração, os segmentos 162-211 (Figura 35) e 212-261 (Figura 36) mostram versos longos, com duas e três orações, respectivamente.
O último deles, 262-313, guarda os versos em orações triplas aos quais insere um novo perfil rítmico-melódico, num padrão de zigue-zague entre pares de sílabas (Figura 37).
O que apresento aqui de forma abstrata e sintética, colocando em relevo apenas as especificidades entre as diferentes versões é, entretanto, vivido pelos atores musicais em sua materialidade e sua duração. As modificações encontram sua razão de ser na repetição efetiva do material, o que equivale a uma diferença sensível entre o contexto intelectual do presente trabalho e aquele em torno da produção de sentidos kõmãyxop. A valorização da duração e da repetição são atestadas alhures no universo etnográfico ameríndio10. Ela se exprimiria aqui através de um traço sistemático, a repetição, que ocupa um lugar central, sendo invariavelmente acompanhada de um germe diferencial.
As seis variações em torno de um mesmo grupo de imagens, elas mesmas variações recíprocas, indicariam um gosto pela exponenciação de um material inicial circunscrito, dentro de um quadro de alto teor reiterativo. Na prática, como o tempo disponível para a festa diante das yãmĩy kõmãyxop é limitado, vários dos cantos deverão e serão deixados de lado. Isto não muda profundamente o ideal estético já confirmado pela parte do repertório materialmente articulada, e que se vê prolongar através das estruturas que permanecem virtuais.
Mais uma vez, longe de uma ideia qualquer de síntese, resumo, tendo em vista uma conclusão, acordo, "repouso", o que se vê assim é uma proliferação sem fim, ramificação, como o segundo termo da antítese entre "o mármore e a murta" (Viveiros de Castro, 2002a), ou ainda onde, ao contrário do dito popular, "o que é bom dura muito".
4 - Considerações finais
Ainda que sobre outras bases, me aproximo aqui de ideias na verdade já tratadas por VIVEIROS DE CASTRO num trabalho sobre a ontologia dos espíritos na Amazônia (2006), particularmente inspirada nos minúsculos e inumeráveis xapiri yanomami (aos quais fiz uma breve alusão inicial). Ele caracteriza ali essa qualidade pregnante do regime mítico justamente como uma "diferença interna", uma "multiplicidade qualitativa", ou ainda como uma "superposição intensiva de estados heterogêneos". Segundo seus próprios termos:
[O] pré ou proto-cosmos [o passado mítico], muito longe de exibir uma 'indiferenciação' ou 'identificação' originárias entre humanos e não-humanos, como se costuma caracterizá-lo, é percorrido por uma diferença infinita, ainda que (ou porque) interna a cada personagem ou agente, ao contrário das diferenças finitas e externas que constituem as espécies e as qualidades do mundo atual (Viveiros de Castro, 2001). Donde o regime de 'metamorfose', ou multiplicidade qualitativa, próprio do mito: a questão de saber se o jaguar mítico, por exemplo, é um bloco de afetos humanos em figura de jaguar ou um bloco de afetos felinos em figura de humano é rigorosamente indecidível, pois a metamorfose mítica é um acontecimento ou um devir (uma superposição intensiva de estados heterogêneos), não um processo de mudança (uma transposição extensiva de estados homogêneos) (VIVEIROS DE CASTRO, 2006, p.323, grifos meus).
De acordo com o autor, o conceito de "espírito" na Amazônia operaria como um laço entre essas duas dimensões - pré-cosmológica virtual e cosmológica presente. O espírito seria assim menos um objeto que uma relação.
As equivalências que o espírito estabeleceria entre as duas esferas, seu trabalho comunicacional, não seriam da ordem da reiteração, mas passariam justamente por equivalências de fundo que pressupõem concretizações ligeiramente deslocadas entre si e que não podem englobar ou esgotar sua matriz generativa. Uma comunicação que privilegia então o movimento e a profusão de objetos, seguida, entretanto, de uma eterna incompletude.
(...) [uma] relação de vizinhança obscura entre o humano e o não-humano, uma comunicação secreta que não passa pela redundância, mas pela disparidade entre eles [o humano e o não-humano]: (...) 'uma zona de indistinção, de indiscernibilidade, de ambiguidade se estabelece entre dois termos, como se eles houvessem atingido o ponto que precede imediatamente sua diferenciação respectiva: não uma similitude, mas um deslizamento, um avizinhamento extremo, uma contiguidade absoluta; não uma filiação natural, mas uma aliança contra-natureza...' (DELEUZE, 1993, p.100) (VIVEIROS DE CASTRO, p.326, sublinhado do original).
Em sua análise mais propriamente lógica do que formal, o autor privilegia abertamente a "visão" como sentido ou instrumento na comunicação entre as duas esferas - humana e não-humana, pré-cosmológica virtual e cosmológica presente - a partir principalmente da caracterização do "brilho" na descrição circundando diferentes espíritos e experiências xamânicas amazônicas (provenientes sobretudo do norte da América do Sul e de grupos que se dão ao consumo de substâncias alucinógenas)11.
Ora, a abordagem aqui adotada, particularmente concentrada na análise de aspectos formais ou de linguagens sensíveis, parte justamente da constatação de uma importância flagrante atribuída à sonoridade ou à musicalidade por uma sociedade afiliada ao complexo etnológico dito amazônico (habitando terras muito mais ao sul e não apresentando uma cultura sistemática de ingestão de substâncias modificadoras da percepção). Sem se opor à presença constante de imagens veiculadas num plano sonoro/verbal, a musicalidade se junta a ela exatamente em gestos de personificação dos "espíritos" e na constituição de uma instância coletiva propriamente xamânica.
Colocadas tais divergências inciais, os excertos kõmãyxop aqui observados sugerem termos gerais congruentes à ideia de uma "superposição intensiva de estados heterogêneos".
As transformações constantes do material musical denotariam um princípio de composição onde uma infinidade de objetos emana de zonas ou nebulosas polarizando determinadas qualidades ou determinados "afetos" - forma, perfis melódicos, traços fonéticos, temas e fórmulas verbais, ou ainda aspectos secundários das imagens levantadas verbalmente. Esses objetos nunca se formulam a partir da cópia extensiva, mas da diferenciação intensiva ou interna, expressa por uma divergência muitas vezes ínfima, onde os cantos personificam uma busca incansável da repetição, ao mesmo tempo em que tomam delicadamente o cuidado de jamais alcançá-la.
Não se trata assim tanto de variações de um objeto inicial proeminente, mas de variações a partir de um conjunto de premissas. Este conjunto é ele mesmo ligeiramente fluido. O aspecto ambivalente, as fronteiras espessas, representam justamente a possibilidade de uma multiplicação infinita de atualizações próximas, mas sempre díspares umas das outras, onde a transformação ocupa em si um lugar importante.
O modelo para uma série de cantos aparentados seria deduzido de forma aproximativa a partir do cruzamento desses objetos, mas não poderia ultrapassar o estado invariável de rascunho. O modelo de origem a um conjunto de cantos não se reduz a uma imagem fixa, se encontrando permanentemente além ou aquém dela. Os limites do que proponho aqui de forma esquemática como "um conjunto" ou "uma série" de cantos corresponderiam, como vimos de forma patente ao longo de determinados trechos analisados, a zonas turvas ou ambíguas, podendo remeter em realidade a mais de uma direção.
Partindo do outro extremo do processo, o movimento fluido gerado pelas transformações consecutivas dos cantos pode conduzir por sua vez, a mais longo prazo, ao deslocamento da própria zona ou nebulosa inicial.
Num caso, a zona inicial equivale a uma fonte generativa sensivelmente aberta. No outro, os objetos dando corpo a essa zona são bem circunscritos e mesmo sucintos, como atestam as dimensões dos cantos kõmãyxop. Seu encadeamento cria entretanto um movimento sutil de divergência conduzindo, a intervalos mais ou menos importantes, a uma revisão da zona matricial. Numa como noutra direção, os yãmĩy fariam assim vibrar tal ou tal região de um espectro que é, ele, contínuo.
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1
A aproximação entre pica-pau e papa-mel pelo intermédio do mel é patente nas terras baixas da América do Sul indígena. Ela é trabalhada em "do mel às cinzas" (LÉVI-STRAUSS, 2005 (1966)) a partir do cruzamento de mitos do Chaco e das Guianas, em torno da "mulher louca por mel".
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2
A mesma introdução é ainda retomada de 81 a 100 e de 105 a 132, dos quais não trataremos aqui.
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3
Tal natureza variacional seria sensivelmente diferente da "variação em desenvolvimento" ou "variação progressiva" teorizada por Schönberg, onde as transformações em escala expandida mantêm-se, entretanto, ancoradas na ideia de sua Grundgestalt, uma matriz inicial que "contenha todo o material gerador da música subsequente" (ALMADA, 2010, p.101). Se fosse necessário, poderia ainda levantar a relação praticamente contrária do sistema variacional premente na música de Schönberg diante da ideia de "repetição": "Cada uma de minhas ideias musicais essenciais é enunciada uma só vez; dizendo de outra forma, eu me repito pouco ou não me repito de forma alguma. É a variação que substitui quase totalmente em minhas obras a repetição (uma exceção a essa regra será raramente encontrada) [...] Eu já confessei honestamente minha maneira de agir: nunca me repetir, ou quase nunca (SCHÖNBERG, 1977, p.85-86, citado por LOUREIRO, 2013, p.112, grifos meus). Uma aproximação possível se daria mais exatamente com as "deduções localizadas e variáveis" desenvolvidas por Boulez, como proposto por TUGNY (2015) em artigo inspirador para o atual trabalho.
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4
O que me lembra irremediavelmente a experiência de escuta de Shine on you crazy diamond (PINK FLOYD, 1975), onde a construção de impressões de déjà vu é ostensiva e bem-sucedida. Trata-se aliás de uma música que só é possível graças a uma duração prolongada, prescritivamente longa.
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5
Nos quadros a seguir, um único canto será escolhido para exemplificar o grupo inteiro do qual ele provém. 56 seria então a ilustração adotada para todo o segmento 56-63; 40 a ilustração para todo o segmento 40-45; 1 a ilustração para todo o segmento 1-3; e assim por diante.
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Ainda que seu conteúdo seja razoavelmente orientado: temas verbais e imagens fortemente ligados à cerimônia - cores que identificam as duas kõmãyxop, pintura corporal, referência ao ato de cantar (inclusive na presença de pássaros) ou comer - e um material melódico restrito - escala minimalista, partilha de estruturas comuns, variações com uma elevada taxa de redundância.
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Para uma ideia de permeabilidade da pele dos yãmĩy, em oposição à rigidez da pele do monstro canibal ĩymõxa, ver TUGNY, 2008.
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Seria inclusive difícil falar aqui em termos dicotômicos entre "letra" e "música", já que a musicalidade das palavras ocupa um papel ativo na construção de sentido. Os trechos contínuos de canto não-lexical empregariam por sua vez o caminho inverso, injetando verbalidade nas linhas melódicas.
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Bem mais tarde, uma sétima e uma oitava versões serão ainda esboçadas. Por uma mera questão de praticidade, estas duas últimas variantes não serão tratadas aqui.
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Para a região das Guianas, ver BEAUDET, 1997, p.114.
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A este título, CESARINO (2011) propõe uma associação apoiada entre arte verbal e pensamento visual entre os Marubo, grupo do noroeste amazônico e cujas práticas xamânicas são estreitamente ligadas à tomada de ayahuasca. O autor evidencia ali um esquema estrutural de fórmulas poéticas, que pode ser transposto em signos gráficos ou em configurações coreográficas. A importância patente do registro visual não deveria, entretanto, ser lida em chave exclusivista. No mesmo volume em que escreve Cesarino, e justamente em crítica ao privilégio visual atribuído pelo texto de Viveiros de Castro em foco, LUCIANI elabora o parágrafo seguinte, que dispensa outros comentários: (...) Viveiros de Castro (2007) já formulou alguns comentários a respeito da dimensão perspectivista das relações entre xapiri ["espíritos" yanomami], humanos e animais. Me contentarei então em acrescentar que a narrativa de Kopenawa [sobre a qual se inspira em parte o texto de V. C.] mostra também que as mudanças de foco perspectivistas, longe de se confinarem ao domínio do visual, têm equivalentes a nível acústico (com ou sem conteúdo verbal). Se é importante ser visto pelos xapiri, de chamar sua atenção, não é menos importante aprender a compreendê-los, a escutá-los e, sobretudo, a responder a seus cantos. A beleza e a veracidade dos cantos são temas recorrentes desse trabalho, bem como o da obrigação em respondê-lo se se quer adquirir o conhecimento xamânico. Se de fato é necessário morrer e se tornar si mesmo um espectro para ver exatamente como um xapiri, pode-se, no entanto, reproduzir seu conhecimento e seus cantos adquirindo uma língua e uma garganta comparáveis às deles. A 'descoberta' do perspectivismo amazônico surgiu de um estudo de flutuações de perspectivas no registro verbal (VIVEIROS DE CASTRO 1992), mesmo se em seguida a ênfase sobre o visual como que suplantou esta dimensão. A narrativa de Kopenawa deixa a entender que teríamos muito a ganhar com a retomada da questão sob o ângulo auditivo (LUCIANI, 2011, p.348).
Referências
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- 3BASTOS, Rafael José de Menezes (2007). "Música nas sociedades indígenas das terras baixas da América do Sul: estado da arte". Mana v.13, n.2, p.293-316.
- 4BEAUDET, Jean-Michel (1997). Souffles d'Amazonie. Les orchestres tule des Wayãpi Paris: Société d'ethnologie, Collection "Hommes et musiques" de la Société française d'ethnomusicologie.
- 5CAMPELO, Douglas Ferreira Gadelha (2009). Ritual e Cosmologia Maxakali: uma etnografia sobre a relação entre os espíritos-gaviões e os humanos Belo Horizonte: FAFICH-UFMG. (Dissertação de mestrado.)
- 6CESARINO, Pedro de Niemeyer (2011). "Entre la parole et l'image : le système mythopoétique marubo". Journal de la Société des Américanistes v.97, n.1, p.223-258.
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- 8KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce (2010). La chute du ciel: paroles d'un chaman yanomami Paris: Plon.
- 9LÉVI-STRAUSS, Claude (2005 (1966)). Do mel às cinzas São Paulo: Cosac Naify.
- 10LOUREIRO, Eduardo Campolina Vianna (2013). A técnica e os processos criativos no século XX: entre as artes visuais e a música Belo Horizonte: EBA-UFMG. (Tese.)
- 11LUCIANI, José Antonio Kelly (2011). "Compte rendu de Kopenawa Davi & Bruce Albert, La chute du ciel. Paroles d'un chaman yanomami". Journal de la Société des Américanistes v.97, n.1, p.339-357.
- 12MAXAKALI, Toninho; ROSSE, Eduardo Pires (orgs.) (2011). Kõmãyxop - cantos xamânicos maxakali/tĩkmũ'ũn Rio de Janeiro: Funai/Museu do Índio.
- 13POPOVICH, Frances Blok (1988). Social Power Through Ritual Power In Maxakalí Society. Pasadena: Faculty of the School of World Mission - Fuller Theological Seminary. (Tese.)
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- 15ROSSE, Eduardo Pires (2013). Kõmãyxop: étude d'une fête en Amazonie (Mashakali/tikmũ'ũn, MG - Brésil). Nanterre: Lesc - Université Paris Ouest. (Tese.)
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- 17______ (2011). Escuta e poder na estética tikmũ'ũn. Rio de Janeiro: Museu do Índio/FUNAI.
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- 4PINK FLOYD (1975). "Shine on you crazy diamond". Wish you were here. (Disco)
- 5MAXAKALI, Josemar; MAXAKALI, Marilton; VASCONCELOS, Bruno (2015). Cantos em um encontro de pajés Tikmũ'ũn_Maxakali Vídeo digital, cor, 34 min.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
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Recebido
07 Fev 2015 -
Aceito
19 Set 2015